ARTIGO
Recepção: 23 Março 2018
Aprovação: 15 Abril 2019
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2019.144680
Resumo: A guerra civil espanhola (1936-1939), um dos acontecimentos emblemáticos do século XX, foi responsável por aglutinar uma geração de jovens escritores, poetas e artistas que consideravam o conflito como algo central em sua vida. Este artigo tem como objetivo analisar como alguns escritores e cineastas têm retratado a guerra civil espanhola em sua obra, demonstrando de que maneira os autores dialogam com o contexto histórico-político do período entreguerras. Além disso, parte relevante de nossa proposta consiste em explorar o cinema e a literatura como formas específicas de conhecimento do mundo social. A apresentação terá como eixo central as polêmicas e os conflitos que dividiram as forças políticas de esquerda (socialistas, comunistas e anarquistas) que lutavam pela República presentes no livro de George Orwell Lutando na Espanha (1938) e no filme Terra e liberdade (1995) de Ken Loach.
Palavras-chave: Guerra civil espanhola, 1936-1939, Terra e liberdade, Ken Loach, Lutando na Espanha, George Orwell.
Abstract: The Spanish civil war (1936-1939), one of the most emblematic happenings of the 20th century, was responsible for clustering a generation of young writers, poets, and artists who looked at the conflict as being something central in their lives. This article seeks to analyze how some writers and filmmakers have been picturing the Spanish civil war in their work, illustrating in which ways authors interact with the political-historical context of the interwar period. Furthermore, another relevant part of our proposal consists in exploring cinema and literature as specific forms of knowledge of the social world. The presentation will have as its main axis the polemics and conflicts which separated the leftist political forces (socialists, communists, and anarchists) who fought for the Republic and were pictured in George Orwell's book Homage to Catalonia (1938) and Ken Loach's movie Land and Freedom (1995).
Keywords: Spanish civil war, 1936-1939, Land and Freedom, Ken Loach, Homage to Catalonia, George Orwell.
Introdução
A guerra civil espanhola continua exercendo um fascínio particular, tendo em vista a significativa produção de artigos, dissertações, teses, romances, documentários e filmes inspirados nesse conflito. Tais elementos indicam seu impacto duradouro e sua importância entre outros grandes acontecimentos do século XX, como a Revolução Russa, a ascensão e queda do Terceiro Reich e a Segunda Guerra Mundial. Em síntese, a guerra civil espanhola foi principalmente um conflito local que simbolizou uma tentativa de resolver, por meios militares, grande número de questões sociais e políticas que dividiram os espanhóis por várias gerações. No entanto, o conflito transcendeu as barreiras nacionais ao suscitar paixões e debates repletos de confrontos e divergências que se desencadearam pela Europa.
A Espanha de 1936 foi um "microcosmo" que sintetizou o radicalismo e a polarização de uma era. Os partidários do nacionalismo acreditavam, por exemplo, que sua luta era em defesa da civilização cristã contra a "barbárie comunista". Já para os voluntários que lutaram pela República, a Espanha representava a "última grande causa", a resistência final contra as forças do fascismo e do conservadorismo que acabaram arrebatando o continente nos anos entreguerras. Este último grupo também forneceu uma visão maniqueísta na qual a guerra era explicada como a opressão do povo espanhol por uma minoria de clérigos, generais e capitalistas (ROMERO SALVADÓ, 2008).
Como demonstram estudos recentes, as origens da guerra estão bem enraizadas na história do país. A noção de que a violência poderia resolver os problemas políticos, em vez do debate de ideias, diz Paul Preston (2005, p. 27),
estava firmemente implantada num país em que durante mil anos a guerra civil, se não foi rigorosamente a regra, não foi pelo menos uma exceção. A guerra de 1936-1939 foi o quarto conflito desta natureza desde a década de 30 do século XIX.
Os trabalhos de Paul Preston e Romero Salvadó contrastam com a visão monolítica de uma Espanha cruelmente dividida. No verão de 1936, afirmam, não existiam apenas duas Espanhas, mas "mil Espanhas". Após o fracasso do golpe militar de 18 de julho de 1936, a luta não se converteu simplesmente num choque entre dois campos claramente homogêneos, mas sim numa ampla variedade de conflitos locais (ROMERO SALVADÓ, 2008). Importante sublinhar a ligação entre a realidade local e o contexto internacional (a intervenção externa dos países nazifascistas e a chamada "não intervenção" encabeçada pelas democracias europeias), uma vez que determinou, em grande medida, o curso e o resultado da guerra.
Pelas paixões que despertou e pelas energias que mobilizou, a guerra da Espanha deve ser vista como um evento histórico que catalisou os principais debates políticos da primeira metade do século XX. O conflito tem sido comumente interpretado como um enfrentamento inevitável entre duas Espanhas: um golpe militar espanhol de tipo tradicional contra uma frágil república burguesa; e a defesa da democracia contra o fascismo (em sua dupla dimensão espanhola e europeia). Já para os defensores da zona republicana, as leituras predominantes foram: revolução versus contrarrevolução; anarquismo versus comunismo; trotskismo versus stalinismo (JULIÁ, 1998). Torna-se relevante destacar que a guerra civil espanhola foi um conflito político no qual se enfrentaram valores, ideologias, concepções de cultura e visões de mundo distintas (TRAVERSO, 2009).
