Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


Histórias da psicologia em Mato Grosso: Os movimentos de formação em psicanálise
Histories of Psychology in Mato Grosso: The Training Movements in Psychoanalysis
Revista de Psicología (Santiago), vol. 27, núm. 1, pp. 1-14, 2018
Universidad de Chile. Facultad de Ciencias Sociales. Departamento de Psicología

Artículos


Recepção: 20 Agosto 2017

Aprovação: 27 Março 2018

DOI: https://doi.org/10.5354/0719-0581.2018.50743

Resumen: Este artigo é fruto de uma pesquisa que teve como objetivo central investigar os primeiros passos da psicanálise em Mato Grosso, focando, especificamente, os movimentos psicanalíticos e apoiando-se, para isso, na história da psicanálise no Brasil. A partir da identificação dos pioneiros da psicologia e da investigação sobre as abordagens teóricas em que se fundamentava, a psicanálise se sobressai como perspectiva teórica que embasa a atuação da maioria dos profissionais nas décadas de 1970 e 1980, que é o período em que as primeiras práticas profissionais em psicologia são identificadas no estado. A revisão da literatura nos aponta que as ideias freudianas chegaram ao Brasil nas primeiras décadas do século XX. Os principais centros urbanos que fomentaram a formação e a prática psicanalítica foram São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. No decorrer de sua difusão, houve uma série de eventos e formação de grupos cujo objetivo foi fazer circular as ideias psicanalíticas e assegurar estudos para a prática clínica. Esse é o caso do Mato Grosso: os primeiros profissionais residentes na capital e que faziam referências à psicanálise em seus trabalhos, se organizaram, fundaram associações e planejaram cursos de formação. Essas ações fortaleceram a atuação frente aos desafios encontrados num território em que, distante dos grandes centros de formação, precisou criar espaços para se fortalecer e se expandir.

Palabras clave: história da psicologia, história da psicanálise, psicanálise em Mato Grosso, movimentos psicanalíticos, Mato Grosso.

Abstract: This article is the result of a research that had as its central objective to investigate the first steps of psychoanalysis in Mato Grosso, focusing specifically on psychoanalytic movements and based on the history of psychoanalysis in Brazil. From the identification of the pioneers of psychology and research on the theoretical approaches on which they were based, psychoanalysis stands out as a theoretical perspective that bases the work of most professionals in the 1970s and 1980s, which is the period in which the first professional practices in psychology are identified in the state. The literature review shows us that Freudian ideas came to Brazil in the first decades of the twentieth century. The main urban centers that fostered psychoanalytic training and practice were São Paulo, Rio de Janeiro and Porto Alegre. During its diffusion, there was a series of events and formation of groups whose objective was to circulate the psychoanalytic ideas and ensure studies for clinical practice. This is the case of Mato Grosso: the first professionals organized themselves, founded associations and planned training courses. These activities strengthened their actions in the face of the challenges encountered in a territory where, far from the great centers of training, it needed to create spaces to strengthen and expand.

Keywords: history of psychology, history of psychoanalysis, psychoanalysis in Mato Grosso, psychoanalytic movements, Mato Grosso.

Introdução

A história da psicologia no Brasil tem se revelado como uma área de estudos de especial relevância na formação profissional. O interesse em compreender o percurso de ideias ou práticas profissionais, a busca por explicações do contexto atual, a necessidade de construir e identificar histórias regionais, o crescente interesse pela epistemologia da psicologia, entre outros, tem motivado o desenvolvimento de pesquisas em todo o território nacional.

Conforme aponta Jacó-Vilela (2000), a história é um processo “em contínua construção, por se referir a uma sociedade sempre em movimento; estudá-la torna-se fundamental, porque possibilita a compreensão dos saberes e práticas atuais, iluminando assim nossas perspectivas futuras” (p. 33). Sendo um processo contínuo, passado, presente e futuro devem se entrelaçar no estudo de saberes e práticas construídas. Veyne (1998) afirmou que a história se faz importante para transformar as experiências do passado em algo que enriqueça o processo de aquisição do conhecimento humano. A partir da narrativa histórica é possível contrapor as questões do determinismo. Para Antunes (2007):

A compreensão do processo de construção histórica de uma área de conhecimento é tão imprescindível quanto o conteúdo de suas teorias e o domínio de suas técnicas que, tomados atemporalmente, são meros fragmentos de uma totalidade que não se consegue efetivamente apreender (p. 9).

Porém, escrever a história não é tarefa fácil. De Certeau (1982) já apontava como um paradoxo, a relação entre os fatos e os discursos e a ficção de uma possível linearidade de tempo. A escrita limita o tempo, os fatos, os personagens e dá visibilidade àquilo que se quer mostrar por uma lente pessoal (ou de um grupo). Dar visibilidade ao passado, por meio da escrita da história, é dar-lhe sentido no presente, numa articulação entre o que foi e o que virá, iluminando um tipo de modelo ora copiado, ora ultrapassado, ora reinventado.

Quem escreve a história está situado nela. De Certeau (1982) defende que a história, sob nenhuma hipótese é neutra, mas se localiza no presente, no lugar ocupado pelo historiador. Para Massimi (2000), “a condição para que nós possamos representar a diversidade do passado é o lugar que ocupamos em nosso presente” (p. 11). E de qual lugar nós falamos para escrever esta história?

O Estado de Mato Grosso é uma das 27 unidades federativas do Brasil e está localizado na região Centro-Oeste. Ocupa uma área de 903.357 km² e sua capital é Cuiabá. Fundado no século XVIII, é um estado em desenvolvimento e conta hoje com mais de 3 milhões de habitantes. Entre suas principais características destacamos: a extensão territorial, sendo a terceira maior do país, o intenso desenvolvimento do agronegócio, a presença marcante de povos indígenas e migrantes e os problemas advindos destas características. Também, consideramos o fato de que, como um estado relativamente novo, há poucas histórias contadas que revelam suas peculiaridades no campo do conhecimento científico e de práticas profissionais. Revelar as histórias da psicologia, neste contexto, tem possibilitado compreender sua trajetória, seus problemas específicos, sua inserção na realidade local, além de possibilitar a produção de referências bibliográficas regionais, fomentar novas pesquisas sobre o assunto e solidificar uma identidade própria da profissão.

