Resumo: O artigo discute a oposição entre espaços públicos e espaços de mobilidade a partir da análise das performances políticas durante manifestações que ocorreram nas cidades de Belo Horizonte e Rio de Janeiro no ciclo de protestos entre 2011 e 2014, no Brasil, período que antecedeu os megaeventos esportivos nas duas cidades. A partir da análise comparada e quantitativa de notícias jornalísticas, identificamos o papel da mobilidade como um elemento central na constituição de uma esfera pública local no que se refere à construção de agendas e na construção de uma espacialidade para a estruturação dos repertórios políticos. Os resultados indicam que os espaços públicos da mobilidade se transformaram em lugares de contestação da ordem, enquanto as práticas móveis se tornaram performances que visavam produzir rupturas nos fluxos para produzir visibilidade para as pautas políticas. No entanto, encontramos diferenças no uso dos espaços públicos cariocas e belo-horizontinos, especialmente em termos do número de manifestações, os tipos de agentes e das estratégias acionadas nos protestos. Indicações iniciais parecem evidenciar que a dicotomia entre estas formas de espacialidade é bastante frágil na compreensão das manifestações políticas contemporâneas.
Palavras-chave: Ações contenciosas, espaços públicos, manifestações, mobilidade urbana, Belo Horizonte (Brasil), Rio de Janeiro (Brasil).
Abstract: The article discusses the opposition between public spaces and spaces of mobility based on the analysis of political performances during demonstrations that took place in the cities of Belo Horizonte and Rio de Janeiro in Brazil, between 2011 and 2014, years that preceded the sporting mega-events in the two cities. From the comparative and quantitative analysis of journalistic news, we identified the role of mobility as a central element in how political agendas were constructed in the local public sphere, regarding the construction of agendas and the creation of a spatiality for the structuring of political repertoires. Results indicate that public spaces of mobility became spaces where order was contested, while mobile practices became performances that aimed to produce ruptures in flows to produce visibility for political agendas. However, we found differences in the use of public spaces in Rio de Janeiro and Belo Horizonte, especially in terms of the number of demonstrations, the types of agents and the strategies used in demonstrations. Preliminary results suggest that the opposition between these forms of spatiality is quite fragile in understanding contemporary political manifestations.
Keywords: Contentious actions, demonstrations, public spaces, urban mobility, Belo Horizonte (Brazil), Rio de Janeiro (Brazil).
Resumen: El artículo debate la dicotomía entre espacios públicos y espacios de movilidad con base en el análisis de las performances políticas durante manifestaciones realizadas en las ciudades de Belo Horizonte y Río de Janeiro entre 2011 y 2014 en Brasil, período que precedió a los megaeventos deportivos en las dos ciudades. A partir del análisis comparativo y cuantitativo de noticias periodísticas, identificamos el papel de la movilidad como elemento central en la constitución de una esfera pública local en relación con la creación de agendas y de formas de espacialidad en el proceso de estructuración de repertorios políticos. Los resultados indican que los espacios públicos de movilidad se convirtieron en espacios de contestación del orden, mientras que las prácticas móviles se convirtieron en performances que pretendían producir rupturas en los flujos para producir visibilidad para las agendas políticas. Sin embargo, encontramos diferencias en el uso de los espacios públicos en Río de Janeiro y Belo Horizonte, especialmente en términos del número de manifestaciones, los tipos de agentes y las estrategias utilizadas en las protestas. Los indicios parecen mostrar que la dicotomía entre estas formas de espacialidad es bastante frágil para la comprensión de las manifestaciones políticas contemporáneas.
Palabras clave: Acciones contenciosas, espacios públicos, manifestaciones, movilidad urbana, Belo Horizonte (Brasil), Rio de Janeiro (Brasil).
Artículos
Espaços públicos em movimento: mobilidade nas manifestações em Belo Horizonte e Rio de Janeiro
Public Spaces in Motion: Mobility in Demonstrations in Belo Horizonte and Rio de Janeiro
Espacios públicos en movimiento: movilidad en las manifestaciones en Belo Horizonte y Río de Janeiro
Recepção: 16 Maio 2022
Aprovação: 25 Janeiro 2023
Nos estudos urbanos há uma oposição entre espaços públicos e espaços de circulação. Os espaços públicos são costumeiramente evocados por sua densidade política e complexidade social, como lugares de encontro, apropriação, resistência, conflito e normatização. Por sua vez, os espaços de circulação são caracterizados em um sentido oposto, como meros suportes para o deslocamento, despossuídos de quase toda a carga social e política que os subjazem (Módenes, 2008). Essa dualidade tem, no entanto, perdido a sua força demonstrativa, seja no meio acadêmico, seja no âmbito das políticas públicas. Nota-se, entretanto, que há uma revisão da discussão, o que inclui a criação de novos modelos de ordenamento territorial e a ampliação das abordagens teóricas sobre a ideia de mobilidade.
O artigo pretende identificar o papel da mobilidade na constituição da esfera pública a partir da análise de protestos nos espaços públicos de duas cidades brasileiras ao identificar como a composição e a intensidade da agenda política de mobilidade urbana se apresenta nas cidades de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro; e como os espaços públicos de mobilidade urbana e as performances em movimento são importantes para entender as esferas públicas locais.
Segundo a literatura sobre o tema, os ciclos de protestos que ocorreram no Brasil teriam se iniciado em 2011 e atingido o seu auge em junho de 2013, com importantes desdobramentos até o ano de 2014. As pautas incluíam o acesso a bens e serviços públicos e protestos contra a forma como os megaeventos afetaram essa oferta de serviço (interdição dos espaços, obras inacabadas, remoção de ocupações urbanas, aumento dos valores de transporte público). Elencamos, a partir desse ciclo, como a questão urbana foi enquadrada dentro dessa temática. Em seguida analisamos a importância da linha de estudos de políticas contenciosas e da mobilidade enquanto demanda articuladora dos protestos, performances e repertórios. Para tal, relacionamos política contenciosa, espacialidade e mobilidade.