Este artigo pretende se debruçar sobre as seguintes questões: qual é a importância do livro Lutando na Espanha (1938) e do filme Terra e liberdade (1995)? Como essas formas de representação lidam com a temática da guerra civil espanhola? Como tais representações repercutiram entre os especialistas no tema?
É fundamental que as obras em apreço sejam interpretadas observando-se o contexto de sua produção, "para que possamos compreender como elas se relacionam com as estruturas de dominação e com as forças de resistência, bem como com as posições ideológicas que propalam nos debates e nas lutas sociais em andamento" (VALIM, 2012, p. 285). Nesse sentido, ao interrogar um filme e/ou uma narrativa literária, os historiadores devem tratá-los "como um conjunto de representações que remetem direta ou indiretamente ao período e à sociedade que o produziu" (VALIM, loc. cit.).
As produções cinematográficas adquiriram recentemente estatuto indispensável para a compreensão dos comportamentos, das visões de mundo, dos valores, das identidades e das ideologias de uma sociedade ou de dado momento histórico. Isto quer dizer que o filme "pode tornar-se um documento para a pesquisa histórica, na medida em que articula ao contexto histórico e social que o produziu um conjunto de elementos intrínsecos à própria expressão cinematográfica" (KORNIS, 1992, p. 239).
As produções literárias e cinematográficas sobre o conflito caracterizam-se como relevantes subgêneros narrativos que contam com uma extensa tradição desde 1936. Sua primeira etapa corresponde ao período entre 1936 e 1939, em que a maioria dos romances e gravações audiovisuais teve uma intencionalidade clara: ajudar a ganhar a guerra. 1 Portanto, o tom propagandístico predominou sobre qualquer outro tipo de consideração. Importante destacar que estes foram os anos do compromisso da cultura com a política. Em outras palavras, os anos do conflito civil espanhol se definiram pela radical politização da vida cultural do país (LÓPEZ-QUIÑONES, 2006). Nesta tarefa, o cinema e a literatura tiveram papel relevante e de destaque (Ibidem).
Com o propósito de avançar no diálogo teórico-metodológico entre história e cinema, Marcos Napolitano (2008) sublinha a necessidade de articular a linguagem técnico-estética das fontes audiovisuais (ou seja, seus códigos internos de funcionamento) e as representações da realidade histórica ou social nela contidas (o seu conteúdo narrativo propriamente dito). A contribuição do autor foi fundamental para este artigo, na medida em que pretendemos trabalhar a relação entre história e cinema da seguinte maneira: o cinema visto como fonte primária para a investigação historiográfica (o cinema na história); e o cinema como produtor de "discurso histórico" e como "intérprete do passado" (a história no cinema) (Ibidem, p. 240-241). Evidentemente não se trata de cobrar do diretor Ken Loach a fidelidade ao evento encenado em todas as suas amplitudes e implicações, mas de perceber suas escolhas e criticá-las dentro de uma estratégia de análise historiográfica (Ibidem).
Dito isto, a hipótese-base que norteia este artigo é a seguinte: as narrativas literária e fílmica analisadas trazem para o primeiro plano as fissuras e disputas no campo das esquerdas no contexto da guerra civil espanhola. No entanto, Orwell e Loach demonstram a persistência de um modelo de interpretação da guerra que se articula sobre um esquema dualista (heroico e maniqueísta): 2 anarquistas/poumistas 3 × comunistas stalinistas. Portanto, um dos objetivos centrais do artigo consiste em buscar os elementos narrativos que poderiam ser sintetizados na dupla pergunta: o que o livro Lutando na Espanha e o filme Terra e liberdade dizem sobre o conflito civil espanhol? E como dizem?
Lutando na Espanha: diálogos e tensões entre a escrita de si e a escrita da história
Antes de darmos início à análise da obra de George Orwell, vale a pena tecer algumas reflexões sobre as relações envolvendo a escrita da história e as narrativas autobiográficas. Para o historiador Jeremy Popkin (2005), os textos de caráter autobiográfico devem ser vistos como obras de arte e, portanto, passíveis de análise, na medida em que incorporam certas estratégias do autor, como é o caso dos romances.
Segundo o filósofo francês Georges Gusdorf (apud POPKIN, 2005), o gênero autobiográfico - que surgiu na Europa no final do século XVIII - cumpre uma função existencial, bem como de legitimação pessoal, ao buscar recompor e interpretar uma vida em sua totalidade. Dito de outro modo, a autobiografia é o principal meio pelo qual o indivíduo se define a si mesmo e, por conseguinte, compreende sua própria experiência, de modo que uma de suas funções centrais consiste em revelar um "eu coerente". Portanto, tal ênfase no indivíduo constitui sua precondição necessária (POPKIN, 2005).
Atualmente, os historiadores têm se debruçado sobre os "impulsos autobiográficos" na produção de diários, cartas, artigos de jornal, desenhos e fotografias. Contribuindo para o debate em questão, Jeremy Popkin advoga que o gênero autobiográfico "produz informações verdadeiras, não sobre o passado do autor, mas sobre a forma como ele ou ela escolheu para representar o passado" (Ibidem, p. 29). Outro autor que se empenhou nesta seara é Philippe Lejeune (2008, p. 104), ao sustentar que a autobiografia "se inscreve no campo do conhecimento histórico (desejo de saber e compreender) e no campo da ação (promessa de oferecer essa verdade aos outros), tanto quanto no campo da criação artística".