Ao buscar traçar as principais características de uma psicologia mato-grossense, a psicanálise aparece como uma das principais bases de sustentação teórica na prática dos primeiros profissionais a atuarem no estado. O que nos chamou a atenção foi, justamente, o esforço dos profissionais na busca pelo aprofundamento teórico como base para a atuação profissional. A partir destas informações, delineamos esta pesquisa que teve como objetivo principal investigar os primeiros passos da psicanálise em Mato Grosso focando, especificamente, no surgimento dos movimentos psicanalíticos e apoiando-se, para isso, na história da psicanálise no Brasil. Tal pesquisa foi desenvolvida pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Educação de Mato Grosso em parceria com o Conselho Regional de Psicologia de Mato Grosso (CRPMT) e com o curso de Psicologia do Centro Universitário de Várzea Grande e faz parte do projeto “Histórias da Psicologia em Mato Grosso”.

Método

Sendo uma pesquisa de natureza histórica, as fontes utilizadas foram: documentos e relatos orais, escritos e transcrição de palestras dos participantes. A pesquisa teve início com uma análise de documentos fornecidos pelo CRPMT que continham os dados dos primeiros vinte profissionais a se inscreverem nesse Conselho além de fotos, atas de reuniões e notícias veiculadas em jornais. Também utilizamos documentos e fotos fornecidas pelos próprios participantes. Ao localizarmos os profissionais que afirmaram ter a psicanálise como suporte teórico de atuação, selecionamos cinco profissionais, atuantes na cidade de Cuiabá no início da década de 1980, que consideramos como representativos deste estudo, por terem não somente atuado, mas também lutado pela formação pessoal e transmissão desta abordagem. Os dados foram organizados e apresentados retratando uma lógica temporal do surgimento dos movimentos psicanalíticos.

Sobre os relatos, Bloch (2001) chama a atenção para o fato de que narrativas históricas podem conter alterações dos fatos que realmente ocorreram. Aquele que fala também é atravessado por características próprias de si e do contexto social que pode levá-lo ao erro involuntário. Porém, o próprio autor concorda que, por mais suscetível que se possa estar a isto, o que importa é fazer a testemunha falar para compreendêla e propõe a superação de uma possível alteração de fatos passados com o uso do método crítico em que se compare relatos buscando suas similitudes. Assim, buscamos as semelhanças nos relatos apresentados e, após construirmos o texto escrito, o submetemos à leitura dos participantes.

Ao empreender estudos sobre como a história da psicologia foi sendo construída em Mato Grosso, foi possível compreender uma trajetória que se insere no contexto do país ora reproduzindo-o, ora diferenciando-se num movimento de busca por um espaço que contemplasse o compromisso com a qualificação teórico-prática, característica fundante da própria psicanálise.

Resultados

Apontamentos sobre a Psicanálise no Brasil

Para ilustrar o percurso histórico da psicanálise no Brasil, se faz necessário situar duas questões. Primeira, sua difusão se dá, inicialmente, tanto pela inserção de conceitos nas obras dos modernistas, quanto pela medicina. Posteriormente, sua aplicação se amplia para os psicólogos e demais profissionais, atravessados pelas instituições formadoras e com diferenças de concepção na formação e teoria, bem como no seu questionamento fortemente influenciado pela psicanálise lacaniana. Segundo, entre os profissionais brasileiros, a formação em psicanálise, conforme Freud, está baseada no tripé: formação teórica, análise pessoal e supervisão (Nogueira Filho & Warchavhik, 2008). Para Maria Fernanda Bumlai, participante da pesquisa, Lacan acrescenta o quarto elemento que é a transmissão da psicanálise.

No caso do alargamento do campo profissional, entre a titulação de psicanalista e o recurso à psicanálise como instrumento da psicoterapia existe um extenso território que foi progressivamente ocupado. Quanto ao segundo nível, o discurso psicanalítico tem demonstrado um alto grau de flexibilidade e abrangência que lhe confere certo direito de articular-se a outros discursos e práticas sociais ora se apropriando deles, ora sendo apropriado. Suas relações com a medicina, por exemplo -- especialmente com a psiquiatria, e com a psicologia vão desde uma aliança tática em busca de reconhecimento até a incorporação e transformação dessas disciplinas, muitas vezes para desqualificá-las e sobrepor-se a elas (Figueiredo, 2012, p. 84).

Com o advento da Primeira Guerra Mundial, os referenciais europeus de civilização e modernidade construídos para a sociedade urbana brasileira estavam abalados, abrindo espaço para a busca de outras formas de explicar o fenômeno humano, agora pelo caminho da subjetividade (Facchinetti, 2003).

No cerne da cultura, o século XX é marcado pelo rompimento com “compromissos estéticos adotados nos séculos anteriores (...) A teoria estética abandona seus critérios objetivos para recorrer à subjetividade” (Silva, 2003, pp. 2-3). O movimento modernista que acontece no Brasil, no início do século XX, marca esse novo período.

A referência à psicanálise, entre os modernistas, data de 1910, a partir do interesse de Oswald de Andrade pelos escritos freudianos. Poetas e pintores como Mário de Andrade, Manoel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda, Carlos Drummond de Andrade e Tarsila do Amaral passaram a incorporar as ideias psicanalíticas em seus textos (Facchinetti, 2003), como nos mostra Mário de Andrade (1922) em Paulicéia Desvairada: “Quando sinto a impulsão lírica, escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi” (p. 59).

Para Facchinetti (2003), as principais obras de Freud utilizadas pelos modernistas foram:

Interpretação dos sonhos (1900), Sobre a psicopatologia da vida cotidiana (1901), Três ensaios para a teoria da sexualidade (1905), O chiste e sua relação com o inconsciente (1905), A moral sexual civilizada e a doença nervosa moderna (1908), Cinco lições de psicanálise (1909-10), Totem e tabu (1912-3b), Contribuição à história do movimento psicanalítico (1914), Reflexões para os tempos de guerra e a morte (1915), Conferências introdutórias para a introdução na psicanálise (1915-1917), Alguns tipos de caráter encontrados no trabalho psicanalítico (1916), Além do princípio do prazer (1920), Psicologia coletiva e análise do eu (1921), O eu e o isso (1923) (p. 120).

Enquanto um campo de saber que engendra uma prática, a Psicanálise foi introduzida, inicialmente, pela medicina, em específico, pela psiquiatria. Posteriormente se difundiu por outras categorias profissionais, tendo a psicologia tomado frente deste movimento a partir da década de 1970 (Figueiredo, 2012).

