ARTIGO
Recepção: 21 Fevereiro 2019
Aprovação: 28 Agosto 2019
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2020.155049
Resumo: No Brasil, várias canções foram compostas durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), tendo o conflito como tema. Seus versos estão repletos de elogios às tropas aliadas bem como de críticas e deboches às lideranças inimigas. Este artigo, entretanto, enfoca certo tipo de ironia. No Brasil, à época, bem no início da década de 1940, o regime político era uma ditadura. Governos autoritários muito frequentemente tentam valer-se da dupla via da propaganda e da censura. Persuasão e repressão. Isso envolve os circuitos de produção musical, meios de comunicação de massa e radiodifusão. Em algumas canções sobre a Segunda Guerra Mundial, é possível ouvir contradições e confrontos de nossa própria sociedade, principalmente os relativos às pessoas pobres e negras. As principais fontes aqui foram gravações originais em 78 rpm. A transcrição das letras dos discos de cera é cheia de desafios (homofonias, termos que caíram em desuso, gírias). Na metodologia, os discursos das canções são lidos tentando-se estar atento aos seus sinais qualitativos, seus pontos de relevo.
Palavras-chave: Segunda Guerra Mundial, Música Popular Brasileira, Radiodifusão, Estado Novo, Crítica social.
Abstract: In Brazil, several songs were composed during the Second World War (1939-1945) having the conflict as subject. Their lyrics were full of praise to the allied troops as well as criticism and mockery of the enemies’ leaders. This paper, however, focuses on sambas with some kind of irony. In Brazil, at the beginning of the 1940’s, the political regime was a dictatorship. Authoritarian governments very often try to use the joint path of propaganda and censorship, namely persuasion and repression. This involves musical circuits of production, mass media and broadcasting. Some songs about the World War II show contradictions and confrontations of our own society, especially about the poor and black people. Original recordings at 78 rpm were used as main sources. The transcription of the lyrics at 78 rpm recording is full of challenges (homophones, terms that fell in disuse, slangs). As for methodology, the discourses of the songs are read trying to be attentive to its qualitative signals and points of relevance.
Keywords: Second World War, Brazilian Popular Music, Broadcasting, New State, Social criticism.
A Segunda Guerra Mundial deu samba. E mais, conforme os selos dos discos da época, foi glosada em marchas (recebendo aqui e acolá a qualificação de cívicas ou patrióticas), moda de viola, valsa, embolada, canção-tango, fado-canção, frevo-canção, samba-choro, toada, humorismo e fantasia. Criações como “A Muié e a Guerra” (Jararaca e Ratinho) ou “A carta” (Custódio Mesquita) lembram que não se gravou somente música, tendo sido postos na cera esquetes, causos e recitativos. Os compositores trabalhavam no calor dos acontecimentos, talvez por isso poucas tenham sido as criações de reconhecimento mais duradouro.
Autores como Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez), Gracio Barbalho e Jairo Severiano já destacaram o repertório que enfocou o conflito. Tais pesquisadores, junto com Alcino Santos, foram responsáveis pela edição da Discografia Brasileira em 78rpm, a mais completa catalogação dos títulos lançados entre 1902 e 1964. Gracio Barbalho era médico e residia em Natal, RN, em 1982, quando lançou o livro O popular em 78 rotações, no qual dedicava um capítulo à “Música popular brasileira e a Segunda Guerra Mundial”, avaliando que o período foi marcado pela valorização de ritmos estrangeiros e por relativo declínio na inspiração local. Jairo Severiano, em Yes, nós temos Braguinha, destacava que fatos históricos eram temas correntes no cancioneiro popular, com o acréscimo de que a Segunda Guerra Mundial motivara um recorde de composições. Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez) (2012), em seu livro A história cantada no Brasil em 78 Rotações, comenta mais de cem canções sobre o assunto. Na literatura acadêmica, o assunto foi tratado com esmero e sensibilidade em Os Carnavais de Guerra (TUPY, 1985).
Os autores sugerem rubricas para a classificação desse vasto repertório, cujas linhas gerais seriam as de exaltação dos aliados e desmoralização dos adversários. Gracio Barbalho discernia três grupos principais de gravações: as que estimulariam o dever patriótico, as que fixariam acontecimentos e as de sátira aos inimigos (BARBALHO, 1982, p. 34). Jairo Severiano observava que tais canções enfocavam variados aspectos do conflito, com acentos temáticos de exortação à luta, louvor das vitórias dos aliados, elogio à presença brasileira nos campos de batalha e resignação ante os sacrifícios impostos pelas circunstâncias; além destas, de forma crítica, havia as que escarneciam dos líderes dos regimes hostis e dos simpatizantes das causas inimigas e aquelas que condenavam os malefícios da guerra (SEVERIANO, 1987, p. 67).
Os esforços de guerra reclamavam uma mobilização geral. A música dita “popular”1 era muito criticada (o próprio termo pode assumir tons pejorativos), mas, mesmo assim, apresentou sua colaboração, que não raro destacava artes e manhas do “soldado sambista”. Este artigo não ambiciona examinar a variedade de temas das canções de guerra. O interesse concentra-se no filão de crítica camuflado entre estrofes e estribilhos pretensamente cívicos e entusiasmados. Ritmos tão combatidos que se assumem combatentes possibilitam discutir afinidades e discrepâncias das falas do pracinha “boa praça” com a retórica política e social do Estado Novo.
Batalhas da vida, vida de batalhas
O “Trio de Ouro”, formado por Herivelto Martins, Dalva de Oliveira e Nilo Chagas, gravou em maio de 1945, com acompanhamento de Abel Ferreira e orquestra, o samba “Negro artilheiro”, da autoria de Herivelto e Sinval Silva.