O testemunho autobiográfico de George Orwell 4 em Lutando na Espanha compartilha alguns traços de Terra e liberdade. Um militante inglês chega como voluntário a Barcelona para defender a República, se alista na milícia do Poum, é enviado à frente de Huesca, regressa a Barcelona em tempo de participar das jornadas de maio de 1937 e está a ponto de unir-se às Brigadas Internacionais, 5 mas a repressão comunista em Barcelona o convence do contrário. A partir disso, David Carr, protagonista de Terra e liberdade, regressa à frente de Huesca para unir-se novamente à milícia. No livro, este retorno é breve, já que Orwell é ferido pouco depois da segunda chegada a Huesca, enquanto em Terra e liberdade um acidente com uma arma de fogo serve como recurso narrativo para que David tenha que ser transferido a Barcelona e, por conseguinte, testemunhar os eventos de maio de 1937.
George Orwell (1967, p. 166) assinalou que as lutas em Barcelona "foram apresentadas como uma insurreição de anarquistas e trotskistas infiéis e desleais, que estavam 'apunhalando o governo espanhol pelas costas', e assim por diante". 6 Comparado às imensas misérias de uma guerra civil, diz o escritor, a briga interna entre partidos - eivada de injustiças e acusações falsas - pode parecer à primeira vista um aspecto trivial. De todo modo, a tática comunista de enfrentar os adversários políticos por meio de acusações infundadas pode ser apontada como uma das causas mais prejudiciais à luta antifascista (ORWELL, 1967).
Do fascínio e encantamento pelas primeiras impressões que tivera de Barcelona ao profundo abatimento depois dos confrontos de maio de 1937, "restava ao combatente a necessidade de contar as experiências vividas e a certeza da insuficiência da linguagem diante do que vira" (VIEIRA; BARBOSA, 2010, p. 295). Do ponto de vista estético e literário, Lutando na Espanha é um livro fascinante por acentuar o detalhe, ou seja, aspectos que raramente entram na narrativa histórica (e que tampouco aparece em Terra e liberdade): o constante cheiro de excremento e comida podre; a falta de higiene pessoal (Orwell disse ter conseguido trocar de roupa três vezes em oitenta dias); os corpos comidos por piolhos (aspecto mencionado por David Carr em uma de suas cartas); o barro frio e penetrante nas trincheiras; a ausência quase absoluta de combates.
Ao expor todos esses detalhes, assim como seu aborrecimento pelas longas horas de vigilância em um telhado onde pôde acompanhar os eventos de maio de 1937, Orwell se pergunta onde está a participação histórica anunciada nas sessões de recrutamento para a luta contra o fascismo, identificado por muitos intelectuais estrangeiros pró-republicanos como barbárie. Esse aspecto é mencionado no filme Terra e liberdade, na sessão de alistamento da qual participa David no começo da narrativa: "Cada una de sus derrotas [de los sindicalistas españoles] es una derrota para nosotros... Pronto nos arrastrará a todos a la guerra y a la barbarie... Únete a nosotros, haz de tu lucha nuestra lucha. Haz tuyo el slogan No pasarán... No pasarán" (LOUREIRO, 2007, p. 140-141).
O livro de George Orwell é visto como um dos mais importantes sobre a guerra civil espanhola. 7 Contudo, ele é um testemunho vivo de apenas dois pequenos fragmentos daquele conflito: a frente aragonesa e os embates políticos entre os grupos de esquerda durante as jornadas de maio de 1937 em Barcelona. Em artigo recente, o historiador Paul Preston (2018) destacou que a obra exibe uma escassa compreensão da política espanhola e/ou catalã e não apresenta uma análise crível da mais ampla política da guerra e, em particular, seus determinantes e condicionantes internacionais.
A ideia central do livro - que retrata as experiências de um miliciano na frente aragonesa - é que o sufocamento da revolução em Barcelona contribuiu para a derrota final da República. O problema dessa explicação é que ela não leva em conta a contribuição de Franco, Hitler e Mussolini, assim como o descaso e os interesses próprios dos governos britânico, francês e norte-americano.
O tema da revolução envolveu sujeitos de distintas forças políticas, tais como socialistas, anarquistas, comunistas leninistas e stalinistas vinculados à Internacional Comunista. Trabalhos como os do historiador Julio Aróstegui (2003) têm demonstrado que, em seu conjunto, as forças de esquerda na Espanha dos anos 1930 estavam longe de coincidir quanto à concepção e a melhor forma de levar a cabo um projeto revolucionário.
