Resumo: Amparado em documentos produzidos por agentes repressivos, o artigo demonstra a presença do discurso de “ameaça/defesa da família” durante a ditadura militar no Brasil (1968-1985). Para as comunidades de informação e segurança, a subversão comunista visava destruir a família. O tema esteve inscrito nas fontes de natureza repressiva em diferentes fases da ditadura. A politização da moral se conectava a uma tradição anticomunista e conservadora atualizada por mudanças e novos perigos percebidos naquele contexto. O texto oferece elementos para compreender os pressupostos que orientavam a escrita repressiva, bem como problematiza o modelo de família que era alvo de preocupações dos anticomunistas. Sugere a hipótese da racialização enquanto uma chave interpretativa necessária para analisar criticamente esses discursos.
Palavras-chave: Ditadura militar, família, anticomunismo, racialização, racismo.
Abstract: Supported by documents produced by repressive agents, the article demonstrates the presence of the “threat/defense of the family” discourse during the military dictatorship in Brazil (1964-1985). For the intelligence and security communities, communist subversion was aimed at destroying the family. The theme was inscribed in sources of a repressive nature in different phases of the dictatorship. The politicization of morals was connected to an anticommunist and conservative tradition updated by changes and new dangers perceived in that context. The text offers elements to understand the assumptions that guided repressive writing, as well as problematizes the family model that was the target of anticommunist concerns. It suggests the hypothesis of racialization as a necessary interpretive key to critically analyze these discourses.
Keywords: Military dictatorship, family, anti-communism, racialization, racism.
ARTIGO
“EM DEFESA DA FAMÍLIA”: DITADURA, ANTICOMUNISMO E RACIALIZAÇÃO NA ESCRITA REPRESSIVA (1968-1985)1
“IN DEFENSE OF THE FAMILY”: DICTATORSHIP, ANTICOMMUNISM AND RACIALIZATION IN REPRESSIVE WRITING
Recepção: 31 Dezembro 2022
Aprovação: 08 Agosto 2023
A ditadura militar brasileira construiu inimigos permanentes ao longo da sua história. Um panteão pernicioso foi elaborado classificando sujeitos tidos como indesejáveis. Dentre eles, o subversivo, o terrorista e o revolucionário estiveram no topo da pirâmide estruturada pelo anticomunismo. O vocabulário repressivo alimentou diferentes práticas oscilando entre a eliminação, a suspeição, a perseguição, a tentativa de controle e a vigilância. Um vasto repertório de estigmas foi acionado, pois, para os agentes da repressão, os indivíduos a serem combatidos agiam em grupo colocando em risco não apenas o governo e o regime, mas a pátria, a nação, a vida social e a moral (VELHO, 1999). Sempre alerta para a contestação abertamente política, a ditadura não descuidou de politizar aquilo que lhe parecia subversão moral. E frações das comunidades de segurança e informação pautaram sua atuação na percepção e produção dessa ameaça.
Nessa história do pânico, o medo foi uma emoção recorrentemente mobilizada e a juventude foi alvo de preocupação sistemática. A normatização da vida, a preocupação com o comportamento e o discurso da (des)ordem se estenderam para diferentes dimensões da vida social de parcelas de jovens (FILGUEIRAS, 2006; BRAGHINI, 2015; KAMINSKI, 2016; COWAN, 2016; LANGLAND, 2018; BARBOSA, 2021). Paralelo a políticas governamentais direcionadas para as juventudes, um arsenal de textos foi produzido por agentes repressivos a respeito do chamado campo dos costumes. E um dos temas mais picantes daquela burocracia repressiva foi a associação entre comunismo, contestação juvenil e desagregação familiar. Veiculava-se o discurso de que a estratégia de subversão comunista passava pela destruição da família. Mas quem produzia e difundia esses textos? Quais argumentos e pressupostos estão presentes nesses documentos? Este artigo demonstra e discute como o tema da ameaça à família foi mobilizado por agentes repressivos a partir de preocupações com a subversão da juventude.
A menção ao discurso da defesa/ameaça à família é algo presente na farta historiografia sobre a ditadura no Brasil. Perpassa trabalhos sobre o anticomunismo (MOTTA, 2002; RODEGHERO, 2002; SAMWAYS, 2014), as marchas das mulheres (SIMÕES, 1985; PRESOT, 2004; SANTANA, 2009; PRESOT, 2010; CORDEIRO, 2021), a disciplina Educação Moral e Cívica (FILGUEIRAS, 2006), o AI-5 (LANGLAND, 2008), a censura (FICO, 2002; MARCELINO, 2011; SETEMY, 2018), as batalhas de gênero e os escritos da Escola Superior de Guerra (DUARTE, 2011; 2014), o anticomunismo militar (SOUZA, 2009), as crises militares (CHIRIO, 2012), as homossexualidades (QUINALHA, 2021), a subversão moral-sexual (COWAN, 2016), a repressão às universidades (FARIA, 2017; LIMA, 2017), o campo dos costumes (LONGUI, 2015), a contracultura (KAMINSKI, 2016), o pânico moral (SANTOS, 2021), os comportamentos e programas de TV inadequados para as crianças (RIOS, 2022), as comunidades de segurança e informações (FICO, 2001), etc.
