Resumo: O propósito deste artigo é explorar a especificidade de um panfleto de Thomas Paine pouquíssimo estudado pelos historiadores, Dissertation on First Principles of Government (1795), no cenário das relações entre liberalismo e democracia na passagem do século XVIII ao século XIX. Trata-se de discutir a maneira como o revolucionário inglês - que foi ator, testemunho e intérprete da Era das Revoluções - elaborou uma formulação teórica que o afastou tanto do pensamento e das práticas jacobinas quanto das legislações e discursos dos deputados termidorianos durante o período da República Termidoriana (1794-1795) da Revolução Francesa. Para tanto, iremos recorrer também a outros textos e cartas do autor e discutir suas mudanças em relação aos panfletos anteriores, como Common Sense e Rights of Man. Com isso, pretende-se abrir novas perspectivas a respeito da obra de Paine e de seu lugar na história do pensamento político.
Palavras-chave: Thomas Paine, Liberalismo, Democracia, Revolução Francesa, História Intelectual.
Abstract: The purpose of this paper is to demonstrate the specificity of Thomas Paine’s pamphlet, Dissertation on First Principles of Government (1795), practically ignored by historians, in the context of the relations between liberalism and democracy in the transition from the eighteenth to the nineteenth century. The objective is to explain how Paine - as an English revolutionary and an actor, witness, and interpreter of the Age of Revolutions - developed a liberal and democratic vision during the period of the Convention initiated on 9 Thermidor (1794-1795) that distanced him from both Jacobin formulations and practices, and from legislations and speeches by Thermidorian deputies. To this end, we will also investigate other texts and letters by the author, and demonstrate his profound changes in relation to previous texts, such as Common Sense and Rights of Man. With this in mind, this article intends to open new perspectives regarding Paine’s work and its place in the history of political thought.
Keywords: Thomas Paine, Liberalism, Democracy, French Revolution, Intellectual History.
ARTIGO
THOMAS PAINE E A REVOLUÇÃO FRANCESA: ENTRE O LIBERALISMO E A DEMOCRACIA (1794-1795)1
THOMAS PAINE AND THE FRENCH REVOLUTION: BETWEEN LIBERALISM AND DEMOCRACY (1794-1795)
Recepção: 01 Março 2020
Aprovação: 08 Dezembro 2020
The pomp of courts and pride of kings
I prize above all earthly things;
I love my country; the king
Above all men his praise I sing:
The royal banners are displayed,
And may success the standard aid.
I fain would banish far from hence,
The Rights of Man and Common Sense;
Confusion to his odious reign,
That foe to princes, Thomas Paine!
Defeat and ruin seize the cause
Of France, its liberties and laws
Fonte: (Arthur O’Connell3)
Escrito e publicado em julho de 1795, o texto Dissertation on the First Principles of Government4 foi o ponto de chegada da teoria democrática de Thomas Paine (1737-1809), no qual ele defende o voto universal (masculino) e critica a sua ausência na Constituição francesa termidoriana, terceira do período revolucionário, posta em vigor no mesmo ano.
Nesse momento, Paine, antigo espartilheiro de Thetford, era figura de destaque no mundo atlântico5 por meio de diversos escritos, principalmente Common Sense (1776), principal panfleto da Revolução Norte-Americana, e Rights of Man (1791), defesa da Revolução Francesa contra as Reflexões sobre a Revolução na França, de Edmund Burke.
Nenhum estrangeiro tomou parte da Revolução Francesa de modo tão incisivo e de maneira tão prolongada quanto Paine. Eleito deputado por Pas-de-Calais, foi preso pelo governo jacobino em dezembro de 1793, junto ao deputado Anacharsis Cloots (de origem prussiana e de família holandesa), ambos sob a justificativa de serem estrangeiros6. Com ajuda do embaixador norte-americano e futuro presidente dos Estados Unidos, James Monroe, Paine foi libertado em novembro de 1794. O motivo não declarado7 de sua prisão foi a oposição à decapitação de Luís XVI (embora fosse republicano, Paine era contrário à pena de morte e defendia o exílio do rei Bourbon) e sua proximidade com Brissot e os girondinos.
Fora da prisão e novamente deputado, contudo, Paine afastou-se também dos antigos girondinos (muitos dos quais eram, agora, termidorianos), ao defender o voto universal. A oposição de Paine a estes não era nova: cabe ressaltar sua defesa da República em 1790, antes mesmo de Robespierre8. Tal crítica, entretanto, arrefeceu no período jacobino - urgia opor-se ao Terror e ao movimento descristianizador. Derrubados os jacobinos, o afastamento entre Paine e os termidorianos ganhou fôlego, fator decisivo para sua volta aos Estados Unidos em setembro de 1802.
Paine havia embarcado pela primeira vez para a América do Norte em 1775 com uma posição política incógnita, que poderíamos chamar de niveladora9 (referência aos levellers ingleses durante a Guerra Civil inglesa de 1642-1649) e censitária, segundo a qual só quem dispusesse de ócio e autonomia financeira poderia votar. Em 1778, Paine afirmou que o interesse dos assalariados, “tal como de todos os servos nas famílias, é o interesse de seu patrão” (FONER, 1945, p. 143). Em carta publicada no mesmo ano, Paine, a julgar pelas obras completas de Foner, utilizou pela primeira vez a palavra democracy e democratical. Nesse momento, contudo, ele ainda pensava a democracia no sentido pejorativo corrente, isto é, como uma forma de governo degenerado (FONER, 1945). Esse uso, no contexto do debate da independência das 13 colônias, tinha como propósito a defesa de um governo constitucional.
No contexto revolucionário francês, Paine passou a condenar as qualificações de propriedade para votar. Em Rights of Man (1791), resposta ao texto de Edmund Burke, Paine argumentou que o voto deveria ser tão universal quanto a taxação, uma proposta radical no contexto inglês, no qual virtualmente todo homem adulto pagava alguma taxa indireta; mas é preciso frisar que não houve nesse texto uma defesa explícita do sufrágio universal masculino. Apenas em 1795, em Dissertation on the First Principles of Government, ele defendeu abertamente o voto universal. Por isso, Conway, que escreveu a primeira biografia bem fundamentada sobre o autor, disse que “poucos panfletos de Paine merecem mais estudo” (1996, p. 161-162).
A propósito, Rights of Man representou a segunda vez - sempre a julgar pelas obras completas de Foner - em que Paine utilizou as palavras democracy e democratical, mas desta vez em sentido positivo: agora, a noção de “democracia” era equivalente a um desejável governo representativo igualitário, em gestação nos Estados Unidos e na França. Dissertation, por sua vez, teria sido terceira e última vez que o autor utiliza o termo em seus textos10; nesse caso, embora a ideia de democracia seja mais ousada, o uso da palavra é mais tímido (aparece apenas duas vezes no texto), de modo que o autor prefere o termo “governo representativo” para referir-se ao voto universal masculino, igualdade perante a lei, pesos e contrapesos e direitos humanos (entre os dois textos, aliás, há Robespierre e o Comitê de Salvação Pública, o que, como se verá adiante, deve explicar os diferentes usos e noções).
Já os termos “liberal” e “iliberal” aparecem em Paine com muito mais frequência (“liberalism”, por sua vez, é um termo do século XIX, como se verá). Na maioria dos escritos de Paine, o termo aparece na sua acepção corrente, referindo-se a um sentimento de generosidade (“my intentions were liberal, they were friendly”, FONER, 1945, p. 1238), amistosidade (os termos liberality e liberal sentiments também são frequentes) ou a um tipo de educação específica (como, por exemplo, liberal arts and sciences).