O estudo comparado das duas cidades buscou analisar os protestos em termos dos repertórios, demandas, objetos de disputa e performances, enquadrando este ciclo como um acontecimento em escala nacional em torno de pautas referentes à questão urbana (Tavares et al., 2016, p. 157). Para tal fim, identificamos os protestos acontecidos entre 2011 e 2014, no intuito de evidenciar as mudanças nas práticas de protestos decorrentes da crise de institucionalidade durante a realização dos grandes eventos da Copa do Mundo de Futebol e dos Jogos Olímpicos. Nesse marco, a parte final do artigo visa apresentar as discussões sobre os resultados em termos de suas espacialidades, temporalidades e relações de poder contidas nas agendas, pautas, performances e agentes envolvidos.
A oposição entre espaços públicos e espaços de circulação tem sido entendida segundo três dimensões. Primeiro, em termos de sua forma, que poderia ser interpretada como uma dicotomia entre fixos e fluxos ou lugares e redes. Segundo, em termos do seu potencial político, onde se percebe a mobilidade como sintoma da perda da esfera pública e da expansão dos espaços abstratos. Terceiro, em termos da sociabilidade, a qual parece residir nos espaços de permanência, onde os laços de identidade permitem a apropriação pública, ausente das redes de circulação rápida, que tendem a valorizar o anonimato e o desenraizamento.
As teses sobre a morte do espaço público são desdobramentos de teorias sobre o fim do espaço, do território e do lugar, ou seja, de todo fenômeno que se expressaria em termos de área, de contiguidade física ou afetiva. O urbanismo modernista seria o veículo que expressaria esse fenômeno no espaço urbano. A sua lógica, apoiada em princípios de um capitalismo global, “sem fronteiras”, produziria espaços homogêneos, não lugares ou espaços da hipermobilidade (Augé, 2021). Tal lógica seria responsável pela criação de ambientes sociais homogêneos, esvaziados da dimensão pública da vida urbana (Jacobs, 1992). Estes fenômenos resultam da institucionalização de modelos de cidade que favorecem a suburbanização, a especialização funcional e a ênfase no transporte privado e na construção de vias expressas (Borja e Muxí, 2003; Sennett, 2001).
Henri Lefèbvre (2007, 2008) propõe uma radicalização desse entendimento, ao sugerir que a forma como concebemos o espaço afeta a maneira como produzimos as cidades. Ao tratar da dicotomia entre cidade como produto e cidade como obra, Lefèbvre nos indica que como produto, a cidade é uma forma criada para a reprodução do capital, sem finalidade para a experiência social no mundo e alheia às necessidades dos cidadãos. A este tipo ideal teríamos a cidade como obra de arte, fruto das relações sociais, da apropriação do espaço e da contestação dos cidadãos, aspectos que fortaleceriam os vínculos e as identidades sociais.
A postura teórica de Lefèbvre foi, em seguida, acompanhada por autores como Harvey (2006), Mitchell (2003), Zukin (2008), Light e Smith (1998) Low e Smith (2013), entre outros. Para estes autores os espaços produzidos sob a égide do capitalismo promovem a circulação e a integração dos indivíduos aos mercados globais em detrimento das experiências de lugar, da construção de identidades locais e do debate coletivo.
Esta postura dicotômica ocupa há algumas décadas uma posição hegemônica no âmbito das ciências sociais. O deslocamento parece não possuir um conteúdo político e representa um “não lugar” (Augé, 1995), o qual estaria depositado em espaços institucionais, como câmaras e fóruns, idealizados como lugares de ordem e de luta democrática. Esta perspectiva tem sido contestada. Visões alternativas têm apoiado a construção de um debate mais aberto sobre esta oposição, o que já é notável na produção acadêmica e na criação de políticas públicas urbanas.
A visão dicotômica não é resultado de um debate que se refere exclusivamente aos espaços públicos. Ela foi construída em relação ao tema da circulação e do transporte. Até os anos setenta, parte das pesquisas sobre o tema privilegiaram esta visão abstrata e funcional sobre os problemas econômicos e técnicos do movimento. As redes de transporte motorizado, por exemplo, eram concebidas como estruturas de suporte aos fluxos e como elementos articuladores que constituíam as regiões econômicas (Seguí Pons e Petrus Bey, 1991). Progressivamente esta visão reducionista mudou. A partir dos anos oitenta surgiram estudos que ampliaram a discussão realizada até então, incluindo aspectos de acessibilidade, desigualdade social, questões políticas, experiências de usuários e dimensões da cultura urbana. Esta renovação do debate foi denominada como “virada da mobilidade” (Cresswell e Merriman, 2010; Kaufmann, 2002; Sheller e Urry, 2006; Urry, 2007).
A acessibilidade foi um elemento norteador desta nova perspectiva. Foram identificadas diferenças significativas nas oportunidades e capacidades que os indivíduos têm de usufruir dos benefícios urbanos, tendo como fundamento as demandas de transporte. Aspectos como a localização, a raça, a idade, o gênero e a classe social tomaram parte nesse processo (Cardoso, 2007; Kaufmann et al., 2004). Em virtude disso houve um crescente interesse sobre as percepções e os comportamentos dos usuários e um significativo investimento em metodologias quantitativas, etnografias e produção de mapeamentos das práticas dos agentes sociais.
