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Resumo: O artigo que se segue pretende discutir a crise da ideia de subjetividade na contemporaneidade como ideal biopolítico, e ao qual estariam associados outros conteúdos normativos e políticos modernos, tais como, a reflexividade, a autonomia e a normalidade psíquica. Diante da aceleração tecnológica que preside o capitalismo informacional, resultado da própria realização planetária do liberalismo, de seu sucesso como ideal técnico e econômico, e tudo o que demanda de plena disponibildiade dos indivíduos, verifica-se uma erosão, de todo o conjunto de conceitos associados à metafísica do sujeito - paradoxalmente, esta é a própria base do pensamento liberal. Investimentos na reflexividade, sanidade, autonomia dos indivíduos já não pode oferecer suporte às necessidades dromológicas do capital. A partir dessa perspectiva, e tendo a obra de Canguilhem como suporte, pretendemos entender o sentido técnico do dispositivo psicofarmacológico que passa a presidir a vida de uma parte considerável dos indivíduos na contemporaneidade.
Abstract: The following article intends to discuss the crisis of the idea of subjectivity in contemporaneity as a biopolitical ideal, to which would be associated other modern normative and political contents, such as reflexivity, autonomy and psychic normality. Faced with the technological acceleration that governs informational capitalism, the result of the planetary realization of liberalism itself, its success as a technical and economic ideal, and everything that demands the full availability of individuals, there is an erosion of the whole set of concepts associated with the subject’s metaphysics, paradoxically, this is the very basis of liberal thought. Investments in reflexivity, sanity, autonomy of individuals can no longer support the dromological needs of capital. From this perspective, and having the work of Canguilhem as support, we intend to understand the technical meaning of the psychopharmacological device that presides over the life of a considerable part of the individuals in the contemporary world.
Introdução
No texto que se segue, procuro analisar o entrelaçamento de três temas que a reprodução biopolítica do capitalismo contemporâneo, isto é, do “turbocapitalismo”, mobiliza e ao mesmo tempo problematiza: a noção de subjetividade, a ideia de saúde mental e os meios técnicos para alcançá-la. Como forma de abrir esta exposição, e tomando o primeiro destes temas em consideração, proponho a seguinte questão: seria ainda possível afirmar que o sujeito liberal constitui um eixo discursivo fundamental em torno do qual o capitalismo se reproduz, ou a própria aceleração tecnológica colocaria em xeque tal possibilidade? Dados os nossos múltiplos envolvimentos tecnológicos, haveria ainda um tempo reflexivo que pudesse viabilizar as promessas de autodeterminação subjetiva, e que não se reduzisse à mera adequação com respeito às demandas heterónomas e velozes da sociedade da informação? A partir de abordagens bastante distintas, autores como Richard Sennett (em A Corrosão do Caráter, por exemplo), Paul Virilio (em Velocidade e Política) ou Byung-Chul Han (em A Sociedade do Cansaço e O Aroma do Tempo), Hartmunt Rosa (Aceleração) entre tantos outros, suspeitam que a interioridade do sujeito, e todo o investimento político que sobre ele se formou, já não podem ser oferecidas como base possível de um agir racional sobre o mundo. Concebido como elemento central do dispositivo biopolítico moderno, o sujeito racional, autocentrado, já não seria mobilizado como base de funcionamento dos aparatos tecnológicos modernos. Pelo contrário, a subjetividade parece recuar em decorrência de sua ineficiência para responder às demandas por aceleração e intensificação da vida. Não precisamos recorrer ao “panglossismo” (Martins, 2013) de pós-humanistas e trans-humanistas para perceber que, diante do aumento considerável de transtornos mentais associados ao imperativo cultural da performance, por exemplo, os processos de subjetivação não parecem ser rápidos o suficiente para responder a tal intensificação e aceleração. A ação social do sujeito racional necessita sempre de um hiato reflexivo, um retardamento, afirmariam Sennett, Virilio e Han, incompatíveis com tais demandas. Em seu último livro, Experimentum Humanum, Hermínio Martins (2013) alertava para essa contradição: o liberalismo, amplamente vitorioso no mundo, por mobilizar a intensificação de uma racionalidade técnica fundamentalmente aceleradora, termina por se inviabilizar como projeto de libertação subjetiva.
Não obstante, os discursos contemporâneos da meritocracia, da responsabilidade sobre si, do imperativo do sucesso e dos cuidados sobre a própria saúde, não deixam de mobilizar, ou subentender, a autonomia de uma subjetividade racional. Seria o caso aqui de considerar as seguintes palavras de Adorno: “nada é mais degenerado do que o tipo de ética ou moral que sobrevive na forma de ideias coletivas mesmo depois que o Espírito do Mundo – usando a expressão hegeliana como atalho – cessou de nelas residir. Uma vez que o estado da consciência humana e o estado das forças sociais de produção abandonaram essas ideias coletivas, essas mesmas adquirem qualidades repressoras e violentas” (Adorno [Problems of Moral Philosophy], apud Butler, 2015: 14). De fato, a implementação de projetos liberais no mundo, e tudo o que implicam em aceleração e mobilização técnica, têm implicado em violências consideráveis sobre os indivíduos. Pensemos apenas nas estatísticas de síndrome de burnout e depressões nos países desenvolvidos, no confisco de direitos trabalhistas historicamente consolidados, na precarização do trabalho.
Tomemos um segundo ângulo para abordar o problema que temos aqui. Diante das demandas por celeridade, seria ainda adequado afirmar que a epistemologia médica se organizaria a partir da oposição entre normalidade e patologia - oposição cujo papel na estabilização biopolítica dos indivíduos em um contexto industrial foi tão bem percebida por Canguilhem e Foucault? Ora, primeiro devemos constatar que o deslizamento entre as ideias de saúde, normalidade, maturidade e autodeterminação foi crucial não apenas na consolidação de uma metafísica da subjetividade, mas na possibilidade de que a prática médica, e da saúde mental, viesse a contribuir nesta direção. Há entre o discurso da subjetividade e o discurso da normalidade psíquica um elo claro, e historicamente evidente, posto que a ideia de um sujeito racional, autônomo, maduro, no controle de suas emoções, é tanto um critério decisivo para avaliar a saúde mental quanto eixo em torno do qual gravita a racionalidade do sujeito. Isso vale tanto para a Psiquiatria de Emil Kraepelin, por exemplo, como para a Psicanálise de Freud. Desde a História da Loucura, aprendemos que ambas as disciplinas nascem da observância de uma linha de demarcação entre normalidade e patologia, razão e desrazão – ainda que naquele livro a crítica foucaultiana não se volte para a Psicanálise. Essas práticas, Foucault (1961) propõe, alinham-se ao interesse amplo do modo de produção capitalista por normalizar condutas, por torná-las previsíveis, e portanto produtivas.