Contudo, conforme veremos adiante, a partir de alguns estudos recentes, como o termo “liberal” conhece transformações na ilustração anglo-escocesa do século XVIII. E as obras de Paine parecem acompanhar esse movimento. O termo passa, por exemplo, a aparecer em sua obra de forma composta - como liberal ground, liberal cast e liberal thinking (FONER, 1945, p. 61, 127 e 237) - e relacionado a formas de não interferência e não opressão. Por exemplo, em carta a George Washington, Paine afirmou que o comércio entre América do Norte e França está fundado nos “mais liberais princípios [liberal principles], feitos para encorajar o comércio nascente na América” (FONER, 1945, p. 715). Uma outra carta de Paine, concernente a Constituição da Pensilvânia, expressa bem essa transformação do termo, pois aqui a palavra liberal pode ser entendida como “generosidade”, mas, ao mesmo tempo, “não interferência” e “não opressão”:
Ser livre é da natureza da liberdade [freedom]. A liberdade é associada a inocência, e não companheira da suspeita. Ela necessita ser límpida, e não presa, e ser amada é, para ela, ser protegida. Sua residência é a indistinta multidão de ricos e pobres, partidária de ninguém e patrona de todos (...). Aprisioná-la é afrontá-la, pois, liberal ela própria, ela deve ser tratada liberalmente [liberal herself, she must be liberally dealt with] (FONER, 1945, p. 284)
Feitas essas observações preliminares, é preciso notar que Dissertation on the First Principles of Government nunca recebeu a devida atenção por parte dos historiadores. Tal ausência salta aos olhos entre os estudiosos clássicos de Paine. Foner limitou-se a enfatizar que o panfleto aborda a questão do voto (1945). Aldridge ateve-se a dizer que ele escreveu o panfleto em atenção “à nova constituição” (1959, p. 225). Vincent (1989) somente ressaltou a defesa bicameralismo. Keane (1995) e Nelson (2006) tão-só afirmaram que Paine defendeu o voto universal. Philp e Claeys, os dois historiadores que melhor se dedicaram ao estudo do pensamento de Paine, foram lacônicos: o primeiro inusitadamente qualifica-o como “um resumo de Rights of Man (1791)” (1989, p. 21) e o segundo apenas ressalta sua pouca receptividade (1989). Florenzano (1999) apontou o lugar fundamental do texto na discussão sobre liberalismo e democracia; contudo, seu estudo, por estar mais preocupado com outras questões a respeito da vida e da obra de Paine, não se dedicou a uma análise propriamente dita desse panfleto.
Atualmente, o revolucionário inglês tem recebido uma grande quantidade de estudos, seja por sua atuação como revolucionário atlântico, seja por sua posição nem propriamente jacobina nem exatamente girondina11. Contudo, Dissertation continua secundário nos três estudos mais recentes sobre o autor: Feit cita o texto apenas três vezes para abordar a relação entre tempo e direitos em Paine (2016); Lounissi, que o considerava um “marco na carreira de Paine” (2018, p. 235), resume-o em três parágrafos; Clarck afirma que ele “tem pouco a dizer sobre a França” (2018, p. 359-362).
Dissertation, portanto, nunca recebeu a devida atenção. Contudo, além de preencher uma importante lacuna, sua análise irá revelar importantes inflexões em relação aos mais conhecidos textos Common Sense e Rights of Man, e, por isso, mostrar facetas do autor até então pouco discutidas, as quais podem avigorar o lugar de Paine como pensador político e, na direção oposta do que foi dito por Clarck, intérprete da Revolução Francesa.
Para cumprir esse propósito, este artigo será estruturado em três partes: em primeiro lugar, pensaremos a publicação de Dissertation a partir de seu contexto; em segundo lugar, serão analisadas suas ideias fundamentais; e finalmente, o panfleto será pensado no seio dos debates político-filosóficos de sua época. O texto, como toda a obra política de Paine, está profundamente imbricado com o eixo revolucionário Londres-Paris-Filadélfia, e só pode ser compreendido dentro desses diálogos (embora também tenha sua importância em outros espaços como a Irlanda e os Países Baixos).
Paine iniciou a redação de Dissertation tendo em vista os Países Baixos. Porém, após a queda do governo jacobino, em 27 de julho de 1794 (9 Termidor), o texto destinou-se a Convenção Nacional Termidoriana, enquanto ela discutia a Constituição do Ano III.
A Convenção Termidoriana, que sucede ao governo jacobino, durou quinze meses, até outubro de 1795, quando deu lugar ao Diretório. No dia seguinte ao 9 Termidor, os deputados opuseram ao antigo slogan, “O Terror na ordem do dia”, uma nova contrassenha, “a Justiça na ordem do dia!” (BACZKO, 1989 p. 421) e uma nova palavra de ordem, “repor a ordem social no lugar do caos das revoluções” (SOBOUL, 2003, p. 108). Um governo, portanto, que se dispunha a encerrar a Revolução e se justificava negativamente: nem Terror, nem monarquia.
A nova declaração de direitos substituiu “os homens nascem livres e iguais” por “a igualdade consiste na lei a mesma para todos”, da mesma forma que o direito de propriedade, que não havia sido definido em 1789, foi precisado: “a propriedade é o direito de usufruir e de dispor de seus bens, de suas rendas, do fruto de seu trabalho e da sua indústria” (MARTIN, 2019, p. 447). Sem perder de vista o mundo caribenho, a Convenção manteve a abolição da escravidão e garantiu a cidadania para os haitianos.
Após a ocupação da Convenção por representantes das seções, ligados aos sans-culottes, exigindo pão e liberdade, a Assembleia nomeou, em abril de 1795, uma comissão de onze membros para redigir uma nova Constituição. O relatório foi entregue em 23 de junho. É ilustrativo o conhecido discurso do relator Boissy d’Anglais:
Devemos ser governados pelos melhores homens; e estes são os mais instruídos e os mais interessados na manutenção da lei. Ora, com raras exceções, tais homens só se encontram entre os detentores de propriedade que, por conseguinte, estão vinculados ao seu país, às leis que protegem suas propriedades e à paz social que as preserva. Um país governado por homens de posses é uma sociedade autenticamente civil; um país em que os homens sem propriedades governem encontra-se no estado de natureza (POPKIN, 2019, p. 448).
Em 6 de junho de 1795, Paine, alarmado com os rumos da Convenção, escreveu ao deputado Thibaudeau enfatizando que voltar a um sistema censitário justificaria novas rebeliões: “como imaginar que recrutas dispostos a morrer pela causa da igualdade amanhã concordassem em sacrificar suas vidas por um governo que os tivesse destituído de seus direitos naturais elementares?” (VINCENT, 1989, p. 258).
Thomas Paine, então, publicou o panfleto Dissertation on First Principles of Government no dia 4 de julho de 1795. Três dias depois, pela primeira vez desde a queda dos jacobinos e pela última vez em sua vida, Paine subiu à tribuna da Convenção. O pequeno discurso está transcrito em The Constitution of 1795 - Speech in the French National Convention:
A Constituição que vocês apresentam não é compatível com o grande propósito da Revolução, nem coerente com as opiniões dos indivíduos que a defenderam (...). A Constituição diz: ‘todo homem, nascido e residente na França, com mais de 21 anos de idade, que inscreveu seu nome no registro cívico de seu cantão, viveu pelo menos um ano no território da República, e paga alguma contribuição direta, é um cidadão da França’. Eu devo aqui perguntar, se aqueles que não se encaixam na descrição acima não são cidadãos, qual designação devemos dar ao resto da população? Na estrutura do tecido social, essa classe de pessoas é infinitamente superior à ordem privilegiada cuja única qualificação é sua riqueza ou posse de territórios. O que é o comércio sem os mercadores? O que é a terra sem o cultivo? E o que é a produção da terra sem as manufaturas?” (FONER, 1945, p. 588-594)
A Constituição, prossegue Paine, beneficia uma minoria, torna o povo vulnerável à tirania e habilita uma parcela da população a destruir a liberdade de outra. Enquanto alguns trabalhadores estariam privados do voto, outros, com poucos acres de terra, estariam aptos a exercerem a cidadania.
A fala foi recebida com indiferença: “se Paine buscou colocar o dedo na ferida da Convenção, o efeito foi o inverso” (GAUCHET, 1989, p. 300). Somente dois outros deputados advogaram em favor de Paine: o amigo e tradutor de Paine, Lanthenas, e Julian Souhait.12
A Constituição do ano III foi votada em 22 de agosto de 1795 e proclamada em 23 de setembro. Nessa constituição, era reconhecido o voto censitário. Vale, contudo, apontar que “nenhuma das Constituições norte-americanas dispunha de um sufrágio tão amplo” (VINCENT, 1989, p. 259). Os relatores da constituição, aliás, declararam admiração pelo texto de Adams, Defence of the Constitutions of Government of the United States, de 1787, traduzido em 1792 (KLOOSTER, 2018).