Neste decurso, as práticas de deslocamento passam a ser consideradas espaços para a constituição de identidades urbanas (Cresswell e Merriman, 2010; Jensen, 2010). A mobilidade, vista a partir dessa perspectiva, questiona as identidades e as instituições clássicas para compreender a vida urbana. Noções como a de deslocamentos pendulares ganham novos sentidos ou são reimaginadas como parte de uma complexa rede física e de sociabilidade. Constituem-se, assim, subjetividades móveis, que implicam diferentes formas de apropriação dos lugares.
As identidades estão associadas também à construção da política urbana. A mobilidade é um bem coletivo cujo exercício contribui para o aumento ou a diminuição das capacidades de deslocamento por meio da criação de formas de acesso ao poder. É um direito que deve ser reconhecido e incluído nas políticas urbanas (Ardila Pinto e Villamizar-Duarte, 2018; Levy, 2009), um bem fundamental para o desenvolvimento da cidadania (Banister, 2018; Oliveira e Souki, 2016; Vasconcellos, 2001), que se incorpora aos arranjos normativos segundo a capacidade de negociação dos indivíduos (Blomley, 2003).
Neste trabalho reconhecemos o papel do movimento a partir das práticas, valores e experiências dos indivíduos e queremos ir além desta visão dicotômica entre espaços públicos e espaços de circulação. Desta forma, ruas, calçadas, autopistas não são consideradas a partir da sua função para promover o deslocamento e o acesso aos bens e serviços urbanos ou espaços de sociabilidade e encontro, mas como espaços públicos que ganham novos contornos e se transformam através das práticas de manifestação em cenários da esfera pública.
Baseados neste conceito de espaços públicos da mobilidade, gostaríamos de entender como as mobilidades urbanas auxiliam na construção da esfera pública e são movimentadas em atos de contestação popular. Trata-se de ver a mobilidade não somente como uma agenda política, mas como parte do repertório do próprio ato de manifestação política, o que implica pensar espacialidades, temporalidades e relações de poder.
De acordo com Charles Tilly (1993), atos de desafio e manifestação coletiva são fenômenos que respondem a contextos políticos específicos. As estratégias de ação não são criações completamente espontâneas. Estratégias são definidas a partir de experiências anteriores bem-sucedidas. As experiências ajudam na tomada de decisões e na construção de um repertório de performances políticas. Tais performances podem ser entendidas como rotinas que são aprendidas, compartilhadas e colocadas em ação em determinados contextos. Em qualquer ponto particular da história, grupos mobilizam um arcabouço performático de protesto limitado, por isso passível de observação e de análise (Tilly, 1993 citado em McAdam et al., 2009).
Lorimer (2016) reflete sobre os repertórios de protesto a partir de modalidades de movimentos e espaços móveis. A autora afirma que os atores sociais mobilizam diferentes maneiras de se deslocar ou permanecer no espaço segundo diferentes intenções de se expressar. A sua abordagem nos permite refletir sobre como os espaços de mobilidade podem ser ativados e produzir significações para as performances em si. Outro ponto de reflexão é a participação dos espaços de mobilidade em eventos políticos. Para Wunderlich (2008) é fundamental entender como as dinâmicas de mobilidade dialogam com os lugares em que os eventos ocorrem. Os lugares são compostos por significações, eles possuem sentido, assim como a forma como nos relacionamos com eles. Ao nos deslocarmos por esses lugares, nós construímos sentidos, articulamos seus atributos e produzimos novas significações.
Em síntese, há três aspectos relevantes para entender o caráter político dos espaços públicos da mobilidade. Em primeiro lugar, a mobilidade inclui diversidade de movimentos (de ideias, objetos e pessoas) que configuram redes de relações. Em segundo lugar, tamanha diversidade é articulada por meio de diferentes ritmos e significados que se vinculam às práticas de mobilidade cotidiana em situações específicas. Por fim, essas práticas transformam os espaços e, ao mesmo tempo, são modificadas por eles. As práticas configuram redes mediadas por relações de poder, que dependem das posições dos diferentes agentes em situações de movimento. Em termos de políticas contenciosas, essas três dimensões são constituintes dos objetos de reivindicação, das performances de protesto e dos repertórios constituídos.
Tendo em vista as análises das ocorrências dos protestos acontecidos em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro durante o ciclo de compreendido entre 2011 e 2014, buscamos defender a ideia de que a mobilidade não só foi incluída como parte central da agenda de contestação, como teve um papel central na construção dos repertórios dos atores sociais destas cidades. A partir do contraste destas duas experiências urbanas poderemos entender as variações locais e contribuir no estudo das continuidades que este objeto apresenta nos contextos urbanos.
Tendo em vista a perspectiva acima delineada se estabeleceu alguns critérios metodológicos para orientar a pesquisa sobre o papel da mobilidade na formação de repertório das manifestações políticas. O primeiro aspecto é a relevância de se realizar estudos comparativos. Trata-se de uma técnica de pesquisa que tende a valorizar a produção de modelos causais de explicação, geralmente a partir de métodos quantitativos ou experimentais. No entanto, o seu uso atual é mais variado, com a aplicação de métodos mistos e a valorização dos dados compreensivos, qualitativos. Logo, a comparação pode ser utilizada para apreender variações de sentido e de significado empregados pelos agentes sociais, especialmente no que concerne ao seu entendimento sobre os dilemas urbanos e os problemas públicos. A comparação permitiria, assim, notar tendências, observar regularidades e equivalências e, sobretudo, descrever e analisar rupturas e dispersões de visões de mundo.
Para comparar as semelhanças e diferenças dos repertórios, manifestações e espacialidades, selecionamos as cidades de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro. Ambas são relevantes centros metropolitanos e regionais brasileiros, que recentemente adotaram novos sistemas de mobilidade urbana, baseados em Bus Rapid Transit (BRT), e que, além disso, foram palco de grandes manifestações políticas no ano de 2013, decorrentes de um claro descontentamento em relação aos grandes eventos esportivos realizados no país a partir de 2012.