Hoje, por outro lado, a ideia de normalidade e de sanidade já não parecem bastar para atender às demandas por uma agir inovador, e permanentemente desestabilizador, às demandas por aceleração, e à própria lógica de reprodução da indústria da saúde, cujos interesses se colocam para além dos horizontes tradicionalmente normalizadores da medicina. A popularização de ansiolíticos, antidepressivos, bem como medicamentos de redução de riscos associados ao “estilo de vida” apontam nessa direção. É necessário excitar os corpos de acordo com a dinâmica do consumo descartável, mas também conter, quando adequado, os excessos de tal excitação. Neste âmbito já não se trata, pois, de reconduzir o paciente da patologia à normalidade, ou seja, curar, mas aceitar o suporte biotecnológico como componente crônico da vida contemporânea. Trata-se de promover a adaptação do ser vivo a dinâmicas que exigem próteses (químicas e não químicas) cada vez mais sofisticadas. Adaptar-se a esse contexto instável, incerto, ou, como diria Agamben, em que a exceção se torna regra, é uma demanda que já não pode ser suficientemente compreendida pela ideia de normalidade, ou de um estar saudável. E isso tem implicações na forma como a subjetividade pode ser mobilizada como dispositivo biopolítico. Se é verdade que a subjetividade não pode ser realizada no contexto extremamente territorializado das sociedades tradicionais, ela parece se tornar ineficiente quando ideais de nromalidade, reflexividade, autonomia são cada vez mais corroídos pela aceleração tecnológica (Ferreira, 2015).
Porém, se a normalidade já não funciona como ideal regulativo e se todo investimento subjetivo (em si e a partir si) é constantemente torpedeado pela dependência de intervenções químicas e pelo desejo de adequação a circuitos tecnológicos globais, por que razão esse discurso ainda apresenta tamanha força política? Utilizando livremente as palavras de Adorno citadas acima, perguntaríamos se essa força, que corresponde à realização ampla de um discurso e de intervenções técnicas liberalizantes, não seria agora eminentemente repressora. Ora, responder a essa indagação pressupõe um esforço preliminar. Cabe refletir em que medida a constituição de um discurso de mitigação do sofrimento mental, através de terapias de caráter bioquímico, operar-se-ia sobre novas bases de reprodução biopolítica do capitalismo, isto é, já não a partir da suposição da centralidade e autonomia do sujeito normal, mas da heteronomia e fragmentação mediante as quais forças técnicas atuam e reproduzem e turbinam a vida biológica. É essa tarefa sobre a qual nos debruçaremos neste ensaio.
É adequado neste ponto reconhecer um limite em nossa tarefa – faço-o tomando emprestado algumas considerações que Judith Butler (2015) oferece em Relatar a si mesmo. A partir de Nietzsche e Foucault, e tendo curiosamente Hegel como interlocutor, Butler considera a possibilidade de retomar a questão da subjetividade de uma forma não solipsista, mas levando em conta um horizonte normativo e um “tu” (um outro) a partir do qual a individualidade do sujeito deve ser concebida. O ego é sempre uma resposta a este “tu” (outro/outra) e ao horizonte normativo em que sua interpelação torna-se inteligível. Se em Nietzsche esse encontro significava a culpa e o fantasma da punição como valores fundamentais da estruturação da subjetividade, e em Foucault, implicava que a norma, a disciplina, e o aparato técnico por ela mobilizado, nos dois casos, a possibilidade de estruturação subjetiva seria necessariamente subordinada. Ações subjetivas de caráter crítico, neste processo, seriam impensáveis. Em oposição a essas conclusões, Butler considera a possibilidade de que o sujeito não seja meramente produzido pelas normas que lhe oferecem um horizonte existencial e ético, nem seja reduzido à culpa diante do outro. Para ela, a interpelação feita pelo “tu” dentro de um contexto normativo constitui também a possibilidade de exercer uma atitude crítica com respeito aos engajamentos que o ego necessariamente estabelece com o mundo. A subjetividade, neste caso, é um valor moderno que não se pode simplesmente lançar pela janela, junto com a inconsistência de sua versão liberal, sem que isso resulte num empobrecimento político e ético considerável. Estas considerações ajudam a delimitar de forma mais exata os contornos do presente ensaio. Tendo em mente o problema filosófico que Butler propõe, interessa-nos aqui entender precisamente esse horizonte normativo e suas demandas. A ele nos ateremos. Isso não significa que julguemos que tal enquadramento determine nossas possibilidades existenciais, políticas, éticas, mas que é necessário conhecê-lo e os desafios que lança a um discurso particular acerca da subjetividade e a nós todos, mesmo os críticos do liberalismo.
Da dicotomia normalidade-patologia
No ensaio “Saúde: conceito vulgar e questão filosófica”, Georges Canguilhem (2005) propôs a seguinte definição: “A saúde é a vida no silêncio dos órgãos” (p. 35). Quem quer que seja acometido por algum sintoma patológico - febre, dor de cabeça, apneia, taquicardia - entende e deseja esse silêncio, esse retorno a uma atitude natural com respeito ao funcionamento de nosso corpo, em outras palavras, anseia por esse esquecimento de si. O sofrimento, seja ele de ordem somática ou psicológica, grita-nos, solicita-nos, convoca nossa atenção para uma parte de nosso corpo, e tudo o que queremos nestas ocasiões é esquecer essa voz inoportuna, é evitar esse campo gravitacional poderoso que drena nossa energia vital e atenção. Que a saúde possa ser pensada, pois, como “a vida no silêncio dos órgãos”, como a paz da não solicitação, parece bastante razoável. Eventualmente, e isso é de suma importância, esse silêncio e esquecimento de si são entendidos não apenas como sinais de saúde, mas como saúde em si. Que um conjunto de sintomas possa ser tratado como doença ou que sua ausência seja concebida como saúde apresenta consequências que não devem ser negligenciadas.