Um dos traços mais casuístas dessa Constituição foi o “decreto dos dois terços”, cujo objetivo era evitar que os monarquistas (instigados pelo autoproclamado Luís XVIII) formassem maioria na assembleia: nas primeiras eleições, dois terços dos futuros deputados deveriam ser escolhidos entre os convencionais, cujos mandatos estavam para expirar. Apesar da queda dos jacobinos, permanecia, assim, “a lógica da salvação pública, segundo a qual a Revolução deveria ser defendida, inclusive ao custo da transgressão de seus princípios” (OZOUF e FURET, 1988, p. 50). A propósito, dois importantes líderes, os antigos apoiadores do governo jacobino Tallien e Billayd-Varenne, falavam abertamente em manter o terror contra os traidores (BIENVENU, 1968).
Em 26 de Outubro, a Convenção dissolveu-se e, conforme proposta de Sieyès para a nova Constituição, foi substituída pelo Conselho dos Quinhentos (encarregados de elaborar as leis) e dos Anciões (encarregados de votá-las, sendo duas vezes menos numerosos, e cujos membros deveriam ter mais de quarenta anos de idade). O poder executivo (os cinco integrantes do diretório), por sua vez, era eleito pelos dois ramos do legislativo: ao contrário das outras duas constituições revolucionárias, estabeleceu-se aqui o bicameralismo, sob forte influência norte-americana (NORA, 1988). O Diretório cassaria sem apelação membros da administração local, dirigiria a diplomacia e poderia decretar ordens de prisão; nesses aspectos, aliás, o Consulado não foi uma ruptura, mas um adensamento do governo anterior (SOBOUL, 2003). Em Outubro, foi realizada a eleição do Diretório; Paine, que nunca mais se candidatou, tornou-se um cidadão comum.
Dito isso, é fundamental a constatação de que, no período termidoriano, ganhou contorno uma “versão do liberalismo francês” (BACZKO, 1989, p. 429), que chamaremos de liberalismo termidoriano13. Essa versão consistiria na ideia de que há uma impossibilidade de conciliar a participação da população no processo político (princípios democráticos) com a proteção dos direitos e liberdades individuais (princípios liberais) na conjuntura pós-jacobina.14 Por isso, em seu discurso de 20 de julho de 1795, Sieyès criticou “a soberania ilimitada que os Montanheses haviam atribuído ao povo, a partir do modelo da soberania do rei no Antigo Regime”- ele chama, a propósito, o regime jacobino de ré-totale, em oposição à ré-publique (POPKIN, 2019, p. 420 e 450). Nota-se que a tensão entre as liberdades individuais e a democracia - frequentemente associadas a década de 1820 - estava presente desde antes, na Convenção Termidoriana.
Feitas essas considerações, é possível destacar o problema que é o coração deste texto, qual seja, explicar como Paine, deputado termidoriano abertamente antijacobino e preocupado com as liberdades individuais e limites do Estado, posicionou-se nesse momento.
O panfleto Dissertation on the First Principles of Government exibe uma arquitetura clara e bem construída, a fim de que o autor introduza seu argumento mais radical, qual seja, de que a propriedade privada não pode ser um direito natural que se sobreponha aos demais e, por isso, não pode transformar-se em critério para o voto.
O panfleto comporta cinco momentos: na primeira parte, ele pontua sua crença na centralidade da política; na segunda, apresenta três argumentos contra os governos hereditários, ao lado de suas concepções a respeito de nação, contrato social e soberania popular; na terceira, ele discorre sobre o governo representativo, tendo como objetivo fundamental evidenciar a irracionalidade do voto censitário; na quarta, defende o bicameralismo (uma notável mudança em relação à suas ideias em Common Sense e um afastamento em relação aos antifederalistas1516), expõe a função do poder executivo e da rotatividade do poder e reafirma a importância da educação; por fim, conclui seu texto com uma profissão de fé em favor da tolerância.
Paine principia dizendo não existir “assunto que interesse mais a qualquer homem do que o tema do governo. Sua segurança - seja ele rico, seja pobre - e em grande medida sua prosperidade estão conectadas ao governo” (FONER, 1945, p. 571). Seu objetivo, portanto, é estudar e aperfeiçoar o que ele chamou de ciência do governo, a qual, “de todas as coisas, é a menos misteriosa e a mais fácil de entender.” (FONER, 1945, p. 571) É a partir daí que o autor se afasta das subdivisões dos autores clássicos e propõe que:
As divisões primárias do governo são apenas duas:
Primeira, governo por eleição e representação.
Segunda, governo por sucessão hereditária.
(...) Quanto a essa coisa equívoca chamada ‘governo misto’, como o último governo da Holanda e o atual da Inglaterra, não constitui uma exceção à regra geral, já que suas partes, consideradas separadamente, são representativas ou hereditárias (FONER, 1945, p. 571-572).
As revoluções que se espalhavam pela Europa são em última instância, “um conflito entre o sistema representativo - fundado sobre os direitos do povo - e o sistema hereditário, fundado na usurpação” (FONER, 1945, p. 572), de modo que a aristocracia, a oligarquia e a monarquia não passam de expressões distintas de um mesmo sistema hereditário, que deve ser rejeitado. Da mesma forma, retomando o que já havia dito em Rights of Man - quando definiu governo norte-americano como “a representação enxertada na democracia” (FONER, 1945, p. 354) - Paine rejeita como impraticável a “democracia simples” (isto é, direta): “o único sistema compatível com esse princípio, dado que a democracia simples é impraticável, é o sistema representativo” (FONER, 1945, p. 584).
Paine fora, nas Treze Colônias, nome fundamental no processo de transformação do republicanismo de um ideal ético e “forma de vida”, como era visto em meados dos setecentos, (VENTURI, 2003), para um regime político praticável e desejável. Nesse momento, o autor reafirma seu conhecido afastamento de parte da linguagem republicana setecentista17 ao conceber o governo inglês não como “misto e equilibrado”, mas como aristocrático: “é certo”, disse Paine em carta a Condorcet, “que certos lugares, como Holanda, Berna, Gênova, Veneza etc., que são chamadas de repúblicas, não merecem tal designação (...) pois estão em condição de absoluto servilismo à aristocracia” (ISRAEL, 2017, p. 4).
De tal modo, Paine passa a tratar dos governos hereditários: “não há em Euclides uma proposição matematicamente mais verdadeira que a proposição de que o governo hereditário não tem direito a existir” (FONER, 1945, p. 572-573). O autor, então, elenca três argumentos contra o regime hereditário, todos de ordem temporal: o primeiro diz respeito à sucessão dos governos; o segundo, às suas origens; o terceiro, à eternidade dos direitos.
O governo hereditário é contrário à razão uma vez que, pela sua natureza, é suscetível de cair “nas mãos de um rapaz desprovido de experiência e muitas vezes pouco melhor que um idiota” (FONER, 1945, p. 573). Se a incerteza da sucessão depõe contra os governos hereditários, o mesmo pode ser dito sobre suas origens: o governo hereditário não pode começar porque nenhum homem e nenhuma família estão acima dos demais. “Se não tiver direito a começar”, diz Paine, “tampouco o terá para continuar”, pois:
O direito que um homem ou uma família quaisquer tinham inicialmente para estabelecer-se no governo de uma nação e assentar uma sucessão hereditária não é diferente do direito que tinha Robespierre de fazer o mesmo na França. (...) Os Capetos, os Guelfos, os Robespierres e os Marats se encontram na mesma situação com respeito ao direito (FONER, 1945, p. 573).
Nesse aspecto, o poder de Robespierre aproxima-se mais do despotismo do Antigo Regime do que da democracia. Ao contrário de muitos liberais do início do século XIX, Paine não pensava o jacobinismo como um perigo inerente ao impulso igualitário da democracia, tampouco concebia a liberdade como reduto aristocrático, mas, precisamente, o inverso.