Não obstante a contribuição historiográfica dessa bibliografia, o tema se dilui nessas pesquisas. Os trabalhos não estiveram focados em demonstrar exaustivamente como a preocupação em torno da família pautou o discurso das “forças de segurança”. Essa é a principal razão acadêmica que justifica este artigo. Amparado em fontes de natureza repressiva, o objetivo é evidenciar a presença do argumento sobre o ataque à família e refletir sobre a questão, os argumentos elencados e as principais preocupações dos agentes. A mobilização desse tópico na cena contemporânea brasileira – especialmente nas eleições de 2022 com o lema “Deus, Pátria e Família” – por atores que disputaram projetos de poder acrescenta uma dimensão de presente que sedimenta a importância dessa reflexão.
Utilizando fundos documentais de natureza repressiva depositados no Arquivo Nacional Distrito Federal (ANDF), pesquisa desenvolvida desde 2016 evidencia a presença discursiva do perigo comunista como uma “ameaça à família”. De um lado, a seleção da documentação seguiu rastros de outras pesquisas tanto na análise de documentos específicos quanto na reflexão para a elaboração de palavras-chave, temas e questões mais gerais. Um desses trabalhos inspiradores foi a seção 2 do texto temático “Ditadura e homossexualidades” (BRASIL, 2014) presente no volume II do Relatório da Comissão Nacional da Verdade. Um dos documentos citados chamou nossa atenção pelo título: “MCI, tóxico e subversão”. Fizemos solicitação por e-mail e conseguimos uma cópia digital junto à Supervisão de Acesso e Difusão do Acervo (Sudac)/Coordenação-Geral Regional do Arquivo Nacional no DF (Coreg-ANDF) em dezembro de 2016. Esse e outros documentos já tinham sido mencionados por Benjamin Cowan (2015) em um capítulo que inspirou a elaboração temática do Relatório e foi posteriormente publicado na coletânea organizada por Quinalha e Green (2015). Após o contato com o texto da CNV, a leitura de Cowan também serviu de guia para pesquisar em 2017, no Arquivo Nacional DF, o documento intitulado “Infiltração subversiva no meio universitário em Brasília”. Convém sublinhar que os dois documentos veiculam preocupações em torno da família.
Por outro lado, apesar das dificuldades em decodificar as ferramentas de busca, foi possível viabilizar 37 documentos (totalizando 279 páginas) solicitados, digitalizados e enviados pela Sudac/Coreg-ANDF por e-mail em 17 de agosto de 2017. Essa foi a estratégia utilizada para penetrar minimamente naquele “mundo dos arquivos” (CATELA, 2002), ainda que não oriunda da experiência de abrir, fechar, descartar e aproveitar caixas, tampouco da sensação tátil de sentir a textura documental (FARGE, 2009).
Procedimentos de busca à parte, esses documentos nasceram de agências repressivas a serviço do Estado e da ditadura – SNI, CIE, Cisa, Polícia Federal etc. Embora existam diferenças entre as agências, o material encontrado tem características semelhantes – documentação sigilosa de natureza anticomunista ou moralista, preocupada com a dimensão dos costumes e reiterativa a respeito da ameaça da família – e foi produzido a partir das turbulências de 1968 abarcando aquele contexto até a década de 1980. São fases diferentes da ação repressiva, mas persistentes no discurso do ataque à família. A documentação é descontínua. Não permite avaliar a rotina diária de produção dessas instâncias, seus métodos de trabalho, tampouco o conjunto documental produzido durante o tempo da ditadura por cada agência em escala nacional e regional.
Embora com descontinuidade, esses documentos podem ser interpretados como “testemunhos do funcionamento do órgão que os gerou”, o que “faz de cada informação e de cada documento parcelas dotadas de tempo e circunstância” (CAMARGO, 2002, p. 8-9). Ainda inspirado na autora, eles provam “o relacionamento entre as partes envolvidas” – os órgãos e as autoridades – e rotinas de produção constante de papéis confidenciais. Alguns documentos dialogam entre si; outros apresentam anexos – matérias jornalísticas, catálogo de Editora, cópias de panfletos e texto – que supostamente “provariam” os argumentos. São documentos instaurados pela lógica do sigilo e geralmente identificados com essa palavra em forma de carimbo em maiúsculas em todas as folhas na parte superior das páginas com a mensagem “O destinatário é responsável pela manutenção do sigilo deste documento”. Apesar do carimbo secreto, alguns documentos e/ou o seu teor “vazavam” e vinham a público.
