Resumo: Este artigo discute a falsificação de dinheiro pelo viés da história pessoal de um de seus grandes ícones no século XIX: o fotógrafo Victor Telles. Para tanto, propõe-se um estudo da trajetória do português naturalizado brasileiro e seu envolvimento em acusações de falsificação de dinheiro no Brasil e em Portugal no final do século XIX. Propõe-se compreender a implicação de Victor Telles na falsificação de papel-moeda, tendo em vista a cultura visual vigente e as práticas fotográficas do período.
Palavras-chave: FotografiaFotografia,cultura visualcultura visual,Victor TellesVictor Telles,falsificação de dinheirofalsificação de dinheiro,moedeiro falsomoedeiro falso.
Abstract: This article discusses money forgery by addressing the personal trajectory of one of its main icons in the nineteenth century: the photographer Victor Telles. To do so, I begin by outlining an analysis of the photographer’s personal trajectory, who was born Portuguese and naturalized Brazilian, and his involvement in several charges of forgery both in Brazil and Portugal at the end of the nineteenth century. I aim to understand the implications of Victor Telles in the forgery crime, focusing on the prevailing visual culture at that time, as well as the photographic practices in the same context.
Keywords: Photography, visual culture, Victor Telles, money forgery, illegal money producer.
ARTIGO
CULTURA VISUAL E FALSIFICAÇÃO DE DINHEIRO: A TRAJETÓRIA DO FOTÓGRAFO VICTOR TELLES - 1861-1906*
VISUAL CULTURE AND MONEY FORGERY: THE TRAJECTORY OF THE PHOTOGRAPHER VICTOR TELLES - 1861-1906
Recepção: 14 Agosto 2018
Aprovação: 03 Abril 2019
No século XIX a falsificação de dinheiro foi definida como crime de moeda falsa e abrangia tanto a moeda metálica como a de papel.1 Tal como hoje, era preciso uma legislação que inibisse as falsificações e punisse os falsificadores, divulgando ainda as falsificações existentes no mercado.2 No entanto a falsificação ocupa, no contexto do século XIX, um lugar distinto no imaginário social. A leitura dos jornais da segunda metade desse século revela que a expressão moeda falsa é usada para caracterizar falsidades, enganos e traições. A expressão aparece em debates de caráter político, em críticas literárias, em folhetins, em anedotas, em pequenas histórias, em frases exemplares. Nesse contexto, o moedeiro falso era um personagem que mobilizava as atenções sociais, tendo sido, por exemplo, objeto de interesse em romances, alguns deles publicados em folhetins do período.
Dentre os diversos sujeitos implicados na falsificação de dinheiro naquela época, os mais interessantes são aqueles envolvidos com a produção de imagens: litógrafos, pintores (muitas vezes tratados como retratistas) e fotógrafos. Acredito que o trato com a produção de imagens facilitou a execução das falsificações. De modo especial, interessa-me discutir, neste artigo o envolvimento de fotógrafos com o crime. O caso do fotógrafo Victor Telles permite debater alguns aspectos do problema, em especial, situá-lo na cultura visual do período. Para tanto, será apresentada sua trajetória, procurando relacionar suas experiências individuais com o contexto histórico no qual viveu, contribuindo assim com um viés pouco explorado nos estudos sobre a história da fotografia.
É necessário destacar que o envolvimento de fotógrafos, pintores, litógrafos e gravadores com o crime de moeda falsa é assunto pouco pesquisado. Todavia, as pesquisas de dois autores são fundamentais para a discussão do assunto: Francisco Ferreira Júnior (2013) estuda o envolvimento do pintor português José Maria Cândido Ribeiro com falsificação de dinheiro nas décadas de 1840 a 1860, destacando, principalmente, o funcionamento da justiça no período e seu entrelaçamento com as questões políticas. Já Diego Galeano (2017) discute o caso do fotógrafo francês Georges Raimbault e suas reincidentes falsificações de dinheiro no Brasil, Uruguai e Argentina, entre 1899 e 1933. Em minhas pesquisas, além de Victor Telles encontrei outros fotógrafos envolvidos com o crime, bem como menções ao uso da fotografia como método para reprodução de cédulas. No entanto, essas ocorrências serão tratadas em outras oportunidades.
O envolvimento de Victor Telles com o crime de moeda falsa pode ser acompanhado pelas notícias publicadas nos jornais do Brasil e de Portugal entre os anos de 1877 e 1890, e em três processos crime: um corrido em São Paulo, entre 1877 e 1878; outro no Rio de Janeiro, entre 1881 e 1883; e outro desenrolado em Coimbra, Portugal, entre 1886 e 1890. As acusações de falsificação de dinheiro contra Telles abrem caminho para explorar usos e apropriações das técnicas fotográficas disponíveis na época, principalmente no que tange às novas formas de reprodução de imagens, possibilitando problematizações em torno da cultura visual do período.
Interessa-me abordar aspectos da vida de Victor Telles (mas sem realizar uma biografia), em consonância com algumas proposições de Bourdieu (2000) e Levi (2000). Tomamos de Bourdieu (Op. cit., p. 189) a noção de trajetória: “série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes transformações”. Isso evita a ideia de biografia como uma sucessão de acontecimentos coerentes e previsíveis comuns nas “histórias de vida”. Já Levi, conforme destaca Ferreira Júnior (2017, p. 17), “não ignora a importância do contexto e das estruturas sociais, que atuam na orientação dos sujeitos em forma de habitus e campos” (grifos do autor), como propõe Bourdieu, “mas também propõe levar em consideração as descontinuidades do eu biográfico através das incertezas, da racionalidade limitada e da incoerência interna dos sistemas normativos”. Ou seja, neste caso, acompanhar alguns aspectos da vida de Victor Telles consiste numa aproximação das sociedades nas quais ele viveu, todavia, por meio do rompimento que ele promove com as expectativas sociais que o acompanharam. Por um lado, ele era descendente de um revolucionário português que lutou contra D. Miguel em Portugal no final da década de 1820, apesar de não haver registros de atuação política em sua trajetória; por outro, era um imigrante que, em vez de ganhar posição de destaque na nova terra, ganha fama de criminoso, de moedeiro falso. Sem fazer um trabalho estrito de micro-história, adota-se aqui um de seus principais procedimentos: a redução de escala de observação (REVEL, 2010), de modo a tratar de alguns problemas sociais e culturais que a trajetória de Victor Telles explicita, tendo por fio condutor seu nome próprio (GINZBURG; PONI, 1989).
Antes de encerrar esta seção, gostaria de acrescentar mais duas discussões em torno da minha abordagem do crime de moeda falsa. A primeira se refere à noção de cultura visual. Paulo Knauss (2006), diante da variedade de enfoques teóricos propostos sobre a cultura visual, sugere a existência de dois modos de compreendê-la: um abrangente (William John Thomas Mitchell, Martin Jay, Margaret Dikovitskaya) e outro restrito (Chris Jenks, Nicholas Mirzoeff). Em consonância com a forma abrangente de pensar a cultura visual, compreendo-a como o conjunto da produção e circulação de imagens em determinada época. Como afirma Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses (2013), está em questão reconhecer uma dimensão da cultura associada à visualidade, que engloba o visual, o visível e a visão. Em consonância com William J. T. Mitchell (2002), a cultura visual é tomada aqui como construção visual do social e é pensada como maneira de estudar, como enfatiza Knauss (2006, p. 110), “diferentes experiências visuais ao longo da história em diversos tempos e sociedades”.