O governo hereditário também é incoerente ao considerar a relação entre tempo e direitos: mesmo que um governo tenha iniciado, de maneira ilegítima, sua usurpação converter-se-ia em direito pela autoridade do tempo? A resposta é negativa nas duas direções: as gerações do presente não têm o dever de submeter-se aos homens do passado (como ele já afirmara em Rights of Man), tampouco têm o direito de subjugar as gerações futuras. Os direitos seriam atemporais e meta-históricos e, por isso mesmo, universais no tempo e no espaço: “o tempo, em relação aos princípios, é um eterno agora” (FONER, 1945, p. 574). Compete aos vivos fazer política, de modo que “a injustiça que começou há mil anos é tão iníqua quanto se tivesse começado hoje; e o direito que se origina hoje é tão justo quanto se tivesse sido sancionado há mil anos” (FONER, 1945, p. 574).
A noção de que o tempo não cria qualquer forma de direito, razão ou autoridade é o que afasta definitivamente Paine das ideias de Burke e daqueles que ficaram conhecidos como os conservadores britânicos. Para Quinton (1978), o conservadorismo britânico dos séculos XVIII e XIX, ao pretender preservar o arranjo histórico da Revolução Gloriosa de 1688-89, abrangia três doutrinas: a crença de que a sabedoria política é histórica e coletiva, residindo no tempo (tradicionalismo); a crença de que a sociedade é um todo, e não apenas a soma de suas partes (organicismo); e a desconfiança da teoria quando aplicada à vida pública (ceticismo político).
Para Paine, em contrapartida, qualquer nação que elaborar uma lei ou tradição irrevogável estaria traindo, de uma só vez, “o direito de todo menor de idade da nação e os direitos das gerações seguintes” (FONER, 1945, p. 574). Assim, sendo os menores e as gerações futuras portadores de direitos, qualquer lei que viole esses grupos é ilegítima. A autoridade legal (isto é, o poder de eleger representantes e formular leis), para Paine, repousa no consenso dos homens vivos maiores de 21 anos; entretanto, grupos destituídos de autoridade legal não são destituídos de direitos: “uma nação abarca todos os indivíduos de qualquer idade, desde o que acaba de nascer até aquele que está morrendo. Nesse incessante fluxo de gerações, nenhuma parte é superior a outra em autoridade” (FONER, 1945, p. 575).
Assim, se é evidente que, quando uma família estabelece a si mesma no poder temos uma forma de inquestionável despotismo, seria um igual despotismo quando uma nação consente em estabelecer um regime com poderes hereditários: “não é um alívio, mas antes uma piora para uma pessoa escravizada pensar que foi vendida por seus pais” (FONER, 1945, p. 576). O princípio compromisso como fonte de legitimidade aqui é levado às últimas consequências, e estendido aos menores de idade e àqueles que ainda não nasceram: “se a atual geração, ou qualquer outra, está disposta a ser escravizada, isso não diminui o direito da geração seguinte de ser livre” (FONER, 1945, p. 576).
Para Paine, incluir os menores e as gerações futuras no conceito de povo e, consequentemente, protegê-los pela lei, impediria a democracia de transformar-se em tirania; e, por isso, em Paine, “o sujeito da democracia precisa ser compreendido como um sujeito indissociavelmente jurídico (o povo de cidadãos-eleitores) e histórico (a nação que vincula a memória e a promessa de um futuro compartilhado)” (ROSANVALLON, 2010, p. 90). Contudo, a democracia é histórica precisamente porque comporta valores e direitos humanos atemporais - o compromisso com as gerações futuras e a liberdade em relação às gerações passadas deve-se a esse elo inquebrantável que uniria vivos e mortos que, ao contrário do que pensam Burke e os conservadores, não é histórico.
Posto isto, a democracia em Paine é um prolongado exercício de compromisso, muitas vezes tácito. Não se trata, portanto, de uma democracia plebiscitária no sentido de uma consulta ao povo a respeito de todas as decisões, ou de uma “revolução permanente”, no sentido de uma tábua rasa da organização política e de uma reformulação total das instituições, leis e costumes a cada geração; mas, como ele afirmara em Rights of Man, a ideia de que “uma lei não revogada continua em vigor não porque não possa ser revogada, mas porque não foi revogada. A não revogação é tomada por consentimento” (FONER, 1945, p. 254). Portanto, Himmelfarb parece exagerar ao dizer que
a revolução política que se pedia em Os Direitos do Homem era uma revolução genuína que requeria a abolição de toda a herança do passado, inclusive da monarquia e da aristocracia, e inaugurava uma espécie de ‘revolução permanente’ em que cada geração criaria suas próprias leis e instituições (HIMMELFARB, 1988, p. 116)18.
Entretanto, é importante observar que, no texto, o autor não vislumbra a hipótese de conceder o voto às mulheres, cuja exclusão nem chega a ser discutida19.
Em contraposição ao governo hereditário, no governo representativo (em Rights of Man, ele já observara que a democracia direta seria factível apenas em pequenos territórios) não há o problema das origens, pois não é ancorado na conquista ou na usurpação, mas nos direitos naturais: “o próprio homem é a origem e a evidência desse direito. Este lhe pertence por força de sua própria existência, e sua pessoa é o titular da propriedade desse direito” (FONER, 1945, p. 577).
O voto censitário, de tal modo, produziria um novo tipo de aristocracia20, como um despotismo instalado no seio do governo representativo. A propriedade privada, quando utilizada para arrancar direitos dos outros, converte-se em privilégio e torna-se ilegítima:
Os direitos pessoais, um dos quais o de votar em representantes, são uma espécie de propriedade do tipo mais sagrado; aquele que utilizar sua propriedade pecuniária ou abusar da influência que ela lhe confere para expropriar ou roubar a propriedade ou os direitos de outra pessoa estará utilizando sua propriedade pecuniária como uma arma de fogo e merecerá ser privado dela (FONER, 1945, p. 577).
Se, na natureza, “todos os homens são iguais em direitos, mas não em poder” (FONER, 1945, p. 583), a instituição da sociedade civil objetiva uma “equalização de poderes que será paralela e servirá de garantia à igualdade de direitos” (FONER, 1945, p. 583). Enquanto a natureza e a sociedade civil são o espaço da desigualdade, a sociedade política é o espaço da igualdade; assim, a democracia, indissociável da ideia de direitos, garante um campo de negociações e compromissos, que criam a possibilidade de defesa dos mais pobres contra os mais ricos e de todos contra o Estado21.
A desigualdade de direitos é criada por uma manobra de uma parte da comunidade para privar a outra parte de seus direitos. Cada vez que se cria um artigo de uma Constituição ou de uma lei em que o direito de eleger ou ser eleito pertença exclusivamente a pessoas que possuem propriedade, seja pequena, seja grande, trata-se de uma manobra das pessoas que possuem tal quantidade para excluir aqueles que não possuem. (...) é perigoso e impolítico, às vezes ridículo e sempre injusto fazer da propriedade critério do direito de votar (FONER, 1945, p. 579).
Subjugar a liberdade de voto à propriedade é relegar o direito de escolha dos representantes à irrelevância. Daí o absurdo de submeter a liberdade de voto à propriedade, o que, no final das contas, vincula o direito às coisas ou animais:
Um potro ou uma mula afortunadamente paridos por uma égua e que valham a soma necessária para votar concederão a seus proprietários o direito a votar; mas, se morrem, os privarão desse direito; nesse caso, em quem reside o direito, no homem ou na cria? (FONER, 1945, p. 578)
O sufrágio censitário, além disso, pode vincular o voto ao crime, já que, lembra o autor, é possível adquirir renda pelo roubo; nesse sentido, um delito poderia criar direitos. No mais, como, em uma democracia, alguém só pode perder seus direitos mediante um crime, a exclusão do direito de votar criaria um “estigma” (stigma) sobre os que não possuem propriedade, como se fossem delinquentes: “a riqueza não é prova do caráter moral, nem a pobreza, de sua falta. Pelo contrário, a riqueza é frequentemente evidência de desonestidade, e a pobreza, evidência negativa de inocência” (FONER, 1945, p. 579).
Se a escravidão “consiste em estar sujeito à vontade de outrem” (FONER, 1945, p. 579), suprimir o direito de votar é reduzir o homem à condição de escravo. Como é justo revoltar-se contra qualquer um que tente reduzir-nos à escravidão, “o direito a rebelar-se torna-se perfeito” (FONER, 1945, p. 579). Garantir a todos os direitos de liberdade e igualdade é a melhor maneira de promover coesão social.