Negro artilheiro
Roda de samba de “nego” não tem mais cachaça
Há muito negro artilheiro, defensor da raça
Negro que pensa na vida, na sua pátria querida
Na sua prole sadia, grandeza da sua vida
Rezando negro pede a Deus
Por todos e pelos filhos seus
Cantando no ritmo do coração
Sempre pronto a defender nosso torrão
“Nego”
Quando foi convocado
Esqueceu seu roçado
E partiu pra brigar
“Nego”,
Dispensou o ordenado
Esqueceu que é casado
E tem filhos pra criar
Preferiu ir brigar
Preferiu ir morrer
Pra que o filho crescesse
E pudesse viver.2
Um dos maiores desafios à história cultural é a sondagem das apropriações, não no sentido de confisco, mas como um consumo, uma maneira de lidar com visões de mundo e formas de vida. A pesquisa e interpretação de práticas e representações, mesmo valendo-se de procedimentos seriais e de quantificação, almeja rastrear aspectos e elementos qualitativos; ou seja, para além do quanto, importa tentar perceber o como. Ressalve-se, entretanto, que esse “como” não cabe ser deduzido ou generalizado a partir do sentido identificado por quem analisa a fonte. Seria ambição do historiador pretender dar conta da totalidade de sentidos, diversidade de usos e pluralidade de leituras nos circuitos de produção e circulação desses bens culturais, que são também construções e miradas sobre a sociedade (CHARTIER, 1990). No caso da fonografia, muitas criações estão em diálogo musical ou poético com realizações de seus pares. Conversas amistosas ou ferinas. De reptos e réplicas. Um samba podia ser respondido com outro. É possível pensar que “Negro artilheiro” contesta o “Samba de Nego”, de Pixinguinha (Alfredo da Rocha Viana), popularizado pela gravação de Francisco Alves, em 1928. Abel Cardoso Junior, autor de Francisco Alves. As mil canções do Rei da Voz, observa que na partitura editada pela Casa Vieira Machado consta como autor da letra o nome de Baiano (Cícero de Almeida).
Samba de Nego
Samba de nego
Não se pode frequentar
Só tem cachaça
Pra gente se embriagar
Eu fui num samba
Em casa de Mãe Inês
No melhor da festa
Fomos todos pro xadrez…3
“Samba de nego” tem ambiência evocativa da “pequena África” do Rio de Janeiro, estudada por Roberto Moura (1983) e Muniz Sodré (1988). Era gente que enfrentara a chamada diáspora baiana. Eram as tias Perciliana, Bebiana, Sadata, Amélia, Rosa e Aciata, dentre outras, algumas afamadas quituteiras. O termo samba designa aí um encontro, uma festividade. De acordo com o depoimento ao Museu da Imagem e do Som prestado por João da Baiana (filho de Perciliana Maria Constança, que no nome artístico fazia questão de frisar tal ascendência), esses sambas podiam durar vários dias. Nos diversos cômodos das amplas residências, fazia-se um determinado tipo de música: choro na sala de visitas, chula, umbigada e capoeiragem no quintal. Isso, no lado recreativo. Havia, ainda, uma parte religiosa, com os cultos de candomblé. Inclusive, uma estrofe que Francisco Alves não gravou aludia a pratos e bebidas servidos em oferenda aos orixás. Outros versos de “Samba de nego”, aliás, tratam do transe místico, meio que misturado ao delírio amoroso (“No fim do samba/ Minha caboca chegô/ Virei os ôio/ E meu Santo me pegou”). Para o transcurso tranquilo dessas festas, era necessário conseguir autorização com a chefatura de polícia. Caso contrário, podia acontecer de a brincadeira ser desfeita, quedando presos seus participantes.
“Negro artilheiro” destoa de “Samba de nego” desde o primeiro verso. O que um afirma, o outro tenta contraditar. Ainda se realizavam rodas de samba, mas o elemento do vício e da embriaguez, defende-se, havia sido eliminado. “Samba de nego” foi gravado em 1928, embora trate mais precisamente da atmosfera de fins do século XIX e alvores do XX, época de rupturas nos regimes político e de trabalho, com a instauração da República e o término da escravocracia. Os sobressaltos dos acontecimentos e as mudanças de conjunturas não implicam, todavia, a transformação imediata nas ideias e costumes. Decerto que esses também mudam, mas parecem obedecer a outros ritmos e esquivar-se de uma determinação estritamente política ou econômica. Um intelectual como Joaquim Nabuco já advertia em O Abolicionismo (1883) que o regime ilegítimo e ilegal da escravidão, quando chegasse ao fim, ainda teria seus efeitos deletérios propagados por muito tempo. Há trezentos anos perseverava um sistema que retardava o desenvolvimento material e corrompia o caráter do país. O mal não seria da raça, mas da nacionalidade. E o problema não seria o negro, senão o cativeiro. Idealmente, se bem conduzida, a abolição teria efeitos benéficos também para os senhores e demais homens livres, que poderiam tentar se libertar de ignorâncias, superstições e preconceitos, mas não foi bem isso o que ocorreu.