Neste marco foi desenvolvida uma análise do uso dos espaços de mobilidade em termos de seu valor como espaços de participação política, a partir das práticas de protesto nas duas cidades brasileiras. A análise, no caso de Belo Horizonte, foi realizada a partir de 287 notícias e reportagens sobre protestos e manifestações coletivas, utilizando o portal online do “Jornal O Tempo” e exemplares impressos. Já na cidade do Rio de Janeiro, foi utilizado o portal eletrônico do jornal “O Globo” como fonte das notícias, totalizando 189 notícias. Coletamos todas as entradas relativas às palavras manifestação política ou protesto entre 2011 e 2014 na tentativa de identificar mudanças nas práticas e motivações dos protestos um ano antes de iniciar as obras relacionadas com o sistema de mobilidade e um ano depois o término do ciclo de protestos derivados dos eventos esportivos.
Apesar das possíveis implicações que envolvem a produção deste tipo de narrativa, em termos da redução de informação, ou da triangulação de outras fontes, procurou-se realizar a coleta de dados nos veículos de informação sem se considerar sentenças que evidenciam o posicionamento ou opinião apresentado nas notícias, limitando-se a identificar: a) Data e Motivos do protesto; b) Agentes envolvidos; c) Performance e desdobramentos do evento; d) Espacialidade. Ressaltamos que, em muitos dos casos, estas variáveis não foram encontradas em todas as reportagens. Nessas ocasiões, considerou-se, a ausência de uma informação como um dado “não informado”, evitando assim interpretações ou inferências por nossa parte. Posteriormente à coleta, realizamos um processo de sistematização, codificação, redução e análise da informação por meio da estratégia metodológica proposta por Miles e Huberman (1984).
A utilização do registro sistemático realizado por um periódico em cada cidade se mostrou a melhor fonte de dados, o que também permitiu identificar por quem, de que forma e como os espaços de mobilidade são articulados pelos protestos, assim como os efeitos destes na cidade. Há limitações importantes, sem dúvida, pois, ao tentar especificar os agentes que protestam, aparecem categorias como “manifestantes”, sem uma clara indicação sobre que tipo de agente social se trata. Nestes casos, observamos o uso pelo veículo quando se trata de uma grande diversidade de grupos, sem uma associação direta a uma organização formal.
Um último aspecto sobre o uso dos jornais selecionados tem a ver com o emprego de apenas um periódico. Esta decisão metodológica poderia enviesar a análise com o posicionamento da mídia. Entrementes, mobilizar mais de uma fonte transformaria o trabalho numa comparação de narrativas entre diferentes mídias, não contribuindo de forma concreta para o levantamento de ocorrências na cidade, pois seria difícil garantir que duas notícias publicadas em periódicos diferentes tratassem do mesmo acontecimento.
Embora não haja uniformidade ou frequência regular em torno das ondas de protestos na história, certas características são recorrentes. Segundo Tarrow (2011), seus aspectos mais comuns são a intensificação de conflitos sociais que transbordam nos protestos, o padrão centro-periferia de sua difusão espacial, a apropriação de estratégias contenciosas e a criação de novos repertórios de manifestação e a emergência de novos significados sociais. Todos esses elementos são localizados no ciclo que tem seu apogeu em junho de 2013, no Brasil.
As Jornadas de 2013 mobilizaram múltiplas pautas, com ideologias diversas, que incluíram temas como a qualidade dos serviços públicos e do transporte, o déficit de moradias, a luta contra a corrupção, os direitos de grupos identitários, a realização de megaeventos esportivos, as reivindicações trabalhistas (Gohn, 2014a; Nobre, 2013). Esses movimentos foram apontados como uma consequência da crise do capitalismo, em 2008, e uma crise de legitimidade dos sistemas políticos representativos em diferentes contextos nacionais (Domingues, 2019). A forma como foi gestada a crise e como foram redistribuídos os seus custos para a sociedade civil por meio das políticas de austeridade desencadearam processos de mobilização em escala transnacional pelas redes sociais digitais (Castells, 2012; Mendonça e Ercan, 2015). Este caráter global do ciclo é apontado por autores como Dowbor e Szwako (2013), Gohn (2014b), Bringel e Pleyers (2015), Domingues (2018), entre outros, os quais analisam as continuidades das ações contenciosas brasileiras e de outros países, como Turquia, Estados Unidos e Espanha.
Apesar desta diversidade de agendas e da difusão da crise em escala global, um grupo importante de autores salienta o aumento da relevância das demandas relativas à agenda urbana. Para Holston (2013, 2016), Jennings et al. (2014), Maricato (2013), Tatagiba e Galvão (2019) e Ribeiro (2014) houve um crescimento significativo do número de protestos vinculados às reivindicações por serviços urbanos. Este fenômeno marca uma inflexão em relação a outros ciclos de mobilização que apresentaram uma maior ênfase nas exigências por melhores condições salariais, contra as reformas do Estado ou sobre os processos de democratização política.
A questão urbana aparece como um fator explicativo para entender a desigualdade e a pobreza e como uma agenda no marco dos processos de mobilização política. Os protestos seriam uma reação da população aos processos urbanos de segregação, precarização e mercantilização da terra urbana e dos sistemas de mobilidade, agudizados pelo contexto da anunciação dos megaeventos esportivos a serem realizados no país (Domingues, 2018; Jennings et al., 2014; Maricato, 2013; Rena e Berquó, 2014; Ricci e Arley, 2014; Rolnik, 2013; Veloso, 2014).