A possível conexão entre guerra civil e processo revolucionário nos permite falar daquilo que Aróstegui (1998, p. 61) chamou de "paradoxo de origem", visto que nos anos republicanos do pré-guerra foram escassas as ideologias e/ou grupos organizados que fizeram propostas revolucionárias explícitas e programáticas. Num artigo posterior, Aróstegui (2003) reafirmou que a revolução libertária carecia de uma direção clara. Já o comunismo de matiz stalinista tentou deixá-la em suspenso, recusando-se a aceitar sua presença no quadro sociopolítico da República em guerra, o que, em última instância, o neutralizou. Consequentemente, esses elementos nos permitem dizer, sem rodeios, que a "revolução espanhola" não passou de seus primeiros passos (Ibidem, p. 101).
Orwell não conhecia profundamente as origens da guerra, os duradouros conflitos políticos entre os grupos de esquerda de Barcelona e menos ainda os problemas concernentes às relações entre o governo republicano em Valência e as diversas forças políticas na Catalunha (PRESTON, 2018). O escritor teve muitas dificuldades com o espanhol e o catalão. Em sua coleção de cartas, resenhas e ensaios não há indicação alguma de que antes da guerra tivera o menor contato com o idioma ou lido um livro em espanhol, sobre a guerra ou qualquer outro tema. No limite, pela sua repulsa à União Soviética, Orwell condenou a República espanhola como uma incipiente ditadura stalinista (Ibidem).
Preston (2018) defende a tese de que no livro Lutando na Espanha e em sua versão cinematográfica, Terra e liberdade, de Ken Loach, um episódio secundário (neste caso, as jornadas de maio de 1937 em Barcelona) foi utilizado como mote para caracterizar os problemas centrais da guerra, para em seguida se tornar uma chave explicativa perversa das razões que explicariam a derrota republicana. No fim, o enunciado que sustenta tanto o livro como o filme é que foi a repressão stalinista que levou Franco à vitória (Ibidem).
O equívoco mais patente do livro é a noção subjacente de que a liquidação da revolução esteve na base da derrota final da República. A obra de Orwell e, mais ainda, o filme de Loach levam o leitor/espectador a esquecer que República foi derrotada por Franco, Hitler, Mussolini e o interesse mal-entendido ou a pusilanimidade dos governos britânico, francês e norte-americano. Mesmo que todo testemunho ocular possa ser utilizado como fonte histórica, o problema neste caso é que o livro serviu posteriormente como parte de uma determinada narrativa da guerra fria (Ibidem).
O dramático desfecho da guerra civil espanhola, com os enfrentamentos entre as próprias forças republicanas, marcou durante décadas as relações entre as forças antifranquistas no exílio. O papel que as forças políticas de esquerda desempenharam no conflito foi utilizado como arma nas incessantes controvérsias entre socialistas, republicanos, libertários e comunistas (HERNÁNDEZ SÁNCHEZ, 2010). Nos anos subsequentes, as avaliações sobre os acertos e erros cometidos durante a guerra determinaram o surgimento de linhas de fratura entre os comunistas.
Velhos militantes socialistas, como o espanhol Justo Martínez Amutio, também projetaram a ideia-força da chantagem exercida por parte de uma potência estrangeira sobre a vontade soberana da República espanhola. Por outro lado, em virtude da concorrência com o comunismo ao longo de toda a guerra e a partir de episódios de enfrentamentos violentos, como as chamadas jornadas de maio de 1937 em Barcelona, não é de se estranhar que o anarquismo seja um dos setores ideológicos que mais contribuiu para a percepção negativa dos comunistas espanhóis daquele período (Ibidem).
Um número significativo de antigos revolucionários e funcionários da Internacional Comunista publicaram suas reflexões críticas sobre o regime stalinista, ao mesmo tempo que revalorizaram as contribuições de militantes e escritores vinculados à esquerda heterodoxa (HERNÁNDEZ SÁNCHEZ, 2010). Entre os expoentes se sobressaiu George Orwell, cujo testemunho autobiográfico adquiriu o valor de vaticínio sobre a dinâmica do totalitarismo comunista em ação no contexto da Espanha em guerra. 8 A tese dos planos perversos dos comunistas soviéticos para criar raízes em solo espanhol foi um aspecto bastante difundido pelos anarquistas e pelos militantes do Poum. Nessa perspectiva, o problema fundamental da guerra havia sido a própria atuação dos comunistas (VIÑAS MARTÍN, 2014).
Ken Loach: o "intruso" que homenageou uma revolução aniquilada
Desde meados da década de 1990, a guerra civil espanhola atravessou um período de popularidade no campo cinematográfico e literário. Para os cineastas e romancistas dessa geração, o conflito é retomado com um tom nostálgico cuja ênfase recai nos aspectos heroicos daquele enfrentamento 9 - um tempo que, apesar dos seus excessos, tornou possível generosos sacrifícios, altos códigos morais, causas justas e sólidos compromissos políticos (LÓPEZ-QUIÑONES, 2006).
O filme Terra e liberdade (1995) reacendeu o comportamento controverso das várias correntes de esquerda no contexto da guerra civil espanhola e suscitou críticas, como também defesas, a partir de seu possível valor como representação de um determinado momento histórico. O filme foi dirigido por Ken Loach, nascido em Warwickshire, Inglaterra, em 1936. Cineasta sempre empenhado em abordar temas políticos - graças à sua proximidade com a "esquerda" do Partido Comunista, de caráter antistalinista - e aprofundar os debates sobre as injustiças sociais, Terra e liberdade é seu 11º filme. Dirigiu também Poor cow (1968), Black Jack (1979), Riff raff (1991), Raining stones (1993) e Ladybird Ladybird (1994). Seu filme mais recente intitula-se I, Daniel Blake (2016).
