Resumo: A Inconfidência Mineira é o único episódio do passado colonial que figura no calendário cívico brasileiro como um feriado. Além de associada à figura de Tiradentes, não por acaso oficialmente assemelhada à imagem de Cristo, a bandeira que os inconfidentes teriam esboçado acabou oficializada em 1963 na forma hoje conhecida e tornou-se outro símbolo da conjura eleita como instante fundador da emancipação nacional. Porém, o lema que a compõe - Libertas quæ sera tamen - necessitava de exame mais acurado e de uma compreensão mais precisa da intenção dos inconfidentes, em especial Alvarenga Peixoto, ao escolher esse fragmento das Éclogas de Virgílio (1.27), correntemente traduzido como “Liberdade, ainda que tardia”. Este artigo propõe outra tradução - e, portanto, nova interpretação para esse fragmento.
Palavras-Chave: Inconfidência Mineira, Virgílio, bandeira, éclogas, símbolo.
Abstract: The Inconfidência Mineira (Minas Conspiracy) is the only episode of the colonial past that appears on the Brazilian civic calendar as a holiday. In addition to being associated with the image of Tiradentes (Joaquim José da Silva Xavier), not by random officially resembling the image of Christ, the flag which the conspirators would have sketched has become official in 1963 in the form known nowadays and has become another symbol of the conspiracy elected as the founding moment of national emancipation. However, its motto - Libertas quæ sera tamen - needed a more accurate examination and a more precise understanding of the intentions of the conspirators, especially Alvarenga Peixoto, who chose this fragment of Vergil’s Eclogues (1.27), currently translated as follows: “Liberty, albeit late”. This article proposes another translation and therefore a new interpretation for that fragment.
Keywords: Minas Conspiracy, Vergil, flag, eclogues, symbol.
ARTIGO
PROMESSA OU CONQUISTA? VIRGÍLIO E A BANDEIRA DE MINAS GERAIS (1788-1963)1
PROMISE OR ACHIEVEMENT? VERGIL AND THE FLAG OF MINAS GERAIS (1788-1963)
Recepção: 22 Junho 2020
Aprovação: 20 Outubro 2020
Desde que interpretações pós-romântico-nacionalistas ou antipositivistas da história brasileira se consolidaram, ao longo da segunda metade do século XX, constituiu-se como uma espécie de tópica da historiografia nacional a desmontagem de seus mitos4 - em boa medida, em consequência da atuação de setores da então exuberante sociedade civil, menos ou mais organizados, que passaram a reivindicar, sobretudo a partir da redemocratização pós-ditadura militar, seu lugar na memória do país (como é o caso das mulheres, das populações negra e indígena e do que, polissemicamente, se denomina “povo”, “pobres”, “proletariado” ou “classes trabalhadoras”). Multiplicaram-se os estudos “desconstruindo” nos livros didáticos os heróis nacionais e as narrativas edificantes de nosso passado, encenado pela memória oficial como sucessão de personalidades engajadas pelo “sentimento nativista” na emancipação ou protagonizando o erguimento dessa nação, desde o seu nascedouro, fadada a um fulgurante porvir - situando esse jubiloso alvorecer em 22 de abril de 1500, quando os portugueses chegaram à porção da América onde “descobriram” aquilo que desde aquela data se unificaria como “o Brasil”. Obras didáticas e paradidáticas também se prestaram a essa desmontagem, como é o caso de História da sociedade brasileira, de Francisco Alencar, Lúcia Carpi e Marcus Venício T. Ribeiro, título (em si mesmo inovador) dirigido ao antigo segundo grau e cuja primeira edição data de 1979, e O mito do herói nacional, de Paulo Celso Miceli, publicado em 1988 - para ficarmos apenas em dois exemplos. Houve mesmo inciativas bem-sucedidas de transpor para a linguagem dos quadrinhos a versão heterodoxa da história pátria, como Da Colônia ao Império: um Brasil para inglês ver..., de 1982, e Cai o Império! República vou ver!, que saiu em 1983, ambos do ilustrador Angeli e da historiadora Lilia Moritz Schwarcz. É expressiva a produção acadêmica sobre as permanências e descontinuidades dos paradigmas interpretativos da história nacional na bibliografia escolar e até na memória de quem não frequentou a escola - mudanças essas que não se dão de forma necessariamente linear, coerente ou unívoca.5
A arqueologia dessa crítica, porém, remonta a obras seminais como Casa grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre, Evolução política do Brasil (1933), de Caio Prado Jr., e Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de Holanda - ensaios que, embora bastante revistos décadas mais tarde, integraram notável esforço intelectual a partir daquela década no sentido de criar interpretações totalizantes da sociedade e da cultura do país, promovendo inovações interpretativas e rupturas com o legado do nacionalismo romântico que inventou a narrativa oficial sobre o passado do Brasil sob a égide do oficioso Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.6 A historiografia marxista, com sua ênfase conceitual nos conflitos de classe e nos embates político-ideológicos entre dominantes e dominados, viria acentuar não apenas a superação desses velhos marcos, mas também denunciar o abrandamento ou o ocultamento da violência inerente à história do Brasil presente em todos os aspectos de sua vida social, sublinhando o estudo das formas de organização e exploração do trabalho desde os tempos da América portuguesa - a começar pela escravidão, espinha dorsal da nação até 1888 cujo legado torna-se central para a compreensão das relações de sujeição mesmo no país “modernizado” do século XX. Os desdobramentos dessa vertente são inúmeros e profícuos, sendo impossível uma síntese que não incorra em generalizações mais grosseiras que as que já se cometeram aqui, inclusive porque os estudos históricos inspirados pelo marxismo também divergem entre si, dada a multiplicidade de leituras de sua matriz teórica e a influência que ela exerceu sobre pensadores do século passado que igualmente impuseram outros rumos à pesquisa e à escrita da história - como, por exemplo, Antonio Gramsci. Mas, para o objetivo do presente artigo, basta assinalar que essa corrente foi a mais incisiva e laboriosa na desmontagem dos mitos que a narrativa oficial criou sobre o passado do Brasil.7