O samba de Herivelto Martins e Sinval Silva tenta demarcar o novo mo(vi)mento dos negros na sociedade, transcorridos mais de cinquenta anos desde a abolição. A pecha dos pretos como vadios era contraposta com sua inserção na lógica produtiva (ele pensa na vida e tem um trabalho). O abuso que via “gente de cor” como suja e doente era replicado afirmando-se os cuidados com a saúde dos filhos. O discurso mesmo sobre a religiosidade africana (tachada por muitos pejorativamente como crendice) padece acomodações: fala-se de um Deus e não mais em caboclos e orixás. A reza, ao invés dos rituais. Mais que a avidez de desfrutar o instante, o “negro artilheiro” está preocupado com o futuro da raça e da pátria. Os afetos coletivos aí preponderam sobre os laços familiares (o casamento e a prole). Esse soldado ostenta valores próximos aos do romanceiro de cavalaria, como valentia e honra (dispensou o soldo, preferiu ir brigar, está disposto a morrer). Vá lá que o negro tenha mudado em relação à sociedade, persiste, contudo, a inquietação sobre se a sociedade mudou em relação ao negro. E um aguilhão aí está à espreita: por que os batalhões verde e amarelo eram constituídos, em sua maioria, por pretos e pobres?
Alguns sambas e marchas glosaram o lema latino, de Horácio e de Virgílio, pro patria mori.4 Contudo, se a Pátria é genitora, muitos de sua prole podiam ser vistos feito bastardos ou enjeitados. Se a Pátria é berço, muitos pareciam desterrados. Se a Pátria é o leito de morte dos antepassados, demasiadas eram a indigência, as covas rasas e as valas comuns. Se a Pátria é solo, berço, leito e chão, como entender tantos conflitos, tamanhos massacres? Se a Pátria é paisagem, a linha do horizonte segue a ondulação dos morros e espraia-se pelas periferias. Se a Pátria é lar, pontificam os barracos, casebres e zungus. Eis, enfim, uma pátria de párias.
Em maio de 1942, os “Anjos do Inferno” lançaram pela gravadora Columbia o samba “Mulato patriota”, da autoria de David Nasser e J. Batista.
Mulato patriota
Eu vivo num barraco no São Carlos
Onde há paz e harmonia
Onde há samba noite e dia
Eu tenho uma nega, um violão
Um herdeiro que mais tarde
Ficará com o barracão
(Meu Deus, que “bão”)
Mas, se a pátria precisar
Boto meu fuzil no ombro
Largo tudo e vou brigar.
Vocês estão pensando
Que estou contando lorota
Sou mulato patriota
Meu sangue nunca negou
Tem lá em casa um baú
Que por dinheiro nenhum eu dou
Dentro tem uma medalha
Que foi do meu bisavô
(Que em campanha ganhou).5
A vida que se descreve no samba é humilde porém feliz. Um teto, a companhia da esposa e filho, distração diuturna. O violão, destacado entre os bens do narrador, não distava muito, havia sido visto como algo marginal, próprio ao ócio e à boemia. Indício dessa maneira de ver as coisas pode ser rastreado em singela cantiga de roda anotada por Heitor Villa-Lobos: “Pai Francisco/ Entra na roda/ Tocando seu violão/ Dararão, dão, dão/ Vem de lá seu delegado/ E pai Francisco/ Vai pra prisão” (VILLA-LOBOS, 1941, p. 88). O trabalho não é tão valorizado (e como seria, se os sambas soavam incessantemente) nem bem o dinheiro. A sugestão é de que contariam mais alguns deleites e brios. São Carlos era o morro que encimava imediações tão decantadas como a Praça Onze de Junho (palco do Carnaval, balança de façanhas fonográficas) e o Largo do Estácio de Sá, em meio ao tráfego de bondes e ladeado por uma escola normal, uma casa de correção e uma zona de meretrício. Os foliões daí criaram uma “batida diferente”, deram andamento diverso ao samba: seria a diferença entre “Jura”, de Sinhô, e “Se você jurar”, de Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves. Esse novo estilo de samba (e de sambar), além do ritmo, insinuava-se também nos assuntos e na dicção, apresentando-se como berço e reduto de bambas, valentes e malandros (FRANCESCHI, 2010; OLIVEIRA FILHO, 2002; SANDRONI, 2001). A medalha ganha em combate pelo antepassado tinha valor, mas não tinha preço. Era um atestado de honra que não cabia vender ou penhorar.