A segunda questão busca construir um enquadramento contextual para a prática da falsificação de dinheiro, compreendida também a partir das perspectivas apontadas por Miles Orvell (1989), que identifica na sociedade americana do século XIX a existência de uma cultura da imitação ou cultura de replicação. Nos termos do autor, a fotografia era parte integrante de uma cultura de classe média que passou a aceitar replicações de todo tipo, como o mobiliário das casas, as reproduções de obra de arte etc. Destacam Vânia Carvalho e Solange Ferraz de Lima (2012, p. 59) que “Havia, no século XIX, uma estreita relação entre consumo, conforto, artificialismo e ilusão, e a fotografia era parte integrante desse complexo”. Para Orvell, a imitação tornou-se uma categoria central, na qual o artifício e a natureza são partes de uma estética geral. No caso em tela - a falsificação de dinheiro -, a fotografia foi um dos meios para promover a replicação, manipulando suas características técnicas em torno da similaridade com o objeto retratado. No entanto, essa imitação, se por um lado corresponde a um movimento cultural de uma sociedade na qual o consumo está em grande expansão e, portanto, assimila as réplicas, por outro, estabelece um ponto de tensão nessa cultura na medida em que os moedeiros falsos chamam para si uma prerrogativa do Estado. Mas, de qualquer modo, é no âmbito da cultura da imitação que eles estão inseridos.
Antes de passarmos à análise do caso de Victor Telles, é importante tecer considerações gerais sobre o domínio das técnicas fotográficas e seu emprego na falsificação de cédulas.
É necessário ressaltar que a apreensão de dinheiro falso com os suspeitos dá aos processos mais chance de punições. O inverso também acontece: em muitos casos levantados no período, as cédulas falsas são encontradas, mas não os responsáveis pelo crime. Isto pode ser afirmado a partir da ampla pesquisa realizada nos jornais da Hemeroteca Digital Brasileira (HDB).3 A pesquisa compreendeu uma leitura de dois jornais de cada década, entre 1840 e 1900. A partir das expressões de busca “moeda falsa”, “notas falsas” e “cédulas falsas” foram levantadas matérias jornalísticas de diferentes gêneros que tratam do assunto da falsificação de dinheiro. Ao longo do período em estudo, a Caixa de Amortização4 emitia exames de notas falsas apreendidas em casos investigados pela polícia. Tais exames são divulgados na imprensa como forma de dar publicidade às características das cédulas falsas. De modo geral, os exames avaliavam as cédulas falsas em comparação com as verdadeiras, verificando itens como a qualidade do papel, as características dos desenhos, a qualidade das cores exibidas e a adequação das assinaturas.
Por exemplo, na análise de 24 cédulas de 20$000 réis, 6ª estampa, 4ª série, encontradas na investigação que sofreu José Pedro de Oliveira Ferreira em 1877, na Corte, evidenciou-se que as verdadeiras eram impressas “em papel de linho bastante consistente, ao passo que as falsas examinadas o são em papel de algodão e com muito pouco corpo”5. Esse aspecto está evidenciado nas figuras 1 e 2, nas quais vemos um exemplar de nota falsa de 20$000 réis da mesma estampa aludida no processo. Ainda que o exame não tenha sido feito a partir das cédulas encontradas com o investigado, o exemplar serve para demonstrar um dos principais procedimentos adotados ao se identificar a falsificação: atestar a falsidade por meio de assinatura no verso ou anverso das cédulas.
No entanto, esse exemplo também serve para questionar o envolvimento de fotógrafos, pintores, litógrafos e gravadores na falsificação de dinheiro. De modo bem genérico, os pintores (retratistas) dominavam técnicas de desenho, pintura e retoque; litógrafos dominavam as técnicas da impressão da gravura em pedra. Tais conhecimentos os habilitavam a trabalhar no ramo de confecção e impressão de gravuras, assim como a, em princípio, produzir uma cédula falsa, como a do exemplo das figuras 1 e 2. Mas, onde entra o fotógrafo nessa história? Seguindo o mesmo raciocínio, podemos conjeturar que o envolvimento efetivo de alguns fotógrafos com a falsificação de dinheiro pode ter sido viabilizado pelo conjunto de conhecimentos que eles tinham que dominar para exercer seu ofício.
Mas existe outro aspecto a ser considerado com relação ao conhecimento visual das notas verdadeiras. Para tanto, vamos nos valer de uma situação ocorrida em Portugal, que passou por uma reforma monetária em 1891 devido a uma crise econômica de grande envergadura. Um dos resultados dessa crise foi a alteração do padrão monetário do país. Até então, prevaleciam as moedas metálicas de ouro e prata como padrão monetário. No entanto, isso foi modificado, passando a ter curso legal e obrigatório a moeda fiduciária, ou seja, o papel-moeda. Assim, nesse contexto de mudanças dos primeiros anos da reforma - isto é, de 1891 a 1894 -, houve registro de várias falsificações de papel-moeda. Entre esses casos, identificou-se três que envolviam a fotografia e fotógrafos. De um deles, pudemos obter um exemplar das cédulas falsas. Trata-se de um papel fotográfico que foi utilizado para reproduzir uma cédula de 1$000 réis (figuras 3, 4, 5 e 6).
A cédula falsa foi confeccionada em papel fotográfico, comprovado pelo brilho da superfície e sua gramatura. Para obter uma cédula com duas faces, tudo leva a crer que dois papéis fotográficos foram colados, sendo cada um dos lados emulsionado para receber a respectiva reprodução da cédula verdadeira. É provável ainda que esse conjunto tenha sido prensado para ganhar melhor aderência de uma face à outra. O corte bem feito nas bordas garantiu a semelhança com o original. Outra possibilidade é que o papel fotográfico tenha sido emulsionado em ambos os lados. Na comparação entre as reproduções, verifica-se que a cédula falsa apresenta deficiências em relação à verdadeira. A principal delas diz respeito às cores utilizadas: na falsa, elas estão esmaecidas; na verdadeira, estão bem definidas. Nesta, apesar de prevalecerem os tons ocres, as diferentes tonalidades são identificadas; na falsa, há certa homogeneidade de cores, principalmente no verso, dificultando a leitura do brasão. Quando as cédulas foram apreendidas pela polícia, os jornais chegaram a destacar a grosseria da falsificação, espantando-se como era possível tomá-las por verdadeiras. No entanto, é necessário lembrar que havia pouco tempo que as cédulas passaram a ter mais circulação. Eram praticamente uma novidade e, portanto, as pessoas não as conheciam suficientemente, o que facilitou a ação dos falsificadores.
Partindo desse exemplo pode-se demonstrar uma das possibilidades de uso da fotografia no período, cientes de que o mesmo método usado em Portugal não necessariamente teve sucesso no Brasil. Para ter sucesso com as falsificações, um dos pontos cruciais era dominar alguns procedimentos necessários para a produção e reprodução de imagens. No que tange ao trabalho fotográfico propriamente dito, havia a necessidade de dominar a exposição da chapa no salão de poses, bem como fazer a cópia fotográfica e seus respectivos retoques e coloração. Acrescenta-se ainda o domínio da manipulação de agentes químicos para a sensibilização de chapas e papéis e também daqueles necessários à revelação dos clichês. Mesmo que um fotógrafo não realizasse pessoalmente todas as etapas da produção de uma fotografia, teria, com certeza, que saber os fundamentos dos seus procedimentos. Alguns fotógrafos, como foi o caso de Victor Telles, aliaram o trabalho fotográfico com o trabalho na imprensa. Nesse caso específico havia também a necessidade de domínio de técnicas para a realização de matrizes para impressão e a impressão propriamente dita. A impressão de gravuras por meios fotográficos foi assunto de tratados e manuais de fotografia ao longo do século XIX, como os de Monckhoven6, Liébert7 e Bentes8, que abordam a confecção de gravuras por métodos como fotogravura, fototipia e fotolitografia.