Isso é especialmente verdadeiro no campo da saúde mental contemporânea. Existe hoje, uma concepção do psiquismo e uma terapêutica a ela associada que partem precisamente desta redução, ou seja, da sanidade equiparada ao silêncio do corpo ou da mente e da administração de sintomas como fulcro da prática médica. Se, por exemplo, para a neurociência contemporânea, a “mente é o que o cérebro faz” (Rose, 2013: 3) e se processos mentais como o reconhecimento de si mesmo nada mais são que uma estratégia que nosso cérebro constituiu ao longo de nossa evolução biológica, parece natural supormos que, focando na realidade biológica deste cérebro, teríamos a possibilidade de tratar o sofrimento por um caminho direto, imediato. Por que a medicina haveria de se deter com algo tão intangível como a significação que realizamos de nosso sofrimento num âmbito mais subjetivo quando um acesso direto à base neuronal do padecimento humano encontra-se disponível? Não obstante, o investimento na significação subjetiva do sofrimento constitui uma atitude fundamental na própria cultura moderna, tendo orientado práticas aceitas como científicas, como é o caso da psicanálise e várias correntes interpretativas das ciências sociais. Se, por um lado, os indivíduos preferem obviamente o esquecimento de si que a saúde permite, parece claro, por outro lado, que o sofrimento, em geral, e as patologias, em particular, fazem-nos retornar a nós mesmos, promovendo um investimento narcisista fundamental à nossa recuperação.
De um modo geral, pondera Canguilhem, a medicina nunca pensou suficientemente a saúde, mas sim a doença – embora a idealidade da primeira categoria marque substancialmente a apreciação negativa da segunda. A partir deste objeto de conhecimento, ou seja, mediante uma incursão na anomalia, na anormalidade do patológico, procura-se garantir o estado de quietude que a saúde implica, ou, ao menos, diminuir os danos provenientes de algum tipo de perturbação num estado de normalidade somática. O campo médico, portanto, e esse é também o caso da Psiquiatria e Psicologia, seria propriamente o patológico, o anormal. Enfatizemos: essa constatação teve uma influência significativa na obra de Michel Foucault, nas teses que ele desenvolve sobre a história da loucura, bem como em diversos autores que se beneficiaram dessa influência intelectual. Vejamos, por exemplo, o que Nikolas Rose (2011) tem a nos dizer sobre a relação entre as ciências psicológicas e a criação de regimes do self no ocidente:
Colocar o problema dessa maneira é ressaltar a primazia do patológico em relação ao normal na genealogia da subjetivação – de maneira geral, nossos vocabulários e técnicas da pessoa não emergiram dentro do campo da reflexão sobre o indivíduo normal, mas, pelo contrário, a própria noção de normalidade emergiu a partir da preocupação com tipos de conduta, pensamento e expressão considerados problemáticos ou perigosos (p. 44).
Dados os compromissos políticos que marcam o surgimento da Psiquiatria, quer dizer, seu papel disciplinador, a ênfase que confere ao que escapa à normalidade parece algo natural. A Psiquiatria, e também a Psicologia, surgem no ocidente como vetores de um processo em que o divórcio entre razão e desrazão, não apenas condiciona a formação de um discurso de racionalização da vida, mas se revela fundamental na constituição de um regime do self, com suas implicações éticas, políticas, econômicas e culturais. Neste contexto cultural, o louco é pensado como aquele que está privado, por definição, da cidadania, da responsabilidade, da autodeterminação, da maturidade. É em oposição a ele que se pode pensar com propriedade o que seria um sujeito racional, autocentrado, maduro, moderno.
Desconsiderando por um momento a dificuldade em definir o que seja saúde mental, e tendo a Psicologia de base cognitivista e comportamental e a Psiquiatria de orientação biológica em consideração, seria possível retomar nossa inquietação inicial: onde os sintomas cessam – ansiedade, tristeza mórbida, lutos persistentes – a sanidade estaria reestabelecida? A resposta a essa questão, como veremos, apresenta implicações com respeito ao regime de subjetivação moderno. Tanto para a Psicologia de orientação cognitivo comportamental quanto para a quanto para a Neuropsiquiatria, a superação de tais sintomas estaria associada a uma mudança de padrões sinápticos cristalizados e responsáveis pela sensação mal-estar, de sofrimento. Sendo esses padrões biologicamente estabelecidos, porém plásticos, é possível pensar que um investimento na reconfiguração química cerebral seja possível sem que investimentos psicológicos tradicionais, que focam na reconstituição histórica da individualidade, entrem propriamente em questão.
Além da dicotomia entre o normal e o patológico
Para Joseph Dumit (2012), a própria ideia de saúde já não é tão facilmente aceita como realidade alcançável e critério orientador das práticas médicas contemporâneas. Essa postulação, evidentemente, implica em uma revisão profunda da epistemologia médica, sua pretensão de constituir um discurso civilizador de normalização e sanidade. De acordo com o que expusemos acima, tal revisão teria consequências importantes para o próprio regime de subjetivação ao qual se associa a reprodução biopolítica do capitalismo. Por agora, constatemos o fato de a Psiquiatria de orientação organicista passar a tratar, não apenas psicoses, quadros de sofrimento mental graves, mas também neuroses bem mais triviais, sofrimentos bem mais prosaicos, como diversos tipos de ansiedade, entre as quais mencionaríamos, fobias sociais, de contato com animais ou com sangue. Parte do sucesso que hoje goza uma orientação biológica na Psiquiatria, pensemos na popularidade das últimas versões do DSM (Diagnostic and Statistic Manual of Mental Disorders), em detrimento de orientações psicanalíticas ou fenomenológicas, deve-se precisamente ao surgimento dos primeiros psicotrópicos na década de 1950, drogas para tratamento de ansiedade, na década de 1960 e antidepressivos na década de 1970. Ou seja, Já a partir da década de 1970, portanto, a Psiquiatria conta com medicamentos para tratar quadros de sofrimento mental graves, como as psicoses, e formas mais brandas, como as ansiedades. Uma clínica psiquiátrica da neurose e do mal-estar contemporâneo, e não os clássicos cuidados com quadros psicóticos, com o “anormal”, parece apontar, na Psiquiatria, para transformações semelhantes às mudanças que Dumit expõe. Para Dumit, estaríamos diante do surgimento de: “uma nova gramática de doença, risco, experiência e tratamento, em que o corpo é inerentemente disfuncional [disordered] e no qual a saúde não é mais o silêncio dos órgãos; é a doença que é silenciosa, frequentemente assintomática” (2012:55).