São discursos de homens do Estado embasados por uma concepção de autoridade que “é formada, irradiada, disseminada; é instrumental, é persuasiva; tem posição, estabelece padrões de gosto e valor”, bem como veicula “certas ideias que dignifica como verdadeiras, e (...) [reproduz] tradições, percepções e juízos” (SAID, 1990, p. 31). Informados por essas noções, esses sujeitos se especializaram na construção de “um campo de produção e de circulação de mensagens relativamente autônomo” (FICO, 2001, p. 21) formado pelas instâncias repressivas. Produziram documentos que circularam no seu interior e entre outros campos envolvendo autoridades civis e militares. Essa comunicação constante “tinha muito de autoconvencimento por retroalimentação” (FICO, 2001, p. 100).
Não lidamos com fontes produzidas por detetives que “interpretam pistas, seguem fios condutores e montam um caso até chegar a uma convicção” (DARNTON, 2014, p. 146). Muito pelo contrário. Os documentos partem de convicções anteriores à experiência: “a experiência concreta está aí para ilustrar uma verdade que se possui, não para ser investigada, de acordo com regras preestabelecidas, em vista de uma procura da verdade” (TODOROV, 1983, p. 11). Nesse sentido, as fontes documentais veiculam verdades com V maiúsculo e convicções. A realidade está a serviço da tese.
É difícil reconstituir o mundo dos sujeitos por trás daquela papelada confidencial. Certamente existiam diferenças e conflitos, por exemplo, entre o SNI e o CIE – órgãos produtores de informações, mas oriundos de “instâncias diferentes” (FICO, 2007, p. 199). Ainda assim, ambas as agências pautaram o discurso da ameaça à família com base em pressupostos e argumentos relativamente comuns. Essa produção textual constante nos papéis secretos – escrita repressiva – assentada na politização da moral justifica a generalização na abordagem das fontes presentes neste artigo. Muitos que produziam os documentos certamente se percebiam disputando na sociedade um projeto moral, enquanto outros apenas cumpriam tarefas corriqueiras. Provavelmente diversos sujeitos se mobilizavam pelo poder de ter “a capacidade ou a possibilidade de agir, de produzir efeitos” (STOPPINO, 1998, p. 933), bem como o de acessar espaços na burocracia do Estado, recursos, prestígio, recompensas e reconhecimento. Os papéis foram produzidos por atores que ocupavam espaços e funções no aparelho de Estado – do chefe do SNI ao delegado, passando pelo agente infiltrado – e concentram recursos combinados e desiguais de poder.
Visavam “mostrar serviço”, convencer, reforçar sentimentos de identidade e justificar a luta contra a subversão moral enquanto um dos objetivos explícitos do golpe, qual seja, a “reconstrução moral da nação”: “para aqueles vinculados à área de informações, era de fato um projeto de maior alcance que se impunha atemporalmente e que acreditava que, via controle policial e militar, a sociedade poderia ser moldada de uma forma estática e desideologizada” (D’ARAÚJO, 1994, p. 24). Almejavam também municiar o Estado de informações e justificar uma narrativa legitimadora da repressão, e “uma das tópicas dessa narrativa desenvolvia a tese de que a “crise moral” era fomentada pelo “movimento comunista internacional” com o propósito de abalar os fundamentos da família, desencaminhar os jovens e disseminar maus hábitos – sendo, dessa maneira, a antessala da subversão” (FICO, 2002, p. 260).
Mobilizaram-se em torno de dogmas do anticomunismo construídos desde o século XIX – especialmente 1849 e 1871 com a Comuna de Paris (MOREIRA, 2023, p. 18) –, ativado após a Revolução Russa e os levantes armados de 1935 (MOTTA, 2002) e atualizado durante a ditadura. Tomando de empréstimo as noções elaboradas por Baczko (1985) sobre imaginário, esse grupo estigmatizava os comunistas, agia como o guardião da ortodoxia, elaborava e difundia representações anticomunistas, apresentava conflitos reais ou imaginários, fazia disputa de ideias e instigava à ação. Buscaram uma nação depurada da cor vermelha – que parecia a cor mais quente da Guerra Fria, do desvio e do perigo. Ativando o anticomunismo, imaginavam-se como os defensores e representantes da nação destituída dos seus inimigos (ANDERSON, 2008).
Essas comunidades se aproximam da “linha dura” – uma das correntes militares, cuja origem remonta a oficiais que, no imediato pós-golpe e ao longo da ditadura, defenderam uma postura de intolerância radical em relação aos oposicionistas. “Foi, de início, um grupo de pressão, que reclamava meios e modos para a tarefa de punição. Com a obtenção de tais instrumentos (sobretudo a partir do AI-2 e do AI-5, notadamente deste último), transformou-se em “comunidade” ou “sistema” de segurança” (FICO, 2007, p. 174). Se percebiam no lugar de vigilantes do sistema e gestores da ordem: reivindicavam a “ortodoxia”, a pureza dos ideais, as demandas da “revolução de 1964”, a doutrina de segurança nacional e a intransigência na luta anticomunista (COMBLIN, 1978, p. 160). Por essa razão, buscaram a “desmoralização dos ideais comunistas” ressaltando “para a população que o comunismo sintetizava tudo o que poderia ser entendido por antinacional, antiesperança, antifamília” (REZENDE, 2001, p. 55).