Com a invenção constante de sistemas fotográficos, os métodos de impressão operam, por assim dizer, na lógica da cultura da replicação. Como afirma Orvell (1989, p. 2164, tradução nossa), a história da fotografia pode ser pensada a partir das diversas iniciativas para superar as limitações do meio e assim reforçar o poder da representação. Ao dominar variados conhecimentos do campo da produção e reprodução de imagens, o fotógrafo produzia “coisas” e reforçava a crença presente no imaginário popular de que seu fazer era o resultado de um processo mecânico de produção objetivo, e não o resultado da “manipulação artística e experimentação tecnológica”.
Isso significa, em termos técnicos, uma dificuldade em confirmar os resultados de algumas avaliações da época, que afirmaram a falsificação de cédulas por meio da fotografia, sem ter em mãos um exemplar da nota falsa. As cédulas falsas a que a pesquisa teve acesso no Brasil não são objetos fotográficos.9 Acredito que a técnica fotográfica pode ter sido uma das etapas de preparação da falsificação, mas não necessariamente o resultado final. Ou seja, não se trata de uma fotografia da cédula, como alguns laudos podem levar a crer. Mas, de qualquer forma, também não é possível afirmar que uma falsificação semelhante à realizada em Portugal não tenha circulado no Brasil.
Outro aspecto que facilitou o envolvimento da fotografia com o crime foi o fato de que fotógrafos ambulantes, ao se deslocarem pelo país, tinham a possibilidade de se retirar do local em caso de desconfiança, dificultando assim a identificação da origem das falsificações. Isso vale igualmente para a circulação entre países, pois, como destaca Diego Galeano (Op. cit., p. 196), o crime de falsificação de dinheiro assumiu também um modo de existência transnacional. O deslocamento dos moedeiros falsos entre países da América do Sul ou entre Brasil e Europa movimentou o negócio das falsificações, obrigando as autoridades dos países envolvidos a agirem conjuntamente.
A partir dessas breves reflexões, torna-se necessário destacar que a invenção da fotografia no século XIX e seu desenvolvimento coincidiram “com o surgimento do estado político moderno. A fotografia então se tornou uma parte integral do comportamento social das instituições burocráticas do estado” (STURKEN; CARTWRIGHT, 2001, p. 95, tradução nossa). Desse modo, “a versatilidade da imagem fotográfica gerou um amplo espectro de atividades de construção de imagem com o propósito de vigilância, regulação e categorização” (Ibidem, p. 95, tradução nossa). No entanto, o uso de técnicas fotográficas para fins de falsificação de notas ao longo do século XIX deixa claro que o estado moderno não foi eficaz em coibir os usos não autorizados dessas técnicas. Os fotógrafos se tornam assim sujeitos ativos na configuração da cultura visual oitocentista por meio da confecção de retratos, paisagens e, em alguns casos, notas falsas que, além de serem instrumentos de trocas monetárias, são produtos visuais que podem ser vistos como gravuras que veiculam imagens com diversos significados.
Em 1877, chegou a São Paulo o fotógrafo Victor Telles. Na mesma década, outros fotógrafos também aportaram na capital da província. Alguns, como Severino, José Vollsack, Jean Georges Renouleau e Carlos Hoenen se estabeleceram por longo período; outros, como Walter Bradley, M. de Sá Vasconcellos (GOULART; MENDES, 2007) e o próprio Victor Telles têm breve estadia, sendo São Paulo provavelmente apenas um ponto de partida para suas itinerâncias. Na época, a cidade contava com o importante estabelecimento de Militão Augusto de Azevedo, a Photographia Americana.
Desde a década anterior, como observam Goulart e Mendes (Ibidem, p. 93), percebe-se a “absorção da fotografia na vida corrente”, fenômeno proporcionado pela dinamização do setor. Com relação a São Paulo, os autores indicam cinco fatores para se compreender a dinâmica da fotografia a partir da década de 1860:
1) a incorporação de novos processos de produção e reprodução da imagem fotográfica; 2) o consequente barateamento, criando maior interesse e condições de aquisição; 3) a fixação do profissional na cidade; 4) a introdução de mecanismos destinados a ampliar o uso da fotografia, em particular o estereoscópio, bem como os álbuns para armazenar retratos; 5) o início da concorrência efetiva entre os estabelecimentos (Ibidem, p. 92).
Além dos fatores próprios do mercado fotográfico já apontados, a expansão da economia cafeeira na década de 1870 é um dos motivos da atração de fotógrafos para a capital, processo possivelmente impulsionado com a implantação e expansão da ferrovia na província. Está caracterizada desde então a difusão do retrato fotográfico como “objeto de troca ou de memória pessoal” (Ibidem, p. 99), levando à ampliação do mercado para o fotógrafo. Como afirma Mauad (2004, p. 7), “o barateamento dos custos, como também a ampliação do número de fotógrafos itinerantes, ao longo do segundo reinado, amplia o mercado consumidor configurando uma clientela cada vez mais heterogênea”.
De acordo com Ilsen About (2015, p. 4), a itinerância surge em virtude das primeiras experiências com as expedições fotográficas em fins dos anos 1830 e inaugura uma prática que consiste em elaborar os meios técnicos adequados para produzir imagens em viagens e transportá-las, muitas vezes, às sedes de sociedades científicas, jornais e instituições estatais que financiavam os empreendimentos. Os fotógrafos são designados como anônimos, itinerantes, volantes, ou ambulantes (KOSSOY, 2002). Segundo Ilsen About (Op. cit., p. 10), a atividade dos fotógrafos se desenvolvia entre a mobilidade e o sedentarismo, destacando-se por certa imprecisão, na medida em que o sedentarismo poderia ser intermitente e a circulação aleatória, temporária ou permanente. Os deslocamentos foram condição para o exercício e a expansão da prática fotográfica no século XIX, seja na vertente das expedições fotográficas (SEGALA, 1998; VASQUEZ, 2003) - e que as Excursions Daguerriennes são as primeiras manifestações - ou pela expansão comercial da fotografia, que no Brasil foi pioneiramente discutida por Boris Kossoy (1980).
Victor Telles foi um dos fotógrafos itinerantes no Brasil. De muitos não se sabe mais que o próprio nome, mas de Telles sabe-se um pouco mais, devido às suas experiências na capital paulista.