Segundo Salim (2010), o primeiro brasileiro a citar textos de Freud foi o psiquiatra Juliano Moreira, em 1899. Professor da Faculdade de Medicina de Salvador, Moreira viajou à Europa entre 1900 e 1902 com o objetivo de se tratar de uma tuberculose, conhecendo tratamentos e instituições psiquiátricas de diversos países. Retornou ao Brasil em 1903, instalou-se no Rio de Janeiro e se tornou diretor do Hospital Nacional dos Alienados, tendo sido presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise fundada neste local.

Os primeiros movimentos de transmissão da teoria psicanalítica, nos meios científicos, vieram com a tese de doutoramento de Genserico de Souza Pinto, com o título Psicanálise - a sexualidade nas neuroses; o livro de Francisco Franco da Rocha intitulado A doutrina pansexualista de Freud, publicado em 1920; e a tese de doutoramento de João César de Castro, de 1924, intitulada Concepção freudiana das psiconeuroses.

O psiquiatra Francisco Franco da Rocha teve um importante papel, neste contexto, desde o planejamento e construção do Hospício de Juquery em São Paulo até em sua difusão, como professor de Neurologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de São Paulo, a partir de sua aula inaugural em 1919, de estudos pautados na abordagem psicanalítica como um assunto da psiquiatria. Posteriormente, sua aula foi transformada em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, com o título “Sob o delírio em geral”.

Oliveira (2002) destaca o papel do psiquiatra Júlio Pires Porto-Carrero, como entusiasta e historiador da Psicanálise, entre os anos de 1920 e 1938. No ano de 1930 participou como tradutor das Obras Completas de Sigmund Freud, resultando na publicação de sete volumes, com cinquenta e dois títulos entre conferências, ensaios, artigos e livros.

Durval Bellegarde Marcondes fundou em 1927 a Sociedade Brasileira de Psicanálise, primeira organização formal de psicanalistas em São Paulo, que se consolidou como a primeira Sociedade de Psicanálise da América Latina. Em 1928, Durval Marcondes vai ao Rio de Janeiro e funda outra sociedade com sede no Hospital Nacional dos Alienados. Estas sociedades tinham como presidentes os psiquiatras Franco da Rocha, na seção paulista e Juliano Moreira, na seção carioca (Russo, 2002).

A partir dos anos de 1940, as primeiras Sociedades de Formação Psicanalítica foram vinculadas oficialmente à International Psychoanalytical Association 1 (IPA), situando as cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre como os três principais centros urbanos que iniciaram a formação e a prática psicanalítica. Esta consolidação se deu em um processo com rupturas e modificações na compreensão que se tinha da teoria e da prática psicanalítica. No período de 1970 a 1976 houve uma série de eventos em que psicanalistas e psicólogos clínicos organizaram-se em diferentes grupos, cujo objetivo primordial foi o de fazer circular as ideias psicanalíticas para assegurar sua prática clínica (Figueiredo, 1984; Oliveira, 2002; Russo, 2002).

Para Russo (2002), a presença da psicanáli-se como saber e sua institucionalização por meio da IPA teve maior difusão nos anos de 1970, influenciando diversos setores da sociedade brasileira e atingindo o seu auge no chamado boom da psicanálise, quando ocorreu uma verdadeira corrida da classe média à análise pessoal. Tal fase abrangeu um dos períodos mais difíceis da ditadura e revelou uma solução individual para os processos de alienação causados pelo regime.

A organização das sociedades foi precedida por um processo pluralista de manifestações de ideias por meio de estudos isolados, publicações diversas e grupos de estudos, até que se constituíssem em organizações internacionalmente reconhecidas. As de maior destaque foram as de São Paulo e Rio de Janeiro, mas o movimento também aconteceu em outros lugares, como Pernambuco, Minas Gerais e Rio Grande do Sul (Mokrejs, 1993).

Rio de Janeiro e São Paulo se destacavam, entre outros, pelo grande número de profissionais que congregavam e por serem centros de grande poder econômico e cultural no país. Para Gageiro e Torossian (2014), no Rio Grande do Sul, a facilidade da aproximação com a Argentina foi de grande influência para a expansão das ideias psicanalíticas freudianas, tornando-a diferente de outros estados.

No estado de São Paulo, de acordo com Oliveira (2002), a trajetória dos movimentos psicanalíticos se instaurou a partir do crescimento da economia decorrente da exportação do café, além do desenvolvimento tecnológico, artístico e cultural. Com esse crescimento aliado ao aumento da população urbana houve o surgimento de novas demandas sociais favorecendo outras formas de compreensão da subjetividade. Assim, deu-se abertura para o pensamento psicológico, sobretudo da Psicanálise, cujos conceitos serviriam como base para as explicações dessa emergência social.

De acordo com Figueiredo (1984), uma das instituições iniciais que mais se destacaram foi o Instituto de Orientação Psicológica (IOP) organizado em 1970 pelo psicanalista Fábio Leite Lobo, membro da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ). O curso inicial ofertado no IOP foi conduzido por psicanalistas argentinos que também ministravam cursos para os membros da SPRJ. Entre eles estavam Eduardo Kalina e Arminda Aberastury, posteriormente substituída por Maurício Knobel. A formação dos psicanalistas vinculados à IOP, cuja base fundamentava-se prioritariamente na teoria kleiniana, se aproximava do modelo estabelecido pela ortodoxia da IPA, mas sem o compromisso de titular os participantes como psicanalistas (Figueiredo, 2012).

Surge então, em 1971, a Sociedade de Psicologia Clínica (SPC), formada por psicólogos brasileiros ligados à IOP e psicanalistas ligados à IPA, com o objetivo de constituir uma formação direcionada aos psicólogos. Esta formação ainda seguia os moldes da IPA, porém sem a figura do analista ditada e com a proibição da entrada de médicos. Nos anos de 1990 passou a chamar Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro, SPCRJ (Figueiredo, 2012).

Além desta sociedade, Figueiredo (2012) aponta outros importantes grupos para o estudo da Psicanálise no Brasil como o Grupo dos Oito, fundado em 1972, criado para pensar a formação psicanalítica fora da universidade, após uma negativa de sua entrada no programa de mestrado da PUC/RJ. Tinha como figuras centrais dois psicanalistas: Inês Besouchet e Wilson Chebabi. Seu objetivo era de propor uma formação “eclética e diletante que engloba rudimentos de filosofia, psicanálise, antropologia, matemática e outras atividades como a leitura do Antigo Testamento, com discussões etimológicas da língua hebraica, estudo da Cabala e outras” (Figueiredo, 2012, p. 90). A ausência de uma definição em sua proposta para a formação dos psicólogos que almejavam legitimidade que até então poderia ser obtida pela relação com a universidade ensejou, em 1978, a reorganização da diretoria que definiu o estabelecimento da pluridisciplinaridade como foco da discussão e a extinção da formação clínica, gerando o desligamento de muitos de seus membros.