Na literatura também foram elencadas as particularidades da agenda urbana, relativas aos problemas da mobilidade. São relevantes os estudos sobre as dinâmicas organizativas dos movimentos sociais que articularam suas agendas em torno dos problemas do transporte público coletivo em diferentes cidades brasileiras. Receberam especial atenção os movimentos de Passe Livre, da Frente de Luta do Transporte Público, de Goiás, do Movimento Tarifa Zero, de Belo Horizonte, dos Comitês Populares da Copa (Dowbor e Szwako, 2013; Jennings et al., 2014; Maricato, 2013) e da tática Black Bloc (Domingues, 2018; Ricci e Arley, 2014; Solano et al., 2014; Tavares et al., 2016). Neste contexto foram discutidos o direito à mobilidade em relação a temáticas específicas, como o custo das tarifas, a prestação de serviço (quantidade e qualidade), a governança do sistema e as relações entre empresários e governos locais.
Neste momento é importante compreender como a mobilidade se transformou em agenda social e política, como esse tema tem constituído identidades, sentidos e relações de poder. De acordo com Melucci e Bomfim (2001) e Touraine (1990, 1996), protestos coletivos são fenômenos que variam segundo uma identidade construída por atores sociais que compartilham experiências de marginalidade e/ou que agem em busca da legitimação e reconhecimento de um estilo de vida. As agendas dos protestos, mais especificamente as demandas no marco da política de mobilidade urbana, são provavelmente mais ricas e complexas do que simplesmente uma luta por redução das tarifas e custos do transporte público. A linha de identidades coletivas de Touraine e Melucci possui forte presença na análise contenciosa latino-americana. Pode-se citar, por exemplo, Scribano (2003) e Scribano e Cabral (2009) que analisaram as performances contenciosas no espaço público da América Latina a partir de casos de protestos argentinos dentro do conceito de “recursos expressivos”, inspirados no conceito da criação coletiva de consensos. Esses recursos expressivos são estratégias de visibilidade e de reconhecimento dos manifestantes e a direcionalidade do sujeito antagônico. Se por um lado os recursos expressivos se utilizam para reconstituir espaços de entendimento que potencializam a geração de consensos (Scribano, 2003). Contudo, em nossa análise, há um maior enfoque na literatura norte-americana de ação coletiva contenciosa e como ela pode se relacionar com a mobilidade urbana na América Latina.
As cidades latino-americanas têm sido marcadas por diversas experiências que visavam dirimir os problemas associados à crescente demanda por meios móveis mais adequados para o transporte de passageiros. Tanto o projeto Move de Belo Horizonte, quanto o projeto BRT Rio visavam criar corredores para interligar as zonas urbanas e fortalecer nós centrais de articulação urbana em torno de estações de integração com outros sistemas de transporte (Alexandre e Balassiano, 2012; BHTRANS, 2018; Hidalgo e Muñoz, 2014). A introdução dos novos modais de transporte alterou a organização dos ônibus regulares e do transporte alternativo realizado por vans, especialmente no Rio de Janeiro. Redução do número de veículos, mudanças de itinerários, zoneamento das áreas de circulação e aumento do valor das passagens foram reclamações recorrentes nos primeiros meses de implantação dos sistemas. Estas agendas parecem possuir aderência às identidades dos grupos que participaram das manifestações e ajudaram a constituir os elos sociais que ampliaram a escala das manifestações em 2013.
Ao observar os dados sobre os protestos é notável o crescimento das manifestações a partir de 2011, com o auge atingindo o ano de 2014, tanto no Rio de Janeiro, quanto em Belo Horizonte. Nas duas cidades os protestos se concentraram no ano de 2014, com 36% para Belo Horizonte e 45% para o Rio. Isto nos parece ser um indicador de que as jornadas de 2013 são apenas a expressão maior e concentrada de um processo relativamente constante de manifestações políticas. Os registros para 2013 já indicavam insatisfações, como aquelas apresentadas sobre o aumento do valor das passagens, acirradas pelas reações da população às medidas anunciadas pelos governos durante a realização da Copa do Mundo de Futebol e das Olimpíadas, no caso do Rio de Janeiro. Esse cenário de insatisfação é apresentado nos espaços públicos das duas cidades a partir de repertórios relativamente conhecidos que, ao mesmo tempo em que têm a mobilidade como agenda, a utilizam como estratégia de manifestação, ao interditar a circulação de veículos e pessoas nas vias públicas.
As agendas das manifestações expressaram este descontentamento direcionado para agentes específicos e articularam pautas ainda mais amplas para a sociedade naquele momento. É recorrente o papel dado aos governos e aos representantes políticos como alvos das manifestações, com muito da ação contenciosa agindo, portanto, fora da política institucional, aspecto ressaltado por, dentre outros, Tilly (2008). A presença constante dos governos como alvo dos protestos parece indicar esse padrão para os casos de Belo Horizonte e Rio, especialmente no caso da mobilidade como agenda, que cresceu em sua representatividade nas pautas das manifestações a partir de 2013.
Quanto aos agentes que protestaram, nas duas cidades é notável a relevância dos protestos de funcionários públicos, manifestantes, ativistas e cidadãos organizados e movimentos sociais, sendo que no Rio de Janeiro o conjunto é menos claro. São usualmente citados como manifestantes ou ativistas de forma genérica, algumas vezes indicados como moradores ou funcionários públicos e de instituições privadas. No ano das jornadas o tratamento genérico pela categoria “manifestantes” é ainda mais realçado, o que acreditamos se tratar de uma solução jornalística para enquadrar uma população heterogênea de agentes engajados nas manifestações.
No caso do Rio há uma significativa participação da categoria “moradores de bairros”. Eles protestam geralmente por causas localizadas, como a falta de uma linha de ônibus ou a ação violenta dos agentes públicos. Já quando se observa nas duas cidades a participação de funcionários públicos, ela é claramente direcionada para melhores condições de trabalho e salários, críticas que são direcionadas ao Estado, aos entes federais, estaduais ou municipais.