Ao chegar a São Paulo, em novembro de 1877, Victor Telles, como tantos outros fotógrafos na época, apresenta-se ao público da província por meio de nota publicada no jornal.10 Era uma prática comum aos fotógrafos itinerantes, pois “como a maioria deles não se estabelecia definitivamente nas cidades visitadas, era por meio dos jornais que eles poderiam, de modo mais eficaz, tornar sua estada nas cidades mais produtiva” (ARRUDA; IZUMI, 2015, p. 188). O texto, com assinatura de Victor & Comp. e redigido na primeira pessoa do plural, informa que eles vinham do Rio de Janeiro, tendo feito percurso pelas cidades cisplatinas. Informa-se que o “Estudo Photographico”11 funcionava na rua Direita, nº 10, e faz considerações sobre a importância do retrato12, que, “na verdadeira acepção do termo, além da indelével lembrança que deixa-se à família ou a amigos, na dura ausência de viagens eternas, ou passageiras, constitui igualmente a perícia, e reputação do artista que o fez”13. A ênfase no retrato ao se apresentar tem a ver com os dois carros-chefes dos anúncios de Victor & Comp.: os retratos de crianças e os retratos ao luar. Quanto ao segundo, o anúncio explica que “é imitando os maravilhosos e bellos effeitos do luar sobre qualquer imagem, que tiramos estes retratos, verdadeira e alta novidade na arte photographica”14. O anúncio pode ser um indicativo de que o fotógrafo realizava experimentações em seu estabelecimento, mas pode também indicar uma maneira própria de anunciar os retratos “a la Rembrandt”, isto é, empregando-se os efeitos sombreados na fotografia, tal como ensinados em alguns manuais do período, como os de Henry Peach Robinson15 e o de Liébert16. No caso de Robinson, ele trata os princípios da composição fotográfica como se semelhantes à pintura, mas sem deixar de levar em conta as características literais da fotografia. O fotógrafo propunha, com seus ensinamentos, um justo equilíbrio entre a mimese e o artifício para alcançar um tipo de verdade geral. Nesse sentido, a realidade do que é retratado deixa de ser tão importante, passando a ter mais valor a verdade da imitação (ORVELL, Op. cit., p. 2164). Tais iniciativas conferiam à fotografia um estatuto artístico. Ao apelar para a imitação dos “maravilhosos e bellos effeitos do luar”, o anúncio lança um apelo publicitário para chamar a atenção de sua clientela, criando um diferencial no mercado competitivo da fotografia. Na década de 1870, como afirma Grangeiro (2000, p. 60), “as casas de retratos espalhadas pela cidade contavam com considerável infraestrutura para o atendimento de um público ávido por retratos”. Portanto, cabia ao Estúdio Photographico de Victor & Comp. tentar impressionar sua potencial clientela.
Os anúncios do Estudio Photographico continuaram a ser publicados até dezembro de 1877. Porém, não foi pelos serviços fotográficos que Victor Telles ganhou destaque nos jornais, mas pela notícia de sua prisão, em janeiro de 1878, devido a uma denúncia de falsificação de dinheiro. Isso possibilita conhecer mais alguns aspectos da trajetória do fotógrafo, já que a investigação da polícia de São Paulo ganhou repercussão em alguns jornais do país.17
Inicialmente são publicados dois conjuntos de informações sobre Victor Telles: um relativo à vida do fotógrafo; outro à pretensa atividade criminosa. Do primeiro conjunto de informações, ficamos sabendo que ele era português de nascimento, tendo sido naturalizado brasileiro, casado e proveniente do Rio Grande do Sul, onde tinha família. Sobre a suposta atividade criminosa, afirma-se que ele teria se envolvido com falsificações de dinheiro e cheques em Montevidéu, no Uruguai. Todavia, é a divulgação dos resultados da investigação policial, publicados no Correio Paulistano e reproduzidos em outros jornais18, que traz o teor das acusações contra Telles, seu sócio João Esprik de Verny e outros suspeitos. São 26 pontos, transcritos na íntegra do relatório do chefe de polícia, que resumem o teor das investigações e balizam a denúncia contra Telles e os demais envolvidos. A seguir, relatarei os principais aspectos do inquérito reproduzidos na matéria do Correio Paulistano.19
Os autos do processo, replicados na íntegra pelos jornais, informam que, em Pelotas (RS), Victor Telles era conhecido como “homem falto de recursos”, mas que em pouco tempo passou a exibir excelente condição financeira “gastando, às mãos cheias, dinheiro que não se sabia de onde vinha” Um ponto do relatório informa sobre comentários em Pelotas de que Telles era um moedeiro falso em sociedade com um alemão e, juntos, falsificavam grandes quantias do Tesouro Nacional. Em outro ponto, afirma-se que, em certo momento, ele se retirou do Rio Grande do Sul, não informando seu destino, e que também teria abandonado a mulher e seus filhos. Consta ainda no relatório que ele fora a Montevidéu procurar artistas para imprimir mil contos de réis, ou que ele partira para não voltar. Outro aspecto dá conta que sua partida é que coincidiu com a de outras pessoas do seu círculo de amizade e com o aparecimento de cédulas falsas de 100$000 réis em Pelotas. Afirma-se ainda que as chapas das cédulas de tais falsificações teriam sido vendidas por Telles. Alega-se que, no Rio de Janeiro, teria posto em circulação 100:000$000 réis com a ajuda de uma prostituta. Já em Santos, Telles teria mostrado chapas para confecção de selos e de cédulas a um amigo, bem como materiais para falsificação de moedas. Ao mesmo amigo teria tentado vender cédulas falsas de 20$000 réis, destacando que em nada se diferenciavam das verdadeiras, pois ele tinha preparativos para confeccioná-las melhor que qualquer outro no Brasil. Já sobre sua presença na cidade de São Paulo, afirma-se no relatório que Telles “é apontado, pela voz publica, como moedeiro falso, e que se elle, nesta cidade, não fabricou moeda falsa, manifestou, ao menos que tinha a intenção de fabricar”20.
Quanto aos seus parceiros, o relatório policial afirma que o alemão João Esprik Verny era o responsável por guardar as chapas matrizes e pela coloração das libras esterlinas, e que
Telles tem outros auxiliares operarios que são: Francisco Simon, que se emprega como operario de sua confiança em todos os trabalhos concernentes a ouro, prata, e estanho; e Caetano Ligi que aparentando empregar-se em photographia, tem por missão retocar o papel que se tem de pôr em circulação; Paulo Ottwil que é gravador, e finalmente Amarante que foi encarregado por Telles de procurar individuos que entrassem com dinheiro para a conclusão do fabrico da moeda falsa (Ibidem, p. 1).
Na perícia do material apreendido, concluiu-se que as moedas e as cédulas eram verdadeiras; as chapas eram de pouco uso para retratar, mas algumas serviam para confeccionar daguerreótipo e outras para fotogravura; afirma-se que o papel de linho não tinha aplicação própria para fotografia, mas servia, como outros, para envolver clichês.21 No entanto, são requisitados dois laudos sobre os produtos encontrados na casa de Telles e Verny. O primeiro é assinado pelos fotógrafos Carlos Hoenen e Militão Augusto de Azevedo. Eles confirmam que os materiais encontrados possuem uso na fotografia e na fotogravura e destacam que “o systema a daguerreotypo está exaurido, porém o de photogravura ainda é novo, e que conta a elles peritos que só no Rio de Janeiro é que há dous anos de esta parte que estão trabalhando por este systema”22.
Os seis suspeitos (Victor Telles, João Esprik Verny, Francisco Simon, Caetano Luigi, Paulo Atwill e Antônio Amarante) ficam presos até fevereiro de 1878, quando são soltos devido a um habeas corpus, que os concede o direito de aguardar o processo em liberdade. A partir das investigações do delegado de polícia, o promotor público oferece denúncia somente contra Telles e Amarante, pois considera que as suspeitas contra os outros presos não têm fundamento23. Será que o fato de os operários terem ofícios bem definidos os favoreceu? Será que Amarante, que teria uma suposta função de aliciador, oferecia mais perigo à sociedade que os demais? Segundo a denúncia, Telles teria incorrido nas penas previstas na Lei nº 52, de 3 de outubro de 1833, combinada com o artigo 34 do Código Criminal.24 Como Amarante morreu no final de março, após envolvimento em uma briga, somente Telles respondeu ao processo.