Tudo isso não significa que Paine opõe-se à propriedade privada ou defende uma Lei Agrária22. A complexidade das personalidades, ambições, aspirações, talentos e relações, bem como a diversidade de meios de aquisição de propriedade, implicam a inevitável desigualdade social. Todavia, um governo não é um “banco ou uma companhia comercial”, no qual os direitos dos membros são criados pela propriedade investida: “a proteção de um homem é mais sagrada que a da propriedade” (FONER, 1945, p. 581).
De tal modo, cabem aqui duas notas: em primeiro lugar, a percepção de Paine de que a sociedade é dividida em grupos definidos pelo critério de propriedade e permeada por tensões inevitáveis e, em segundo lugar, a concepção de democracia como uma maneira não de subverter, mas de preservar a propriedade privada. A sociedade civil é o espaço da contradição e do conflito; a democracia é o espaço do compromisso, que torna a vida humana possível e potencialmente pacífica mesmo quando ela repousa por sobre uma sociedade permeada por contradições que lhe são inerentes.
Dessa afirmação, naturalmente decorre a pergunta que, como se viu, era bastante alentada para os homens da época: como proceder se, em um regime democrático, a minoria tiver a razão e a maioria estiver errada?
Tão logo a minoria aumentará e será maioria, e o erro corrigirá a si mesmo através do exercício pacífico da liberdade de opinião (...). Nada, portanto, poderá justificar a insurreição, nem poderá ela tornar-se necessária se os direitos forem iguais e as opiniões, livres (FONER, 1945, p. 585).
A democracia fomenta a discussão e, por conseguinte, o esclarecimento, evitando que os conflitos de ideias se tornem confrontos físicos - ela tem, portanto, um potencial esclarecedor e pacifista, interiorizando as contendas e dando-lhes uma vazão não violenta.
Paine, nesse momento, afasta-se de outro democrata, de quem era próximo, Condorcet, também vítima dos jacobinos. Este, a propósito, passou a defender o voto universal (inclusive feminino) a partir de 1792, quando participou, junto a Paine, do “Comitê dos Nove”, encarregado de escrever a Constituição do Ano II - o Comitê, todavia, foi malogrado e deu lugar à Constituição montanhesa (VINCENT, 1989).
Dito isso, Condorcet pensava a instrução pública como pressuposto para a formação de cidadãos esclarecidos. Paine, embora defensor de uma educação universal, o fazia em outro modelo, previamente exposto em The Age of Reason: para ele, a instrução, predominantemente científica, deveria limitar-se a oferecer um small capital aos estudantes, os quais, por si só, deveriam desenvolver-se (FONER, 1945). Em Paine, em vez de uma educação que prepare para a democracia, é a própria prática da vida democrática que é instrutiva.
De qualquer forma, é clara a preocupação de Paine, à luz da experiência jacobina e em consonância com o pensamento político termidoriano, com a possibilidade de deterioração da democracia. E, como ele estava cônscio, tal aperfeiçoamento pelo debate não seria suficiente para conter seus possíveis excessos. Dessa forma, nas últimas páginas do panfleto, ele dedica-se aos pesos e contrapesos necessários para a vida política.
O pior tipo de governo, argumenta Paine, é aquele em que as deliberações e decisões estão sujeitas à paixão de um único indivíduo. Quando o legislativo se amontoa em um órgão, ele assemelha-se a esse indivíduo. Por isso, a representação deve-se dividir em dois órgãos eleitos, cuja separação se daria por sorteio. Tal separação de poderes não ocorria de fato na Inglaterra, pois a Câmara dos Lordes, ao carecer de representatividade, relaciona-se com o poder legislativo como “um membro do corpo humano como um cisto ulcerado” (FONER, 1945, p. 586).
Já o poder executivo e o poder judiciário exerceriam ambos uma função mecânica: “a primeira [o legislativo] corresponde a faculdades intelectuais da mente humana, que pondera e determina o que deve ser feito; a segunda [o executivo e o judiciário], aos poderes mecânicos do corpo humano que executam aquela determinação” (FONER, 1945, p. 586). Os magistrados, assim, são meros delegados, “e isso ocorre porque é impossível conceber a ideia de duas soberanias, a soberania da vontade e a soberania da ação” (FONER, 1945, p. 586). Não obstante, a defesa da separação de poderes permanece intacta a unicidade da soberania.
Da mesma forma, continua Paine, não se deve nunca depositar o poder por muito tempo nas mãos de alguém, pois “as supostas inconveniências que podem acompanhar as mudanças frequentes são menos temíveis que os perigos de uma continuidade prolongada” (FONER, 1945, p. 587).
São propriamente esses checks and balances que esvaneceram no período jacobino. Paine, então, distingue os métodos usados “para derrotar o despotismo” e os procedimentos “a serem empregados depois da derrota do despotismo”, que são os “meios para preservar a liberdade” (FONER, 1945, p. 587). No primeiro caso, predomina a necessidade, que pede a insurreição e a violência, uma vez que, em um regime despótico, estão vetados os meios legais para as mudanças. No segundo caso, predomina o respeito, o pacifismo e o debate, de forma que
tempo e a razão devem cooperar entre si para o estabelecimento de qualquer princípio; portanto, os primeiros convencidos [da importância dos direitos] não teriam o direito de perseguir os outros, em quem a convicção operaria mais lentamente. O princípio moral das revoluções é instruir, e não destruir (FONER, 1945, p. 587).
Portanto, o governo posterior a revolução não deve ser um governo revolucionário. Por governo revolucionário Paine entende - e este é o coração de sua interpretação sobre o jacobinismo - um regime que mantém o uso dos meios que foram necessários para derrubar o regime anterior:
Se uma Constituição tivesse sido estabelecida há dois anos, as violências que desde então assolam a França teriam, na minha opinião, sido prevenidas (...) Mas, em vez disso, um governo revolucionário, algo sem princípio nem autoridade, assumiu o lugar dela. (...) Na ausência de uma Constituição, em vez dos princípios governarem o partido, é o partido quem governa os princípios (FONER, 1945, p. 587-588).
A manutenção de métodos revolucionários após a revolução contraria a liberdade que deve se instituir e, paradoxalmente, justifica novas revoluções e dificulta o estabelecimento de uma sociedade democrática.
Em resumo, Paine alinha-se com a preocupação predominante dos deputados termidorianos, qual seja, a de “encerrar a Revolução”. No entanto, os termidorianos, ao retirarem o direito de voto da população, assemelham-se em despotismo aos jacobinos, e acabam por justificar novas rebeliões. De certa forma, embora Paine rejeite, como se viu, o conservadorismo britânico e a perspectiva antidemocrática termidoriana, ele não deixa de almejar uma espécie de status quo liberal-democrático que institucionalize as medidas e ideias revolucionárias, abolindo o governo revolucionário e não deixando outro caminho para a mudança se não os meios legais. Assim, ele encerra seu panfleto com uma das suas mais expressivas frases:
A avidez para castigar é sempre perigosa para a liberdade. Ela leva os homens a deturpar, interpretar ou aplicar mal até a melhor das leis. Aquele que assegura a sua própria liberdade deve proteger da opressão até mesmo o seu inimigo porque, se viola o seu dever, estabelece um precedente que terminará alcançando a ele próprio (FONER, 1945, p. 588).
Entretanto, cabe aqui uma nota: a democracia, em Paine, será incompleta se pensarmos apenas em sua dimensão política. Restam ainda sua dimensão religiosa e social. À época das Dissertation, Paine escreveu, em 1793, The Age of Reason (FONER, 1945), na qual apresentou as religiões reveladas como antidemocráticas, na medida em que reforçavam a autoridade das instituições, e excluíam da Verdade e da Salvação os analfabetos (pois não poderiam ler as Escrituras) e aqueles que não tiveram a oportunidade de ter contato com a religião verdadeira. Assim, o deísmo seria a religião verdadeiramente democrática, pois igualmente acessível a todos os seres humanos, independentemente de onde nasceram ou de seu grau de instrução. Nesse texto, Paine discorreu, ainda, sobre a importância das religiões protegerem os outros animais além do homem. Em 1797, ele lançou Agrarian Justice (FONER, 1945), no qual defendeu que a democracia só se realizará quando todos tiverem condições sociais mínimas de existência e oportunidades básicas asseguradas - daí a sua ideia de uma renda garantida pelo Estado a todos os cidadãos a partir de um fundo constituído com taxação universal das heranças (no valor de 10%)23, proposta de reforma que deveria funcionar como alternativa a Lei Agrária. Um tratamento dessas outras dimensões da democracia em Paine será feito em outra ocasião. É digno de nota, de qualquer forma, que Paine está longe de reduzir o ideal democrático ao voto ou a meros mecanismos político-institucionais.