Aqui nos interessa particularmente a releitura da Inconfidência Mineira, desde muito cedo tida e havida como proêmio da Independência do Brasil, tendo merecido seu primeiro monumento ainda na vigência do Império: a coluna Saldanha Marinho, inaugurada em 1867 na cidade de Ouro Preto, então capital da província de Minas Gerais, que homenageia genericamente os conspiradores.8 No mesmo ano a conjura ganhou os palcos com a peça teatral Gonzaga ou a revolução de Minas, de Castro Alves, evidenciando que Tiradentes ainda não ascendera à posição de herói da fracassada rebelião. Antes, ao autor de Marília de Dirceu conferiu-se o papel principal em Gonzaga ou a conjuração de Tiradentes, romance em dois volumes de Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa impresso entre 1848 e 1851. Aliás, o protagonismo do desditoso alferes não coube nem na História da conjuração mineira, publicada em 1873 por Joaquim Norberto de Sousa Silva. Nesse ano, monarquistas e republicanos travavam uma disputa em torno do fato que consensualmente elegeram como a fundação da nacionalidade brasileira. A diferença estava em acentuar determinados aspectos da fracassada rebelião, condizentes com seus respectivos espectros ideológicos. À monarquia interessava ressaltar a faceta aristocrática, personificada na liderança de um herói que não sujava as mãos a não ser com as tintas da poesia: Tomás Antônio Gonzaga, que completava a trindade mentora da conjura - e da aurora da “literatura brasileira” - com os também poetas Cláudio Manuel da Costa e Inácio José de Alvarenga Peixoto. O recém-fundado movimento republicano, tendo Tiradentes como patrono, autoproclamava-se autêntico herdeiro dos inconfidentes porque, entre outros motivos, estes haviam-se declarado pela república como forma de governo. E, ao resgatarem a figura de Joaquim José da Silva Xavier, enforcado a mando da bisavó de D. Pedro II, os mentores do republicanismo à brasileira recorriam ao principal apelo popular de uma revolução sussurrada “atrás de portas fechadas / à luz de velas acesas” (MEIRELES, 1979, p. 72-74): entusiasta do levante e inflamado por um elástico discurso em prol da liberdade - “essa palavra / que o sonho humano alimenta: que não há ninguém que explique / e ninguém que não entenda” (MEIRELES, 1979, p. 75) -, Tiradentes nunca disparou um tiro (FURTADO, 1997, p. 97-103).
Embora não tenha sido exatamente o primeiro, A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira - Brasil e Portugal 1750-1808, do brasilianista britânico Kenneth Maxwell, foi o mais alentado trabalho entre os pioneiros na revisão da história do conciliábulo de Minas, agora numa perspectiva nada enaltecedora. Publicado originalmente pela Cambridge University Press em 1973 como Conflicts and Conspiracies: Brazil & Portugal 1750-1808, esse livro foi lançado aqui quatro anos depois. O que causa espécie pela ousadia do editor, não só por traduzir a obra como também pela provocativa (e algo apelativa) renomeação dela em português, já que o país se encontrava em plena ditadura militar - a mesma que, em 1965, declarara Tiradentes “Patrono Cívico da Nação Brasileira”, estabelecendo a devida liturgia celebrativa do 21 de abril, e, em 1966, regulamentara a crística imagem oficial do herói (FURTADO, 1997, p. 177-178). A narrativa de Maxwell, escrita em estilo por vezes romanesco, à moda de intriga policial, fundamentada na releitura dos autos do processo em cruzamento com outras fontes relativas à conjuração, reconstitui complexa rede de interesses inclusive de implicados nela que sequer foram investigados, havendo robustos indícios de “queima de arquivo” (a conveniente ou no mínimo estranha morte de Cláudio Manuel da Costa), destruição de provas e suborno do governador pela proteção de potenciais suspeitos, sendo escandaloso o caso do milionário João Rodrigues de Macedo (MAXWELL, 1985, p. 168-204). O próprio ideário parece bastante vago, movido mais por interesses imediatos (quando não mesquinhos) do que por valores transcendentalmente revolucionários ou libertários - tanto que o escravismo permanece uma controvérsia em aberto entre os ativistas, não por acaso inspirados pela revolução da América inglesa (MAXWELL, 1985, p. 141-167).9 Porém, Sérgio Buarque de Holanda, já em 1960, ao escrever sobre as Cartas chilenas, poema satírico atribuído a Gonzaga e até então tido como manifesto da Inconfidência, admitia que a conspirata se configurava como recurso extremo, descartável numa bem conduzida reacomodação dos potentados na política local. Não se constituindo em libelo da conjuração, a sátira reivindicaria - dentro de um movimento nada monolítico, mas entrecortado por diferentes tendências e projetos em que Tiradentes seria o mais radical e por isso mesmo o menos prestigioso entre as lideranças letradas da conjura -, justamente mediante o antiexemplo de Fanfarrão Minésio (o governador satirizado nas “cartas”), a restauração da ordem político-administrativa (ou do velho pacto que fazia coincidir proveitos nativos e metropolitanos) desejada pela plutocracia mineira para manter o equilíbrio na governação colonial (FURTADO, 1997, p. 176).