Na performance, os “breques” realçam trechos, quebram cadências e desestabilizam sentidos. Quando canta sobre a honraria conquistada em combate por seu ancestral, isso pode aludir a duas ocorrências principais: à Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) ou à Campanha de Canudos (1896-1897). No libelo antiescravista publicado em Londres, em 1883, Joaquim Nabuco sentenciava em relação à Guerra do Paraguai: “Os títulos de nobreza concedidos aos senhores que forneciam escravos para o exército, mostram o interesse que tinha o Estado em achar soldados entre os escravos” (NABUCO, 2002, p. 55). A rigor, inexistia serviço militar obrigatório no Brasil do século XIX e o recrutamento não abrangia os escravos, por não serem considerados cidadãos. Para formar os contingentes, eram empreendidas verdadeiras “caçadas humanas”. Negros podiam ser alforriados para servir no lugar de seus senhores. E havia a Guarda Nacional, organizada de maneira própria. Sérgio Buarque de Holanda considera que o ingresso nas fileiras militares era mais comum entre desprotegidos e desocupados (HOLANDA, 2005, p. 381). A opção pelo serviço militar e os casos de voluntariado contrastam com os estratagemas que eram acionados por uns que tinham poder econômico ou influência política para burlar sorteios e recrutamentos. De modo tortuoso, o samba recorda a cor e a condição social de grande parte dos pracinhas.6
E se, porém, a “campanha” aludida no samba fosse a de Canudos? Euclides da Cunha - no “Caderno de Lorena” e em rodapé da “Nota Preliminar” de Os Sertões - evoca Tucídides e o ideal de narrar os acontecimentos sopesando-os pela crítica dos testemunhos. Mas, será que a imagem do conflito que dilacerou a Hélade não indicava também o trágico das guerras internas? As analogias com a Antiguidade iam além: quando o politécnico sintetizava o estranhamento dos expedicionários frente a outros hábitos, paisagens e gentes, a impressão, enfim, de sentir-se fora do Brasil, o afastamento da pátria e a perturbação da unidade nacional, tudo isso, reverberava o sentimento antigo dos idos de Ulisses de surpreender-se estrangeiro em sua própria terra. Eloquente é a ordem do dia do comandante da primeira coluna da Quarta Expedição, segundo a qual, durante cinco anos na Guerra da Tríplice Aliança, nada vira parecido com a chuva de balas que partia das trincheiras dos jagunços, na demanda da conquista do alto da Favela. Vários dos que combateram em Canudos, de regresso ao Rio de Janeiro, chamaram de “Favela” a um dos morros que emolduram a cidade. Nos glossários da obra de Euclides, fica-se sabendo tratar-se de uma “euforbiácea ou leguminosa” que vicejava no morro desnudo e áspero, ao sopé do qual se alastrava o mundéu de vielas e taperas dos beatos do Conselheiro. E num “ensaio de psicologia do soldado brasileiro”, o escritor observou que os recrutas iam às batalhas como se fossem a algum folguedo turbulento. A “guerra do fim do mundo”, todavia, não foi um entrudo. Bacamartes, clavinotes, trabucos, lazarinas e pederneiras eram manejados pelos magotes de jagunços, e o exército brasileiro munido com artefatos bélicos da indústria europeia, principalmente alemã: mosquetões Comblain, metralhadoras Nordenfeldt, carabinas Mauser, obuses Schrapnels, canhões Krupp e Withworth 32 (apelidado pelos sertanejos de “A Matadeira”), rifles Mannlinchers e até dinamite. Para combater um povo que, Euclides viria a reconhecer, somente defendia o lar invadido (CUNHA, 1995, p. 97-515).
Em “Mulato patriota”, uma das lutas é contra os preconceitos de sangue e cor, daí que retoricamente o âmbito cívico prevalece em relação ao ambiente doméstico. Se fosse necessário, para de sambista fazer-se soldado, ele renunciaria à paz e harmonia de seu casebre, largaria afazeres e prazeres cotidianos, daria adeus à esposa e ao filho e iria para a guerra. Mas nem todos pareciam tão resolutos. Em outubro de 1943 foi lançado pela Victor o samba “Anda, nego”, composto por Vicente Paiva e Sá Roris. Gravado pela cantora Marilu, versa sobre uma cobrança amorosa.
Anda, nego
Se você gosta de mim, na verdade
Eu quero uma prova já do seu amor
Andam dizendo que negro não é gente
Você deve mostrar que num homem de cor
Também palpita um coração brasileiro
Que vibra ardentemente pelo nosso Brasil
Anda, nego, deixa a escola de samba
Mete a farda no couro e empunha o fuzil.
Quero ver meu neguinho lutando
Na linha de frente, com todo vigor
Pra combater essa gente
Que anda no mundo espalhando o terror
Deixe, agora, o pandeiro
Pra ser bom brasileiro
Honra a tua nação
Se quiser merecer meu coração.7
Mesmo nas circunstâncias de um alistamento militar ampliado e exigido (formalmente, desde a presidência do marechal Hermes da Fonseca e, de forma mais direta, a partir do decreto nº 1.187, de 4 de Abril de 1939), alguma dose de propaganda, ainda que não fosse oficial, seria bem-vinda. Nem tanto como peça de convencimento, visto que para muitos setores (homens maiores de idade, funcionários públicos) isso era obrigação. Tratava-se de tentar convencer o restante da sociedade e legitimar a importância da caserna para a casa. Em “Anda, nego”, o elemento masculino parece não estar muito preocupado com o esforço de guerra. A conflagração que lhe interessa está entre as escolas de samba. É a personagem feminina que cobra decisão e virilidade. A provação, porém, não seria apenas de fervor cívico. Caberia atestar a humanidade das gentes de cor. Afinal, quem dizia que negro não era gente? Afirmações assim seriam exclusivas das doutrinas totalitárias? De fato, racismos e ressentimentos nacionais foram decisivos na Segunda Guerra. Os preconceitos contra judeus, negros e ciganos não tiveram início aí e, infelizmente, também não tiveram aí seu fim. A voz de mulher em “Anda, nego” tem algo de Penélope, que entende e exige que seu Ulisses arrisque a vida em nome de uma civilidade. Ele precisa afastar-se para que seu retorno seja ansiado. O amor à pátria (também ela uma espécie de mãe) condiciona o amor erótico. A historiadora Michelle Perrot examinou discursos que recomendavam que os homens, em situações específicas, precisariam afastar-se das mulheres. Isso, em decorrência de representações da sexualidade feminina como arrebatadora e insaciável. As fêmeas esgotariam as energias dos varões. O soldado ou o atleta deviam privar-se dos prazeres das amantes (PERROT, 2013, p. 65).
Mas, viver debaixo do mesmo teto também poderia ser uma “guerra”. Rosina Pagã foi a intérprete de “Desculpa de ocasião”, samba-choro de Herivelto Martins e Darci de Oliveira, lançado pela gravadora Odeon, no qual a voz feminina interpela o companheiro (vislumbrado ainda como uma espécie de provedor) sobre as más condições daquela vida a dois. A resposta meio malandra vinha urdida a partir de preceitos do esforço de guerra.