No campo da saúde mental, portanto, é apropriado salientar que aquilo que pode ser objeto de uma intervenção medicamentosa não é necessariamente o patológico – como as ditas drogas da inteligência deixam claro. Isso obviamente radicaliza as conclusões de Dumit. De qualquer modo, a relação que existe entre administração de risco e informação é um elemento importante na lógica biopolítica que preside o dispositivo farmoquímico. “Informação acerca da possibilidade da patologia transforma modalização em mobilização. Você não pode ignorar essa possibilidade moralmente porque seu status se transformou. Isso pode produzir um dever muito forte de ser saudável (agora que você sabe que não é) e um ‘ter de tentar’ racional (posto que você sabe que há algo que você pode fazer) que é tão profundamente mora quanto o imperativo a ser testado, identificado por Nelkin e Tancredi1” (Ibid.: 60). Teremos o que falar acerca da importância da informação neste novo contexto. Por agora, salientemos que o sentimento de dever assumido diante deste corpo sempre em perigo, e nunca suficientemente potente, ainda que nele nem sempre possamos encontrar sintomas evidentes de disfuncionalidade, decomposição, entropia etc., revela-se não apenas em sua dimensão moral, mas em seu caráter opressivo. Assim, não obstante o fato de na teoria sociológica, desde a publicação Sociedade de Risco de Ulrich Beck, em 1986, estar estabelecida a relação entre risco e reflexividade, parece claro que o limite desta última é sua subordinação à dinâmica tecnológica do capitalismo.
É possível dizer que, por intermédio da administração de riscos potenciais de adoecimento, portanto, veríamos reintroduzida uma dinâmica subjetiva mínima num terreno em que o sujeito parece perder relevância como parte daquela dinâmica biopolítica. O indivíduo abandonado por redes sociais de proteção, pensemos aqui na crise do Estado de Bem-Estar Social, ou mesmo na precariedade do sistema de saúde brasileiro, é compelido a exercer um cuidado de si diuturno em meio à proliferação de informações sobre como viver bem ou como evitar a ruina física. As dificuldades aqui subjacentes podem ser apreciadas se levarmos em conta os elementos “destemporalizadores” deste processo marcado pela ansiedade, como observa Byung-Chul Han: “A falta de tensão narrativa faz que o tempo atomizado não possa manter a atenção de maneira duradoura. Isso faz com que a percepção se abasteça constantemente de novidades e radicalismos. O tempo de pontos não permite nenhuma demora contemplativa” (2015: 37). A esse indivíduo privado de uma narrativa – presa da notícia-escândalo - apenas a ansiedade se abre como verdade radical. E se os cuidados sobre si, sua dimensão narcisista, podem ser entendidos como uma apropriação subjetiva possível da dinâmica biopolítica que impõe a aceleração e intensificação dos ritmos dos corpos – no que pese a dificuldade de empreender tais cuidados num contexto de desorientação, tal como o analisa Han, por outro lado, tais cuidados constituem uma tentativa de adaptação a ritmos técnicos heterônomos. Tais ritmos muito raramente estão em questão. Neste cenário, silenciar sintomas desagradáveis é condição para que “funcionemos” adequadamente, quer como consumidores vorazes de objetos perecíveis, quer como produtores descartáveis desses mesmos objetos.
A ideia de um corpo são, de acordo com Canguilhem (2005), guardaria em si duas acepções que a etimologia da palavra latina sanus parece indicar, ou seja, “intacto ou bem preservado” e “infalível e seguro” (p. 38). Contraditoriamente, sob as condições e exigências dromológicas do capitalismo contemporâneo, podemos perceber-nos atletas do dia-a-dia, isto é, bem preservados, sem estarmos tranquilos, “seguros”, com respeito à nossa saúde. Mas qual seria o motivo pelo qual a segurança da saúde nos parece diuturnamente negada, mesmo quando não temos sinais aparentes de sofrimento, de qualquer enfermidade? Integrada à dinâmica da indústria farmacêutica, aos seus interesses comerciais, a medicina contemporânea já não pretende ter uma ação episódica de recondução do doente à saúde, à normalidade, mas tratar como doentes potenciais quem quer que apresente alguma predisposição biológica ao adoecimento, o que significa 100% dos seres vivos. Assim, tanto a medicina quanto, mais amplamente, o complexo industrial que se monta em torno do adoecimento, convertem-se na sombra dos indivíduos que vivem sob o domínio da sociotécnica. Podemos dizer, com Dumit (2012), que à indústria farmacêutica não interessa curar, mas tratar indefinidamente doenças reais ou virtuais. Mitigar é bem mais lucrativo que curar. Propensões ao desenvolvimento do diabetes ou de doenças coronarianas, por exemplo, são um filão comercial na medida em que doentes potenciais ou efetivos possam ser tratados cronicamente com insulina ou estatinas. Isso também vale, evidentemente, para pacientes psiquiátricos (neuróticos ou psicóticos) e sua demanda crônica por hipnóticos, ansiolíticos e antidepressivos em geral. Não é mesmo necessário que uma patologia seja efetivamente identificada para que o recurso a esses medicamentos seja recomendado – embora, em geral alguma sintomatologia seja o fator que mobiliza o uso.