A leitura do processo crime contra Telles e Amarante permite conhecer outros detalhes da acusação devido ao teor dos depoimentos dos acusados e das testemunhas. Não cabe, nos objetivos mais estritos deste artigo, discutir cada uma das peças do processo. Todavia, vale a pena destacar alguns aspectos que permitem relacionar as práticas fotográficas com a falsificação de dinheiro.25
A investigação policial foi iniciada pelo Chefe de Polícia Francisco de Paula Rebello e Silva sob a alegação de que o fotógrafo Victor Telles se encarregava de fabricar e passar notas falsas, envolvendo algumas pessoas do seu círculo de convivência.
No seu depoimento, Telles afirma ser natural de Coimbra e ter chegado ao Brasil aos 14 anos de idade, fixando residência em Rio Grande (RS). No entanto, no seu passaporte consta que ele saiu de Portugal em 1861, aos 16 anos, sendo natural da vila Miranda do Corvo, distrito de Coimbra. Ele tinha 1,64m de altura, olhos claros, cabelos castanhos, cor de pele “natural”. Ele não menciona os motivos que o fizeram emigrar para o Brasil. Em Portugal, nos discursos dos políticos liberais, afirmava-se que os jovens emigravam para fugir da prestação do serviço militar (MONTEIRO, 2007). Portanto, como não havia cumprido o serviço militar, Telles assinou termo de fiança obrigatório no qual garantia que “se apresentaria ou faria substituir, caso fosse chamado para o serviço militar” (Ibidem, p. 395). No entanto, as explicações para o movimento migratório em Portugal não eram tão simples assim, como mostra a bibliografia de referência26.
Ele declara que exercia o ofício de fotógrafo há cerca de um ano, tendo sido, anteriormente, comerciante no ramo de tecidos e de madeiras. Em virtude de os seus negócios não serem bem-sucedidos no Rio Grande, resolveu ir para o Rio de Janeiro, onde permaneceu por dois anos. Na corte ele atua inicialmente como preposto de leiloeiro, depois comprando produtos em leilões para revendê-los. No entanto, após contrair febre amarela, deixa a cidade e muda-se para Montevidéu, sob recomendação médica.
Na capital uruguaia, Telles reencontra Esprik Verny, que conhecia somente de vista do Rio Grande. Com ele, inicia o aprendizado da fotografia, tornando-se ambos sócios no ofício. Alegando perseguições políticas, Telles sai de Montevidéu com destino a São Paulo. Para lá também se dirigiram Verny e os demais empregados. A intenção de Telles e Verny era manter sociedade em São Paulo. No entanto, divergências não esclarecidas no processo fizeram com que rompessem relação, não efetivando, portanto, a sociedade.
No depoimento de Telles, ora parece que ele conhece bem os procedimentos da fotografia, ora ele destaca sua inexperiência na área, lançando certa dúvida sobre até que ponto dominava os detalhes de seu novo ofício. Pelos depoimentos, vê-se que seus auxiliares contavam com mais experiência do que ele. Telles montou uma equipe que lhe permitia fazer funcionar seu estúdio fotográfico, mesmo com sua pouca experiência no ramo. Ele contava com o retratista italiano Caetano Luigi, que fazia retratos a óleo, e o fotógrafo alemão Francisco Simon, que se encarregava da impressão das fotografias e também prestava auxílios gerais. Pode-se supor que Telles dominasse, naquela ocasião, os procedimentos relativos ao salão de poses, estando, portanto, preparado para fazer os retratos, ficando os demais procedimentos a cargo de seus auxiliares. Essa estrutura do Estúdio Photographico não era diferente dos demais estúdios do período. O empreendimento de Telles teria alçado ainda maior peso caso sua sociedade com Verny fosse mantida, pois este dominava a fototipia, a fotolitografia, a fotogalvanografia e todos “os sistemas da arte fotográfica”.
As relações pregressas de Telles com Roberto Tavares e Fernandes da Cunha, que se originavam do Rio Grande do Sul, bem como suas divergências, precipitaram o rumo dos acontecimentos. Uma colaboração dessas pessoas com a chefia de polícia, em virtude de terem algum envolvimento criminal, principalmente Fernandes da Cunha, não pode ser descartada. Como demonstrou Ferreira Júnior (Op. cit.), o pintor moedeiro falso José Maria Cândido Ribeiro colaborou com a polícia, passando informações sobre as falsificações de moeda em curso no país, em troca de benefícios no cumprimento de sua sentença. Mas é ainda surpreendente que a sentença tenha sido anunciada tão rapidamente, em maio do mesmo ano. Nela, o juiz considera que a investigação não demonstra a intenção de Telles fabricar moeda falsa na cidade, inocentando-o. Nos meses seguintes, o fotógrafo se esforça para reaver todos os pertences apreendidos em seu Estúdio Photographico.
A denúncia contra Telles fica evidentemente enfraquecida porque não são encontrados materiais inequívocos que pudessem ser destinados à fabricação de cédulas e, principalmente, porque não há apreensão de cédulas ou moedas falsas. É encontrada com ele a parte de uma chapa para impressão de cédula de dez pesos uruguaios que Telles afirma ter recebido de presente de um conhecido para demonstrar a habilidade artística que tinha um preso de Buenos Aires, algo que não foi suficiente para condená-lo.
A sentença do juiz de direito é, certamente, um alívio para Victor Telles. Porém, mesmo com o resultado favorável, sua reputação sai bastante comprometida por estar associada à falsificação de dinheiro. Ainda que não impeça de todo, este fato, com certeza, dificulta bastante a continuidade de seu trabalho como fotógrafo na promissora capital de São Paulo. Por essa razão, Telles parte para o Rio de Janeiro algum tempo após o fim do processo.
Uma vez na corte, Victor Telles instala, em fevereiro de 1880, seu Estúdio Photographico na rua da Carioca, nº 32, denominado ora Victor Telles & C., ora Victor & C. Lá ele anuncia encarregar-se de todos os trabalhos concernentes à arte fotográfica, mas com um diferencial: os retratos fantasiados, por estar às vésperas do carnaval. Além disso, os retratos podem ser feitos também em grupos, “com as cores naturais dos seus vestuários”27 (ESTUDO…, 1880, p. 4). E, como outros fotógrafos o faziam, Telles destaca que atende fora de casa para a realização de retratos e vistas.
Apesar do revés sofrido em São Paulo, Victor Telles parecia ter recuperado suas forças. Em seus anúncios nos jornais da Corte, ele ampliou os serviços que anteriormente oferecia. Seus reclames indicam que ele estava mais comprometido com seu ofício de fotógrafo, pois anunciou os retratos (em diversos sistemas) e as vistas impressas. Assim, na capital do Império, ele passou a realizar o projeto que o levou a São Paulo e que tanto o rompimento com João Esprik Verny quanto a denúncia de falsificação de moeda não permitiram realizar. Seu estúdio fotográfico oferecia os seguintes serviços:
Retratos em porcelana, Retratos coloridos, Retratos em cartão, Retratos instantâneos, Retratos ao luar, Retratos a óleo, Retratos a fantasia, Retratos em vidro, Aquarelas, Molduras, Anúncios americanos, Vistas litográficas, Vistas topográficas. Desde todos os mais ínfimos preços, até aos mais altos. AOS POBRES GRÁTIS (Sistema de clínica médica!!!).28
Na cidade do Rio de Janeiro, a casa de fotografia de Victor & C. promove a publicação de algumas gravuras nos jornais. Ao todo são onze gravuras, publicadas na página quatro dos jornais A Folha e O Globo. No primeiro, elas são apresentadas como um mimo aos leitores e servem para exemplificar os serviços executados em seu estabelecimento fotográfico. Duas dessas gravuras cumpriam uma função notadamente comercial, podendo as demais serem vistas como uma maneira de oferecer um atrativo visual aos leitores, mais comuns, no entanto, nas publicações ilustradas, notadamente nas revistas, conforme demonstrado pela bibliografia sobre o assunto (ANDRADE, 2004; KNAUSS et al., 2014; LUCA, 2018).