A agenda da mobilidade é ativada por agentes diferentes em cada cidade. No Rio de Janeiro os manifestantes são mais representativos (45%). Já os moradores dos bairros (29%) e os funcionários do setor privado (23%) participam de forma importante, mas inferior ao enquadramento geral. Observa-se, porém, que há diferenças em relação ao papel da mobilidade como pauta dos protestos nas duas cidades. No caso do Rio, esta é a segunda causa de protesto, enquanto em Belo Horizonte é a terceira. Predominam em Belo Horizonte os motivos associados aos preços das passagens, às condições laborais e ao direito ao uso da infraestrutura de mobilidade urbana. Acreditamos que a incidência desses motivos no quadro geral decorre da reestruturação do sistema de mobilidade por BRTs, além da ênfase dada aos custos das passagens ao longo das jornadas de protestos de 2013.
No Rio de Janeiro é mais representativo o protesto contra a má qualidade dos sistemas de transportes, com citações importantes ao direito ao uso da infraestrutura de mobilidade urbana e as queixas sobre os custos das passagens. Nesse caso, vemos relações importantes com o caso de Belo Horizonte, onde a reestruturação do sistema, com a criação do BRT, e o efeito das jornadas de 2013 são claros elementos de disputa política. É marcante, entretanto, a presença de dois motivos: a acidentalidade e a reivindicação da legalização de transporte informal. O tema dos acidentes evoca, aparentemente, um conflito associado às velocidades e estrutura dos sistemas BRT, com a criação de vias exclusivas, sem ações de orientação da população. O tema da legalização também parece decorrer de uma pauta antiga mobilizada pela redução do transporte regular que tratamos acima.
O contexto dos grandes eventos esportivos parece “atravessar” as questões sobre a mobilidade em alguns pontos, o que merece mais investigações futuras. Em virtude disso, as agendas de protestos sobre condições de trabalho e contra as medidas do governo e a corrupção apareceram como mais relevantes nas duas cidades, como esperado e já descrito na literatura sobre a Teoria dos Processos Políticos (Tarrow, 2011; Tilly, 2008). Entretanto, analisar a questão da mobilidade apenas como uma agenda é insuficiente para compreender seu papel na estruturação da esfera pública local e brasileira. Precisamos entender seus vínculos, ou seja, como ela agrega agentes e oponentes e se expressa politicamente no espaço público ao longo do tempo e no espaço.
A política contenciosa acontece nos espaços públicos. No entanto, esta espacialidade aparece em grande parte da literatura de protestos como um palco, um pano de fundo ou um âmbito ou escala onde os “atores” sociais desenvolvem repertórios de contestação da ordem social (McAdam e Sewell, 2001). Para D'arcus (2013), os protestos articulam tanto a dinâmica mais ampla do Estado-nação, quanto as microgeografias dos quadros imediatos dos protestos, vinculados a escalas mais amplas de afinidades (simpatias) e de poder. Nos espaços públicos tornam-se politicamente visíveis as tensões manifestadas na intersecção entre o poder do Estado e a cidadania (Fernández, 2013; Fernández Droguett, 2013).
Uma das vantagens desse grupo insurgente está na força dos números. Um grande grupo de manifestantes nos espaços públicos obtêm visibilidade em um duplo sentido. A publicização aumenta a solidariedade entre os manifestantes, dando a sensação de uma convergência por uma mesma causa, e ajudam a persuadir as autoridades públicas da força do movimento. A afluência aos eventos constitui, então, um primeiro indicador a ser considerado. A medição deste quesito constitui, em si mesma, um desafio metodológico. Existem variações na frequência ao longo de uma manifestação, assim como variações na entrada e na circulação nos espaços de manifestação. Logo, aspectos temporais e espaciais relevantes devem ser levados em consideração.
Decidimos registrar o menor e o maior dado que foi informado nas notícias dos jornais para as duas cidades. Esta análise permitiu identificar que, em primeiro lugar, existe uma porcentagem significativa de subnotificações destas informações, com pelo menos 91 protestos ausentes (31%) em Belo Horizonte e 29 eventos (19%) no Rio de Janeiro. Em segundo lugar, apresenta-se uma alta variabilidade entre os dados máximos e mínimos, se considerarmos que a diferença média entre estes foi de 4.235 participantes, com um desvio padrão de 44.709 na capital dos cariocas e de 2.679 manifestantes e um desvio padrão de 7.543 em Belo Horizonte. Por último, no Rio de Janeiro o número de manifestações registradas no Jornal foi menor (153 eventos), mas a afluência média foi de 11.065 pessoas, enquanto em Belo Horizonte o número de registros é maior, com 285, mas com uma média de 1.716 manifestantes.
Apesar dos dados não permitirem estabelecer o número exato de manifestantes, eles nos permitem identificar uma ordem de magnitude aproximada do caráter dos protestos. As experiências das duas cidades em termos de incidência dos eventos mostram que apesar de Belo Horizonte ter registrado mais protestos em 2014 (75) do que em 2013 (33), 2012 (41) e 2011(55), não encontramos diferenças significativas em relação ao número de participantes cuja média oscilou entre 313 e 3205. É preciso salientar que os desvios padrão são muito altos especialmente em 2013, o qual foi de 10.873 participantes. No caso do Rio de Janeiro, as médias de participantes durante os anos considerados foram muito mais altas, com exceção de 2011, e um aumento relevante do número de manifestantes em 2013, ano no qual o valor médio foi mais alto, assim como o desvio padrão.