A ruptura de psicólogos, psiquiatras e psicanalistas com as instituições e sociedades vinculadas à IPA foram acentuadas com as contribuições de Jaques Lacan, após seu desligamento da referida instituição em 1964, ao propor o resgate à teoria freudiana. No Rio de Janeiro, especificamente, o movimento lacaniano surgiu para minimizar a disputa de poder e posição ortodoxa dada à formação padronizada pela IPA (Figueiredo, 2012; Russo, 1999).

Portanto, o processo de entrada e estabelecimento da psicanálise no Brasil sofreu diversas rupturas e reconstruções, principalmente ocasionadas pela concepção que se tinha da teoria e da formação dos analistas. A partir disso, constituíram-se as instituições que são vinculadas à IPA e que tem, em sua maioria, a presença de psicólogos e o movimento lacaniano para uma psicanálise freudiana, contrário a estas regras, com uma série de instituições buscando reorganizar a Psicanálise em torno deste modelo (Figueiredo, 2012).

O movimento em oposição às regras estabelecidas pela IPA proporcionou o avanço da psicanálise, na medida em que tornava possível:

... a realização de uma análise fora de seu setting ortodoxo (divã, três a quatro vezes por semana, sessões previamente determinadas através de um contrato etc.), favorecem a realização da Psicanálise em qualquer contexto, fora de qualquer setting préestabelecido, o que inclui as situações pouco ortodoxas encontradas no serviço público (Figueiredo, 2012, p. 96).

Sendo assim, ao entender seu processo histórico no Brasil, a psicanálise passou do domínio da medicina para a psicologia e outras ciências, sem deixar de ser tocada pelos movimentos políticos que buscavam sua propriedade e pelas organizações burocráticas das instituições e escolas que, nesta disputa, estabeleciam e determinavam quem se intitularia psicanalista.

A psicanálise em Mato Grosso

A pesquisa sobre o percurso da psicanálise em Mato Grosso nasceu da necessidade e importância histórica de explorarmos um campo de conhecimento e atuação profissional amplamente demarcado pelos pioneiros da psicologia neste estado. Os profissionais que participaram deste estudo atuaram nas áreas: clínica, saúde mental e docência no ensino superior.

Os primeiros psicólogos começaram a atuar em Mato Grosso a partir do ano de 1969, porém as atuações fundamentadas na psicanálise foram registradas somente a partir da década de 1980. Num estado em construção e com sérias dificuldades de acesso ao aprimoramento profissional, os psicólogos que aqui se instalaram sentiram a necessidade de se organizar como categoria, produzir discussões e fortalecer a profissão. Nascia assim, a Associação dos Psicólogos do Estado de Mato Grosso, que congregava profissionais de várias áreas e com diferentes abordagens teóricas. A associação foi fundada em 20 de dezembro de 1984, com sede em Cuiabá, registrada no cartório de 1º Ofício desta capital, com a finalidade de possibilitar o estudo, coordenação, proteção, orientação, integração e mobilização dos associados. Suas prerrogativas se pautavam na representação perante as autoridades administrativas, judiciárias e na defesa dos interesses individuais dos profissionais associados.

Após esta primeira organização, surgiram outras, específicas de áreas ou abordagens teóricas, como foi o caso da Psicanálise. Os grupos de estudos começaram a se formar, havendo a reunião de pessoas interessadas em estudar, especificamente, suas concepções teóricopráticas.

Para fins deste estudo, chamaremos de psicanalistas os profissionais que buscavam a formação e a transmissão da Psicanálise no início de sua difusão no Estado, seja ela em instituições do ensino superior ou em escolas ou grupos de psicanalistas, sem, necessariamente, permanecerem no percurso atualmente.

A partir deste movimento, destacaremos, neste estudo, as experiências narradas pelas psicólogas Maria Fernanda Barbosa Lima Trigo Bumlai, Maria Terezinha Curvo Nunes, Ruth Feuerharmel, Marisa Helena Alves e Maria da Consolação Pereira Domingues. Estas profissionais haviam concluído sua formação em Psicologia nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Paraná.

Maria Fernanda Barbosa Lima Trigo Bumlai formou-se em 1980 em São Paulo pela Faculdade Objetivo (atual Universidade Paulista, UNIP) e chegou para atuar na capital mato-grossense em 1981. Iniciou seus trabalhos como Psicóloga e Psicanalista Clínica atuando no atendimento com adolescentes e adultos. Fez cursos com Maurício Knobel, onde aprendeu a fazer entrevistas preliminares. Atualmente continua atuando em sua clínica particular, na qual informa: “pretendo ficar até os meus 96 anos” (sic), pois para ela a clínica é sua atividade soberana. Participou da fundação do Movimento Psicanalítico Cuiabano. Atuou, também como professora e supervisora clínica do curso de psicologia da Universidade de Cuiabá (UNIC), no período de 1996 a 2006. Todo seu percurso acadêmico foi pautado na teoria psicanalítica e devido ao interesse pessoal em aprofundar os estudos, ela se deslocou durante anos para a cidade de São Paulo para fazer sua formação, análise pessoal e supervisão, tendo em vista que em Mato Grosso não havia curso de especialização que pudesse suprir essa demanda.

Para Maria Terezinha Curvo Nunes, graduada em 1979, no Rio de Janeiro, a formação em psicanálise começou em Mato Grosso no ano de 1982. O interesse pela psicanálise deu início quando, ainda na graduação, participou de um grupo terapêutico e estágio no Hospital Psiquiátrico Pinel. Ao chegar na capital mato-grossenese, atuou durante um ano no Serviço Social da Indústria (SESI). Em 1984 deu início aos seus trabalhos no Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho, no setor de uso abusivo de álcool e outras drogas, ala feminina, com os psiquiatras Júlio Müller Zanizor Rodrigues da Silva, na elaboração de laudos para a Justiça. Neste espaço ressurgiu seu interesse em continuar os estudos em psicanálise.