Esse mosaico de ideias reverberou em “barricadas morais” (RUBIN, 1992), levantadas em meio a ansiedades e pânicos diante das diferentes práticas de questionamento juvenil à ordem social que tiveram mais visibilidade a partir dos anos 1960 e atravessaram a ditadura. Em sentido amplo e nas escalas local, nacional e transnacional, os “longos anos 1960” (WESTAD, 2018) na dimensão comportamental das camadas médias urbanas juvenis foram recheados de barbas, cabelos longos, guitarras distorcidas, alucinógenos, psicodelia, ocupação de universidades, minissaia, rebeldia rocker, busca da autonomia juvenil, questionamento às autoridades e instituições, novos corpos, indumentárias e identidades jovens, etc. Por essa razão, muitas vezes os papéis secretos parecem ecoar “o contraste entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa [dos agentes repressivos] de estruturar de maneira imutável e invariável ao menos de alguns aspectos da vida social” (HOBSBAWM, 1997, p. 10).
Os contrastes, receios e representações presentes nos papéis secretos veiculam conteúdo anticomunista para retroalimentar convicções, teorias da conspiração e alimentar a ação antissubversiva numa linguagem carregada de mitos, a exemplo do complô comunista (GIRARDET, 1987). Esses homens lidavam com um “inimigo (...) [que era] apresentado, cotidianamente, como dotado de uma força demoníaca” (MAGALHÃES, 1997, p. 5). Por essas razões, é difícil não olhar para essas fontes como delírio e/ou mera instrumentalização política.
Entretanto, Motta (2002, p. 280) alerta que o anticomunismo não deve ser lido como “mero pretexto”. Gilberto Velho (1999) também recomenda cautela para evitar uma excessiva racionalização que ignore que os sistemas de acusação lidam “com emoções e não apenas com interesses claros e objetivos”. Velho (1999, p. 58) afirma que “os atores envolvidos, socializados e participantes de determinado código cultural acreditam e vivem uma escala de valores, uma visão de mundo e um ethos particulares. Portanto suas motivações não são apenas a manutenção de posições privilegiadas, a manipulação e exercício de poder”. O autor conclui que se trata da defesa também de “um estilo de vida internalizado”.
O anticomunismo e uma moralidade tradicional estruturariam esse estilo. Vistos pelos religiosos como “adversários irreconciliáveis da moralidade cristã tradicional”, os comunistas “desejariam destruir o pilar básico do edifício cristão, a família, que constituía a base da instituição religiosa e da própria sociedade” (MOTTA, 2002, p. 62). Já a moralidade tradicional tem como um dos pilares o argumento de defesa da família, a partir de uma idealização dificilmente alcançável por parcelas consideráveis da população.
A retórica da defesa da família tradicional já havia sido ativada no contexto do golpe. Simões (1985, p. 19) sublinha que, “num país de tradição católica como o Brasil, a posição da igreja em relação ao papel da mulher na família e na sociedade teve um peso ideológico inegável”. A autora explica que o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) buscou mobilizar politicamente as camadas médias contra o “comunismo ateu (...) que separaria os filhos dos pais, destruindo a família”. Para tanto, acreditou no poder arregimentador dos “valores internalizados na população através do uso exaustivo das interpelações Deus, Pátria e Família” (SIMÕES, 1985, p. 36-37). Ressalta ainda que “ao se lançar na esfera pública, aquelas mulheres não negavam o lar”. Longe disso: “afirmavam ser os ambientes privados os preferidos de sua atuação”. A “decisão de os trocar pelas praças públicas [seria uma] (...) consequência da necessidade de defender a família, as tradições, a religião e a pátria contra um ‘iminente golpe comunista’” (SIMÕES, 1985, p. 41).
Esse discurso alimentou a marcha em São Paulo antes da queda de Goulart e as marchas em apoio ao golpe. Aline Presot mapeou 69 marchas realizadas entre março e junho oferecendo “a percepção de todo um leque de imagens ligadas a um universo de temas como família, pátria, moral, ordem, religiosidade, inscritas num código de saberes compartilhados” (PRESOT, 2010, p. 88). Ideias de família, tradição e papéis de gênero alimentaram as mobilizações e ampararam a expectativa de uma vaga moralidade a ser almejada pela ditadura.