Tendo em vista não apenas os interesses da “indústria da saúde”, mas a própria tendência à intensificação, aceleração e extenuação da vida sob o regime biopolítico em que vivemos, parece que ter a “posse máxima de meios físicos” (Canguilhem, 2005: 38) já não basta. O máximo já não é suficiente. Esse processo de intensificação constante da vida biológica implica inevitavelmente na penetração de aparatos biotécnicos em sua administração. O fim último desta intermediação é controlar os ruídos físicos, existenciais, reflexivos que impliquem num retardamento qualquer com respeito aos ritmos de reprodução do capital. Na sociedade da tagarelice informacional, existe a necessidade desse silenciamento. Digamos de forma clara: aqui não se trata apenas da dificuldade estrutural que a medicina teria em pensar a saúde, como o propõe Canguilhem, mas de atentar para o fato de que ao investir na cronicidade da doença ela já não tem mais o paciente, o indivíduo, como foco prioritário, mas sim necessidades sistêmicas mais amplas. Retomando, sob esta lógica, a medicina torna-se um dispositivo de adaptabilidade. A influência de abordagens evolucionárias na Psiquiatria deve aqui ser mencionada neste ponto, conforme podemos perceber no depoimento de uma psiquiatra lisboeta2.
E há uma até uma corrente [da Psiquiatria] que fala neste momento em utilizar os antidepressivos, e os psicofármacos, não pra tratar a doença, mas pra tratar… numa espécie de make-up, de maquilhagem da personalidade, de traços que são menos adaptativos na personalidade, traços mais de ansiedade, traços mais de evitamento, de dependência, que pudessem ser suscetíveis a uma abordagem mais farmacológica. Portanto, acho que isso só é preocupante se tiver consequências negativas do ponto de vista orgânico, ou seja, quando o risco é superior ao benefício. […] E se, de fato, a nossa sociedade neste momento criou essa roda-viva de stress e eu não vou puder mudar as circunstância à volta, então, se calhar, eu tenho que mudar a forma como a pessoa encara as circunstâncias.
De acordo com o mesmo depoimento, entenda-se que “mudar a forma como a pessoa encara as circunstâncias” significa adaptar-se a elas, posto que estas “não poderiam” ser transformadas. Para essa psiquiatra, trata-se de uma questão de custo, da rapidez dos resultados e, portanto, de eficiência - aqui devemos ter em mente o quanto a prática médica vem sendo submetida a vetores gerencialistas que tem afetado a reprodução do capitalismo como um todo. Talvez devêssemos repetir a indagação que o psicanalista de orientação existencialista Pierre Fédida nos propõe há algum tempo: diante de condições desumanas de existência, da necessidade de responder imediata e satisfatoriamente, em tempo real, às demandas de um capitalismo que opera a partir da lógica 24/7 (Crary, 2014), ou seja, sem repouso, o deprimido mostra em sua desaceleração, em seu questionamento radical do sentido das coisas, um sinal de saúde ou um sintoma patológico (Fédida, 2002, 2003; Ferreira, 2015)?
O indivíduo, todavia, sofre para além da racionalização sociológica, ou psicanalítica, e reivindica alívios imediatos. Quando o horizonte temporal em que vivemos é submetido a constantes implosões, a urgência passa a ser nossa marca existencial. O “tempo atomizado” (Han, 2015), na medida em que já não podemos projetar cenários de um futuro confiável, urge. O que quer que pensemos sobre paliativos farmoquímicos, a confluência de sentidos entre saúde e segurança, entre saúde e busca por infalibilidade, entre saúde e poder, coloca-nos desafios tremendos num contexto de envolvimentos tecno-sociais cada dia mais intensos. Porém, saúde, poder, segurança é o que nunca temos neste cenário. Lembremos do imperativo moral contemporâneo de que nos falava Joseph Dumit (2012) e que agora percebemos no contexto de um dispositivo biopolítico e dromológico mais amplo. Byung-Chul Han (2015), permite-nos apreciar uma dimensão profunda desse problema.
La aceleración es inherente a un proceso perfectamente funcional. El procesador, que solo conoce procesos de cálculo, no se ve sometido a la presión de la aceleración. Se deja acelerar con mucho gusto, porque no tiene estrutura de sentido, ningun ritmo propio, porque está reducido a la mera eficiencia funcional, que registra cualquier demora como una molestia. […] Desde la óptica del procedere, la demora solo sería una paralización que debería eliminarse lo antes posible (2015: 104).
Diante desse cenário, parece não espantar que, durante os trabalhos de campo, da pesquisa mencionada acima, ao perguntarmos sobre um critério para aferir a saúde mental dos indivíduos, alguns desses profissionais teriam respondido categoricamente: “funcionar”. Esta foi uma ideia central entre as preocupações terapêuticas de um número significativo de entrevistados, mesmo entre aqueles que vinham de uma abordagem menos biológica e evolucionária. Indagado sobre os critérios que orientam sua intervenção como especialista em saúde mental, um psicólogo de orientação comportamental em Lisboa, respondeu-me em entrevista de agosto de 2014: “vou utilizar uma medida para saber se a pessoa está a funcionar ou não. […] Se está a funcionar socialmente, profissionalmente, se está a funcionar com a família, se as responsabilidades gerais […] com os outros existem ou não existem”. O mesmo profissional, questionado sobre o que decide pela adoção ou não de medicamentos, responde: “O não funcionamento. O não funcionamento ou um sofrimento muito intenso”.
Uma ilustração de uma prática da saúde mental baseada na administração do sintoma e no acesso direto à base neuroquímica do sofrimento é oferecido por profissionais da saúde mental que tratam como objeto de intervenção psicofarmacológica a angústia e a tensão gerados por problemas sociais. Esse é o caso que nos apresenta Isabela Cribari (2014), no premiado documentário De profundis. O filme narra o desastroso processo de transposição da pequena cidade de Itacuruba das margens do rio São Francisco e os problemas sociais que dali decorreram. Essa intervenção pública gerou uma população de deprimidos e consumidores de psicofármacos. A distância que existe entre a “velha” e a “nova” Itacuburuba, segundo os depoimentos de seus cidadãos e cidadãs, é a que se coloca entre o território e o abismo, entre a vida significativa e o seguir vivendo. A vida social reduzida à nudez biológica, a vida em estado de exceção, para usarmos a formulação que Giorgio Agamben popularizou, necessita ser objeto de intervenções médicas e medicamentosas constantes.