Ruth Feuerharmel, formada na Universidade Federal do Paraná no ano de 1982, chegou à capital mato-grossense em 1983, convicta de que a Psicanálise era sua escolha para atuação profissional desde a graduação. Iniciou sua prática clínica em consultório particular, mantendo uma aproximação com psicanalistas de São Paulo. Em 1984 foi aprovada em concurso público para professor de psicologia do ensino médio na Secretaria de Estado da Educação, porém atuou na área de Educação Especial, na cidade de Várzea Grande, como psicóloga no Centro de Habilitação Profissional Professora Célia R. Duque e, posteriormente, como sua diretora técnico-administrativa, permanecendo lá até dezembro de 1986. Em março de 1987, a convite do então secretário Júlio Müller, passou a trabalhar na Secretaria Municipal de Saúde de Cuiabá, coordenando o serviço de Saúde Escolar, seguindo até meados de 1989. Em 1990 começou a atuar como docente na UNIC, primeira instituição de ensino superior a ofertar o curso de Psicologia no Estado, permanecendo por 22 anos trabalhando com a formação de psicólogos. Paralelamente, ao longo desse período, seguiu atuante na clínica psicanalítica.

Marisa Helena Alves formou-se na Universidade de Uberaba no ano de 1983 e chegou em Cuiabá no ano de 1984, iniciando sua trajetória na área da Educação. Após aprovação em concurso público para professora de psicologia do ensino médio, promovido pela Secretaria de Estado da Educação 2, desempenhou funções na área de Educação na Delegacia Regional de Ensino. Em 1988 começou a atuar no Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho, fazendo articulações com as demais profissionais para a criação de grupo de discussões sobre Psicanálise, em função dos trabalhos desenvolvidos com os usuários. Juntamente com Terezinha Curvo começaram a conceber um curso de especialização na teoria psicanalítica para todos os profissionais interessados, incluindo psicólogos e psiquiatras.

O trabalho das psicólogas no Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho favoreceu os estudos psicanalíticos no âmbito das doenças mentais que, por muito tempo, eram de domínio da psiquiatria, passando a ter novas interpretações para além da nosografia clássica.

Em 1986, chegou em Cuiabá Maria da Consolação Pereira Domingues, tendo em sua formação mestrado em psicologia com pesquisa em psicanálise. Graduada em 1978 pela Universidade Federal Fluminense, sempre desejou trabalhar na área de Educação, onde permaneceu por pouco tempo. Por não haver muitas opções de trabalho na área pretendida, passou a atuar em consultório particular, lugar onde permanece há 30 anos. Em 1988 começou a atuar como docente e supervisora em Psicologia na UNIC. Contribuiu com a difusão da psicanálise por ser uma das fundadoras do Movimento Psicanalítico Cuiabano e, também, uma das cofundadoras do Corpo Freudiano de Cuiabá, em 2011.

Formação e difusão da psicanálise em Mato Grosso

No final dos anos de 1980, Maria Terezinha Maia Curvo e Marisa Helena Alves articularam um grupo de discussões em função dos trabalhos desenvolvidos com os usuários do Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho. Esta experiência foi a semente para o nascimento do primeiro grupo de estudos em psicanálise de Mato Grosso, quando, neste período, as psicólogas convidaram outros profissionais como psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais que demonstravam interesse na teoria psicanalítica para organizar um grupo de discussão e estudos. Desta articulação nasceu o Centro Mato-grossense de Estudos Psicanalíticos (CEMEP) e, concomitantemente, um curso de especialização em Psicanálise, em parceria com a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Ver figura 1

A partir de documentos pesquisados, o CEMEP foi fundado no dia 15 de dezembro de 1987 e teve como fundadores, os psicólogos: Ana Maria Berzotti de Souza, Alberto Carvalho de Almeida, Lilian Cristine Pinto, Marcia Christina Gouveia Smolka, Maria Terezinha Maia Curvo, Marisa Helena Alves, Nelson Gomes Zanata, Marcia Arantes da Costa e Silvio Lemos de Almeida.

Após sua criação, novos integrantes passaram a compor o grupo a partir de sua primeira assembleia: Berenice M. Zafarri, Maria Fernanda Barbosa Lima Trigo Bumlai, Maria Augusta Rondas Speller e Ruth Feuerharmel. Ver figura 2

Segundo Maria Terezinha Maia Curvo, o CEMEP nasceu da necessidade de se criar, em Mato Grosso, um espaço para discussões e aprofundamento de estudos da psicanálise, com intuito de projetála para o estado, sendo que sua criação, na capital, local onde os participantes residiam foi de extrema importância e facilitador para todos. O desejo de instituir um curso de especialização em psicanálise fez com que Curvo fosse em busca de profissionais em outros estados (Campo Grande, Brasília e Rio de Janeiro). No Rio de Janeiro procurou a Ângela Coutinho, docente da Faculdade Santa Úrsula, e iniciaram as articulações para sua oferta em Cuiabá, em parceria com a UFMT. Ver figura 3

Na época, Ângela Coutinho coordenava o Curso de Psicoterapia de Orientação Psicológica que serviu de inspiração para o curso de especialização em Psicanálise, realizado atrelado ao departamento de Medicina da UFMT, tendo Nelson Zanatta e José Eduardo Vaz Curvo, respectivamente próreitor e docente, como apoiadores. Foi um projeto pioneiro, na medida em que fomentou a possibilidade de formação acadêmica aos profissionais mato-grossenses e a articulação teórico-prática numa abordagem teórica específica.

... Queríamos Psicanálise, pois esse curso apesar de ser bem abrangente, tinha todo tipo de atuação psicológica, não era focado na Psicanálise, foi por isso que mudamos o nome, para tentar aproximar o máximo para isso, ficando assim Curso de Especialização em Psicanálise, esse curso era só para profissionais psicólogos e médicos (Maria Terezinha Maira Curvo, comunicação pessoal, 12/09/2013).

... A Professora Ângela Coutinho, juntamente com Maria Terezinha, eu e o Nelson Zanatta, elaboramos o currículo do primeiro curso de especialização em Psicanálise de Cuiabá, que foi certificado pela UFMT e chancelado pelo CEMEP, constituindo assim um grupo com diretoria e tudo, foi a primeira Associação de Psicanalistas de Mato Grosso (Marisa Helena Alves, comunicação pessoal, 24/03/2016).