Nesse ínterim, compete uma pergunta: o discurso de Paine, por se autodefinir como democrata, vai ao encontro, de algum modo, dos projetos robespierristas? São várias as convergências entre Paine e Robespierre: ambos convergem na crítica à Lei Agrária, na defesa de alguma forma de Imposto Progressivo, na rejeição do ateísmo e na defesa do deísmo, embora Robespierre adote a noção de um Culto ao Ser Supremo a partir de uma tutela estatal, o que é descartado pelo pensador inglês em The Age of Reason.
As divergências mais garridas entre Paine e Robespierre ocorrem, nesse sentido, no campo político. Cumpre observar que o grupo jacobino não teve um programa pronto e acabado, como por vezes se supõe (ademais, não existiam partidos políticos como entendemos hoje), mas uma ideologia sempre modificada nas circunstâncias revolucionárias e que só pode ser qualificada a partir de seus discursos e práticas. O mesmo ocorreu, a propósito, com o próprio Robespierre, que oscilou na defesa da democracia direta (1789-1792), do governo representativo (a partir do fim de 1792), da importância das assembleias primárias (mudanças de opinião se verificam em setembro de 1792) e da Constituição de 1791 (OZOUF e FURET, 1988, p. 320).
Nesse sentido, referimo-nos aqui ao Robespierre nos meses em que integrou o colegiado do Comitê de Salvação Pública. À primeira vista, Robespierre concordava com Paine, ao afirmar que o voto censitário criaria uma aristocracia nova, a “dos ricos” (ZIZEK, 2007, p. 53). Contudo, embora a Constituição jacobina tenha garantido o voto universal, ela não o colocou em prática, pois, como ele afirmou em fevereiro de 1794, é preciso “terminar a guerra da liberdade contra a tirania” (ZIZEK, 2007, p. 144). Para entender tais medidas, disse Robespierre, bastaria “consultar as circunstâncias” (ZIZEK, 2007, p. 146), tese reproduzida tanto pelos jacobinos quanto por parte da historiografia nos séculos XIX e XX.
Robespierre, então, acusava de traidores aqueles que se diziam moderados (visto por ele, na verdade, como “moderantistas”), pois desejavam uma revolução “subordinada a normas preexistentes” (ZIZEK, 2007, p. 12). Da mesma forma, embora Robespierre se posicionasse filosoficamente contra a pena de morte, enfatizou que um “governo revolucionário” exigiria medidas extremas: “o governo deve aos bons cidadãos toda a proteção nacional; aos inimigos do povo não deve outra coisa senão a morte” (ROBESPIERRE, 1999, p. 130).
Portanto, a oposição à ideia de um “governo revolucionário”, como se viu na análise de Dissertation, é o pomo da discórdia entre Paine e Robespierre - a tensão “necessidade/liberdade”, capaz de realizar a inversão da democracia em despotismo, é rejeitada pelo pensador inglês (FAUSTO, 2008). Tanto para Paine, quanto para a historiografia crítica de Robespierre, o Terror seria menos uma consequência necessária do que uma negação da democracia republicana.
Cumpre observar que, ao mesmo tempo que Paine afasta-se da “tese das circunstâncias” (geralmente associado a uma historiografia marxista ou jacobina), também não compactua com a noção, defendida por certo campo “liberal” da historiografia, de que o Terror seria uma conclusão lógica da Revolução (FURET e OZOUF, 1988) ou de que a violência contra os não cidadãos foi “a mola propulsora” do processo revolucionário (SCHAMA, 1989, p. 689). O lugar da Dissertation nas primeiras interpretações do jacobinismo, portanto, reside na leitura do Terror como um desvio da Revolução e uma reminiscência do próprio despotismo do Antigo Regime (espero que, assim, fique demonstrado que o texto de Paine, ao contrário do que apontou Clarck, tem algo a nos dizer sobre a Revolução Francesa).
Nesse sentido, o moderantismo e as “normas preexistentes” a que se refere Robespierre tocam, exatamente, no que pode ser lido, a partir de determinado ponto de vista, como o caráter liberal do pensamento de Paine, elemento chave que separa os posicionamentos dos dois protagonistas.
Os primeiros usos da palavra liberal em referência às ideias corporificadas nas revoluções de 1776-1848 - e não mais em relação a uma educação específica ou a uma vaga ideia de amistosidade (SIMPSON, WEINER e PROFFITT, 1989) - datam da Espanha no início do século XIX. No contexto da constituição gaditana, os liberales chamavam de serviles àqueles que eram contrários ao governo representativo e à Constituição.24 Por exemplo, a revista El Español, em 1811, Blanco White chamou os constitucionalistas de liberais em referência ao impacto da Revolução Francesa na Europa25. Em carta a Jovellanos, de 1809, o general francês Sebastiani refere-se a “vuestras ideias liberales” para referir-se às ideias de tolerância e igualdade que deveriam fazer os espanhóis aliarem-se a Napoleão em detrimento da monarquia hispânica (JOVELLANOS, 1963p. 590-591). Em 1813, no Diario Militar, Politico y Mercantil de Tarragona, tem-se o primeiro uso conhecido da palavra liberalismo: “se o liberalismo é (...) descatolicizar um povo, detesto ser liberal” (LLORÉNS, 1958, p. 58). Em 1816, o Oxford English Dictionary ainda mantinha a grafia espanhola - “British liberales” (BEYME, 1985, p. 31-32) - substituída pela inglesa apenas na década de 182026.
Dito isso, é preciso notar que, no campo das ideias políticas, o surgimento de uma denominação específica pode ser compreendido não exatamente como um ato de fundação, mas como um ganho de consciência (que não deixa de ser, também, uma forma de produção de novos significados e possibilidades de pensamento) a respeito de uma situação que já possui algum grau de cristalização; no caso do liberalismo, tal processo cristalização nas décadas anteriores a 1820 é bem documentada, como mostram estudos recentes27. Entretanto, é igualmente verdadeiro que, na ausência de tal denominação, corre-se o risco de ver, naquilo que foi disposto anteriormente, um grau de coerência que poderia não existir 28.
Nesse sentido - e tendo em vista a enorme variedade de liberalismos na história29 - ao invés de pensar o liberalismo como uma doutrina, parece mais adequado enxergá-lo como um campo, ou seja, um enorme espaço de pensamentos com algum grau identificável de parentesco30 dentro do qual há lugar para criação e proposição das mais variadas posições. Como espaço de pensamentos, o liberalismo possui limites, o que nos definir a existência objetiva desse campo e, ao mesmo tempo, nos afastar de posições demasiado essencialistas, dogmáticas ou normativas.
Partindo dessas premissas, sustentamos a possibilidade de convencionarmos a existência uma linguagem liberal clássica na segunda metade do século XVIII, anterior ao próprio surgimento do termo liberalismo, mas que possuiria graus de parentesco com as ideias do XIX. Os elementos e limites dessa linguagem seriam, a saber, defesa dos direitos naturais, o contratualismo, a oposição contra privilégios tradicionais e monopólios das corporações, a ideia de um estado de natureza e a defesa de pesos e contrapesos contra os excessos do Estado31 e da sociedade.
É importante notar, contudo, que tais elementos estão frequentemente dispersos (afinal, será apenas o surgimento da palavra “liberalismo” que tentará criar alguma unidade e coerência) e não aparecem de forma inconteste em um único autor. Da mesma maneira, eles são sensíveis a outros discursos, especialmente o republicano32.
Dito isso, em que medida é plausível dizer que o liberalismo clássico é democrático? Em outras palavras, como os autores da época lidavam com a problemática de a um só tempo limitar o poder e distribuí-lo?