Desculpa de ocasião
Qualquer coisa que eu reclame
A resposta eu sei de cor
Você vive me dizendo:
- Na Europa está pior
Se eu passo sem almoço
Sem jantar, sem alimento
Você diz que é ensaio pro racionamento
Moramos num porão sem o menor asseio
Você diz que é refúgio contra bombardeio
Se eu digo que você está todo rasgado
Você diz que é disfarce, que está camuflado
Nesse país imenso aonde a paz é mato
Você falar em guerra é um desacato
E assim continuando
Eu vou tratar do meu lado
Aí mesmo é que você acabará bombardeado
(Sem essa vítima a seu lado).8
O disco com “Desculpa de ocasião” foi lançado em junho de 1942. Antecede, portanto e por pouco, a declaração brasileira de beligerância em relação aos países do Eixo, datada de 22 de agosto do mesmo ano. A voz feminina roga a mobilização de seu “neguinho”, porém, para as batalhas da vida. O afeto pátrio soa quase acessório. Somente se diz ser o país grande e pacífico. O cotidiano das pessoas pobres nem por isso seria menos árduo ou desafiante. Comida, vestimenta, moradia, tudo isso representava algo a ser conquistado. A voz masculina (expressa indiretamente) malandramente fazia uso de diretrizes da retórica militar e governamental para tentar resolver as coisas dentro de sua maloca. Lemas do esforço de guerra podiam ser apropriados e invertidos como um jeito de deixar as coisas como estavam para ver como iam ficar. “Desculpa de ocasião” trata da luta pela sobrevivência e das astúcias para contornar algumas exigências. Embora o fecho desse samba seja uma ameaça de separação, tem-se que apelos aos discursos de mobilização e civismo podiam vir a calhar como argumentos nas tentativas de superar crises conjugais, exigindo do outro sua quota de sacrifício, sem compromisso recíproco e equivalente ou expectativa de recompensa. Mesmo que os “lances” de apropriação malandra dos discursos oficiais nem sempre fossem eficazes, sua ocorrência assinala bastante significância e diversos significados. “Desculpa de ocasião” é de antes da entrada do Brasil na guerra, mas do tempo da ditadura do Estado Novo! Sobre esse regime, que valha a lembrança de Mário Lago de um gracejo de Alberto Ribeiro, que afirmava que a “voz orgulho do Brasil”, o tenor Vicente Celestino (que começara sua carreira cantando em picadeiros e palcos, sem auxílio de microfones), era o “único que gritava sem acabar preso” (LAGO, 1977, p. 71). Um berro podia dar cadeia; posta em samba, talvez a mesma reivindicação ou crítica encontrasse brechas.
A dureza do batedor
Podia ocorrer de o “soldado sambista” expressar laivos de malandragem. A dupla Zé & Zilda lançou em outubro de 1943 o samba “Fim do Eixo”.
Fim do Eixo
Hitler, Mussolini e Hirohito
Já são três peixinhos fritos no azeite de dendê
Quanto mais o tempo dá o suíte
Mais me abre o apetite
Desses peixinhos comer
Eu peço todo dia à minha sorte
Que antes da minha morte
Eu quero ter esse prazer de ver
Hitler, Mussolini e Hirohito
Na Pedreira São Diogo
Pulando feito um cabrito
Hitler com uma broca na mão
Uma marreta, uma enxada, um enxadão
E Mussolini numa grande sinuca
Bancando o mestre-cuca
Em volta de um caldeirão de macarrão
E Hirohito no carrinho de mão
Carregando macadame
Pra encher um caminhão.9
O compositor de “Fim do Eixo”, José Gonçalves, era cavaquinista e residente em Mangueira. Por muitos anos foi apresentado pela alcunha de Zé com Fome. Ao conhecer sua parceira nos palcos e na intimidade, ficou sendo o Zé da Zilda e ela a Zilda do Zé, formando a dupla Zé & Zilda. Tal samba pode certamente ser entendido como daqueles de “sátira aos chefes inimigos” (conforme classificação de Gracio Barbalho) ou de crítica “às figuras, símbolos e costumes representativos do nazifascismo”, de acordo com os modos elencados por Jairo Severiano. Primeiramente, o alemão, o italiano e o japonês eram rebaixados a uma condição de animalidade, viravam “peixinhos”. Ressalte-se, entretanto, que os apelos à zoomorfia nem sempre se faziam para o achincalhe. Basta lembrar que tropas brasileiras escolheram o avestruz e a cobra (até respondendo à provocação de Vargas que afirmara ser mais fácil uma cobra fumar que o Brasil entrar na guerra) como seus mascotes. Nos sambas sobre a guerra é possível encontrar caracterizações elogiosas dos soviéticos como ursos, da Inglaterra como um touro e dos que combatiam no norte da África como camelos. O interessante seria a intimidação através de força e ferocidade descomunais. Para o deboche eram acionadas as imagens da serpente, do gambá, da galinha verde e do papagaio, as últimas servindo também para identificação dos integralistas. Ao tratar pessoas como bichos - para negar humanidade ou frisar bestialidade - fica mais saliente o aspecto irracional das guerras. Curioso é o caso da “Lurdinha”: figuração antropomórfica e anímica de uma metralhadora. Pessoas tratadas como animais e coisas tratadas feito gente, isso é bem um emblema da desrazão bélica.