O profissional que atua no campo da saúde mental – seja ele um psiquiatra ou um clínico geral – é muitas vezes confrontado com demandas por alívio de sofrimentos resultantes de problemas não necessariamente, ou em primeira instância, psicológicos. Um paciente que requer de seu médico hipnóticos para poder dormir, diante da impossibilidade de fazê-lo por conta de vizinhos barulhentos e antissociais, ruídos resultantes do tráfego urbano, pode valer-se de uma solução química para conviver melhor com seu problema, mas este não é necessariamente um problema médico nem é de se esperar que ele seja resolvido por esse meio. Funcionar, neste sentido, e a partir da racionalização que aqui se impõe, significaria tratar sintomas diante da impotência de lidar politicamente com problemas econômicos e culturais mais amplos. O fármaco, neste caso, constitui uma tecnologia de esquecimento de si, silenciamento e esperança de adequação, de funcionamento.
De acordo com Foucault (2003, por exemplo), a realidade do capitalismo é a mobilização constante da vida biológica, o estímulo diuturno para que falemos, confessemos, o investimento constante na construção de interioridades que já nascem ligadas às dinâmicas econômicas, aos dispositivos de poder disponíveis. Para ele, concebido como tecnologia da subjetivação, o biopoder não faz calar. Pelo contrário, solicita a confissão, o tagarelar constante que possibilita a administração dos corpos e das populações. Esse confessar constante diante de psicólogos, educadores, assistentes sociais é parte do próprio dispositivo mediante os quais se produz interioridade e subjetividade. Além disso, para ele, o biopoder é uma tecnologia de proliferação da vida biológica e, em sua positividade, não possui uma dinâmica marcadamente tanatológica. Giorgio Agamben, a partir do Homo Sacer, como sabemos, ganhou grande atenção nas ciências sociais por contestar este último pressuposto das formulações foucaultianas sobre dinâmicas políticas contemporâneas3.
Em linha com as ponderações agambenianas, acredito que devemos também afirmar que a administração política e econômica da vida contemporânea requer um tipo particular de silenciamento. Se de fato a comunicação, a tagarelice da sociedade em rede, deve ser compreendida como quintessência de nossos envolvimentos culturais e técnicos, parece que essa realidade implica o amesquinhamento de possibilidades linguísticas, existenciais mais amplas. Ali, repitamos mais uma vez, não se trata mais de um poder sobre a vida que teria implicações necessariamente subjetivadoras e normalizadoras. O recurso constante que as sociedades liberais fazem à responsabilidade subjetiva com relação ao próprio corpo, à própria saúde, parece se chocar com o sentimento de estupor, de impotência que os indivíduos vivenciam ao se confrontar com poderosos vetores econômicos e políticos globais. Byung-Chul Han (2014) captou esse clima cultural ao afirmar que a imunologia se esgotou como campo ao qual recorremos para coletar metáforas que nos ajudem a pensar nos males contra os quais precisamos investir em uma coerência interna. Evidentemente, a ideia de subjetividade pode ser pensada nestes termos, como busca de manutenção de uma ordem interna contra as adversidades da alteridade. Porém,
De um ponto de vista patológico não é o princípio bacteriano nem o viral que caracterizam a entrada no século XXI, mas, sim, o princípio neuronal. Determinadas doenças neuronais, tais como a depressão, o transtorno por défice de atenção e hiperatividade (TDAH) ou certas perturbações de personalidade – transtorno de personalidade borderline (TPB) ou síndroma de burnout (SB) – descrevem o panorama patológico do século XXI (Han, 2014: 9).
Do ajuste mecânico à regulação cibernética
A anamnese de um paciente que recorre a uma vertente da Psiquiatria de orientação biológica passa por uma redução comunicacional do seu sofrimento a um conjunto de sintomas que, espera-se, podem ser mapeados com clareza e de forma não ambígua. A oferta de diagnósticos supostamente objetivos, e obtidos com simplicidade considerável, investe-se de uma força política considerável numa sociedade da dissolução e da “aceleração da aceleração”. Neste contexto, ser enquadrado, catalogado parece constituir um conforto, uma âncora contra o vendaval dessa história intensa. Os processos de significação do sofrimento parecem ser ofertados do exterior e não são o resultado de um investimento em si, como comumente ocorre quando analisamos tecnologias “disciplinares”, para retomarmos o termo usado por Foucault (1987:118).
Ao se debruçar nos pressupostos epistemológicos da biologia moderna, Canguilhem (1977) mais uma vez nos oferece subsídios importantes para penetrarmos no sentido deste processo. A ideia da vida como máquina que se autorregula é um destes pressupostos. A partir do século XIX, os biólogos passam a conceber o organismo vivo como “usina química inteiramente automática”, ou seja, a entendê-lo como mecanismo de eficiência virtualmente perfeita. A máquina, por seu turno, passa a ter no organismo autorregulado um ideal regulativo de funcionamento. O que determina tal eficiência e perfeição? “Ajuntemos enfim que a superioridade dessas funções orgânicas sobre as funções tecnológicas análogas é reconhecida, senão em sua infalibilidade, ao menos em sua confiabilidade, e na existência de mecanismos de detecção e de retificação disso que os bioquímicos nomeiam os erros e as falhas da reprodução” (Canguilhem, 1977: 123). Canguilhem está interessado aqui em afirmar e entender o sentido da disseminação da ideia de normalidade no corpo teórico da biologia. Parece clara a importância da regulação produzida pela ideia de normalidade biológica, que é transferida da biologia para a medicina. Mas a metáfora que garante a inteligibilidade do organismo vivo – entendido como máquina confiável, capaz de identificar e retificar bioquimicamente suas falhas – interessa-nos não menos.