A palavra “democracia”, no século XVIII, raramente foi utilizada em um sentido favorável33. Marquis d’Argenson (1694-1757)34, em Considérations sur le gouvernement de la France (1764), é um dos primeiros a utilizá-la como referente a igualdade política e de direitos (favorecida, portanto, pela monarquia), e não como autogoverno. Contudo, os termos Démocrat e Aristocrate não aparecem na França e na América antes das revoluções - seus primeiros usos datam da Revolução Holandesa (1784-1787) e Belga (1789-1791).
Ao longo da Era das Revoluções, o termo ganha maior circulação, sendo associado a igualdade de direitos, governo popular ou primazia das assembleias locais. Barnave, por exemplo, aludia a uma “era das revoluções democráticas” para caracterizar o período que vivia. Os usos, assim, indicam uma transformação fundamental: além de uma forma de governo (democracia), é possível a notar empregos que indicam também agência (democrata), adjetivações (democrático) e ações (democratizar). Democracia, assim, significava tanto uma forma de governo quanto uma prática em direção a maior igualdade (DUNN, 2005) 35.
Com efeito, os três usos da palavra democracia mais frequentes e favoráveis no período devem-se a Robespierre (o que, a propósito, será um dos principais argumentos para que a palavra tenha um sentido negativo nas décadas seguintes), ao bispo de Ímola e futuro papa Pio VII e, claro, a Thomas Paine. A primeira vez que Paine o faz explicitamente foi, como se viu, na segunda metade de Rights of Man, referiu-se a “democracia” como uma “forma, assim como um princípio público de governo” (FONER, 1945, p. 433) e defendeu a representação como meio de sua efetivação.
De qualquer forma, na passagem do século XVIII para o XIX, o campo que convencionamos chamar de liberalismo clássico e a linguagem democrática, no mundo europeu e norte-americano, estavam desencontrados. A posição dominante excluía do voto empregados, assalariados e mendigos, além de mulheres e crianças, uma vez que estes supostamente dependiam da vontade dos outros. A propriedade era entendida por muitos como o meio de ligação entre o interesse próprio e o interesse da sociedade, o que garantia o acesso ao poder político (ROTHSCHILD, 2003). Ainda no século XVII, Locke, autor bastante influente para essa geração, acreditava que os não proprietários estariam destituídos de “pleno interesse” no benefício da sociedade e, por isso, deveriam ser excluídos do voto (MACPHERSON, 1979). Jefferson, embora faça uma interessante reflexão crítica sobre as terras e sobre a herança, enxergava que a condição para a existência da democracia era uma sociedade em que todos fossem economicamente independentes; como os federalistas Jay, Madison e Hamilton, ele vinculava voto e propriedade (ARENDT, 1988). Burke entendia que a sociedade não poderia ser regida por um “princípio abstrato” (BURKE, 2014, p. 36) como o voto popular. Madame de Stäel, que investiu contra a Dissertation e acusou Paine de “demagogo” (LOUSSINI, 2016, p. 267), defendeu um sufrágio mais limitado que aquele da Constituição de 1795 (STAËL, 2009). Constant argumentava que “só a propriedade confere aos homens capacidade de exercício dos direitos democráticos” (CONSTANT, 1997, p. 113). No mundo germânico, Kant pensava que empregados e mulheres, por dependerem “dos comandos dos outros carecem de personalidade civil” (BOBBIO, 1992, p. 141). Após a Revolução Francesa, os chamados liberais doutrinários preocupados com a “tirania da maioria”, argumentarão, como Tocqueville mais tarde, a necessidade de diques firmes para o rio democrático36.
Macpherson sustentou que os utilitaristas Bentham e o pai de Stuart Mill, James Mill, seriam os primeiros liberais democratas. Contudo, Bentham, em 1817, dizia que determinadas “exclusões deviam ser feitas, pelo menos por certo tempo e para fins de uma experiência paulatina” (MACPHERSON, 1978, p. 40). James Mill, por sua vez, argumentava que seria prudente excluir do voto as mulheres, os homens menores de 40 anos e os mais pobres (MACPHERSON, 1978). Stuart Mill, defensor do voto feminino no Parlamento, excluiu do sufrágio aqueles que não pagam impostos, que vivem de esmolas e defendia que os mais esclarecidos teriam direito ao voto plural (MILL, 1981).
Mais recentemente, em sua síntese sobra a história do liberalismo, Freeden reafirma que, até o século XIX, liberalismo e democracia estavam desencontrados por dois motivos correlacionados: o medo da “tirania da maioria” e a “ignorância do povo” (temas que, como se viu, foram enfrentados pelo nosso autor). Como Macpherson, Freeden - que não menciona Paine - pensa o encontro entre o liberalismo e a democracia como produto, sobretudo, do século XIX, de maneira que seu destaque recai sobre Mill, Hobson e Hobhouse (2015, p. 61-62).
Pode-se ainda citar outros três manuais recentes sobre a história do liberalismo. O texto de Fawcett (2018), em primeiro lugar, não faz referências a obra de Paine, ao passo que o de Traub (2019) refere-se brevemente a Paine como alguém que “endossou a violência revolucionária da multidão” (p. 18). Após essa caracterização, Traub credita a Madison um “entendimento mais próximo ao nosso sobre o liberalismo” por pensar a solução para a tirania da maioria “dentro, e não fora, da democracia” (p. 23). Mas a democracia em Madison, como se viu, era, no sentido social e político, menos inclusiva que a de Paine. Em O Federalista (n. 10, de 1787), o virginiano, na contramão de Paine, esforçou-se por dissociar república e democracia: as “democracias têm sido sempre palco de distúrbios e controvérsias, têm-se revelado incapazes de garantir a segurança pessoal ou os direitos de propriedade e, em geral, têm sido tão breves em suas vidas quanto violentas em suas mortes” (APUD FLORENZANO, 2015, p. 10). Por fim, o livro de Rosenblatt refere-se a Paine no capítulo em que discute as relações entre liberalismo e Revolução Francesa. A autora, nesse ínterim, faz uma observação, a nosso ver, correta sobre Paine, argumentando que, para ele, “o problema não era se um indivíduo ou um grupo eram liberais, mas se os princípios fundamentais de uma nação o eram” (2020, p. 47). Tal observação fundamenta-se na distinção que entre “pessoas” e “princípios” feita nos Rights of Man, em debate contra Edmund Burke. Contudo, essa é a única referência a Paine presente no livro.
Dessa forma, é possível afirmar que Thomas Paine foi um dos primeiros a expor a fórmula do liberalismo democrático, defendendo uma noção específica de igualdade e um sufrágio mais amplo do que era comum no período, sem, contudo, deixar de lado a chave dos direitos naturais, do contratualismo, do livre comércio e dos pesos e contrapesos - tal combinação, como se viu, só pode ser compreendida à luz da história da Revolução Francesa e o afasta de muitas das posições que eram dominantes entre os federalistas e antifederalistas norte-americanos, os termidorianos e os jacobinos. E a Dissertation, como tentou se provar, foi fundamental nesse aspecto, embora frequentemente seja deixada de lado pelos historiadores. Em Paine, o remédio para os males da democracia e para a proteção das liberdades individuais não reside no sufrágio limitado ou na repressão, mas no refinamento da democracia, entendida como limite ao autoritarismo e maior participação política, aliada a um maior esclarecimento da população. A maneira de evitar a tirania da maioria não é a restrição do voto, mas a incorporação dos menores e das gerações futuras na noção de povo, alargando, assim, a noção de soberania popular. A riqueza dessas discussões nas quais o pensamento de Paine está inserido, por fim, não deixa de ser sintomática em relação ao grande laboratório de experiências e ideias políticas que constituiu a Era das Revoluções.
Strauss (1967) foi o primeiro conceituar o Iluminismo Radical, associado a uma retomada de Espinosa37. May (1976) e Meyer (1976), por sua vez, deram prosseguimento ao conceito, hoje utilizado por diversos historiadores, principalmente, Israel (2009). Este último advoga pela noção de dois Iluminismos: um Iluminismo Moderado e um Iluminismo Radical, o qual seria transatlântico, tributário de uma apropriação específica do pensamento monista de Espinosa38, que teria ganhado força (sem tornar-se hegemônico) no final do século XVIII e no início do XIX, em estreita conexão com a Era Revolucionária na América do Norte, na França, na Grã-Bretanha, na Alemanha, na Escandinávia e na América Latina.