... Aqueles que continuaram com a Psicanálise, organizam-se em seguida (1989) numa associação chamada CEMEP – Centro Mato-grossense de Estudos Psicanalíticos, através do qual chegam a Cuiabá Psicanalistas de São Paulo como Oscar Cesarotto e Márcio Peter de Souza Leite, entre outros, mas que não chegaram a residir no estado, apenas vieram para fomentar a formação dos psicanalistas, através de transmissão em seminários mensais. Assim, pela primeira vez um estudo da Psicanálise Freudiana sistematizado, consistente e coerente acontece em Cuiabá. Nesta época, compunham o CEMEP: Maria Fernanda Barbosa Lima Trigo Bumlai (primeira Presidente), Ruth Feuerharmel, Márcia Christina Gouveia Smolka, Márcia Arantes da Costa, Berenice Zaffari, Ana Maria Bearzzotti, Marisa Helena Alves e outros. (Feuerharmel, 2014).

As despesas do curso ficaram sob a responsabilidade dos próprios participantes. No início, basicamente, o corpo docente era composto por psicanalistas do Rio de Janeiro. Embora embasado nas ideias freudianas, não havia um rigor quanto a uma orientação teórica que então se constituísse como eixo central dos estudos. Os membros do CEMEP faziam parte do corpo discente e entre eles estavam os psiquiatras Alberto de Carvalho, Antônio Carlos Reis, José Eduardo Vaz Curvo, Marcia Arantes da Costa, Mariza Fratari, Zanizor Rodrigues da Silva.

Segundo Marisa Helena Alves, considerando o tripé de formação, a necessidade da análise pessoal e a ausência de analistas didatas em Cuiabá, houve por bem convidar um casal de psicanalistas de Brasília, ambos membros de uma sociedade de Psicanálise ligada à IPA, para conduzir as análises pessoais dos profissionais. Ver figura 4, figura 5, y figura 6

No início da década de 1990, sob a crise política e econômica que se instalou no governo de Fernando Collor de Mello, os membros do CEMEP tiveram dificuldades para continuar arcando com as despesas de formação para atender estudos e análise. Dessa forma, segundo Marisa Helena Alves, houve um esvaziamento no CEMEP, que culminou no encerramento de suas atividades.

A criação do primeiro curso de psicologia em Mato Grosso, no ano de 1989, na (UNIC), teve como professores fundadores um grupo composto por psicólogos e psicanalistas como: Ruth Feuerharmel, Marcia Christina Gouveia Smolka, Berenice Zaffari, Marisa Helena Alves e Maria Fernanda Barbosa Lima Trigo Bumlai, que impulsionou o avanço das ideias psicanalíticas no Estado.


Figura 1
Jornal do Conselho Regional de Medicina do Estado de Mato Grosso. Ano 2 Nº 12 Nov/Dez 1988. Fonte: Documento cedido pelo CRP 18.


Figura 2
Ata da Fundação do CEMEP, página 1. Fonte: Documento cedido pelo CRP 18.


Figura 3
Estatuto do CEMEP, página 1. Fonte: CRP 18.


Figura 4
Projeto do curso de Especialização, p. 1. Fonte: Maria Terezinha Maia Curvo.


Figura 5
Projeto do curso de Especialização, p. 2. Fonte: Maria Terezinha Maia Curvo.


Figura 6
Projeto do curso de Especialização, p. 3. Fonte: Maria Terezinha Maia Curvo.

Os primeiros movimentos psicanalíticos

Com o final do curso de especialização e o encerramento das atividades do CEMEP houve um período de latência na difusão da psicanálise no Estado, concomitante à criação do curso de Psicologia, a reunião dos primeiros psicanalistas do Estado e a chegada de novos analistas à Cuiabá, no ano de 1996, dando início ao Movimento Psicanalítico Cuiabano.

... não era nada acadêmico, ... as pessoas que se juntavam, pagavam passagem, honorário desse professores, para nos dar orientações, discutir os textos, mais ou menos de três em três meses ... Este movimento teve duração aproximada de quatro anos (Maria da Consolação Pereira Domingues, comunicação pessoal, 09/12/2015).

... Estamos em meados dos anos 90: o CEMEP não existe mais e nasce o Movimento Psicanalítico Cuiabano, composto por Maria Fernanda Lima Trigo Bumlai, Marcia Arantes, Maria da Consolação Pereira Domingues e Maria Terezinha Maia Curvo, que traziam a Cuiabá as psicanalistas Mara Faget e Enaide Bezerra Barros, do Rio do Janeiro, como Coordenadoras dos estudos, frequentados por interessados pela Psicanálise Freudiana. O grupo inicial se amplia com a participação de Márcia Christina Gouveia Smolka, Ruth Feuerharmel, Berenice Zaffari, Maria Augusta Rondas Speller, Maria Aparecida Emico Kajiúra Rosa entre outros, e nova direção é dada aos estudos. Assim o Psicanalista Alejandro Viviani, de São Paulo, passa a vir mensalmente a Cuiabá, durante cerca de 8 anos, com quem tinha início o estudo dos seminários de Lacan (Feuerharmel, 2014).

Aproximadamente dois anos após seu início, o Movimento Psicanalítico se dissolveu por divergências entre os participantes, dificuldades financeiras e por haver outros interesses pessoais. Para Maria Fernanda Bumlai, apesar da dissolução deste movimento, a prática em psicanálise continuou em Mato Grosso. Alguns profissionais mantiveram seus estudos e trocas de informações, porém sem uma instituição formal.

O estudo da psicanálise em Mato Grosso nasceu de maneira informal, sempre tendo na base o desejo de profissionais que buscavam parcerias com os grandes centros urbanos para continuar seu trabalho com a clínica psicanalítica e sua formação como psicanalistas. Desde a sua constituição inicial, a psicanálise se acercava do meio universitário, promovendo discussões sobre ensino, transmissão, pesquisa e cientificidade. Esta permitiu a difusão da Psicanálise no Estado, mesmo com o encerramento do CEMEP. Além da entrada de diversos psicanalistas no primeiro curso de Psicologia da UNIC, outros integraram o corpo docente da UFMT, fomentando a sua difusão. Ver figura 7

... Em 1996, Adriana Rangel passa a compor o quadro dos docentes da Universidade Federal no Instituto de Educação, em seguida, compondo mais adiante um grupo de trabalho para construção do projeto pedagógico do curso de Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso que, aqui em Cuiabá passava a funcionar a partir de 2008, pois já havia o curso instituído em Rondonópolis. Em 96 chega a Cuiabá José Araújo Filho, voltando do Rio de Janeiro onde fez sua graduação e mestrado em Psicologia, lá teve contato com psicanalistas lacanianos, com quem havia iniciado sua formação lacaniana. Aqui José Araújo conhece Adriana Rangel que o apresenta para os psicanalistas da cidade, entre eles estou eu, e fundamos assim, o primeiro enlace institucional lacaniano em Cuiabá constituindo então, o campo analítico, onde segue a transmissão da Psicanálise sob nossa coordenação, tendo como membros participantes os primeiros psicólogos formados pela Unic (Feuerharmel, 2014).