O trabalho de Maxwell, todavia, parece ter sido o mais influente, inaugurando ou ao menos reforçando o empenho na reinterpretação de um dos três eventos históricos hoje homenageados com feriado no calendário cívico brasileiro - ao lado da Independência e da Proclamação da República. Lembramos também o ensaio “Tiradentes: um herói para a República”, de 1990, contido em A formação das almas: o imaginário da República no Brasil, livro de José Murilo de Carvalho - para quem, na falta de candidatos a herói de um movimento de baixa “densidade histórica”, consubstanciado na “passeata militar” de 15 de novembro de 1889, Tiradentes “aos poucos se revelou capaz de atender às exigências da mitificação” de que o novo regime carecia (CARVALHO, 1990, p. 57). Ao longo das décadas que se seguiram à sua tradução, porém, A devassa da devassa ecoou em trabalhos acadêmicos e possivelmente nos livros didáticos e paradidáticos10 - não sem reparos e também revisões, como os empreendidos por João Pinto Furtado em O manto de Penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9, publicado em 2002, o mais alentado balanço da historiografia produzida acerca do conluio, acrescentando indícios e conclusões que complicam ou relativizam os achados do historiador britânico (FURTADO, 2002). Entre A devassa da devassa e O manto de Penélope, e depois deste último, diversos trabalhos operaram devassas no que Furtado chama de “historiografia de referência” (FURTADO, 2001, p. 352) e na documentação esquecida ou intocada nos arquivos, corroendo a sacralidade que recobre os conjurados e sobretudo a biografia e a imagem de Silva Xavier. Como não é nosso objetivo exaurir a bibliografia acadêmica sobre o levante separatista que nunca aconteceu, basta mencionar mais um esforço monumental inclusive no levantamento de novas fontes sobre a conspiração: A fortuna dos inconfidentes: caminhos e descaminhos dos bens de conjurados mineiros (1760-1850), de André Figueiredo Rodrigues, publicado em 2010, que comprova as intervenções de pessoas ou grupos, direta ou indiretamente implicados no complô, capazes de influir nas linhas de investigação, omitir atos ilícitos e seus agentes ou mesmo de incriminar inimigos. Além disso, herdeiros de Tiradentes, Alvarenga Peixoto e José Aires Gomes, recorrendo à sonegação, ocultaram da Coroa portuguesa, segundo Rodrigues, expressivo montante de bens e valores que deveriam ter sido confiscados por ela, em atitudes, mais que desabonadoras da memória desses que a República consagraria como heróis, bastante elucidativas das relações da plutocracia mineira com o poder e com a preservação de seus cabedais (RODRIGUES, 2010, p. 176-195).11
A participação - presumida ou confessa - de três poetas canônicos na trama da conspirata amplia o campo de interseção da interpretação da Inconfidência Mineira com outras facetas da construção da identidade nacional. Assim, ela é invariavelmente lembrada por boa parte da historiografia da literatura brasileira que, da Independência ao final do século XX, avaliou a poesia de Gonzaga, Cláudio e Alvarenga por seu maior ou menor compromisso com ideias revolucionárias, o “sentimento nativista” ou de brasilidade e a própria conspiração. Um exemplo paradigmático e tardio é A poesia dos inconfidentes, coletânea organizada por Domício Proença Filho publicada em 1996: o critério para a reunião dos versos sob a rubrica dos três bardos conspiradores foi justamente seu engajamento na Inconfidência, documentado ao fim do alentado volume com seus depoimentos nos Autos de devassa (PROENÇA FILHO, 1996, p. 991-1044). Novas perspectivas teórico-metodológicas, contudo, vêm refazendo a leitura dos artefatos retórico-poéticos produzidos ou atribuídos a essa tríade, emancipando-a parcial ou totalmente de categorias anacrônicas naturalizadas pelo romantismo - como a psicologização do chamado “eu lírico” que discursa neles, a ideia da brasilidade que precederia a invenção do Brasil e a adesão ao iluminismo ou ao liberalismo político. Marco dessa inovação interpretativa é a dissertação de mestrado de Ronald Polito, defendida em 1990 e publicada em livro em 2004 como Um coração maior que o mundo: Tomás Antônio Gonzaga e o horizonte luso-colonial. A arqueologia empreendida por Polito exuma pressupostos bastante arcaicos presidindo as opções filosóficas e teológico-políticas do conjunto da obra gonzaguiana, filiadas “às formas de pensamento mais tradicionais em Portugal da época. Tradicionais no exato sentido de que buscam a defesa do status quo e a defesa de formas estabelecidas de pensamento” (POLITO, 2004, p. 286) - conclusão que impõe contradição insolúvel entre o poeta e o inconfidente. Numa perspectiva convergente, Alcir Pécora, escrevendo sobre o árcade Manuel Inácio da Silva Alvarenga, porém com conclusões aplicáveis à tríade mineira, desfaz o compromisso dessa poesia com a “formação” do “sistema” da “literatura nacional”. Essa chave sociológico-realista de leitura, diz Pécora, torna-se “especialmente atraente por encontrar uma brecha de interpretação que seja externa à convenção inequivocamente classicizante e universalista adotada por todos os poetas em questão” (PÉCORA, 2001, p. 191-192, grifos do autor).12 Por fim, estudando as bases materiais da canonização literária de um nome que nos interessa diretamente, a dissertação de mestrado de Caio César Esteves de Souza, cuja defesa ocorreu em outubro de 2017, dedicou-se a reconstituir a trajetória filológico-editorial bicentenária da obra atribuída a Alvarenga Peixoto - atribuição que fez desse autor uma invenção naturalizada de seus editores oitocentistas13 -, evidenciando, a partir do ensaio de João Adolfo Hansen e Marcello Moreira (HANSEN & MOREIRA, 2013), conceitos editoriais como o de “original”, por exemplo, entendido romanticamente, e por isso inaplicável em casos como os dos versos sob a rubrica do Alvarenga inconfidente mineiro, a não ser por interesses ideológicos menos ou mais explícitos - como o de “sentimento nacional”, projetado em retrospecto sobre poetas que sequer sonhavam com o gigante deitado eternamente em berço esplêndido, mesmo se ou quando conspiraram contra a dominação colonial.14
Se não há relações, mesmo que indiretas, entre a obra escrita ou atribuída a esses três autores e a maior ou menor participação deles na Inconfidência Mineira - Gonzaga sempre a negou -, testemunhos registrados nos Autos de devassa dão conta de que os ativistas não descuidaram dos símbolos da futura república: sua bandeira, esboçada, também foi objeto de controvérsia - que, tal qual a da escravidão, permaneceu inconclusa ou imprecisa, conforme as menções de delatores e réus. Assim, as inquirições extraíram versões às vezes conflitantes, mas que sempre apontam para o protagonismo de Tiradentes e Alvarenga Peixoto no desenho do símbolo cívico da república que nunca houve. O primeiro a referi-lo é o coronel, fazendeiro e minerador Francisco Antônio de Oliveira Lopes, interrogado pela primeira vez em 15 de junho de 1789. Sua descrição se limita à dramática passagem - poeticamente apropriada por Cecília Meireles no Romanceiro da Inconfidência (MEIRELES, 1979, p. 74) - em que Alvarenga dita o lema:
E nessa mesma conversação, disse o mesmo Alvarenga o letreiro que havia lavrar-se na bandeira em latim, de que ele, Respondente, não se recorda, mas que em substância vinha a ser: “Inda que tarde chegou a Liberdade”; cuja letra escreveu o Vigário em um papel. E pedindo-lhe o Vigário que lha escrevesse em um papel, respondeu aquele Alvarenga: - “Os dedos tenha eu cortados se pegar na pena para escrever alguma cousa destas”. Por cujo motivo, o mesmo Vigário escreveu por sua mão a dita letra. (BRASIL, 1978, v. 2, p. 48).