Andrew Durgan, um dos assessores históricos de Loach, explica o êxito do filme Terra e liberdade - cuja audiência foi de 420 mil pessoas somente na Espanha - entre os expectadores jovens como prova do valor histórico e ideológico do filme (LOUREIRO, 2007). Na perspectiva de Ángel Loureiro, os reparos dos historiadores ao filme se referem a aspectos relativamente menores da guerra civil, tais como as possíveis e supostas relações entre o Poum e a Confederación Nacional del Trabajo (CNT) 10 e o possível trotskismo do Poum.
Conforme vimos anteriormente, o historiador inglês Paul Preston (2018) reprovou o filme por considerá-lo antistalinista e por oferecer um relato enviesado de um tema marginal durante a guerra, a saber, o confronto entre as diferentes forças políticas que apoiaram a República espanhola. Hugh Thomas (1995) também o criticou por não informar que os comunistas não eram os únicos que queriam abolir as milícias independentes e interromper o processo de coletivização de terras e fábricas, bem como criar um exército convencional disciplinado, pois também os liberais e os socialistas moderados compartilhavam da mesma posição. 11 Corroborando tais críticas, o escritor catalão Manuel Vázquez Montalbán (1996b) assinalou, num artigo intitulado "Ken, o intruso", que, se Loach tivesse recorrido aos historiadores bem informados sobre o conflito, "não seria tão maniqueísta":
O reducionismo forçado na síntese do filme conduz a falsificações da verdade histórica, como a acusação feita aos comunistas da III Internacional, de terem sido os liquidadores das milícias populares, quando se tratava de um acordo no seio do governo republicano, que compreendia socialistas e representantes da pequena burguesia de esquerda. Assim, no filme, atribui-se exclusivamente aos comunistas da III Internacional a destruição do Poum e dos anarquistas, quando a responsabilidade foi de todo o governo republicano. O espectador assiste a uma notável confusão histórica, entre "os bons" - os socialistas científicos (Poum) e os comunistas utópicos (os anarquistas) - ao mesmo tempo em que se individualizam imediatamente "os maus": os comunistas do PSUC 12 teleguiados por Moscou. Um pouco mais de perspectiva teria ajudado a fazer a crítica necessária à conduta alienante da militância stalinista, sem dar ao filme um caráter de propaganda anticomunista digno da mais pura Guerra Fria. Ainda que a censura às falhas "históricas" do filme de Loach não deva esconder o condenável silêncio autocrítico dos PCs de obediência soviética a respeito dos acontecimentos de maio de 1937. (MONTALBÁN, 1996b, p. 60
Em resposta ao artigo "Ajuste de contas", da jornalista, escritora e dirigente do Partido Comunista Italiano Rossana Rossanda - para quem "o que atormenta não são os erros do filme, são os seus acertos" (ROSSANDA, 1996, p. 61 -, Montalbán (1996, p.60) prosseguiu com as críticas ao filme, dizendo que "para o espectador de hoje, o filme - belíssimo e necessário - transmite uma determinada mensagem: a de que a revolução devora os seus filhos e que as únicas revoluções possíveis são as românticas". E justificou tais críticas salientando o seguinte: "Lamento o fato de ele [Loach] não ter se preparado melhor do ponto de vista histórico e ter-se deixado guiar pelo isolamento ideológico orwelliano (...) basta observar como são brutos e truculentos os comunistas espanhóis adeptos de Moscou, e angelicais os do Poum e da CNT-FAI, 13 para se justificar a acusação de maniqueísmo, que empobrece um filme esplêndido" (MONTALBÁN, 1996a, p. 63).
Ángel Loureiro (2007) defende a tese de que toda produção fílmica possui formas específicas de criação de significado. O autor também chama atenção para o perigo de querer reduzir o filme a um nível estritamente referencial. Com efeito, é preciso levar em conta que todo filme se utiliza da retórica da persuasão e de todas aquelas técnicas em que o sentido é criado e reforçado por recursos que apelam à afetividade e não ao conhecimento crítico dos espectadores. Suas reflexões são extremamente válidas para o propósito deste artigo, uma vez que Loureiro defende a ideia de que as artes de maneira geral (incluindo o cinema e a literatura) podem ocupar-se de particularidades e afetividades que por princípio não cabem nos livros de história, pois o conhecimento histórico como forma de saber exigiria sua exclusão.
Terra e liberdade é um filme que se concentra nas derrotas (dentro da derrota final dos grupos de esquerda que apoiavam a República contra as tropas comandadas por Francisco Franco) das opções políticas defendidas pela CNT e pelo Poum, isto é, a revolução que os anarquistas e poumistas pretendiam fazer nos primeiros meses da guerra como resposta ao golpe militar de 18 de julho de 1936. Uma das teses centrais de Loureiro considera que é a partir dessas derrotas que se constrói a força afetiva do filme. Dito de outro modo, Loach teve sabedoria cinematográfica para explorar ao máximo o triunfo afetivo de uma derrota política. Com efeito, não há nada como uma derrota, como uma oportunidade histórica truncada para poder converter a história em utopia ou um sublime fracasso em derrota romântica (LOUREIRO, 2007).