Ruth Feuerharmel evidencia que a formação do analista, segundo a lógica da Escola Lacaniana de Psicanálise, dáse entre pares. Assim, desde sua chegada a Mato Grosso, pensava num espaço de formação em psicanálise, viabilizado em 1998 com a chegada de novos profissionais de outros estados.

... No início, o campo analítico que agregava cerca de quinze pessoas, interessadas na formação Psicanalítica Lacaniana traz pela primeira vez em Cuiabá, no final de 1997 o Psicanalista Luciano Elia do Rio de Janeiro, que passa a vir mensalmente, no ano de 1998 até os dias atuais, sendo um dos diretores do Laço Analítico (Feuerharmel, 2014).

Assim, segundo Ruth, em 1998 formou-se o Laço Analítico Escola de Psicanálise, simultaneamente em Cuiabá, Varginha e Rio de Janeiro, sob a direção de Luciano Fonseca Elia, psicanalista com formação na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Neste tempo, Alejandro L. Viviane, psicanalista, coordenador de grupos de estudo de teoria freudiana e lacaniana e seminários clínicos, que já estava em Cuiabá, continuou seu trabalho por mais um tempo com alguns profissionais em outro grupo, mas tal grupo não seguiu adiante, ficando apenas o grupo denominado Laço Analítico.

... O Laço Analítico em seus 18 anos de existência, oferece seminários de formação permanente aos interessados na formação Psicanalítica Lacaniana. O Laço criou o Curso de Fundamentos da Psicanálise Freudiana que está em 2016 com a quarta turma em andamento. Em maio de 2013 organizou e sediou a décima Jornada Brasileira de Convergência com o tema Verdade e Interpretação Psicanalítica congregando as Instituições Brasileiras que fazem parte do Movimento de Convergência (Ruth Feuerharmel, comunicação pessoal, 16/09/2015).

Ainda de acordo com Ruth Feuerharmel, a psicanálise lacaniana, a partir de 1995-1996, sofreu uma grande ruptura mundial, quando a Associação Mundial de Psicanálise, chefiada por Jacques Alain Muller, genro de Jacques Lacan, tornou-se herdeiro de direito da obra de Lacan, tomando para si a necessidade de se fazer a difusão da psicanálise lacaniana pelo mundo. No entanto, o fez de um modo em que acabou gerando uma ruptura interna no movimento lacaniano mundial. Com esta cisão, em 1998, eclodiram vários movimentos como: Formações Clínicas do Campo Lacaniano, Movimento de Convergência, Movimento Lacaniano por uma Psicanálise Freudiana, ao qual o Laço Analítico era ligado.

Em 2011, Maria Fernanda Lima Trigo Bumlai, Maria da Consolação Pereira Domingues, Marcia Christina Gouveia Smolka e Fátima Gomes Balieiro participaram da fundação de um outro movimento psicanalítico em Cuiabá, o Corpo Freudiano, Escola de Formação e Transmissão da Psicanálise, sendo suas coordenadoras locais. Trouxeram o mesmo método de ensino usado na instituição lacaniana fundada no Rio de Janeiro, em 1994, por Marco Antônio Coutinho Jorge, que também foi seu diretor geral. Esta escola teve como objetivo a formação de analistas e a transmissão da psicanálise freudiana e lacaniana. Também nela participaram os psicanalistas: Cláudia Rodrigues Conti e Jair José Schuh, porém não continuaram vinculados à mesma.

... Fundamos a escola que é o Corpo Freudiano Escola de Psicanálise. A escola existia há 20 anos e teve sua primeira seção no Rio de janeiro, sendo Marco Antônio Coutinho Jorge, seu diretor. Há quatro anos (na data da entrevista), o Corpo Freudiano foi fundando em Cuiabá com o objetivo de promover a formação de analistas e a transmissão da Psicanálise. Temos como o eixo central o estudo da teoria freudiana e de Jacques Lacan. Não abrimos mão do aprofundamento dos textos de Freud já que entendemos que nada existiria sem ele, o pai da Psicanálise. A escola tem núcleos e seções em várias partes do Brasil: Rio de Janeiro, Ceará, São Luis do Maranhã, Belém, Mato Grosso do Sul, Goiás entre outros. Nos tornamos, recentemente, uma escola internacional, com nossa primeira seção em Paris (Maria Fernanda Trigo Bumlai, comunicação pessoal, 02/11/2015).

O Corpo Freudiano tem como premissa o estudo dos textos de Freud e sua retomada pelo ensino de Lacan, com a finalidade da formação do analista, da transmissão da psicanálise, da interlocução com os diversos núcleos/seções da escola e com outros campos do saber.

Com os extintos CEMEP e MPC e os ativos Laço Analítico e o Corpo Freudiano, é possível verificar que em Mato Grosso a história da psicanálise é semelhante à do Brasil, caracterizada por construções e rupturas e que, a partir das necessidades de um contexto maior e a preocupação com a difusão de uma psicanálise atenta aos escritos freudianos, criaram e criam com originalidade e persuasão a história da psicologia e da psicanálise mato-grossense. Outros grupos estão nascendo, com a demonstração do crescimento da psicologia e da psicanálise no Estado e as convergências e divergências de ideias e práticas. Assim, o avanço se dá em Mato Grosso e em todo o Brasil.


Figura 7
Evento promovido pelo MPC. (Cartaz). Fonte: CRP 18.

Considerações finais

Para se contar uma história é necessário partir de algum ponto de vista. Durante a realização deste estudo, nos deparamos com diferentes discursos e formas de atuação que dificultaram delimitar suas fronteiras e situar o campo psicanalítico frente à outras psicologias. Optamos por um ponto de apoio comum aos participantes e à própria teoria e, por isso, escolhemos iniciar a história da psicanálise, no estado de Mato Grosso, a partir de seus movimentos de formação e transmissão e que vai se concretizando paralelamente à sua expansão e fortalecimento.