Os radicais, em fins do século XVIII, teriam tratado de temas como a democracia, a problemática da igualdade racial, a separação entre Igreja e Estado, o deísmo, a crítica aos impérios coloniais e a erradicação da autoridade religiosa no processo legislativo - é o que Israel chamou de “pacote de conceitos e valores básicos”, para ele ancorado em uma cosmovisão imanentista (ISRAEL, 2006, p. 11). São temas, claro, que aparecem dispersos nas produções dos autores, e não necessariamente cada pensador discute ou defende todas essas questões. De qualquer forma, é por isso que Israel considera Paine (o qual passa por todas as questões acima) um dos principais radicais de língua inglesa no período, o que é corroborado pelo fato de que ele circulava e era admirado, na Grã-Bretanha, por Price, Priestley, Jebb, Macaulay, Godwin e Wollstonecraft, e, na América do Norte, por Rush, Barlow, Palmer, Freneau, Coram e Murray (ISRAEL, 2013).
A obra de Israel contribuiu para pensarmos o Iluminismo para além de supostas fronteiras nacionais (o que é particularmente relevante para pensarmos a obra de Paine) e para dar relevância a uma linguagem oitocentista que não se confunde com o pensamento de Voltaire ou de Rousseau (ISRAEL, 2009). Mas é nesse ponto também que reside uma das fragilidades de seu argumento: dado que a palavra radical era “inexistente no período” (LILTI, 2019, p. 152), não parece útil ou razoável excluir a alcunha de radical de Rousseau, Mably, Robespierre e Babeuf e atribuí-la, como faz Israel, apenas a Condorcet, Brissot ou Paine (dando a esses autores, aliás, uma coerência que é contestável). A confusa solução dada por Israel ao dizer que Rousseau “mistura elementos tanto da corrente principal do Iluminismo quanto do Iluminismo Radical” (2009, p. 790) 39, nos parece uma hipostasiação dos próprios conceitos, o que revela um impasse teórico. Se levarmos em conta, além do mais, a própria trajetória da palavra “radical” no século XIX até a formulação clássica de Marx (2010), veríamos que nada seria mais estranho a eles do que o pensamento de Brissot. O próprio Robespierre, como se viu, enxergava Paine como pior do que um moderado, um “moderantista”.
Sem embargo, embora Israel rejeite o termo liberalismo para o século XVIII40, a linguagem do liberalismo clássico é aqui entendida como um dos elementos que separam Paine e Brissot de Robespierre ou Babeuf, dado que esses dois últimos, de uma forma ou de outra, transcendem o que definimos como os limites do campo liberal.
Recentemente, Rosenfeld (2011) deu relevo a outro componente fundamental para a formulação do pensamento democrático moderno: a filosofia do Senso Comum41. A ideia de um bom senso inerente ao homem comum permitia valorizar as pessoas simples como portadores de verdades auto evidentes e, assim, justificar noções democráticas. Para ela, Benjamin Rush foi, ao lado de Paine, pioneiro no uso dessa filosofia como chave interpretativa dos eventos norte-americanos. Vale lembrar que foi Rush - ele próprio, a propósito, ex-aluno da Universidade de Edimburgo - quem convenceu Paine a mudar o nome de seu mais famoso texto de Plain Truth para Common Sense, remetendo à filosofia escocesa e ao Bons Sens francês (ROSENFELD, 2017). Desse modo, dois componentes ideológicos fundamentais da Era das Revoluções - a noção de que os direitos do homem são autoevidentes e de que o povo é o portador tais direitos (BAYLY, 2004) - poderiam ser unidos pela ideia do Senso Comum.
Importante lembrar como Rush e Paine foram abolicionistas. Rush foi confundador e presidente da Pennsylvania Society for Promoting the Abolition of Slavery and the Relief of Free Negroes Unlawfully Held in Bondage, criada em 1774. No caso de Paine, pode-se destacar o texto African Slavery in America, no qual ele denuncia a contradição de existirem pessoas a um só tempo cristãs e escravocratas (FONER, 1945). O uso pioneiro, na América do Norte, da linguagem do senso comum tendo propósitos democráticos reforçam a importância de Paine na construção do ideal democrático moderno.
Contudo Paine, como Rush, afastou-se da filosofia do senso comum ao longo de sua vida, o que foi favorecido pelos próprios conflitos do processo revolucionário. O crescente papel da educação universal e dos freios e contrapesos nas sociedades democráticas, reforçado pelos dois pensadores no final da vida, é indício desse afastamento. Desse modo, em que pese a importância dos textos de Rosenfeld, é preciso relativizá-la: o papel da filosofia do Senso Comum - determinante no período norte-americano de Paine - não nos parece determinante na Dissertation, cujas ênfases nos mostram uma linguagem cada vez mais cética em relação ao poder.
Dissertation, portanto, é a um só tempo um texto seminal na compreensão das mudanças que ocorrem no pensamento de Paine ao longo da Revolução Francesa e esclarecedor no que diz respeito aos problemas e debates que estão postos no período termidoriano, e que se tornarão fundamentais na primeira metade do século XIX. Não se justifica, por conseguinte, a pouca atenção que o texto recebeu por parte dos estudiosos do autor.
O texto expressa, assim, duas facetas pouco conhecidas de Paine: por um lado, sua preocupação com os excessos do poder central e as possibilidades da ditadura da maioria, ao contrário do que foi enfatizado na maioria de seus textos anteriores; por outro, uma posição abertamente democrática a qual, embora subjacente a textos como Rights of Man, assume sua forma mais expressiva nesse panfleto - a um só tempo, portanto, um Paine mais democrático e, também, preocupado com os possíveis excessos de tal democracia, uma imagem bastante distinta, por conseguinte, do Paine de Common Sense, partidário do unicameralismo e hesitante quanto ao voto universal. A formulação da propriedade sem dúvida como um direito, mas como um direito menos importante que a vida ou a liberdade, está no coração de sua insubordinação contra as desigualdades. Tais mudanças, como tentou se provar, estão fortemente ligadas ao próprio fenômeno do jacobinismo e às práticas do governo termidoriano, o que revela a relevância dos estudos a respeito de Paine para a compreensão do período.
Não obstante, é claro que Paine não deixa de ter suas próprias contradições. No que é, para uns, uma incoerência ideológica e, para outros, um verdadeiro realismo político (dado que os inimigos não atuavam dentro das regras do jogo democrático e dispunham de conexões internacionais), ele apoiou o chamado golpe de Estado do 18 Frutidor do ano IV, 4 de setembro de 1797, quando o Diretório anulou as eleições de março que haviam dado maioria aos realistas. O golpe do Frutidor reforçou um caminho autoritário que culminou no Golpe do 18 Brumário, em 1799. Embora tenha rejeitado o “princípio das circunstâncias” e “a lógica da Salvação Pública” de Robespierre, Paine não deixou, portanto, de utilizar o mesmo expediente. De qualquer forma, Paine nunca negou a necessidade da violência revolucionária, como expresso em seu conhecido rompimento com os quakers em 1776 - ocorre apenas que, no período jacobino, ele não enxergou tal necessidade. O autor também incentivou o Diretório a invadir a Grã-Bretanha e, junto a Bonaparte, elaborou um plano detalhado para a entrada das tropas francesas na ilha e lançou a ideia de uma vasta subscrição popular destinada a financiar a operação (CARVALHO, 2017).
Mas a obra Dissertation, além disso, ocupa um lugar fundamental na história do pensamento liberal, como tentou se provar. Acredito que, hoje, o campo liberal enfrenta três desafios primordiais, a saber: como evitar que a desigualdade, em suas formas mais agudas, seja prejudicial à vida e à liberdade sem que, para tanto, se recorra à soluções autoritárias? Como garantir que o pretenso universalismo da liberdade e dos direitos humanos conviva como a diversidade contraditória de pensamentos, crenças e formas de existência (remeto aqui ao “fato de pluralismo” (RAWLS, 1996, p. 36-37))? Como, sem apelar a alguma forma de elitismo dirigista, impedir que os homens, por sua própria disposição, abdiquem da democracia em prol de regimes ditatoriais? As discussões sobre essas questões - as quais, acredito, devem passar pela renúncia a um individualismo hipertrofiado - podem ser enriquecidas se consideradas as perspectivas de Thomas Paine.
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