Em “Fim do Eixo”, ao dispor-se à chacota das lideranças da “trinca perversa”, contudo, José Gonçalves acabava por incorrer na ideia de que o trabalho é uma pena. O batente seria, assim, um modo de pagar, ao invés de receber, pelo que se faz. Mesmo os supostos pendores correcionais do trabalho radicavam na ideia de que a regeneração do espírito viria de fadigas e suplícios corporais. A imprecação do sambista traduz a vontade de ver os “grandes” pegando no pesado, exercendo esforços físicos, em ambientes insalubres, batendo a terra, quebrando pedra. O que se rogava eram extenuações. Que as penitências se inscrevessem nas carnes! Se não derramassem sangue, ao menos que vertessem suor! A visão do trabalho como castigo destoava da prédica do regime brasileiro, tendente a afirmar a labuta como dignificante. Ressoa no samba de Zé da Zilda algo da dicção malandra que enxerga o batente como coisa de otário.
A questão, porém, torna-se mais intricada à lembrança de outros sambas também alusivos à pedreira de São Diogo. “Dormi no molhado”, criação de Moreira da Silva, foi gravado pelo autor com Garoto (Aníbal Augusto Sardinha) e seu conjunto e lançado pela Odeon em maio de 1942. O tema aí não é a guerra, mas uma reprimenda a um jovem que pedia esmolas. Concomitantemente à sua carreira radiofônica e discográfica, Moreira da Silva teve diversos empregos, dentre os quais o de motorista de ambulância. A imagem do “Tal” (apelido dado pelo locutor César Ladeira) esteve, contudo, bastante associada à figura do malandro, o que era reforçado por inúmeras gravações, como “Jogo proibido” (“Não quero outra vida/ Senão jogar chapinha/ De cerveja Cascatinha/ Navalha no bolso/ Lenço no pescoço/ Chapéu de palhinha/ Eu ando melhor/ Do que qualquer doutor…”).10 Em “Dormi no molhado”, ao afirmar não sentir compaixão de um rapaz de pouca idade e de talento que não queria trabalhar, o compositor enumera uma série de situações difíceis e ocupações pesadas, dentre as quais: “Eu enfrentei uma marreta/ Na Pedreira São Diogo/ Quebrando pedra bonita/ Passando a pão e a linguiça”. Em outro samba-choro de crítica ao hábito de mendigar dinheiro, “Me dá, me dá”, da autoria de Portelo Juno e Cícero Nunes, gravado em 1937 por Carmen Miranda com Benedito Lacerda e seu regional, o breque final sentenciava: “Vai quebrar pedra na pedreira que é bem bom pro seu pulmão”.11 Ao pé da letra, a mendicância não seria malandragem. Certos expedientes, mesmo que não fossem sempre os expedientes certos, como cafetinagem, jogatina e pequenos golpes, existiam para quem quisesse “arrumar” dinheiro. Isso seria diferente de suplicar tostões e vinténs.12
No morro de São Diogo havia um mangue e uma pedreira. Depois, quiseram fazer passar pelos arredores uma estrada de ferro. Tudo isso demandava trabalhos pesados. Zé da Zilda, ao imaginar como castigo supremo para os líderes inimigos uma série de encargos penosos (quebrar granito, carregar calçamento de estradas, mexer fervuras), talvez tivesse em mente a ideia de pecado. Se a guerra assinalava de vez um paraíso perdido, a condenação havia de ser infernal, daí a projeção da fritura em óleo e de tormentos físicos. Ou será que por linhas tortas chega-se a uma releitura do catecismo liberal que apregoa que o trabalho dignifica o homem? E a correção de homens indignos estaria em trabalhos proporcionalmente mais cheios de suplícios? Afigura-se, assim, mais uma ameaça de pauperização dos ofícios manuais e de marginalização de seus executantes. O espectro que ronda a ironia de Zé da Zilda é que, em um país de ranço colonialista e escravocrata como o Brasil, várias ocupações manuais foram vistas com desprezo. Na marcha “Três palhaços na berlinda”, lançada por Ataulfo Alves em março de 1943, o desejo dos compositores (Alocin, Odausico Mota e Nelson Trigueiro) era ver Hitler, Mussolini e Hirohito “marcando passo de pá e picareta na mão/ abrindo estrada lá no sul do Maranhão”.13 É tudo muito engraçado e muito sério. Além do menoscabo do batedor de muita gente honesta, o charme da canção ainda opera uma apartação dentro do próprio país: tanto se escracha o fato de o Maranhão parecer remoto quanto o de se tentar abrir comunicações para lá. Suburbano, nortista, sertanejo, operário… marcas de nossos preconceitos, chistes, afãs de domínio e punição em relação ao outro. Mesmo sendo ele um de nós.