Formados, em sua maioria, em grandes centros urbanos do país, os profissionais trouxeram na bagagem o desejo e a necessidade de aprimorar a formação profissional, ponto central da própria teoria com a qual se identificavam e, por conta disso, a capital mato-grossense foi palco para o desenvolvimento de escolas de formação em psicanálise a partir da década de 1980. Atuantes na Saúde Mental, especificadamente no hospital psiquiátrico Adauto Botelho, em clínicas particulares e no ensino superior, os profissionais se lançaram a organizar movimentos de formação e difusão da psicanálise em Mato Grosso, reproduzindo o contexto brasileiro de transmissão e consolidação desta teoria. Convém situar que a psicanálise mato-grossense se consolidou a partir do esforço de muitas psicólogas mulheres, fruto do caráter feminino da psicologia e do processo histórico de seu avanço.

Muitos profissionais de outros estados e países vieram para auxiliar no crescimento de uma psicanálise mato-grossense que enfrentou muitos desafios para se efetivar nos moldes da própria teoria. Uma nova linguagem começou a se firmar e a compor uma prática de estudos entre os profissionais interessados na formação e em aprofundar seus conhecimentos que, para muitos, segue até os dias atuais. Isso nos mostrou a força que o encontro entre pares e o aprofundamento teórico teve no estabelecimento de uma teoria no seio de uma cultura.

Porém, conforme apontado na introdução, não há neutralidade na escrita da história. Contar uma história significa estabelecer relações entre determinados dados selecionados, episódios, eventos, instituições e agentes que impõem certas limitações à pesquisa. Neste primeiro momento, optamos por uma escrita mais descritiva da história. As tensões apresentadas dizem respeito à estruturação dos próprios movimentos, não nos atendo aos conflitos e à sua inserção dentro do cenário político e econômico do estado e, até mesmo, nas nuances e construções da própria psicologia.

A partir desta limitação, abre-se um vasto campo para novas pesquisas que possam revelar suas lacunas, sua relação com outras áreas profissionais e de conhecimento, as opções teóricas e metodológicas existentes dentro da própria psicanálise, as características das práticas com sua relevância e dificuldades no contexto mato-grossense. Nas lacunas de uma pesquisa, outras vão sendo engendradas; nas suas respostas, novas perguntas. Assim, no registro multidimensional de suas histórias, as ciências psicológicas vão se consolidando e se transformando.

Apreciação

Esta pesquisa faz parte do projeto Histórias da Psicologia em Mato Grosso desenvolvido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Educação de Mato Grosso em parceria com o Conselho Regional de Psicologia de Mato Grosso (CRP18) e com a colaboração do curso de Psicologia do Centro Universitário de Várzea Grande.

Referências bibliográficas

Antunes, M., (2007). A psicologia no Brasil, leitura histórica sobre sua constituição . São Paulo, Brasil: Unimarco Editora.

Bloch, M., (2001). Apologia da história ou o ofício de historiador . Rio de Janeiro, Brasil: Jorge Zahar Ed.

De Andrade, M., (1987). Poesias completas . São Paulo, Brasil: Edusp

De Certeau, M., (1982). A escrita da história . Rio de Janeiro, Brasil: Forense Universitária

Facchinetti, C.(2003). "Psicanálise modernista no Brasil: Um recorte histórico". Physis: Revista Saúde Coletiva. 13 (1), 115-137. Recuperado de https://goo.gl/GUi1YM

Feuerharmel, R., (2014). Palestra proferida na Universidade Federal de Mato Grosso . Cuiabá, Brasil

Figueiredo, A. (1984). Estratégias de difusão do movimento psicanalítico no Rio de Janeiro PUC/RJ (Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

Figueiredo, A.(2012). "A psicanálise dos psicólogos no Rio De Janeiro dos anos 1970". Culturas Psi. (1), 84-99. Recuperado de https://goo.gl/yz5DMe

Gageiro, A., Torossian, S.(2014). "A história da psicanálise em Porto Alegre". Analytica. 3 (4), 117-144. Recuperado de https://goo.gl/17n9UK

Jacó-Vilela, A. (2000). Construindo a história da psicologia no Brasil: Abordagens e modelos . En I Seminário de Historiografia da Psicologia. São Paulo, Brasil: Universidade de São Paulo

Massimi, M. (2000). Historiar a psicologia: Assumindo uma perspectiva e um lugar de observação . En I Seminário de Historiografia da Psicologia. São Paulo, Brasil: Universidade de São Paulo

Mokrejs, E., (1993). A psicanálise no Brasil . Rio de Janeiro, Brasil: Vozes

Nogueira Filho, D., Warchavchik, V.(2008). "Formação do Analista: Um impasse necessário". Jornal de Psicanálise. 41 (74), 141-150. Recuperado de https://goo.gl/dKqHXc

Oliveira, C.(2002). "A historiografia do movimento psicanalítico no Brasil". Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. 5 (3), 144-153. Recuperado de https://goo.gl/nV1cu3

Russo, J. (1999). Uma leitura antropológica do mundo “Psi” . En Jacó-Vilela, A., Jabour, F., Rodrigues, H (autor.);Clio-psyché: Histórias da psicologia no Brasil. Rio de Janeiro, Brasil: UERJ

Russo, J.(2002). "A difusão da psicanálise no Brasil na primeira metade do século XX – da vanguarda modernista a rádio-novela". Estudos e Pesquisas em Psicologia. 2 (1), 51-61. Recuperado de https://goo.gl/hkS5sP

Salim, S.(2010). "A história da psicanálise no Brasil e em Minas Ge-rais". Mental. 8 (14). Recuperado de https://goo.gl/Phx4oi

Silva, M.(2003). "Psicanálise e modernismo: Enlaces". Revista Psicanálise e Barroco. 1 (2), 1-44. Recuperado de https://goo.gl/eRQjMK

Veyne, P., (1998). Como se escreve a história . Brasília, Brasil: Editora Universidade de Brasília

Notas

1 Sociedade criada por Freud em 1910 com a finali-dade de organizar o movimento psicanalítico e, posteriormente, em 1924, regular os critérios da formação psicanalítica, cujo eixo central se pauta na análise pessoal com um analista didata da pró-pria instituição, nas supervisões clínicas e nos semi-nários clínicos, com duração de cinco anos para ob-ter a autorização de atuar como psicanalista (Salim, 2010).
2 Este concurso foi o mesmo em que Ruth Feuerharmel foi aprovada. Não havia cargo para psicóloga na Secretaria de Estado da Educação. Após serem apro-vadas no concurso, devido ao título de bacharel em Psicologia, puderam assumir funções na Educação Especial.

Autor notes

*Contacto: J. T. D. Cotrin. Universidade Federal de Mato Grosso. Correio electrônico: janecotrin@gmail.com



Buscar:
Ir a la Página
IR
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por