Algumas dessas gravuras, como “Aída - Entrada das tropas egípcias”; “A queda do Niagara”; “A cabra-cega”; “O toque da Alvorada”; “Convento de Cornuailles”; “O Cabo de Horn” e “Uma escola de compositores em Berlim” parecem ser estampas disponíveis na época, copiadas provavelmente por meio da litografia. Possivelmente, elas circulavam como estampas avulsas, demonstrando que os impressos serviram a vários produtos editoriais (KNAUSS et al., 2014; ZENHA, 2004). Já as gravuras “Entrada do Catete”, “Cachoeira de Paulo Afonso” e “Vista de uma parte da cidade da Bahia”, além de exibirem representações nacionais (de cidades e da natureza), podem ser cópias de originais fotográficos sem autoria definida ou mesmo cópias de gravuras. Segundo Joaquim Marçal Ferreira de Andrade (2004, p. 180-181), a gravura “Cachoeira de Paulo Afonso” (Figura 7) já havia sido publicada na revista Illustração Brasileira em agosto de 1876. Na ocasião, ela foi publicada como sendo uma gravura tirada de uma fotografia feita pela Comissão Geológica do Império do Brasil. Como Marc Ferrez era o fotógrafo da Comissão, segundo afirma Joaquim Andrade, provavelmente ele era o autor da fotografia. O autor aponta ainda que a mesma imagem foi publicada posteriormente, em 1882, como litogravura (no entanto, com baixa qualidade), na revista Arquivo das Famílias, por Henrique Fleiuss, editor de ambos os periódicos.
A publicação dessas gravuras aponta para uma vasta discussão em torno da circulação de imagens no século XIX (KNAUSS et al., 2014). Em recente trabalho, Tania Regina de Luca (2018, p. 183), ao estudar a revista A Ilustração (1884-1892), demonstra que a cultura visual do período era marcada por uma “circulação transatlântica de mercadorias, aí incluídos impresso e imagens” A partir do estudo da revista, ela discute os diversos processos de troca, circulação e apropriação de gêneros textuais, inclusive imagens que vigoraram na época. Entre as questões discutidas pela autora, ela destaca que a publicação de conteúdos originários de outras fontes era comum no período; em alguns casos poderia ser resultado de uma parceria, em tantos outros, não. No caso específico d’A Ilustração, que possuía um acordo com a revista Le Monde Illustré, a publicação de conteúdo já divulgado anteriormente significava uma apropriação e ressignificação do material, prática que redundava na produção de novos significados para a imagem. Ela destaca também que predominava a falta de informação de autoria das imagens quando se tratava de fotografia, diferentemente de pinturas e esculturas.29 Deste modo, ao publicar gravuras sem mencionar os primeiros autores das imagens, Victor Telles repetia um procedimento comum no período.30
De certo modo, é possível afirmar que a reprodução de cédulas pelo moedeiro falso é similar à apropriação de estampas sem a devida indicação de autoria: eles copiavam as cédulas existentes com auxílio das técnicas fotográficas e as punham em circulação. Desse modo, seja no caso da gravura ou da cédula, o procedimento é semelhante: pôr em circulação imagens que pertencem a outra fonte de produção. Todavia, no caso das notas, tratava-se de um crime.
O nome de Victor Telles voltou aos jornais em novembro de 1881, novamente associado ao crime de moeda falsa. Ele é denunciado por fabricar e colocar em circulação dinheiro falso, juntamente com os fotógrafos Antônio de Castro Martins, Oscar Zoé de Vasconcellos e Francisco Gomes Pinto.
As relações entre Victor Telles e os demais envolvidos no processo eram bem estreitas. Seu nome é citado constantemente no processo, tendo sido atribuído a ele o negócio da falsificação de dinheiro.31 Telles, no entanto, não é ouvido, uma vez que não foi encontrado. Assim, apesar de ter sido denunciado pelo delegado de polícia e de ter seu nome citado por algumas testemunhas no momento do interrogatório, ele não é pronunciado, pois o juiz de Direito, em sua sentença, afirma não ter elementos contra Telles no processo.32 Mais uma vez Victor Telles escapa de uma acusação, mas ele não é o único. Um dos outros denunciados, Oscar Zoé, também não é pronunciado. Tal sorte não têm os fotógrafos Antônio de Castro Martins e Francisco Gomes Pinto, pronunciados e condenados a cumprir pena na ilha de Fernando de Noronha.33
Sobre o destino de Telles, as testemunhas não dão muitos esclarecimentos. A Gazeta da Tarde chega a afirmar: “dizem uns, está actualmente em Portugal, outros que está em Montevidéu, e outros ainda, em Campinas”.34 Também pela imprensa é possível ver registros de importação de produtos fotográficos vindos de Portugal em seu nome, com destino ao Recife. Mas será em um novo processo, respondido em Coimbra em 1886, que encontraremos informações sobre as viagens de Victor Telles pelo interior do Brasil.
A falsificação da moeda brasileira no exterior é um dos principais desafios enfrentados pelas autoridades no século XIX. O dinheiro falso entrava no Brasil escondido nos navios e, principalmente, na bagagem dos viajantes estrangeiros e também brasileiros que aqui ingressavam, após suas viagens (CÂMARA, 2012).
A responsabilização dos portugueses pela presença de dinheiro falso no Brasil é um importante aspecto desse problema.35 Nas matérias dos jornais, grande parte das falsificações ocorridas no Brasil é atribuída a portugueses. Da mesma forma, parte das notícias sobre o crime de moeda falsa em Portugal refere-se à falsificação de moeda brasileira. Nesse sentido, é possível afirmar que Portugal e os portugueses são vistos, no período, como participantes ativos no crime de moeda falsa brasileira (Cf. ARRUDA et al., 2018; CÂMARA, 2012).
Em 1886, um novo processo envolvendo o fotógrafo Victor Telles tem grande repercussão nos jornais de Portugal e do Brasil. Nos dois países ele foi tratado como criminoso e hábil falsificador, não havendo controvérsias em relação à sua culpabilidade. Ele é denunciado por tentativa de falsificação de dinheiro brasileiro em Portugal. O processo é levado adiante pelas autoridades policiais e judiciais portuguesas e pelo governo brasileiro por meio da ação do cônsul brasileiro sediado na cidade do Porto, Manoel José Rebello. O processo teve longo desenrolar, chegando a uma sentença somente em 1890.36
Tal como acontece em São Paulo, Victor Telles não porta nenhuma nota falsa ao ser preso, nem é encontrado dinheiro falso nas duas buscas que a polícia fez em sua residência em Sobral, freguesia de Ceira, em Coimbra. Por isso, segundo a acusação, ele é indiciado por tentativa de falsificação das notas do Império do Brasil, utilizando-se da fotografia e da fotogravura para tal finalidade.
Na defesa de Victor Telles, seu advogado refuta ponto por ponto a denúncia, dando atenção especial ao argumento de que a fotografia e a fotogravura seriam utilizadas como principais métodos da falsificação.
Antes de discutir alguns trechos da defesa do advogado, abordaremos o destino de Victor Telles assim que ele sai do Rio de Janeiro, logo após sua segunda denúncia de falsificação em 1881. Detalhes da sua vida antes e depois de ter deixado o Rio de Janeiro estão presentes no processo, notadamente nos depoimentos prestados por ele e por seu denunciante, Antônio Esperança. Em primeiro lugar, revela-se que seu nome é Victor Telles de Vasconcellos e não Victor Telles Rebello e Vasconcellos. No Brasil, ele usou por todo o tempo o sobrenome Rebello, que era do seu pai. Inicialmente, ele se apresenta como solteiro, corrigindo-se em seguida como viúvo.