Esse território da memória do que não passou, do que não pode se concretizar pela frustração da derrota, não pode entrar com comodidade na historiografia, mas no cinema e na literatura, sim. A narrativa de Loach é possível graças à derrota ideológica das opções anarquistas e poumistas. Essa derrota abre a possibilidade de se criar heróis românticos que fracassam na luta contra as imposições coletivas (Ibidem). No limite, a narrativa romântica em Terra e liberdade é criada ou reforçada de maneira exitosa por meio de uma série de recursos que são alheios ao campo historiográfico (Ibidem).
Outro aspecto relevante é que Loach consegue trabalhar a contingência individual de seus protagonistas (como David Carr, o voluntário inglês interpretado pelo ator Ian Hart, e Blanca, uma miliciana que posteriormente terá uma relação amorosa com David, interpretada pela atriz Rosana Pastor) com a história das relações de poder dos grupos políticos republicanos, entrelaçando história individual e história coletiva. De acordo com Loureiro (2007), as conexões entre história amorosa e consciência política são uma das muitas formas encontradas por Loach para lançar mão da afetividade.
No entanto, convém destacar que Terra e liberdade, assim como o filme de Vicente Aranda lançado no ano seguinte, intitulado Libertárias (1996), é um dos poucos filmes que enfatiza o protagonismo das mulheres durante a guerra, papel esse que as mulheres tiveram que abandonar depois do enfraquecimento do Poum e da CNT, sobretudo após os eventos de maio de 1937. Como observou Volker Jaeckel (2009), a revolução ocorrida na Catalunha em 1936 atingiu todos os segmentos da sociedade e, em especial, as formas de convivência entre homens e mulheres. Nesse sentido, as mulheres "desempenhavam uma função ativa na luta armada, que era contrária às ideias divulgadas pelas lideranças comunistas e republicanas" (Ibidem, p. 55).
Outro aspecto importante do filme é a relação de cumplicidade entre a neta de David - que lê diversos recortes de jornais, fotografias e cartas guardadas pelo avô no período em que esteve no front - e os expectadores, abrindo assim o marco narrativo de Terra e liberdade à história do tempo presente, neste caso a Europa capitalista dos anos 1990, marcada pelo neoliberalismo e pelo desemprego em massa. Essa identificação afetiva alcançada pelo filme tem servido tanto para defender o valor histórico e ideológico dessa produção fílmica como para negar-lhe esses mesmos valores (LOUREIRO, 2007).
Para resolver a monotonia tão enfatizada por Orwell, Loach emprega uma técnica de criação de histórias paralelas, uma histórica e outra amorosa, que se entrecruzam. Obviamente, esta conexão é muito mais fácil de fazer em um filme que na narrativa histórica, pois o cinema e a literatura se estruturam frequentemente por meio desse tipo de paralelismos (Ibidem). Blanca abandona David em Barcelona às vésperas dos eventos de maio de 1937, quando este lhe diz que vai se alistar nas Brigadas Internacionais 14 (organização do "inimigo" comunista); desencantado com a atuação repressiva dos comunistas nas jornadas de maio, David decide reunir-se com seu grupo de milicianos; e, finalmente, Blanca morre pelos disparos dos soldados do Exército Popular - cuja criação foi apoiada por comunistas e socialistas, porém não pelos grupos favoráveis à revolução - que defendem a dissolução do grupo de milicianos.
Pelo relato dramático das trajetórias de Blanca e David vai crescendo nos espectadores a identificação emocional com os protagonistas, um aspecto essencial no cinema. Essa identificação afetiva, tão consubstancial no cinema, também alcançada em Terra e liberdade, diz Loureiro (2007), torna de novo improcedente a comparação entre cinema e historiografia.
A unidade entre as diferentes correntes de esquerda em julho de 1936 irá transformando-se (na realidade e no próprio filme) em um forte antagonismo que desembocará na hegemonia dos comunistas a partir de maio de 1937. A trajetória de David transcorrerá em paralelo à história das esquerdas e, além disso, seu dilema político decisivo se dá em paralelo a um conflito amoroso, levando em conta que Blanca abandona David quando este lhe informa que vai unir-se às Brigadas. No fim das contas, a escolha entre comunismo e Exército Popular, de um lado, e anarquismo (e Poum) e milícias, por outro, é o conflito ideológico essencial que apresenta o filme. Portanto, essa ambiguidade entre política e afeto é elemento essencial da produção que não pode ser deixado de lado (Ibidem).
Loureiro defende a tese de que as derrotas oferecem mais possibilidades estético-afetivas que as vitórias, sobretudo porque contribuem para a construção de heróis que lutam contra as imposições coletivas e as adversidades da vida social. 15 Por conseguinte, são as derrotas que constroem o espaço da utopia, deixando um traço messiânico que torna possível o futuro (LOUREIRO, 2007). O autor refere-se à cena do enterro da personagem Blanca no filme do diretor Ken Loach, Terra e liberdade, quando diversos camaradas pronunciam a frase "El mañana es nuestro, compañeros". Essa promessa de futuro também encontra eco na voz do voluntário inglês David durante o cortejo que transportava o corpo de Blanca: "No me arrepiento de nada, las revoluciones son contagiosas, y si hubiéramos triunfado aquí, y podríamos haberlo hecho, habríamos cambiado el mundo. Pero no importa, nuestro día llegará".