A próxima menção está no depoimento de Cláudio Manuel da Costa, no único interrogatório a que foi submetido, a 2 de julho de 1789, dois dias antes de ser encontrado morto em cela improvisada na Casa do Real Contrato, em Vila Rica. Respondendo aos inquiridores - “se os confederados tinham já tratado de levantar armas ou bandeira” -, o abonado e culto advogado, sem descrever o pavilhão, declarou não haver dúvida de que Alvarenga dissera, “em certa ocasião, que se poria uma letra que dissesse: Libertas quæ sera tamen” (BRASIL, 1978, v. 2, p. 133). Embora as delações que originaram o processo judicial - e as principais e mais detalhadas são as de Joaquim Silvério dos Reis e Basílio de Brito Malheiro - não façam referência à bandeira, os inquiridores estavam previamente informados, por Oliveira Lopes, do bosquejo dela e sondavam, por meio de Cláudio, a que minúcias o projeto emancipacionista chegara. As duas próximas menções constam da “Lista das pessoas que se acham presas em consequência das notícias de que se premeditava uma conjuração”, elaborada pelo desembargador e juiz da devassa José Pedro Machado Coelho Torres. Ele escreve, nessa espécie de arrazoado (datável do segundo semestre de 1789) sobre as investigações até àquela altura, que “sócios” confessos dos “conventículos” acusavam Alvarenga de delinear “o modo e inscrição da bandeira”, e que Cláudio Manuel da Costa “era o sujeito em casa de quem se tratou de algumas coisas respeitantes à sublevação, uma das quais foi a respeito da bandeira” (BRASIL, 1982, v. 7, p. 49, 52).15 O mesmo desembargador, em ofício de 11 de dezembro de 1789 a Luís de Vasconcelos e Sousa, vice-rei do Estado do Brasil, é o primeiro a registrar que o pavilhão teria uma figura humana rompendo grilhões, embora esse detalhe não tenha surgido em nenhum depoimento anterior e o magistrado se revele inseguro quanto ao lema: “A sua bandeira teria um gênio pintado com uma cadeia quebrada nas mãos, e uma inscrição por baixo dizendo - ou liberdade ou nada - ou outra: chegou a liberdade, ainda que tarde” (BRASIL, 1982, v. 7, p. 31). O relato mais minucioso, entretanto, a 14 de janeiro de 1790, em segunda inquirição, é o de Alvarenga Peixoto - que, pelo detalhamento, vale a pena ser transcrito na íntegra. O cenário da discussão foi, possivelmente, a residência de Gonzaga, onde, além deste e Alvarenga, estavam reunidos Cláudio e Carlos Correia de Toledo e Melo, o abonado vigário da Vila de São José do Rio das Mortes:
[...] se falou em umas bandeiras, que o Alferes Joaquim José da Silva Xavier tinha ideado para servirem na nova premeditada República, que eram três triângulos enlaçados em comemoração da Santíssima Trindade, se lembrou o Doutor Cláudio Manuel da Costa das bandeiras da República Americana Inglesa, que era um gênio da América, quebrando as cadeias com a inscrição - Libertas a quo Spiritus -, e que podia servir à mesma, e o Respondente lhe disse que seria pobreza o que ele respondeu que podia servir a letra - Aut libertas aut nihil -, ao que o Respondente se lembrou do versinho de Virgílio - Libertas quæ sera tamen -, que ele achou, e todos que estavam presentes, muito bonito; mas tudo foi sem ânimo de servir, e meramente para entreter a conversação. (BRASIL, 1982, v. 5, p. 122)
Aqui, o projeto da tríade de triângulos defendido por Tiradentes é contraposto ao de Cláudio - a quem Alvarenga atribui a ideia da imagem do “gênio da América”16 libertando-se de correntes e encimando a legenda, como as “bandeiras da República Americana Inglesa”,17 mas de quem recusa o lema, defendendo “o versinho de Virgílio”, além de acusar a “pobreza” do replicar a flâmula norte-americana, num desacordo que aponta para soluções bastante distintas da que vingaria no século XX. Porém, na versão do próprio alferes - já em sua quarta inquirição, a 18 de janeiro de 1790 - o triângulo da Trindade é singular, e a figura geométrica deveria tremular no estandarte da nova pátria do mesmo modo que as cinco chagas de Cristo estavam estilizadas na bandeira portuguesa de então. Sua fala sugere não ter havido interferência de Cláudio e nem acordo com Alvarenga, cuja proposta de dístico (termo usado aqui como sinônimo de “letreiro”) o futuro herói nacional esqueceu:
E falando ele Respondente, em que a nova República que se estabelecesse de ter bandeira, disse que como Portugal tinha nas suas por armas as cinco chagas, deviam as da nova República ter um triângulo, significando as três pessoas da Santíssima Trindade; ao que o Coronel Inácio José de Alvarenga disse que não, e que as armas para a bandeira da nova República deviam ser um índio desatando as correntes com uma letra latina, da qual ele Respondente não se lembra [...]. (BRASIL, 1982, v. 5, p. 37)
O acórdão - datado de 18 de abril de 1792 - dos magistrados enviados por Lisboa especialmente para finalizar o processo registra as últimas menções, dentro da devassa, ao projeto de bandeira do novo país, consolidando Tiradentes como seu principal autor, embora derrotado por Alvarenga no conciliábulo que deliberou sobre o estandarte:
Mostra-se mais que este abominável réu [Tiradentes] ideou a forma da bandeira que devia ter a república, que devia constar de três triângulos com alusão às três pessoas da Santíssima Trindade [...], ainda que contra este voto prevaleceu o do réu Alvarenga, que se lembrou de outra mais alusiva à liberdade, que foi geralmente aprovada pelos conjurados [...]. (BRASIL, 1982, v. 7, p. 205)
Além de a decisão dos juízes nomear o voto de Cláudio no projeto “bandeira e armas” da ideada república (BRASIL, 1982, v. 7, p. 204), ela retorna à versão de Alvarenga ao elencar os projetos dos inconfidentes, agora precisando da postura das mãos do “gênio”:
[...] e ultimamente se fariam leis para o Governo, que se daria uma Universidade em Vila Rica, e se mudaria a Capital para São João del-Rei ajustando-se com tanta antecipação até quais deviam ser as armas e bandeiras da república que devia constar de um gênio com as cadeias quebradas nas mãos e a letra - libertas quæ sera tamen [...] (BRASIL, 1982, v. 7, p. 205)