Diante das autoridades portuguesas, Victor Telles tenta ocultar seus embaraços com a polícia no Brasil a respeito da falsificação de dinheiro. Afirma que suas complicações com a polícia no Rio de Janeiro se referiram a porte de armas proibidas em casa, sem fundamento. E que, em Portugal, havia sido condenado a seis dias de prisão correcional por emprego de arma de fogo. No entanto, estava cada vez mais difícil ocultar a verdade, diante da menção ao assunto da falsificação pelas testemunhas, o que leva o comissário de polícia de Coimbra, Adriano Saldanha, a encontrar um jornal brasileiro de 1878 no qual o relato da investigação contra Telles havia sido publicado.37 Com a intenção de fundamentar as acusações contra ele, o teor da investigação feita em São Paulo é transcrito no processo.
Em seu depoimento, Victor Telles afirma que, após residir no Rio de Janeiro em torno de dois anos, trabalhando em seu Estúdio Photographico, regressa para Portugal, onde permanece por cerca de um ano. Depois disso, volta para o Brasil, chegando a Pernambuco. De lá vai para o Pará, onde permanece por cerca de um ano. Em Belém do Pará, o fotógrafo estabelece uma casa de fotografia denominada Casa Preta, em 1882, da qual não existem muitas informações. O Diário de Belém transcreve matéria publicada no Diário de Notícias, na qual são sugeridas algumas investigações, entre elas “o desaparecimento de um photographo, estabelecido à rua da Trindade, casa negra?”38, e acrescenta:
Falla-se com certa insistência, que existe entre nós uma companhia de gatunos de gravata limpa, que se emprega em emitir notas falsas do thesouro nacional. O desapparecimento do photographo Victor coincide com os boatos à seu respeito, de ser um dos agentes da empresa, affirma-se mesmo que elle suspendera com uma boa soma.39
O fotógrafo desapareceu porque voltou novamente para Portugal, onde se manteve por cerca de um ano em Lisboa, segundo ele, e de onde não saiu senão para visitar um irmão no Porto.
No seu retorno ao Brasil o fotógrafo aporta na Bahia, iniciando um novo giro, principalmente pelo Sul do Brasil, mas também por Uruguai, Argentina, Paraguai e Bolívia. Ele não menciona se viajava acompanhado; todavia, Antônio Esperança, que acusara o fotógrafo, afirma que viajaram ele, Victor Telles e Manoel da Silva Araújo Guimarães. Antônio Esperança, quando lhe foi perguntado se sabia o motivo da viagem, afirma que perguntou a Manoel Guimarães que tipo de negócio eles montavam e teve em resposta que era segredo. O mesmo Manoel Guimarães teria acrescentado que “Vasconcellos era homem de rara habilidade, bom fotógrafo, bom gravador, bom químico, que tinha aprendido em New York na casa onde se fazem as notas para o Brasil”40.
O novo retorno de Victor Telles para Portugal teria sido motivado por uma carta do pai, em que se dizia que se quisesse vê-lo vivo, teria que se apressar. Alegando esse pedido paterno, Victor Telles parte de Maceió para Lisboa em abril de 1885. Antes de sua partida ele teria se encontrado com Antônio Esperança na floresta do Catumbi, no Rio de Janeiro. O fotógrafo informa seu regresso à Europa, dizendo que seguiria para a Bahia a fim de obter visto em seu passaporte, pois não conseguiria isto na Corte. No encontro, fica acordado que Telles entregaria à família de Esperança quatro libras, e que lhe mandaria da Europa mais quinze libras. A promessa não é cumprida. Quando ambos já estavam em Portugal, Victor Telles não se prontifica a ajudá-lo. Desse modo, tais promessas não cumpridas teriam estimulado o rancor de Antônio Esperança e sua intenção de vingança, o que resultou em uma denúncia contra Telles, levando-o a responder um processo que se desenrolou por cerca de quatro anos.
Na denúncia apresentada contra o fotógrafo, considera-se que ele era “tido e havido como fabricador e passador de notas falsas do Thesouro do Brasil” e que após visitar as principais partes do Império e os países vizinhos, voltou para Portugal.41 No entanto, mesmo tendo saído do Brasil,
continuou o mesmo Victório Telles de Vasconcellos a ter relações com diversos brasileiros, que o auxiliavam a miúdo, e, por meio da photographia e fotogravura, em que é perito, tentou mais uma vez falsificar notas do Thesouro do Brasil.42
Devido a essa conclusão, o auto de querela pede seu indiciamento de acordo com a legislação portuguesa, principalmente o Código Penal de 188443, pertinente aos crimes cometidos, e em conformidade com a convenção assinada por Brasil e Portugal em 1855.
Na sua defesa, o advogado Antônio Cesar Augusto Calixto alega que não havia fundamento legal no processo, nem em matéria de fato, nem de direito. Ou seja, a tentativa de falsificação não havia sido provada, e o enquadramento legal não era aplicável ao que o inquérito havia apurado. O conteúdo principal da defesa estava organizado nos seguintes itens: a) o suposto crime; b) as notas apreendidas; c) a máquina fotográfica; d) os precedentes (onde se refuta cada uma das testemunhas); e) as visitas dos brasileiros; f) lei aplicável; e g) corolários. Aos propósitos deste artigo, interessa particularmente o item “a máquina fotográfica”, pois nele se discute o pretenso uso da fotografia e da fotogravura como método para as falsificações.
Inicialmente, o advogado compara a fotografia e a fotogravura para deixar claro que a primeira não forneceria um resultado aceitável caso se reproduzisse uma nota. Ele lança as perguntas: “a photographia pode representar sobre o papel a nota nítida e vivamente expressiva, como o original da gravura em aço? Ainda os mais leigos poderão confundir jamais a suavidade da gravura em aço com as asperezas da reproducção photographica?”44. A resposta esperada seria “não”. Assim, ele descarta a possibilidade da falsificação das notas pela técnica fotográfica, uma vez que elas não seriam aceitas como verdadeiras. Descartada esta hipótese, ele lança mão de uma longa argumentação para provar que Victor Telles não poderia realizar as falsificações por meio da fotogravura, visto que não foram encontrados com o fotógrafo os equipamentos apropriados para tanto. Para dar credibilidade aos seus argumentos, o advogado cita o tratado de fotogravura e galvanoplastia de Brandely, no qual se afirma que a fotografia servia apenas para reproduzir os contornos de sombras e luz de qualquer desenho sobre um papel especial e com preparados e reagentes próprios.
O advogado também afirma que a máquina fotográfica apreendida era comum e, portanto, não apropriada para a execução de fotogravuras. Ele ainda se pergunta sobre a ausência de objetos apropriados para a fotogravura, como chapas de aço, ingredientes químicos para galvanoplastia, pilhas, papel cartão, instrumentos de gravura, máquina e tintas para impressão. Ou seja, sem eles, as falsificações por meio da fotogravura não poderiam ser feitas e argumenta que mesmo se o fotógrafo tivesse tais materiais, isto não configuraria tentativa de falsificação. No máximo, poderia indicar atos preparatórios que a lei não pune, o que também não seria o caso.
Victor Telles foi absolvido em abril de 1890, principalmente porque não havia provas da existência das pretensas notas falsificadas.