Esta divergência nos dados de afluência pode ser o resultado do seu papel central no jogo das narrativas dos diferentes agentes inseridos. Os policiais e os agentes públicos buscaram minimizar a força dos movimentos, enquanto os participantes tentaram maximizar a participação em relação à capacidade de convocatória e o nível de descontentamento. No entanto, os dados também nos permitem entrever que as cidades tiveram dinâmicas distintas de inserção no ciclo no que se refere ao grau de ocupação dos espaços públicos (número, distribuição temporal e magnitude de participação).
Outro aspecto relevante diz respeito à espacialidade das práticas, especialmente em termos dos lugares e das estratégias de uso exercidas pelos diferentes agentes contenciosos. Consideramos que os manifestantes exerceram diferentes estratégias orientadas a ganhar ou diminuir seu potencial de publicidade em relação às formas de apropriação dos espaços de uso coletivo (D’Arcus, 2013; Mitchell e Staeheli, 2005). Em cada cidade se configurou um espetáculo político particular associado não apenas à distribuição de direitos, responsabilidades, identidades e poder, mas também aos acervos coletivos de rotinas de uso do espaço para expressar suas divergências com os discursos institucionais (Tilly, 2008) e às mudanças nas rotinas da vida cotidiana dos habitantes urbanos (McAdam e Sewell, 2001).
Consideramos que um primeiro elemento estruturante destas cenas públicas diz respeito aos tipos de lugares em que foram realizados os protestos. Diferenciamos para tal fim entre ações em áreas específicas, onde os manifestantes permaneceram no mesmo lugar, e aquelas nos quais estes se deslocaram entre diferentes pontos estratégicos, os quais denominamos protestos móveis. As primeiras correspondem usualmente aos espaços públicos tradicionais, como praças, parques ou nas calçadas à frente de instituições públicas. Enquanto que os protestos móveis se localizaram em espaços públicos da mobilidade, tais como avenidas, ruas ou calçadas. Os manifestantes também mobilizaram práticas mistas, articulando tanto momentos de permanência, quanto de movimento.
Para as manifestações móveis é interessante considerar que elas podem estar articuladas com ações de permanência, como pontos de início e dispersão, enquanto as fixas empregam estratégias de interdições de trânsito para ganhar visibilidade. Nas duas cidades se evidenciou a predominância dos protestos com pontos fixos: Rio de Janeiro (64%) e Belo Horizonte (61%). Enquanto no Rio de Janeiro não foram reportadas manifestações mistas, em Belo Horizonte encontramos 14% deste tipo de evento e 23% de caráter móvel, associadas com a mobilidade até o local de manifestação e com os deslocamentos internos.
A configuração espacial das cidades parece ter tido um papel importante no desenvolvimento deste tipo de práticas de uso dos espaços. Em Belo Horizonte foram especialmente notáveis os eventos nos quais os participantes utilizaram as praças da área central como pontos de encontro para, depois, se deslocar pelas vias que conectam o centro da cidade ao Estádio do Mineirão, especialmente durante a ocorrência da Copa das Confederações, em 2013. No Rio de Janeiro as praças da área central como Cinelândia ou o adro da Igreja da Candelária foram lugares de grande centralidade. As vias centrais desta região também foram ocupadas de forma assídua, especialmente a Avenida Rio Branco e a Avenida Presidente Vargas. Nestas áreas estão localizadas as sedes das instituições públicas que foram objeto de contestação, como a Câmara de Vereadores e a Prefeitura, respectivamente.
A diferenciação entre estratégias de manifestação fixas ou móveis abrange um conjunto de práticas que implicam a realização de uma diversidade de repertórios de ação empregados por grupos diversos. Observamos semelhanças relevantes entre as duas cidades. Em ambas as ações de bloqueio de trânsito de veículos e a ocupação de praças tem um peso significativo. A concentração de tais repertórios nas manifestações de Belo Horizonte foi de quase 66%, enquanto no Rio apresentaram valor de 61%. Também observamos uma forte influência das performances artísticas como forma de expressão do protesto. A violência foi menos relevante, mas não inexistente. Atos considerados violentos, como destruição de mobiliário urbano, uso de bombas ou objetos não inflamáveis foram reportados em proporções bastante baixas. Só em 23 protestos (8,3%) em Belo Horizonte e em 15 eventos (11%) no Rio. Nesta cidade foi reportada a invasão de edificações públicas em 6 protestos. Em Belo Horizonte não foram identificadas notícias sobre este tipo de prática.
De forma mais específica, os repertórios associados às mobilizações fixas em praças públicas apresentam diferenças importantes. Em Belo Horizonte predomina o uso de cartazes, camisetas e bandeiras nas praças para se obter visibilidade pública (45%), além de bloquear o trânsito veicular nessas áreas (26%) e realizar performances artísticas (27%). Já no Rio de Janeiro são mais importantes o bloqueio de trânsito veicular (39%), seguido das ocupações de praças, escadas e calçadas na frente de prédios públicos (22%) e performances artísticas (22%). Exibir cartazes e camisetas foi muito menos representativo. As diferenças entre estes repertórios mais estruturados podem estar associadas ao importante papel dos agentes organizados, como sindicatos e movimentos sociais, na construção da esfera pública mineira ao longo do ciclo.
Em relação aos protestos onde predominam manifestações móveis, nas duas cidades encontramos semelhanças associadas ao exercício de deslocamentos a pé nos espaços públicos da mobilidade, com 109 eventos reportados em Belo Horizonte e 55 no Rio. A caminhada ou marcha implicou diferentes níveis de organização, os quais incluíram o uso de carros de som ou de grupos musicais para animar e ganhar visibilidade. Outros modos de deslocamento também foram empregados, ainda que em menor proporção. Usar bicicletas foi uma estratégia importante em 4 protestos em Belo Horizonte e dois no Rio. As caravanas de carros foram empregadas em nove protestos em Belo Horizonte e em seis no Rio.