O que a documentação processual permite afirmar sobre a bandeira esboçada pelos conjurados, portanto, é que o próprio Tiradentes a imaginou constituída por um símbolo cristão, alusivo à Santíssima Trindade, de maneira homóloga à da tradição lusitana, que sempre manteve em seus estandartes, exceto sob D. Afonso I, e a despeito de pequenas variações iconográficas e de uso ao longo dos séculos, o escudo português com as chagas de Cristo. Nos anos da Inconfidência, este era encimado por uma coroa e dividido em duas seções: uma borda vermelha ao longo da qual se distribuíam as representações das sete fortalezas conquistadas por D. Afonso III que, por sua vez, circundavam uma borda branca dentro da qual se dispunham, em cruz, cinco escudos azuis contendo, cada um, cinco besantes brancos ordenados em “X” representando os estigmas crísticos, numa referência ao “milagre de Ourique” - quando, em 1139, um anjo teria aparecido ao futuro rei D. Afonso I:
É bastante significativo, pois, que, ao pensar a bandeira do futuro país, Silva Xavier tenha recorrido ao acervo de referências do colonizador europeu e reafirmado a tradição cristã, invocando dogma fundamental do catolicismo tridentino e quiçá uma devoção pessoal.18 O inconfidente não menciona cores e nem dístico: talvez por falta de novas ocasiões para revê-lo ou aprimorá-lo com os parceiros de conspiração, em seu pavilhão tremularia apenas o triângulo. Projeto ao qual, segundo Tiradentes, Alvarenga Peixoto opôs outro, o da figura do índio (e não a do “gênio” das demais inquirições) libertando-se de cadeias junto ao lema latino - cujo teor o alferes não reteve. No depoimento de Alvarenga, a sugestão do “gênio” e da inscrição latina alusivos à liberdade, que desbancou a de Silva Xavier, é de Cláudio - equivocado ou desinformado quanto ao que afirmava ser o modelo estadunidense -, cabendo ao outro poeta apenas introduzir o fragmento do verso virgiliano. Assim, no que restou nos Autos de devassa, há duas propostas de pendão distintas e conflitantes. Elas nunca se conciliaram. Pelo contrário, no embate vexilológico entre os inconfidentes venceu a dupla de bardos, inclusive com a aprovação implícita de Tiradentes - ou com seu silêncio resignado ou indiferente -, como se deduz do interrogatório de Alvarenga. Em termos simbólicos, todavia, o esboço ao menos provisoriamente vitorioso, com elementos tão laicos, era bem mais radical e explícito que o de Silva Xavier na defesa da liberdade. A julgar pela polêmica em torno da bandeira, Tiradentes com certeza foi o mais destemido entusiasta do levante emancipacionista - mas, na escolha de seus símbolos, parece ter sido mais comedido.
A oficialização da atual bandeira de Minas Gerais é relativamente recente: a lei estadual que a regulamentou é de 8 de janeiro de 1963, talvez por efeito tardio da Constituição imposta pela ditadura do Estado Novo, que abolira as bandeiras estaduais, queimadas em solenidade na antiga praia do Russell, no Rio de Janeiro, a 27 de novembro de 1937, em cerimônia que simbolicamente unificava o país e suas diferenças regionais sob o único, exclusivo e “Querido símbolo da terra, / Da amada terra do Brasil” - como canta seu hino, de 1906, com letra de Olavo Bilac e música de Antônio Francisco Braga. O lábaro mineiro, incinerado na cerimônia estadonovista com as características de agora, pode ser vislumbrado no registro cinematográfico do evento, embora não tenhamos localizado fontes seguras sobre seu uso pregresso.19
É certo, contudo, que, por força da significativamente primeira lei estadual, Minas Gerais possuía, desde 14 de setembro de 1891, seu brasão estampando no alto o verso de Virgílio soprado por Alvarenga Peixoto:20
A bandeira de Minas consagrada pela legislação é a conciliação póstuma entre o esboço derrotado de Tiradentes e a vitoriosa intervenção erudita de Cláudio e Alvarenga - e vale frisar que os três conspiradores imaginaram caminho bastante distinto na concepção do símbolo. Como não há referências a cores em nenhum depoimento, elas também foram arbitradas posteriormente: sobre fundo branco, o triângulo hexágono vermelho bordejado pelo dístico em negro e letras maiúsculas pereniza a pacífica coabitação entre a invocação devota do mártir e a constatação libertária dos dois poetas. Esta, também objeto de controvérsia, sobretudo quanto à tradução, que, por sua vez, clama por criteriosa investigação da fonte: as Éclogas ou Bucólicas de Virgílio. Que os dois poetas, como seus demais contemporâneos letrados, eram leitores dos clássicos da tradição greco-latina não resta dúvida - ainda que os Autos de devassa não registrem em suas “livrarias” nenhuma obra virgiliana. No caso de Alvarenga, o traslado do sequestro de seus bens contabiliza apenas volumes de Voltaire, Pietro Metastasio, Manuel Bernardes e Claude-Prosper Jolyot de Crébillon (BRASIL, 1982, v. 6, p. 170, 180-181). Já o de Cláudio, embora não relacione as obras de algumas estantes de sua notável biblioteca, elenca dezenas de títulos - nenhum de Virgílio (BRASIL, 1982, v. 6, p. 97-99).21
É esse poeta latino, porém, cujos dizeres escolhidos por Alvarenga foram estampados na atual bandeira de Minas Gerais: eles integram o verso 27 do primeiro poema das Bucólicas (B. 1): Libertas, quæ sera tamen respexit inertem (“a liberdade, que, embora tardia, voltou, porém, o olhar para mim, inerte”).22 Esse é o início da resposta de Títiro a Melibeu, depois de este último perguntar àquele (B. 1. 26): Et quæ tanta fuit Romam tibi causa videndi? (“E que razão tão grande tiveste para ver Roma?”). O verso, por figurar no poema de abertura do livro bucólico, decerto ganha destaque. A B. 1 inicia a obra em forma dialógica, contrastando a situação desses dois pastores. Melibeu, expropriado, deixando suas terras, encontra Títiro, que está recostado em uma árvore, compondo versos, e lhe diz (1-5):
Tityre, tu patulae recubans sub tegmine fagi
silvestrem tenui Musam meditaris avena;
nos patriae fines et dulcia linquimus arva.