Essa vaga moralidade foi um dos elementos agenciados pela ditadura para reagir ao movimento estudantil – principal expressão reivindicatória de jovens e o setor organizado mais ativo e com ampla base social na contestação à ordem autoritária no período. Como se sabe, após um período de desarticulação com o golpe de 1964, o ME se reorganizou a partir de 1965 sob orientação de setores ligados à esquerda (MARTINS FILHO, 1987). Diversas lutas foram desenvolvidas entre 1966 e 1967. Até que as mobilizações estudantis ganharam envergadura nacional a partir da morte do estudante Edson Luís, no Rio de janeiro, em 28 de março de 1968 – antes do estopim do maio francês. A ação repressiva gerou indignação. O calendário da resistência incluiu “26 grandes passeatas em 15 capitais”; em junho houve “16 passeatas em 07 capitais”, incluindo a passeata dos cem mil no Rio de Janeiro (MARTINS FILHO, 1998, p. 18). Impactados pelo clima de “agitação cultural-revolucionária” do período (RIDENTI, 1993), os protestos estudantis ampliaram o enraizamento do movimento estudantil, despertaram a solidariedade de artistas, intelectuais, jornalistas, mães e pais de alunos e setores da igreja católica.
Sem desconsiderar as singularidades da conjuntura nacional, a reação estudantil contra a violência policial no Brasil e a resistência mais ampla à ditadura emergiram em um contexto macro de contestação no plano dos costumes. A reação militar conservadora e anticomunista não tardou. No caso do Brasil, de acordo com Chirio (2012, p. 121), “temas de destruição da família, da derrubada da moral e dos estragos provocados pelo materialismo ateu não eram, até 1968, centrais nas declarações públicas de militares, [mas] eles se tornam nesse momento as provas obsessivas do progresso da subversão”.
A violência policial nas ruas veio acompanhada de batalha linguística. E a politização da sexualidade e da moral foi pólvora na luta discursiva. O Presidente Marechal Costa e Silva comentou estarrecido sobre uma ocupação estudantil em Brasília transformada em um “lupanar” (ATA CSN, 16/07/1968, p. 29). No caso de grandes revistas, Victoria Langland (2008) constatou que, após a morte de Edson Luís, imagens de mulheres armadas e sexualmente provocativas emergiram em revistas de classe média, como a Manchete e a Realidade.
Em matéria do Jornal do Brasil, o general Albuquerque Lima afirmou que havia um “plano comunista mundial para acabar com as Forças Armadas, depois com a Igreja (...) e, finalmente, com a moral e a família”. Ainda de acordo com o Jornal, o Ministro do Interior acusou padres e freiras que “despertam sentimento sexual nas moças (...) para (...) desagregar a família” (ALBUQUERQUE..., 1968, p. 4). A acusação do militar é ilustrativa dos conflitos entre setores da Igreja e Estado durante a ditadura, especialmente em 1968. E “a igreja sofreu constantes ataques verbais de autoridades do regime, que iam desde reclamações contra suas atividades políticas [– de apoio à luta estudantil contra a violência policial, por exemplo –] até acusações de imoralidade sexual” (SERBIN, 2001, p. 109).
Também no segundo semestre de 1968, a Universidade de Brasília (UnB) foi depreciada e associada a um território de subversão moral e política. O Globo denunciou que “os apartamentos ocupados por universitários no “campus” são palco de verdadeiras libações e bacanais”. A residência de docentes era transformada em “bordéis onde praticam toda sorte de desatinos, inclusive violências sexuais contra moças, tudo isso lado a lado com uma pregação subversiva” (ORGIA..., 1968, p. 16). A universidade já tinha sido invadida em 1964. De acordo com Pitts (2014, p. 49), “a localização da UnB no centro do poder político [a apenas 3km do Congresso] e a sua abordagem heterodoxa da educação colocaram-na sob a mira do regime”. Em 1968, voltou a ser palco de uma ocupação militar após a morte de Edson Luís. Em junho, outros conflitos. E em agosto outro incidente que deu novos capítulos à crise política nacional e esteve conectado com o AI-5 (VALLE, 2018, p. 87; PITTS, 2014). Um fragmento é ilustrativo da truculência policial irradiada para setores que não eram tradicionalmente atingidos: “O deputado José Santilli Sobrinho (MDB-SP) correu para a UnB com o filho para achar sua filha e levá-la para casa. Quando saíram do carro, a polícia os cercou e começou a bater no filho do deputado com um cassetete”. O parlamentar “tentou intervir, mostrando sua identificação congressual e gritando que era deputado, mas a polícia arrancou o documento da sua mão e começou a bater nele também” (PITTS, 2014, p. 50).
Além de eventos que canalizaram intensa violência, ansiedade sexual e política na conjuntura (LANGLAND, 2008), a cena de 1968 no Brasil foi marcada pela radicalização em outros campos e sucessivas crises na caserna (MARTINS FILHO, 1993). Vale salientar que o 30º Congresso da UNE em Ibiúna foi desbaratado pelo Estado e os estudantes, presos. O desfecho de 1968 trouxe um baixo astral para a oposição à ditadura. O AI-5 radicalizou o ciclo de intolerância à oposição. Novas medidas ampliaram uma legislação repressiva que fez o movimento estudantil massivo desaparecer da cena pública em 1969.