Linha dura, corpo mole
O debate historiográfico beneficiou-se muito com estudos que intentavam frisar o lado autoritário e repressivo do Estado Novo. As análises tendiam a destrinçar os ardis da censura e da propaganda, bem como a denunciar a polícia política, os ódios étnicos e religiosos, os excessos dos apologistas do regime e os ataques à cidadania. Problematizava-se, inclusive, o quanto a História teria sido mal contada, pela monumentalização da versão dos vencedores ou pelo apagamento de rastros contraditórios. Se a “mestra da vida” tinha alguma lição, talvez fosse a de que o passado deveria ser conhecido como forma de evitar-se o perigo de sua repetição. Cabia desvendar os truques da simbologia e da retórica autoritárias como meio de reduzir sua eventual eficácia. O ímpeto historiográfico da denúncia, contudo, podia, aqui e ali, sobrepesar o raio de atuação e eficiência dos órgãos de censura; como se o ideal dos discursos tivesse sido completamente posto em prática. A partir do recorte da chamada “música popular”, tal abordagem aparecia, por exemplo, na temática da malandragem: o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) censurava tudo, os compositores foram cooptados, a prédica do trabalhismo foi introjetada, o Bonde São Januário leva mais um operário, como consignado na pioneira investigação de Antonio Pedro Tota (1980) sobre o Samba da legitimidade.14 Mas, quando Aristheu Achilles, na brochura Aspectos da Ação do DIP, editado por esse Departamento em 1941, ao comentar as responsabilidades das Divisão de Rádio, informava que “foram censuradas milhares de letras para serem musicadas” (ACHILES, 1941, p. 63) e, em 1940, o número de vetos chegava a 373, duas leituras, que não são necessariamente excludentes, podem ser suscitadas. Se havia tanta censura, quiçá fosse limitado o convencimento. Do mesmo mês e gravadora que “O Bonde São Januário” (Wilson Batista e Ataulfo Alves) é “O Bonde do horário já passou” (Haroldo Lobo e Milton de Oliveira), que passou até pela censura, não obstante contasse o caso de um operário que todos os dias da semana urdia nova desculpa para fugir ao batedor. Amiúde, recorreu-se até ao conceito de “totalitarismo”. Decerto, aqui pontificava um líder carismático e havia a ideia de movimento, de pôr-se em ação. Os entes federados foram suprimidos em nome da centralidade da União e funcionavam também órgãos secretos e polícias especiais. Todos esses pontos convergem com apanágios do totalitarismo, contudo a diferença crucial entre ditaduras, tiranias e regimes totais talvez radique no índice de convencimento, proporcional ao nível de atomização, de sua população. Vários estudos ajudaram a perceber que existem desejos de controle, projetos de controle, controles efetivos; mas, também, limites, burlas, sabotagens, pressões, confrontos, atenuações etc. A leitura dessas denúncias podia suscitar curiosidades respeitantes a possíveis brechas, não para amenizar a feição policialesca e ditatorial do regime, mas como inquietações acerca de indícios de “resistências”, “conflitos”, “contrapartidas” ou “táticas”, de grupos e indivíduos. Uma das qualidades de uma boa pesquisa é estimular a realização de outros estudos e esse é um mérito adicional em tais trabalhos.15 A procura de um ponto de equilíbrio entre a denúncia da censura e a percepção de artimanhas ainda tem que aprecatar-se contra outros perigos: o de transtornar o poder em musa, como se o enfretamento de situações limitadas de liberdade tornasse os autores mais criativos, inteligentes e inspirados; ou o de patrulhar artistas que, eventualmente, tenham se valido do apoio de algum regime.
Coda
Em novembro de 1942, a dupla Nhô Pai & Nhô Fio lançou, da autoria de Ariowaldo Pires, a moda de viola “O Brasil entrou na guerra”. Em uma das estrofes cantava-se que:
O Brasil entrou na guerra
Tiradentes e Caxias
Floriano, Santos Dumão
O preto Henrique Dias
E o índio Camarão
Seja branco, preto ou bugre
Nós semos tudo irmão
Na vida, mercê de Deus
Nessa glória de nação.16
Evoca-se aí determinado tratamento da nacionalidade cuja formulação remonta a meados do século XIX e comunica impasses e preocupações de então. Alguns pontos contribuíam para que no Oitocentos o Brasil pudesse assemelhar-se a uma “flor exótica” na América: o idioma português, uma monarquia entre repúblicas e a centralização do Estado (CARVALHO, 2003). Diferentemente dos quatro vice-reinados espanhóis - que nos processos de independência originaram dezenas de países -, aqui de dois vice-reinos derivou um Estado centralizado. Isso, porém, ocorreu de forma tumultuada tanto no campo político quanto no das ideias. Uma das inquietações era a de que ao Estado não pareciam corresponder povo ou sentimento nacional. Mesmo em 1907, Capistrano de Abreu (1988) concluía seus Capítulos de História Colonial ponderando que a obra de três séculos de colonização, afora a aversão ou desprezo pelo português, não conseguira que cinco grupos étnicos, ainda que ligados por língua e religião, sentissem apreço ou solidariedade uns com os outros. E Capistrano era dos maiores conhecedores da obra do Visconde de Porto Seguro, tendo assinado seu necrológio e trabalhado incessantemente na edição anotada da História Geral do Brasil.
Francisco Adolfo de Varnhagen foi o formulador de uma proposta bastante influente de identidade nacional. Na História Geral do Brasil (publicada entre 1854 e 1857) e na História das lutas com os holandeses no Brasil: desde 1624 a 1654 (redigida durante a Guerra do Paraguai e editada em 1871) esse confrade meio rebelde do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) argumentava que o sentimento de nacionalidade remontava suas origens à quadra colonial, quando da união entre brancos (personificados em André Vidal), índios (potiguares, Felipe e Ana Camarão) e negros (batalhão dos Henriques) contra o invasor, o estrangeiro, tratado muitas vezes como herege. O século XVII regia-se pela lealdade a casas dinásticas e não propriamente pela ideia de estado nacional, que viria a ser própria do período em que Varnhagen estava escrevendo. A identidade seria reforçada pela diferenciação, pelo contraste com o outro; mais até que firmada a partir de afinidades e afetos comuns.