nos patriam fugimus; tu, Tityre, lentus in umbra
formosam resonare doces Amaryllida silvas. 5
Títiro, tu, recostando-te sob o abrigo da copada faia,
compões rústica Musa em tênue avena;
nós deixamos os limites da pátria e as doces lavras.
Nós fugimos da pátria; tu, Títiro, ocioso na sombra,
ensinas os bosques a ressoar “formosa Amarílis”. 5
De acordo com Ernst Robert Curtius (2013, p. 247),
[...] [d]esde o primeiro século da época imperial até o tempo de Goethe, toda educação latina começava com a leitura da primeira écloga. Não é exagerada a afirmação de que falta uma chave da tradição literária europeia a quem não saiba de cor essa pequena poesia.
Curtius certamente não conhecia nossos árcades inconfidentes, mas a afirmação do filólogo alemão é adequada a quem queira ler a poesia de Gonzaga, Alvarenga e Cláudio. Sem a “chave” das Bucólicas de Virgílio não se compreende boa parte dos versos desses poetas. Mas poderíamos dispensar a afirmação de Curtius para perceber isso em Cláudio, já que o próprio poeta nos adverte sobre a presença desses modelos na confecção dos poemas. Assim, por exemplo, antes de se iniciar a leitura dos versos, em um trecho do “Prólogo ao leitor” de Obras poéticas de Glauceste Satúrnio (sonetos, epicédios, romances, éclogas, epístolas, liras), publicadas em 1768, o futuro implicado na Inconfidência Mineira esclarece:
Bem creio que te não faltará que censurar nas minhas Obras,principalmente nas Pastoris onde, preocupado da comua opinião, te não há de agradar a elegância de que são ornadas. Sem te apartares deste mesmo volume, encontrarás alguns lugares que te darão a conhecer como talvez me não é estranho o estilo simples, e que sei avaliar as melhores passagens de Teócrito, Virgílio, Sanazaro e dos nossos Miranda, Bernardes, Lobo, Camões etc. Pudera desculpar-me, dizendo que o gênio me fez propender mais para o sublime: mas, temendo que ainda neste me condenes o muito uso das metáforas, bastará, para te satisfazer, o lembrar-te que a maior parte destas Obras foram compostas ou em Coimbra, ou pouco depois, nos meus primeiros anos, tempo em que Portugal apenas principiava a melhorar de gosto nas belas letras. A lição dos Gregos, Franceses e Italianos, sim, me fizeram conhecer a diferença sensível dos nossos estudos e dos primeiros Mestres da Poesia. É infelicidade que haja de confessar que vejo e aprovo o melhor, mas sigo o contrário na execução.23
No prólogo, como um alerta a quem queira ler a obra, o poeta não esconde quem são os modelos, sobretudo nas “pastoris”, de “estilo simples” ou humilde, como convém ao gênero. Se Cláudio, porém, por um lado, nomeia os autores imitados - não só o grego Teócrito e o latino Virgílio -, por outro, à maneira desses antigos poetas, ele alude a outros, sem nomeá-los. Já aqui no prólogo, portanto, demonstra também como imita esses autores. Diz, ao fim, algo que poderia ser entendido como o contrário dessa prática dos “primeiros Mestres da Poesia”: “vejo e aprovo o melhor, mas sigo o contrário na execução”, ou seja, aquilo que executa, o seu fazer poético, seria o contrário do que vê e aprova como superior. No entanto, a quem conhece as Metamorfoses de Ovídio pode ocorrer o seguinte verso (7.20-1): video meliora proboque, / deteriora sequor (“vejo e aprovo as melhores coisas; sigo as piores”). Portanto, para ler essa poesia é preciso ter de cor os versos dos poetas antigos (gregos, latinos, italianos, portugueses etc.), como os árcades certamente os tinham. Não se trata, pois, ao nosso ver, de um “homem dividido e uma personalidade contraditória”, “de tendências estéticas ambivalentes”,24 mas de um conhecedor da poética da imitação e da tradição não só grega e latina, que emula os modelos, imitando-os - no sentido da mimesis helenística - ao mesmo tempo em que afirma não os seguir.
Com os cinco versos iniciais das Bucólicas em mente,25 mencionados acima, é possível perceber nos versos de Cláudio Manuel da Costa a imitação muito próxima que faz de Virgílio, tal como este fez de Teócrito, e assim perceber como os poetas árcades conheciam os autores antigos. Nas éclogas de Glauceste Satúrnio, por exemplo, sem fazer uma recolha completa, percebemos a imitação de Virgílio na écloga 2 (“Fileno”), que se conclui com um soneto em cuja segunda estrofe há clara alusão ao poeta latino:
Se ele cantando alegre se descobre
Talvez à sombra da copada faia,
Igual o nosso canto aqui se ensaia
Ao sussurro do mar, que a penha cobre.