Na perspectiva do autor, não é fácil resistir a uma história romântica na qual uma comunidade exemplar nas montanhas é derrotada pelo poder do Estado e em que o destino dos protagonistas recebe um toque teleológico que fornece sentido à sua morte (Ibidem). Em diversas entrevistas, Loach (apud LOUREIRO, 2007) tem manifestado que buscava entender as razões da derrota daquela grande esperança de transformação social "en que, por primera vez en su vida, los trabajadores creían y veían que era posible cambiar su vida y transformar la sociedad". 16
Mas, afinal, que tipo de compreensão se pode alcançar pelo filme? Na análise do historiador Magí Crusells (1995), Ken Loach abordou em Terra e liberdade um tema que ainda não havia sido tratado pelo cinema, qual seja, a revolução dirigida pelos anarquistas, junto aos membros do Poum, e que foi abatida pela política do Partido Comunista Espanhol (PCE), sob os auspícios da União Soviética - o que demonstra que mesmo 60 anos depois do início da guerra ainda havia alguns temas tabus no cinema espanhol (Ibidem). Mesmo tecendo severas críticas sobre a sequência paupérrima do enfrentamento entre anarquistas e militantes do Poum contra os comunistas do PCE, Crusells assinala que Ken Loach intervém no debate - mesmo que com uma perspectiva partidária e maniqueísta - por meio de um importante documento de reconstituição histórica ao mostrar como a classe trabalhadora se uniu para combater o fascismo, mas que não soube se organizar conjuntamente.
Segundo Rafael Quinsani (2010, p. 112),
o filme se afasta da visão simplista, propagada pela visão republicana ou comunista predominante durante muitos anos na esquerda europeia, do embate entre democracia versus fascismo, mostrando o processo revolucionário no interior do movimento, desvelando as contradições ideológicas entre o Poum, os anarquistas e os comunistas.
Para o autor, o filme permite uma discussão sobre o debate político no interior da esquerda e o contexto no qual é retratado. Em síntese, o que interessa para Loach é a compreensão dos motivos da derrota de um projeto revolucionário.
Em artigo dedicado a analisar um conjunto de filmes que, explícita ou alegoricamente, retratam as derrotas revolucionárias ao longo do século XX, o historiador Enzo Traverso (2017) destacou que, além de render uma homenagem à revolução espanhola, o filme de Loach pretendia refutar a representação convencional da guerra civil espanhola como uma espécie de catástrofe humanitária. Para Traverso (Op. cit.), Terra e liberdade retoma uma experiência histórica que, como síntese da derrota das revoluções socialistas do século XX, transcende claramente as fronteiras espanholas.
Loach retrata os acalorados debates em torno da coletivização da terra; o violento choque de maio de 1937 no campo republicano, conferindo destaque à radical diferença que separava uma milícia insurgente (o Poum e os anarquistas) de um exército regular encabeçado por assessores soviéticos; a tensão entre o protagonismo e a submissão experimentada pelas mulheres combatentes, assim como outros temas cruciais. Em que pese o lirismo de algumas cenas, Loach "evita deliberadamente la propaganda y, lejos de entregar un mensaje prefabricado, intenta mostrar cómo fue vivido aquel drama histórico por sus actores" (Ibidem, p. 36).
Na avaliação de Ángel Loureiro (2007), a maioria dos espectadores irá carecer do conhecimento detalhado que lhe permitiria contextualizar os diversos dilemas e debates retratados no filme. O que o filme produz, na verdade, é um impacto emocional. Em que pesem críticas favoráveis, especialmente quanto à sua eficácia político-emocional e sua retórica romântica, e/ou desfavoráveis do ponto de vista histórico (como representação idealista da guerra civil espanhola), o filme termina no momento em que as milícias são integradas ao recém-criado Exército Popular. 17
Este seria o começo do fim da ideia de revolução, que segundo os anarquistas e o Poum deveria ser a resposta ao golpe militar de 18 de julho de 1936 e o objetivo paralelo para ganhar a guerra. Por fim, é bastante plausível sustentar que uma das principais qualidades do filme seja tratar da revolução que não se concretizou e, simultaneamente, do vazio que o conjunto dessas derrotas deixou no contexto pós-guerra na Espanha e no imaginário das esquerdas (LOUREIRO, 2007).
A partir da premissa de que o cinema constrói uma memória capaz de se tornar agente e produtora de um discurso sobre a história e, ao mesmo tempo, que a literatura "fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram" (SEVCENKO, 2003, p. 30), é possível ler o livro Lutando na Espanha e ver o filme Terra e liberdade como fonte e veículo de disseminação de uma cultura política. 18 Ou seja, ambas as produções preocuparam-se não apenas em registrar o passado e o contexto social, mas em recriar uma memória histórica própria, isto é, transformar-se num "lugar de memória" para os militantes anarquistas e os partidários do Poum.