A base estudantil organizada e de massas entrou em refluxo, mas a politização do sexo e do discurso da ameaça da família continuou por agentes do Estado visando desqualificar a oposição juvenil à ditadura. Dias depois do Ato 5, os militares expuseram materiais supostamente apreendidos em reuniões estudantis e em um dormitório de residência universitária da USP. Entre os botins supostamente encontrados, estariam literatura comunista, coquetéis molotovs e caixas de pílulas anticoncepcionais. O CRUSP foi interpretado enquanto um “quartel-general da subversão” com “moças e rapazes vivendo em promiscuidade” (AN-COREG, 1970, p. 1). O uso político do sexo nutriu o discurso de muitos membros das forças repressivas que ressaltavam a promiscuidade dos ativistas estudantis, interpretada como resultado dos protestos protagonizados por jovens em diversas partes do mundo.
Reações hostis a novos comportamentos juvenis não era monopólio das forças repressivas nacionais (MANZANO, 2005; KURI, 2010). Essa visão conspiratória (LANGLAND, 2018) creditava ao movimento comunista internacional a estratégia revolucionária de minar as bases das tradições sociais, culturais e religiosas da sociedade brasileira, visando a dominação comunista. Afinal, a “Guerra Fria no Brasil [e no mundo] foi marcada por profundas batalhas pelo gênero” (LANGLAND, 2008, p. 309). Vale reiterar que uma das trincheiras esteve na percepção de uma crise moral.
A sensação de crise alimentou a retomada da disciplina “Educação Moral e Cívica” (EMC) em 1969 como antídoto ao “credo vermelho”, como defendia o general Moacir Lopes – defensor da criação da disciplina EMC vinculada aos valores religiosos, antissubverssivos e vinculados à Doutrina de Segurança Nacional (DSN) (FILGUEIRAS, 2006, p. 43). O pós AI-5 aumentou a pressão junto aos setores resistentes à disciplina. Após novas exonerações, em 1969 o Conselho Federal de Educação (CFE) aprovou sua criação (FILGUEIRAS, 2006). Foi a aprovação de uma medida fundamentada na preocupação com a moral, a juventude e o fortalecimento da família.
Desarticulado o movimento estudantil de massas e ampliado o cerco repressivo ao protesto político, algumas frações de jovens migraram para as organizações de esquerda armada (RIDENTI, 1993). O AI-5, o Decreto nº 477 – também chamado do AI-5 da educação – e a criação da Operação Bandeirantes em junho de 1969 são alguns dos exemplos que já demonstravam o quanto a ditadura vinha acentuando a intolerância com a oposição – armada ou não. O período Médici (1969-1974) foi acentuadamente repressivo. A reação da ditadura às organizações de esquerda combinou repressão militar direta numa lógica de terrorismo de Estado (PADRÓS, 2005) com reformulação dos órgãos de informações (FICO, 2007, p. 178).
A expansão da economia no período com os primeiros sinais do “milagre econômico” e a construção do clima de ufanismo contribuíam para o discurso de legitimidade do regime ditatorial e do isolamento das oposições. Além disso, a propaganda anticomunista militar foi atualizada para enfrentar as mutações do inimigo. Em 1970, já em um contexto de fechamento radical da ditadura, o general Murici se referiu ao engajamento de jovens nas organizações de esquerda: “o estudante se afasta, via de regra, dos estudos, da vida familiar. Entra a conviver com desconhecidos, vive como pária, na maior promiscuidade (vide o Congresso de Ibiúna e o que lá ocorreu)”. Para ele, “a partir daí, a moça afasta-se do ambiente do lar e não tem mais como voltar”. Afirmou ainda que “várias [moças] apresentam doenças venéreas e algumas aparecem grávidas” (MURICI..., 1970, p. 5).
De acordo com Serbin (2001, p. 182), “Muricy usava seu poder e a imprensa para expor os perigos da influência da esquerda entre os estudantes, que proporcionavam à guerrilha grande número de recrutas”. Para o militar, “a ruptura de valores tradicionais entre os estudantes influenciados por ídolos e ideias radicais era típica dos efeitos psicológicos da guerra revolucionária e ameaçava a segurança nacional” (SERBIN, 2001, p. 183). Por essa razão, Muricy mobilizou representações de natureza moral, sexual e de gênero para politizar a questão da família, desqualificar a esquerda e a participação juvenil. O núcleo do argumento residia na estrutura familiar. O militar organizou três pesquisas com jovens presos políticos entre 1969-1971. Tendo em vista o suposto desajuste familiar – pais separados, crises de relacionamento – nas trajetórias pessoais, questionavam-se os porquês de os filhos da classe média contestarem a ditadura. A pesquisa reiterava o discurso das forças repressivas a respeito do papel do lar como “a melhor trincheira contra os desvios da moral e da conduta social” (COIMBRA, 1997, p. 433).