Embora haja imitação, contudo, obviamente não se trata de mera cópia. O poeta inova na tradição pastoril, pois sua écloga tem como personagem um pescador, ausente em Virgílio. O tradicional cenário da poesia bucólica, o tão mencionado locus amoenus, em que o pastor se coloca sentado sob a sombra de uma árvore, é substituído aqui pelo mar. Não se trata, porém, de menção genérica ao cenário idílico, mas de alusão ao primeiro verso das Bucólicas, com a precisa colocação da faia em última posição, tal como em Virgílio (B. 1.1): Tityre, tu patulae recubans sub tegmine fagi , e o uso do mesmo adjetivo, “copada” (patulae), caracterizando a árvore que dá sombra ao pastor, aspecto fundamental da poesia bucólica.26
Voltando ao poema virgiliano, temos que Melibeu encontra Títiro, recostado sob o abrigo da “copada faia”, cantando seu amor por Amarílis (v. 4-5: ...tu, Tityre, lentus in umbra / formosam resonare doces Amaryllida silvas). Amarílis não é somente matéria do canto de pastores em Cláudio Manuel da Costa,27 caracterizada com o mesmo adjetivo “formosa”,28 mas também ganha voz nos versos do poeta mineiro.29 No entanto, em sua primeira aparição nos versos do árcade (écloga 1: “Os maiorais do Tejo”), ela surge em referência ao início virgiliano, no canto do pastor Corebo, que, sentado junto com Montano, canta na flauta seu amor (v. 65-72):
Toma o teu instrumento: ele é tão brando,
Que se inda agora Títiro vivera,
Porque melhor pudesse ir entoando,
No canto de Amarílis o quisera.
Parece que os rochedos
Se abalam já do centro; os arvoredos,
A habitação deixando da espessura,
Vêm prontos a escutar tanta brandura.
Tomando, então, “a flauta doce” (ver v. 61) - como a “tênue avena” de Virgílio (B. 1.2) - o pastor do poeta mineiro rivaliza com o Títiro das Bucólicas, que canta seu amor por Amarílis. Ainda é possível reconhecer a referência no encantamento da natureza pelo canto do pastor. Os arvoredos, em Cláudio Manuel da Costa, “vêm prontos a escutar tanta brandura”; em Virgílio, Títiro “ensina” os bosques a ressoar o nome da amada. Ambos, portanto, como Orfeu, encantam a natureza por meio de sua música, comparação tópica no gênero pastoril.30
Até aqui pudemos ver como Virgílio é imitado, sobretudo por Cláudio, o mais virgiliano dos árcades, mas também - como igualmente apontado antes - por Alvarenga Peixoto - ainda que com menos frequência, mas não com menos precisão. Ambos, porém, atentos às palavras do poeta latino e aos topoi pastoris. Voltemos, então, às Bucólicas de Virgílio para melhor compreender a parte do verso usado na bandeira do estado de Minas Gerais. Como dissemos, as palavras fazem parte da resposta de Títiro à pergunta de Melibeu (v. 26: “E que razão tão grande tiveste para ver Roma?”). Vejamos, assim, a resposta completa (B. 1.27-35), em que o termo libertas é repetido:
Libertas, quae sera tamen respexit inertem,
candidior postquam tondenti barba cadebat,
respexit tamen et longo post tempore venit,
postquam nos Amaryllis habet, Galatea reliquit. 30
namque (fatebor enim) dum me Galatea tenebat,
nec spes libertatis erat nec cura peculi.
quamvis multa meis exiret victima saeptis
pinguis et ingratae premeretur caseus urbi,
non umquam gravis aere domum mihi dextra redibat. 35
A liberdade, que, embora tardia, voltou, porém, o olhar para mim, inerte,
depois que a minha barba, cortando-a, caía mais branca;
voltou, porém, o olhar para mim e depois de longo tempo chegou,
depois que Amarílis passou a me possuir e Galateia me abandonou. 30
Pois (confessarei, sim), enquanto Galateia me dominava,
nem esperança de liberdade havia nem cuidado com o pecúlio.
Embora muita vítima saísse dos meus cercados
e gordo queijo fosse preparado para a ingrata cidade,
nunca minha mão voltava para casa carregada de dinheiro. 35
Títiro, então, viaja a Roma para conquistar a liberdade de civis (cidadão), já que estava em servidão rural e era necessário acumular pecúlio para libertar-se e ter plena posse de direitos.31 A liberdade é personificada e volta seu olhar (respexit)32 tardiamente ao pastor, que, à época, já era homem maduro, com barba branca (v. 28). No momento do canto, Títiro é um “afortunado velho” (v. 46: fortunate senex). Com sua primeira amada, Galateia,33 não conseguia acumular dinheiro e não havia esperança de liberdade;34 somente com Amarílis, que agora o domina, como está claro desde os primeiros versos, como vimos, é que Títiro adquire a tão desejada liberdade - portanto, não exatamente aquela em que pensaram os inconfidentes enquanto esboçavam a bandeira da nação que pretendiam emancipar. Ou seja, se a ideia partiu de Alvarenga, como o inconfidente afirma em seu depoimento, conscientemente ou não, ele opera um deslocamento semântico, espécie de subversão do sentido, em que o verso perde a conotação jurídica35 (a liberdade do civis, em plena posse de seus direitos) - e talvez erótica (a libertação do domínio de Galateia) - para ganhar, no estandarte esboçado, um significado político (a emancipação anticolonial).