A discussão empreendida neste artigo mostrou como um fotógrafo itinerante exerceu seu ofício nos finais do século XIX e teve uma vida conturbada, cercada de acusações de falsificação de dinheiro. Não se pode afirmar se ele era, realmente, um moedeiro falso e teve habilidade de se defender ou se as acusações contra ele não procediam. As constantes acusações e a proximidade com pessoas envolvidas com o crime produzem muitas desconfianças. No entanto, aqui não se objetiva emitir uma sentença sobre Victor Telles, mesmo porque, como afirma Celeste Zenha (1985, p. 126), a verdade que condena ou absolve um denunciado não pode ser identificada prontamente com um fato do passado, mesmo que esteja amparada no mundo concreto, sendo que a absolvição ou a condenação de alguém se trata de uma verdade produzida pelos autos.
Sua condição de migrante, sua trajetória profissional ligada ao comércio e à fotografia demonstram que ele viveu e experimentou na prática o habitus (BOURDIEU, 2000, p. 186) de seu grupo social, mas ao mesmo tempo trilhou caminhos próprios. No que tange à sua inserção no comércio, ele seguiu um caminho percorrido por um grupo específico de migrantes que trabalhavam como caixeiros nos centros urbanos e exerciam atividades no setor terciário. Segundo Fernando Sousa (2013, p. 30), era a designada “emigração clássica”. Ele se inseria na tradição de emigrantes portugueses que saíam de Portugal e sabiam ler e escrever, portanto eram bem assimilados pelo comércio (Ibidem).
No que se refere à fotografia, sua experiência como migrante e sua inserção em um novo ambiente social e cultural permitiram que ele buscasse novos caminhos profissionais, explorando as oportunidades oferecidas pela nova terra. Como fotógrafo, experimentou a itinerância como tantos outros que viram a oportunidade aberta pela nova forma de representação social e construção de identidades. A viagem era um imperativo que se apresentou a diversos fotógrafos diante de um mercado que, por um lado, apresentava demandas crescentes, se se considerasse a extensão territorial do país; por outro, não era capaz de assimilar de forma efetiva todos os fotógrafos no âmbito local. Mas essa era uma característica mundial da expansão da nova invenção. Assim, como fizeram pessoas de outros ofícios ou profissões, foi necessário realizar seu trabalho como ambulante. Em suas viagens percorreu grande parte do país, navegou por rios, trilhou os caminhos das regiões Sul, Sudeste, Norte e Nordeste, demonstrando que o deslocamento espacial era parte constitutiva da configuração do seu lugar social e profissional. As viagens de tantos fotógrafos no século XIX possibilitaram a expansão da fotografia pelo país, apresentada como índice de civilização e modernidade, em consonância com os padrões europeus, contribuindo, ainda, para a difusão de objetos visuais da cultura material (ABOUT, Op. cit., p. 2). Sua prática colaborou na conformação de um habitus fotográfico (Ibidem, p. 17) e na consolidação da fotografia como um elemento importante da sociabilidade moderna. Suas viagens não se reduziram às fronteiras do Brasil: ele percorreu vários países vizinhos e também inscreveu sua prática nas viagens intercontinentais entre a América e a Europa.
A itinerância fez parte do habitus de muitos fotógrafos no século XIX, um imperativo para a obtenção de sucesso financeiro e, por que não, de reconhecimento social e profissional. Para permanecer no mercado competitivo da fotografia era necessário viajar. Mas esse trânsito intenso também foi um aspecto que favoreceu a prática da falsificação de dinheiro, pois dificultava a ação e vigilância das autoridades. A itinerância de fotógrafos pelos países vizinhos, entre o Brasil e a Europa e, ainda, as várias notícias que informam a apreensão de cédulas falsas nos navios chegados do exterior, confirmam a existência transnacional do crime de moeda falsa.
O fotógrafo migrante, seja ele português ou de outra nacionalidade, ao se envolver com as práticas criminosas, de certo modo rompia com as expectativas sociais gerais e de modo mais preciso com as de seu grupo de origem, confirmando a sugestão de Levi (Op. cit.) de que há um espaço significativo de liberdade para atuação individual que foge às determinações estruturais; mas essa não seria a condição de todo comportamento individual desviante? No caso de Victor Telles, ele provinha de uma família que trazia na sua história a menção honrosa de ter lutado em prol da pátria. Seu envolvimento com a justiça, por meio de acusação de crime de falsificação de dinheiro, poderia ser pensado como um rompimento com as expectativas de seu grupo familiar, mesmo que ele tenha se naturalizado brasileiro. Vale destacar que, por ocasião da denúncia em Portugal, o repórter do Commercio do Porto45 observara que “pertence a uma família de bom nome, e com serviços à causa da liberdade”, fato lembrado também por ocasião do julgamento.
Do ponto de vista da cultura visual, o desconhecimento das características das notas verdadeiras abre espaço para o engano em diversos níveis: entre os falsificadores, entre a população e até mesmo entre o pessoal das instituições públicas ou privadas responsáveis por algum tipo de manejo das cédulas. É preciso destacar que as pessoas precisaram ser “educadas” para reconhecer visualmente a falsificação de notas e isto requer algum conhecimento específico: a) da parte dos usuários comuns, que precisavam se atentar para características físicas e visuais das notas que até então não faziam parte do seu repertório; e b) da parte dos produtores e reprodutores de imagem, que precisavam conhecer todo o processo de produção fotográfica ou, na ausência dessa visão ampla, possuir parceiros que executem outras etapas da tarefa de falsificação.
Destaquei em alguns pontos do artigo que a fotografia se inseria num contexto novo, de emergência da cultura da imitação, ela própria fundamental nesse processo, como destacou Miles Orvell (Op. cit.). As diversas formas de manipulação do assunto ao ser fotografado, as intervenções posteriores à execução da imagem fazem parte desse contexto no qual mais importante que produzir a verdade, seria proporcionar convencimento. As técnicas fotográficas e as demais técnicas de produção e reprodução de imagens foram apropriadas para cumprir essa finalidade: convencer e iludir. Os moedeiros falsos, ao utilizarem tais procedimentos, operam dentro desta lógica e muitos deles conseguiram obter sucesso. Coube ao Estado e ao sistema bancário elaborar estratégias de segurança para fazer frente a esse processo.
Até onde pudemos acompanhar, Victor Telles permaneceu em Sobral, freguesia de Ceira, Coimbra. De certa forma, foi uma pessoa assídua nos tribunais da região46. Em 1886, foi processado por atirar em uma pessoa, sem, no entanto, feri-la. No ano seguinte, ele respondeu por exercer a “profissão da clínica médica” sem a devida competência legal, mas não é condenado. Em 1899, ele ofendeu corporalmente uma lavadeira, quando ambos estavam dentro do rio Eça. Já em 1906, respondeu a outro processo por causar danos à empresa que construía um caminho de ferro na região. Nessa ocasião, Telles foi multado pelos danos causados, mas também indenizado, pois os trilhos estavam sendo assentados em suas terras, sem sua devida autorização.
Enfim, o envolvimento de Victor Telles com o sistema policial-jurídico do período é uma via para tratar não somente de aspectos da sua vida, mas também das sociedades nas quais ele viveu. Victor Telles foi um fotógrafo com fama de moedeiro falso que soube se defender provando sua inocência, e nos deixou perguntas ainda a serem respondidas… Por ora, seguiremos o conselho de Luiz Gama, seu advogado, em uma defesa pública do seu cliente, em São Paulo, quando pediu o fim das acusações e desconfianças: é hora e tempo de baixar as cortinas.
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