Em julho de 1942 foi lançado mais um disco do “cantor das multidões”. Orlando Silva interpretava, da autoria de Ataulfo Alves e Wilson Batista, o samba “Terra boa”:
Terra boa
Que terra boa
Para se ganhar o pão
Tem batucada, tem luar, tem violão
Terra da liberdade
Onde o verso é um esporte
Por essa terra
Dou meu peito à própria morte
Terra que tem ferro e aço
Pra viver a eternidade
Canta a ave no espaço
O hino da liberdade
Tem lourinhas, tem morenas
Desde o sul até o norte
Por essa terra
Dou meu peito à própria morte
Terra de Santos Dumont
Carlos Gomes, Rui Barbosa
Grande Duque de Caxias
Castro Alves, Noel Rosa
Tem ainda um grande homem
Destemido e braço forte
Por essa terra
Dou meu peito à própria morte.17
“Terra boa” é uma síntese de aspectos e complexidades das canções de guerra e das relações entre música popular e política nos idos da década de 1940. A verve do samba é uma alusão ao trecho da letra do “Hino Nacional Brasileiro” - escrita por Joaquim Osório Duque Estrada e oficializada nos festejos do Centenário da Independência - que versava sobre o desafio de morrer em prol da liberdade. A estrutura é quase de partido-alto, com a glosa de um lema/tema que no caso é o “por essa terra/ dou meu peito à própria morte” que evoca o “desafia nosso peito a própria morte” do hino cívico. A melodia de Francisco Manuel da Silva (realçada pelas orquestrações de Alberto Nepomuceno e Leopoldo Miguez) desfrutava apreço e despertava entusiasmo. É sentimental, pretende-se mobilizadora. Tocada por bandas, em coretos, desfiles, escolas, solenidades, gravada em discos, irradiada… trata-se de composição conhecida e altamente exitosa em suas funções simbólicas. O sucesso comercial não lhe serve de medida, mas, como intuíram os bambas Ataulfo e Wilson, podia beneficiar-se de uma “casquinha”, uma evocação do hino. A terra era boa, embora não fosse mais um paraíso: era preciso ganhar o pão. Mas, logo em seguida, os atenuantes dos luares e batucadas. “Liberdade” no hinário cívico tem mais comumente as acepções de independência política e igualdade em relação às outras nações. No “Hino da Proclamação da República”, de Leopoldo Miguez e Medeiros e Albuquerque, “liberdade” diz respeito ao fim do cativeiro e escravização, no samba “Terra boa” o termo e a ideia aparecem reiteradamente, inclusive com o recurso às imagens da ave e do voo. Ainda que a expressão “é um esporte” fosse usual, uma gíria, não deixa de ser possível pensar em jogo, no uso tático de regras, riscos imponderáveis etc. Afirmar o Brasil como “terra da liberdade” no auge da ditadura varguista não poderia ser uma maneira de jogar com a censura? Acenos simpáticos também eram destinados à propaganda, com menção à siderurgia, indústria estratégica para os esforços de guerra e elemento de barganha para a entrada do Brasil no conflito. Ferro e aço, signos do progresso, serviriam ainda para perpetuar tradições. Os efeitos corrosivos da passagem dos dias é como se quedassem amainados, gravando no metal eventos, vultos e visões da memória nacional. As canções de guerra podem ser pensadas como contidas em conjunto maior, o do chamado “samba-exaltação”, cujo protótipo foi fixado por “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso. São característicos aí o elogio à natureza, ao traço sentimental de seu povo e à alegria de sua gente. Mas aí também perseveram ambiguidades: não é cômodo predicar a positividade do trabalho em um país no qual a natureza é rica e bela (convidando à contemplação). Os encômios à beleza das gentes daqui muito facilmente deslanchavam para uma visão sensualizada e hedonista. Em “Terra boa”, a paráfrase não é apenas em relação ao Hino Nacional, mas também ao “Hino do Carnaval Brasileiro” (Lamartine Babo), dentre tantas outras marchinhas que (de)cantam atrativos eróticos de mulatas, lourinhas e morenas. O samba-exaltação é antes de tudo uma exaltação do samba, festa e gênero musical que era visto por muitos como coisa de pretos, pobres, ignorantes e degenerados. É astuta e audaz a inclusão de Noel Rosa no rol dos heróis da nação. Deve-se lembrar que Wilson Batista, um dos autores de “Terra boa”, ficou tristemente célebre como rival em intensa “polêmica” discográfica com o “filósofo cantor”, falecido em maio de 1937.
A experiência trágica da guerra também foi tratada pela ótica do humor.18 “Haja pão/ Que é negócio da China”. Essas são as linhas iniciais de “Haja pão!”, marcha de Felisberto Martins e Russo do Pandeiro, lançada por Joel e Gaúcho, em janeiro de 1944. Explorando o cacófato, os versos dão conta de duas situações diferentes, porém, relacionadas: no plano internacional, na guerra na frente oriental, o Japão como inimigo do exército chinês; no âmbito interno, contudo, a sacada é de que, em tempos de carestia e racionamento, a panificação seria algo lucrativo. Em um caso, a estratégia de guerra entre dois povos acostumados a antigas contendas nas áreas do Oceano Índico das quais procuravam assenhorar-se; em outro, o desejo de lucro, mesmo que às custas da exploração do semelhante (o freguês) e dos expedientes do jeitinho (em relação às regras do esforço de guerra). Em resumo: alguns sambas e marchas, mesmo que camuflados, apresentaram caracterizações do trabalho como suplício; fizeram elogios ao soldado capoeira e meio malandro; lembraram que o panteão das guerras não é feito somente de generais, mas também do pé de poeira; rogaram por democracia e liberdade; apontaram rancores, ódios e preconceitos internos; e inventaram piadas e protestos contra o racionamento e a consequente exploração no comércio de produtos como açúcar, carne, trigo, gasolina e papel. Aqui e acolá, nos sambas e marchas da época da Segunda Guerra despontam, portanto, a crônica e a crítica de muitas das batalhas em nosso país.
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Notas
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