Cabe lembrar, porém, que, durante a guerra civil gerada pela crise da República romana (134-27 a.C.), as duas partes se autoproclamavam defensoras da liberdade.36 Depois do assassinato de Júlio César,37 em 44 a.C., seu herdeiro, Otávio, futuro Augusto, atribui a si a restauração da liberdade para a República, após derrotar os inimigos de César, como o próprio narra no início das Res Gestae (1):
[...] aos dezenove anos, por minha própria iniciativa e às minhas próprias custas, levantei um exército por meio do qual restaurei a liberdade à república, oprimida pela tirania de uma facção” (Annós undéviginti natus exercitum priváto consilio et privatá impensá | comparávi, (§) per quem rem publicam [do]minatione factionis oppressam | in libertátem víndicá[vi] ).38
O mais interessante, contudo, é o uso político desse termo em moeda de 28 a.C.,39 em que se lê no obverso: IMP * CAESAR * DIVI * F * COS * VI * LIBERTATIS * P * R * VINDEX (Imperator Caesar Divi Filius Consul VI Libertatis Populi Romani Vindex: “Imperador César, filho do Divino, cônsul por seis vezes, defensor da liberdade do povo romano”).
A libertas de Augusto se perpetua como propaganda política de seus sucessores. Em moeda de 50-54 d.C., a deusa Libertas41 é representada no reverso, segurando na mão direita o píleo (pilleum), espécie de chapéu em formato cônico, emblema da emancipação que o escravo liberto ganhava. Lê-se ainda a seguinte inscrição: libertas Augusta (“a liberdade augustana”), em referência ao “defensor da liberdade do povo romano”.
É possível, portanto, que a liberdade de Títiro esteja, de algum modo, associada à libertas Augusta. O pastor virgiliano adquire a liberdade em Roma, onde um deus lhe concedeu o ócio (v. 6: deus nobis haec otia fecit) e lhe permitiu cantar no “agreste cálamo” o que quisesse (v. 10: ludere quae vellem calamo permisit agresti). Embora não houvesse o culto oficial de Otávio - ele não recebera ainda o título de Augusto (27 a.C.) -, já houve quem identificasse o deus, caracterizado como jovem (v. 42: iuvenem), com o princeps.43 Ora, se assim for, a liberdade para Títiro, nessa leitura, foi concedida pelo deus Otávio, ganhando assim significado também político. Lembremos ainda que Júlio César já reivindicava a restituição da liberdade ao povo romano. Trata-se, contudo, de uma hipótese para esta écloga com passagens, por vezes, de difícil entendimento.
Antes ainda de chegar aos árcades, o famoso verso foi retomado por outros poetas. Dante Alighieri, por exemplo, que tem Virgílio como modelo,44 imita-o em muitos passos, tomando versos da Eneida, das Geórgicas e das Bucólicas. Assim, no início do “Purgatório” da Divina comédia, o poeta italiano faz Virgílio explicar ao republicano Catão Uticense, que se suicidou defendendo a liberdade política, por que Dante faz aquela viagem. Diz o Virgílio dantesco (v. 71-72): libertà va cercando, ch’è sì cara, / come sa chi per lei vita rifiuta (“a liberdade está buscando, que é tão cara, como sabe aquele que recusa a vida por ela”). A imitação do verso virgiliano é clara: antes de mais nada, está na boca do próprio Virgílio, iniciando por libertà, como libertas é a primeira palavra de Títiro. A oração relativa (ch’è sì cara) acompanha de perto a construção sintática do verso latino (quæ sera). Tal é a fama do verso que foi até mesmo parodiado por Vinicius de Moraes, em Pátria minha (1949), ao narrar na décima estrofe a tradução errada que acertadamente fez:
Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quæ sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
“Liberta que serás também”
E repito!
Ainda sobre tradução, as palavras escolhidas para figurar no lábaro mineiro não deixaram de suscitar alguma polêmica. Millôr Fernandes (s/d, p. 183-185), Paulo Rónai45 e, mais recentemente, Deonísio da Silva,46 julgaram a escolha do trecho equivocada. De fato, as palavras libertas, quæ sera tamen (“a liberdade, que, embora tardia, porém”), como dissemos e fizemos ver, formam parte47 do verso virgiliano. Esses críticos disseram que o mais adequado seria apenas libertas, quæ sera (“a liberdade, que, embora tardia”), o que, porém, continua incompleto, com o pronome relativo (quæ, “que”) pedindo um verbo. O adjetivo serus - no feminino singular nominativo - tem frequentemente valor concessivo, o que faz surgir o “embora” na tradução, explicitando isso.48 O que talvez tenha motivado o corte em tamen seja a cesura (||) do verso. Esse hexâmetro de Virgílio está dividido em três partes: lībērtās, || quaē sēră tămēn || rēspēxĭt ĭnērtĕm. Como demonstramos, Alvarenga e Cláudio, assim como seus demais contemporâneos letrados, conheciam bem os versos de Virgílio,49 de modo que, não refazendo a parte restante do verso nem contextualizando-o,50 usaram o trecho entendendo que a liberdade, embora tenha tardado, chegara.51 Ou seja, o fragmento virgiliano, retirado por Alvarenga de seu contexto pastoril original, anuncia a liberdade política como fato consumado, e não - segundo entende Millôr Fernandes - como uma “bandeira de luta”, uma esperança, um projeto, uma proposta, uma conquista a se efetivar.52 Como se trata de fração de verso, é compreensível que ela carregue imprecisões geradas pela incompletude, o que demanda redobrado esforço interpretativo. Assim, nossa hipótese é a de que a melhor tradução para “libertas quæ sera tamen” não é “liberdade ainda que tarde (ou tardia)”, mas “a liberdade [, que], embora tardia, [chegou]”. Aliás, como vimos, nos Autos de devassa o coronel Oliveira Lopes e o desembargador Torres Coelho respectivamente citam o lema em português como “[i]nda que tarde a liberdade chegou” e “[c]hegou a liberdade, ainda que tarde”. Portanto, ao menos naquele instante fugaz e, pela natureza presumivelmente obscura do que restou nos documentos processuais, algo confuso dos encontros conspiratórios, em que três ou quatro conjurados de Minas vislumbraram a independência de um país, a liberdade - seja lá o que ela significasse para os inconfidentes, sobretudo para Alvarenga Peixoto - foi bem mais que mera promessa.
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