Trata-se de uma ideia que antecipa em alguma medida uma outra, isto é, a de organismo cibernético, de um organismo que se debate com a tendência a desorganização da matéria, e que para tal procura identifica os seus erros, falhas de adaptação em um ambiente dado. Essa coincidência epistemológica tem consequências cruciais, pois permitirá pensar a própria integração do organismo vivo, sua adaptação aos circuitos técnicos informacionais e as demandas destes últimos por celeridade, intensificação etc. Pois uma das consequências da cibernética é exatamente esta: a possibilidade de integração do humano e do maquínico num conceito ampliado de regulação. De qualquer modo, enfatizemos: desde o século XIX, a autorregulação diante de um ambiente cambiante passa a ser um ideal que se impõe para a máquina e organismo vivo. Esta também é a lógica que preside ao dispositivo psicofarmacológico, ou seja, promover a adaptação do organismo onde ele se mostrou incapaz de se autorregular. É importante perceber como ideias como autorregulação, surgindo para afirmar a lógica de produção da normalidade no organismo vivo, reforçando a ideia de um sujeito, uma individualidade que consegue preservar sua unidade interna, termina por desembocar precisamente numa dispositivo técnico e biopolítico que se reproduz à revelia de tal unidade, individualidade etc.
Em “La formation du concept de régulation biologique aux XVIIIe et XIXe siècles” (1977), Canguilhem propõe que o diálogo, a mútua influência entre as biociências, por um lado, e a física, a cosmologia, por outro, tem longa data. “O termo [regulação] foi introduzido na psicologia por via de metáforas, em uma época em que as funções que ela designa estavam bem distantes de ter suscitado os estudos comparativos de ondem saíram uma teoria geral das regulações e da homeostase orgânica, apta por seu turno a fornecer metáforas inspiradoras de racionalização rigorosas, de onde deveria nascer um dia a cibernética” (Canguillhem, 1977: 82). A noção de regulação se introduz nas ciências mecânicas e nas ciências da vida mediante uma discussão religiosa (e fundamentalmente política) acerca de como Deus mantém a ordem em sua criação. Leibniz e Newton apresentam a esse respeito posições polares. O primeiro propõe a existência de um Deus Regulador que atua ao longo do tempo, contornando problemas, reconduzindo o mundo criado recorrentemente para a ordem. A ação do Deus de Leibniz é contínua, infinitesimal. O princípio regulador atua aqui, por assim dizer, de modo histórico posto que age sobre a contingência. Newton, por seu turno, acredita num princípio de regulação intrínseco à criação que desobrigaria Deus de uma manutenção histórica do existente. Importante dizer que a medicina dos séculos XVII e XVIII apropriou a mecânica newtoniana a partir deste pressuposto mais geral do pensamento lebniziano - na Teodicéia, Leibniz claramente associa essa discussão à própria possibilidade de entender o sofrimento no mundo, ou seja, o padecimento é proposto como mal menor de um Deus sempre previdente. Importante que essa discussão mobilize sempre uma imagem bastante política, nomeadamente, i. a do monarca ocupado com a implementação infinita de sua potência e, neste sentido, impondo a história como questão, ou, num polo oposto, ii. a de um poder que regula antecipadamente o real, que estabelece na criação estratégias intrínsecas, internas de autocorreção.
A favor dessa última postulação, é possível repetir aqui Canguilhem: “Na medicina, a experiência vivida da doença pelos doentes e a cura parecem sugerir por si própria um poder orgânico de restituição e reintegração” (1977: 88). Mas essa é a visão da regulação biológica do século XIX. O princípio de regulação e cura, segundo esse tipo de postulação, seria interno ao organismo. A visão cibernética da regulação, que Canguilhem propõe em um apêndice de O Normal e o Patológico ser o próximo passo da biologia, desloca a regulação do organismo para o complexo biológico-maquínico. Qual a implicação desse movimento? É curioso o fato de Canguilhem reservar na história do conceito de regulação nas ciências da vida um lugar especial a Auguste Comte, precisamente por, num humor lamackiano, este afirmar que a vida e o mundo social são regulados pelo meio externo, caso contrário, perecem. A passividade do interno com respeito ao externo é um legado positivista digno de nota. Sobretudo dado o tema que analisamos neste ensaio. Vale a pena citar, neste sentido, Comte mesmo que, aqui, de segunda mão, ou seja, tal qual o cita Canguilhem: “Existe loucura quando «o fora não pode regular o dentro»” (1977: 94).
Algumas considerações finais
A consequência mais profunda que a aproximação entre ciências da vida e teoria da informação parece implicar está contida, não na ideia de um corpo vivo que deve ser levado à ordem, à normalidade, à homeostase pela intervenção médica, mas na compreensão de que este corpo está em constante risco de adoecimento (ou de inadaptação) e que, portanto, deve ser cronicamente tratado, ajustado às exigências amplas de reprodução do capital. A esse respeito convém dar renovada atenção às palavras de Dumit: “o crescimento contínuo e subjacente em drogas, doenças, custos, e insegurança é um entendimento relativamente novo de nós mesmos como sendo inerentemente doentes. A saúde passou a ser definida como a redução do risco” (2012: 12). O transtorno [disorder] mental, segundo essa lógica, deve ser entendido como o risco de não funcionar.
O cálculo diuturno de risco que devemos associar aos cuidados que exercemos sobre nosso corpo e saúde se opera, todavia, num contexto cultural de grande desorientação. Essa desorientação deve ser associada ao que Byung-Chul Han chama “des-temporalização” de nossas ações sobre o mundo, ou seja, uma dificuldade substantiva de projetar-se no futuro e construir narrativas. Se aceitarmos, mesmo com ressalvas, as ponderações do filósofo teuto-coreano, entendemos que esse diuturno ocupar-se consigo e com o próprio futuro é o que há de mais difícil de ser realizado. Sem experiência, no sentido benjaminiano do termo, o futuro coloca-se como ansiedade radical. A vida propriamente dita, para nós, indivíduos imersos na hiperaceleração, num mundo da perecibilidade e da vertigem, portanto, está sempre colocada em estado de suspensão, de emergência. Exaurimos tudo sem realizar nada, pondera Han. Essa impotência estrutural é a marca de nosso sofrimento. Onde nada podemos realizar, contentamo-nos em funcionar. A ideia de funcionalidade, é preciso que se diga, apresenta essa significação dupla: funcionar é tanto a necessidade de um sistema em perpétua aceleração da aceleração, como a necessidade do indivíduo capturado em uma dinâmica empobrecedora e veloz (cf. Kristeva, 1993: 39-40).