Os "lugares de memória" vinculam-se à necessidade de preservar uma relação afetiva com o passado, ameaçado pelo esquecimento. Como assinalou Enzo Traverso (2009), os "lugares de memória" são relíquias, objetos mortos capturados por um olhar contemplativo e melancólico a fim de redimi-los. E o filme Terra e liberdade cumpriria uma função análoga, ao reunir um mosaico de elementos e objetos que condensam tanto o sentido como o sabor de uma experiência alcançada (Ibidem).
Considerações finais
No dia 1º de abril de 1939 se proclamou oficialmente o fim da guerra, com a vitória absoluta das tropas franquistas e a concomitante derrota dos republicanos. Cinco anos depois, e com a vantagem da visão em retrospecto, Orwell escreveu o seguinte:
Na próxima sexta-feira, completam-se oito anos do início da guerra civil espanhola, o abre-alas da luta atual e, a um só tempo, um dos mais trágicos e sórdidos eventos que a Europa moderna testemunhou. As deliberações sobre a guerra espanhola desenrolaram-se fora da Espanha, e, ao completar um ano, os observadores realistas puderam ver que o governo eleito não poderia vencer, a menos que houvesse alguma mudança radical no panorama europeu. No primeiro período da guerra, que durou menos de um ano, a luta foi essencialmente entre os soldados profissionais de Franco e os mouros de um lado, contra as improvisadas milícias de camponeses e operários de outro. Nesse período, as honras eram quase equivalentes, e nenhum objetivo de mais importância mudou de mãos. Franco, no entanto, era apoiado em grande escala pelas potências do Eixo, enquanto o governo espanhol recebia apenas esporádicas doações de armas da União Soviética, além da ajuda de poucos milhares de voluntários estrangeiros, a maior parte de refugiados alemães. Em junho de 1937, com a derrocada da resistência basca, o equilíbrio de forças pendeu pesadamente contra o governo. (ORWELL, 2006, p. 39)
Nessa carta, escrita em 16 de julho de 1944, Orwell repudiou a intervenção da Itália e da Alemanha a favor de Franco, cujo único propósito era "esmagar a democracia espanhola", e aproveitou a oportunidade para mais uma vez acusar os russos de distribuir pequena quantidade de armas ao governo republicano para, em troca, extorquir "o máximo de controle político" (Ibidem, p. 41).
Cabe aqui um breve parêntese: embora o autor tenha modificado substancialmente suas opiniões expressas no livro publicado em 1938 - matizando a famosa chave interpretativa que explicava a vitória de Franco pela ótica da repressão stalinista -, Orwell desconhecia o fato de que a falta de alimentos e munições em várias frentes de batalha eram consequência de carências reais e não de discriminações políticas (PRESTON, 2018).
O escritor ainda condenou a política de não intervenção de ingleses e franceses, que qualificou de "estúpida e desonrosa", demonstrando que não havia o menor indício de que abandonara por completo seu compromisso com a República espanhola. E, finalmente, concluiu dizendo:
a verdadeira história da guerra espanhola deveria ser sempre lembrada como uma prova concreta da insensatez e da perversidade das políticas de poder. Nada, de fato, redime essa história, exceto a coragem dos combatentes de ambos os lados e a determinação da população civil da Espanha legalista, que, por anos a fio, suportou fome e miséria, que não chegamos a conhecer nem nos piores momentos da guerra. (ORWELL, 2006, p. 41)
Tentar reduzir a guerra civil ao conflito entre comunismo e fascismo ou, como muitos autores sustentam, entre fascismo e democracia é empobrecê-la em termos de análise e reflexão. No conflito se cristalizaram diferentes batalhas: uma guerra de classes se observarmos os discursos, os comportamentos e as manifestações de violência nos dois lados; uma guerra de religião, notadamente entre catolicismo e anticlericalismo; uma guerra em torno das noções de "pátria" e "nação"; por fim, um embate entre culturas políticas distintas que competiam no cenário político internacional (CASANOVA, 2008).
Em fevereiro de 2007, Eric Hobsbawm escreveu um artigo com o intuito de analisar o significado do conflito civil espanhol na história política do século XX e seu impacto no mundo das artes e das letras. O historiador inglês assinalou que a guerra foi responsável por aglutinar toda uma geração de jovens escritores, poetas e artistas que consideravam a guerra da Espanha algo central em suas vidas. Reconstruindo, a partir de sua própria memória pessoal, as percepções dos intelectuais de esquerda, Hobsbawm (2007) afirmou que deter o avanço do fascismo era plenamente possível: "Estábamos seguros de estar a las puertas de un mundo nuevo".
Esse otimismo explicaria as reações espontâneas e massivas ante o conflito. Entre os estudantes de Cambridge, a guerra da Espanha serviu como um "divisor de águas", uma vez que muitos jovens se tornaram militantes de esquerda. Na esteira das reflexões de Hobsbawm, a guerra civil espanhola chegou a ser recordada e segue sendo lembrada por aqueles que eram jovens na época como o "primeiro grande amor perdido" e a "Ilíada dos anos 1930" (HOBSBAWM, 2007). A Espanha marcou a todos porque havia sido um lugar de possibilidades futuras, e é por isso que ainda hoje nos impressiona.
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Notas
Autor notes
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