Encontramos diferenças importantes entre os repertórios e os tipos de atos fixos empregados pelos manifestantes. Assim, bloquear o trânsito veicular é mais frequente no caso dos manifestantes organizados nas duas cidades, enquanto ocupar praças, escadas e calçadas, é uma estratégia mais empregada por funcionários públicos em Belo Horizonte e por manifestantes e cidadãos organizados no Rio. Em segundo lugar, a realização de performances artísticas, flash mobs etc. é mais frequente nos protestos de funcionários em Belo Horizonte, enquanto no Rio é preferida pelos manifestantes e ativistas. Os funcionários públicos de Belo Horizonte empregam a invasão de edifícios com menor frequência, enquanto os manifestantes e cidadãos organizados o fazem mais no Rio. Os atos de destruição do patrimônio público e privado foram atribuídos com maior frequência aos participantes com grupos mais diversos nas duas cidades, mas no Rio os habitantes dos bairros são qualificados como responsáveis pela destruição das infraestruturas de mobilidade e em Belo Horizonte de bloquear o trânsito veicular.
A relevância da mobilidade como parte dos repertórios de ação dos manifestantes aparece de forma evidente ao analisarmos os registros das manifestações nos jornais. A visibilidade dos protestos não só diz respeito à importância das próprias agendas, mas sobretudo da capacidade do evento de contestar a ordem urbana cotidiana. Na maior parte dos casos, as notícias assinalaram o impacto no trânsito nas duas cidades, com mais de um efeito por protesto, especialmente na interrupção do trânsito, na geração de engarrafamento e lentidão, suspensão no transporte público e riscos para os pedestres. Em Belo Horizonte foram 82,5% dos 140 eventos registrados e 104% dos 145 protestos no Rio. Outros efeitos tiveram menções menos relevantes, tais como a destruição do patrimônio público e privado, brigas ou detenções de manifestantes.
A partir da exposição realizada podemos observar como os repertórios de ação podem acionar diversos modos de mobilidade seja através das performances, protestos e manifestações coletivas de acordo com um repertório político acionado por diferentes agentes. Assim sendo, as modalidades de movimento dos corpos inseridos num dado protesto ou manifestação coletiva expressariam uma própria política de mobilidade por serem produzidos e produtores de um contexto de resistência e, dessa maneira, as práticas de protesto pelos espaços da cidade envolve a negociação de permissões e proibições, deslocamento e produção de sentido. Por consequência, o caminhante que protesta também pode reforçar ou atualizar as próprias imposições de uma ordem estabelecida ao criar desvios e restrições para outros e para si mesmo, o que formaria verdadeiras “retóricas ambulatórias”.
Os resultados evidenciaram o importante papel da mobilidade e dos espaços públicos de mobilidade na constituição das esferas públicas das duas cidades brasileiras estudadas. Mais do que espaços de circulação de mercadorias, os espaços públicos da mobilidade constituíram lugares centrais para o desenvolvimento da esfera pública local. A mobilidade constituiu um aspecto central das agendas, abrangendo discussões variadas, que vão desde a discussão sobre o direito à mobilidade, o valor da tarifa e o acesso aos bens urbanos, mas também a problemáticas cotidianas como a acidentalidade, a legalização dos transportes informais ou os salários dos trabalhadores do setor. Em cada cidade, a mobilização das pautas esteve associada às dinâmicas de organização dos sistemas de transporte, mas também aos processos mais amplos de implementação das agendas nacionais de sistemas de mobilidade como o BRT, no marco da realização de eventos esportivos. Deste modo, a agenda urbana no Brasil foi transformada pela introdução de novos projetos de transporte.
Por outro lado, os protestos evidenciaram o papel da mobilidade como parte do repertório político mobilizado pelos manifestantes. As práticas de mobilidade permitiram dar maior visibilidade pública às demandas, especialmente ao usar o ato de caminhar como algo que constrói e dinamiza a ação contenciosa, mas também no emprego de outros veículos que ampliam a capacidade de deslocamento e contribuem com a visibilização das agendas. Taxis, motos, ônibus ganharam grande relevância. Os próprios veículos constituíram artefatos simbólicos para ganhar o espaço público e defender a sua presença na cidade. No mesmo sentido, a mobilidade aumenta a visibilidade dos protestos ao criar uma irrupção da ordem urbana. Foi relevante o papel dos engarrafamentos como principal efeito dos protestos, ganhando o lugar nos meios de comunicação e transformando a vida cotidiana dos moradores das cidades.
No entanto, existem especificidades locais, o Rio de Janeiro apareceu como uma cidade com uma expressão mais intensa e menos especializada do que em Belo Horizonte. As agendas cariocas mobilizam manifestantes mais variados, com demandas mais heterogêneas. Enquanto Belo Horizonte caracteriza-se por uma organização mais estruturada em torno de associações tradicionais de manifestação política. Estes resultados indicam a necessidade de considerar as particularidades associadas à estrutura urbana, aos espaços públicos e à organização dos agentes políticos. As performances identificadas aqui permitem desafiar as visões que atribuem um caráter funcional aos espaços da mobilidade e evidenciam o potencial da pesquisa sobre os espaços públicos, entendendo a diversidade de práticas e experiências da cidadania.
Os resultados desta pesquisa podem ser complexificados em trabalhos posteriores, através do uso de fontes de informação produzidas pelos agentes que participaram nos protestos. O uso de redes sociais e de raspagem de dados constituem alternativas para a coleta, mas ainda com limitações para a periodização e o seguimento mais detalhado em termos temporais. Também é necessário avançar no estudo dos arranjos espaciais dos protestos, que permitiria evidenciar com mais clareza a formação de áreas de concentração das atividades de mobilização, assim como também os principais espaços de mobilidade comprometidos pela ação política.