Mas esse mal-estar está intimamente relacionado à essência do dispositivo bio-psico-farmoquímico, isto é, a vida administrada a partir da lógica informacional e, portanto, acelerável. Entre 1954 e 1955, Lacan proferiu a palestra “Psicanálise e Cibernética, ou da Natureza da Linguagem”. Já naquele momento, ele percebeu uma mudança de paradigma nas ciências – pouco depois, Canguilhem chegará a conclusões semelhantes com respeito às biociências. Para Lacan, as ciências exatas tradicionalmente se estruturaram a partir da suposição de que o real sempre sobrevém, independentemente de minha vontade ou de como eu o represente. Recordemos neste ponto o que falamos acima sobre Newton. O sol tem um encontro marcado comigo às 5 horas da manhã, quando nasce no Recife, independentemente de eu comparecer ou não a esse encontro. Todo o trabalho das ciências exatas, argumenta Lacan, é buscar uma sincronia entre esses dois relógios: o meu e o do sol. Seu trabalho, do ponto de vista epistemológico, deve ser entendido enquanto adequatio, isto é, descobrir a igualdade possível entre conceito e objetividade. Como “ciência da conjectura”, todavia, a cibernética inaugura uma nova relação entre presença e ausência: “À ciência daquilo que se encontra no mesmo lugar, substitui-se, assim, a ciência da combinação dos lugares como tais. [...] A progressão mais ou menos confusa, acidental, no mundo dos símbolos, ordena-se em torno da correlação da ausência e da presença. E a busca das leis das presenças e das ausências vai tender a esta instalação da ordem binária que vai dar no que chamamos de cibernética” (Lacan, 2010: 403).
O que Lacan quer dizer com a expressão “ciência da combinação dos lugares como tais”? Ora, que não interessa tanto o que ocorre nos lugares para a cibernética, nenhum valor substantivo tem relevância. Pelo contrário, para ela interessa que possamos constituir um estudo da sintaxe das ocorrências in abstracto. A cibernética pode, assim, servir como teoria dos jogos econômicos, políticos ou bélicos. Ela é a ciência da consecução de objetivos, não importa o conteúdo substantivo desses objetivos, ou seja, se eles mobilizam entes orgânicos ou inorgânicos, humanos ou não-humanos, não importa o significado do que é posto em movimento. “Em outros termos, nesta perspectiva, a sintaxe existe antes da semântica. A cibernética é uma ciência da sintaxe, e ela é feita de maneira que nos permite perceber que o que as ciências exatas fazem não é outra coisa senão ligar o real com uma sintaxe” (Lancan, Ibid., p. 410). Que a linguagem se converta em algo cujo sentido visa prioritariamente à performance é um fenômeno que depende da constituição da “ciência da combinação dos lugares como tais”. Neste contexto, o sentido, a semântica, o ato de significar, é um fenómeno secundário em relação à sintaxe: a prioridade é entregar pacotes de dados, por exemplo, o que quer que estes eventualmente signifiquem - quando falávamos no começo deste ensaio de uma nova virada biológica, comportamental, evolucionária na Psiquiatria, era isso que estava em questão. Por tudo isso, o dispositivo biopolítico e famoquímico estrutura uma perspectiva extremamente corrosiva com respeito à subjetividade e suas necessidades de significação.
No contexto da sociedade da informação, o sentido cede lugar à orthotes, isto é, o rigor da verdade cede lugar à busca do procedimento exato que possa ser rapidamente esgotado em suas possibilidades performativas. Considerando, portanto, a importância que a teoria da informação tem em nossa cultura técnica, é possível localizar essa Psiquiatria que se estrutura sobre o sintoma, sobre a origem bioquímica do sofrimento, sobre uma solução prioritariamente química para o mal-estar contemporâneo. Aqui também o sentido deixa de ser prioritário e com ele a própria possibilidade de um discurso forte acerca da subjetividade. Em seu lugar, propõe-se o imperativo do funcionar num contexto de constante aceleração.
No espaço técnico da pura sintaxe o engano não pode ser tolerado. A ambiguidade simbólica que o engano, o lapso, geram não pode ser admitida, pois enganos de programação “engendram falsidades” e não meros erros, como observa Lacan. Do mesmo modo, para que alcance seu sentido biopolítico mais amplo, os diagnósticos produzidos pela psiquiatria de base biológica, com seus manuais e farmacologia, buscam sempre situações não ambíguas, definições categóricas, mesmo que essa busca seja uma ideia regulatória. Apenas esse tipo de racionalização tornaria possível a ação em larga escala, uma terapêutica igualmente objetiva, compromissos sistémicos amplos que se adequam a uma cultura turbocapitalista (Luttwak, 2001).
Esses são, acredito, traços fundamentais do dispositivo psicofarmacológico e de sua dinâmica biopolítica. Se essa dinâmica determina uma posição ambígua, ou mesmo insustentável, para o sujeito moderno, contentamo-nos, com Butler, em dizer que isso não significa que a própria ideia de subjetividade haja caducado, como o entende Han, por exemplo. Mas que faz-se necessário pensar o que a ela resta de potencialmente crítico no contexto dos contornos deste dispositivo e de suas pretensões aceleradoras.
Referências
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Colocar o problema dessa maneira é ressaltar a primazia do patológico em relação ao normal na genealogia da subjetivação – de maneira geral, nossos vocabulários e técnicas da pessoa não emergiram dentro do campo da reflexão sobre o indivíduo normal, mas, pelo contrário, a própria noção de normalidade emergiu a partir da preocupação com tipos de conduta, pensamento e expressão considerados problemáticos ou perigosos (p. 44).
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SENNETT, R. (2001) A corrosão do Caráter. Consequências pessoais no novo capitalismo. Rio de Janeiro, Record.
1 Joseph Dumit se refere aqui à seguinte referência bibliográfica: NELKIN, D., L. TANCREDI. (1989) Dangerous Diagnostics: The social power of biological information. New York: Basic Books.
Notas