Essa problemática mobilizou outros militares. Em 1972, o brigadeiro Agemar Santos sublinhou que a infiltração comunista visava a “dissolução da família” (II EXÉRCITO..., 1972, p. 3). O general Ferdinando de Carvalho também veiculou representações anticomunistas com esse teor (CARVALHO, 1977; SOUZA, 2009). Em Brasil sempre, outro militar reiterou representações psicologizantes sobre os militantes e suas famílias afirmando que, “sem exceções, são pessoas oriundas de lares instáveis ou desfeitos, com problemas de ordem psicológica e formativa, completamente desajustados” (GIORDANI, 1986, p. 101).
As peças produzidas pela operação policial de combate à “infiltração subversiva” na residência estudantil da UnB também acionaram esse repertório “em defesa da família”. Lemos o documento em 2017 a partir de Cowan (2015). O Relatório da Comissão da Verdade UnB (2016) investigou o acontecimento, bem como Lima (2017) analisou a natureza e os significados da operação. O relatório da operação afirma que um dos estudantes, “como quase todos os interrogados, estava afastado da família” (p. 5). Outro estudante “é um elemento que vive problemas de família” (AN-COREG, 1973a, p. 22). Ao longo das páginas, é possível mapear o tema da família como ausência para explicar a trajetória de estudantes que sofreram desvio para a subversão; e como solução para o problema da subversão comunista.
Uma temática frequente na escrita repressiva sobre a desagregação da família diz respeito à suspeição em relação aos meios de comunicação. O papel social daqueles instrumentos de largo alcance foi fator de ansiedade nos anos da ditadura. Segundo Ortiz (1995, p. 58), “a televisão se concretiza como veículo de massa em meados de 60”. Já “em 1970 existiam 4 milhões 259 mil domicílios com aparelhos de televisão (...); em 1982 este número passa para 15 milhões 855 mil, o que corresponde a 73% do total de domicílios existentes”. Além disso, “o hábito de assistir televisão se consolida definitivamente e se dissemina por todas as classes sociais (ORTIZ, 1995, p. 130). Ressalte-se que o contexto sinalizou também um “avanço da publicidade; em grande parte, é através dela que todo o complexo de comunicação se mantém” (ORTIZ, 1995, p. 130). Continua o autor que, se em 1964 o investimento em propaganda representava 0,80% do PIB, em 1976 o índice subiu para 1,28%.
Essa diversidade de programação televisiva trouxe conteúdos envolvendo
desde a reiteração da desejável separação entre atividade sexual e atividade reprodutiva, passando pelo culto à juventude e à beleza corporal, até a divulgação da família pequena, igualitária e consumista como padrão “normal” de organização familiar, transformando normas e valores em esferas comportamentais diretamente pertinentes à fecundidade e seu controle, independentemente da intenção controlista ou não dessas mensagens
(FARIA, 1989, p. 87).A percepção sobre o alcance, a interrogação sobre o papel e a reflexão sobre a influência social dos meios de comunicação estiveram na agenda de acadêmicos, da esquerda, da Igreja, da Escola Superior de Guerra (ESG) e dos militares (DUARTE, 2016). Investigando o Manual Básico da ESG, Duarte (2016, p. 9) afirma que “seria necessário conhecer traços e padrões culturais, a fim de que através da comunicação social se conseguisse desencadear mensagens que conscientizassem sobre a importância das necessidades da nação”. No caso militar, a percepção da expansão da TV na vida social esteve moldada pelo projeto da utopia autoritária (D´ARAÚJO, 1994) que passava por censura, ampla pedagogia, afirmação de valores como “solidariedade, amor e participação em plena ditadura” e ensino do Brasil ao povo, protegendo-o da demagogia e corrupção dos políticos e eliminando dissensões (FICO, 2007, p. 197).
Durante o governo Geisel (1974-1979), a repressão ao dissenso resultou em “39 opositores desaparecidos e 42 mortos pela repressão3. A censura à imprensa, às artes e às diversões foi amplamente utilizada, abrandando-se somente em meados de 1976; o Congresso foi fechado durante 15 dias” (NAPOLITANO, 2014, p. 234). Tudo isso combinado com períodos de liberalização e plano de distensão. Por exemplo, “o austero Ernesto Geisel não favoreceu a família nas formas tradicionais conservadoras, uma vez que não ofereceu obstáculos à aprovação da lei do divórcio [em 1977] no Brasil” (ALMEIDA, 2010, p. 163). E o contexto amplo ensejou resistências de organismos repressivos receosos de perderem força política, prestígio, gratificações econômicas e imunidade na prática dos crimes contra opositores (MATTOS; SWENSSON JR., 2003, p. 73).
A reação dessas comunidades atualizou o perigo comunista e a necessidade de interditar temas políticos e morais espinhosos. De modo mais amplo, o período foi fértil para a sensação de ameaça moral. Por exemplo, Fico (2001, p. 277) afirma que “a maior parte das cartas [enviadas por pessoas comuns à DCDP demandando mais censura moral] concentra-se entre os anos de 1976 e 1980, portanto, após a posse do governo da ‘abertura política’ de Ernesto Geisel, adentrando o de João Figueiredo”. O autor acrescenta que “a maior porcentagem de peças teatrais censuradas, dentre as submetidas à análise da DCDP, foi registrada em 1978 (quase 3%). Quanto aos filmes, o maior índice verificou-se em 1980”.
Um exemplo reiterativo da suposta ameaça moral à família – foco deste artigo – amparada na desconfiança em relação à TV é um boletim disseminado em 1980 pela agência do SNI de Porto Alegre, indicando que “determinados segmentos dos Meios de Comunicação Social continuam a abalar a estrutura da sociedade local, através da imposição de valores que contradizem os padrões tradicionais”. O documento postulava que “os valores morais são os mais atingidos atualmente, com reflexos na formação do jovem e da própria família, célula básica da Sociedade (AN-COREG, 1980b, p. 2).
A mesma chave de leitura orientava o CIE em 1981. Um relatório da agência afirmava que o uso dos meios de comunicação de massa através de propaganda intensa visava criar “um clima favorável à desmoralização dos valores tradicionais da nacionalidade”. O documento postulava que o MCI apostava na guerra psicológica, pois o contexto não seria favorável à ação política violenta. Um dos veículos criticados era a Rede Globo que, através das telenovelas dominadas por “comunistas notórios”, vem “se transformando no principal instrumento do Movimento Comunista Brasileiro (MCB), no afã de destruir os valores mais sagrados da família brasileira, instilando de maneira insidiosa, os ‘NOVOS VALORES’ da sociedade, com relativo sucesso”. Observando os enredos das novelas, Faria (1989, p. 87) afirma que, “apesar da censura, temas como relações sexuais fora do casamento, tamanho e estrutura da família e sua estabilidade passaram a ser tratados de forma cada vez menos tradicional”. E muitos – como os autores do documento – enfatizavam o papel da TV na deformação das consciências do público.
A crítica era direcionada a novelas acusadas de veicular “endeusamento do adultério, do homossexualismo, da promiscuidade e da corrupção” e reproduzir o “aviltamento do sexo e da instituição do casamento”. A semântica política em torno da família emergia associada ao campo dos costumes: “crimes e taras de toda a natureza, como: estupro, masturbação, lesbianismo, toxicomania, são apresentados com naturalidade, como se fossem fatos normais e corriqueiros de nossa sociedade, em proporções tais que a família tradicional, seja considerada a exceção” (AN-COREG, 1981b, p. 5-6). Novamente, a mobilização do discurso era atravessada por noções tradicionais de gênero, controle da sexualidade e proibicionismo (CARNEIRO, 2018). Tudo associado a crime e pareado com estupro.
De acordo com o documento, esses dados negativos impactavam “no seio da família brasileira”, por todos os veículos junto a diversos setores, inclusive “a juventude desprevenida e até a infância”, [que] são atingidas inexoravelmente, em face da pertinência dessa agressão diária, quase que incontrolável, em todos os lares do país”. Outra fonte acentuava o receio com os adolescentes, já que “mensagens [de liberdade sexual] estão impregnando os programas televisivos, a literatura, os filmes cinematográficos e outros veículos que chegam aos adolescentes, cativando-os como seguidores e praticantes do amor-livre, olvidando totalmente a estrutura familiar”. Um dos pressupostos dos documentos é considerar os jovens, as crianças e os adolescentes como mais vulneráveis às mensagens de subversão moral (DUARTE, 2016). A história da regulação moral recorrentemente busca justificativa no argumento de proteção das crianças (RUBIN, 2001).
Tendo sua origem no CIE e difundido pela Agência Central do SNI para Cisa, Cenimar e DPF, o relatório AC 11.429/80 aborda a “Influência da propaganda adversa no sistema educacional”. O pressuposto reiterado era o de que “o fundamento da ação comunista é a ideologia ateia do marxismo-leninismo, que visa basilarmente a conquista das mentes e a degradação moral, social e política das nações democráticas (...)”. Para tanto, os meios de comunicação elegeram como alvo “a destruição da família, da pátria e sobretudo, o aviltamento da mulher” (AN-COREG, 1981b, p. 3).
Outro documento delimita a suspeição em relação aos movimentos sociais que tiveram visibilidade nos anos 1980: “a liberdade sexual, no caso, está sendo gerada por Movimentos de ‘libertação’ da mulher e de homossexuais, que defendem o aborto, o lesbianismo”. Acrescentava “outros aspectos da liberdade sexual, cujas mensagens estão impregnando os programas televisivos, a literatura, os filmes cinematográficos e outros veículos que chegam aos adolescentes, cativando-os como seguidores e praticantes do amor-livre, olvidando totalmente a estrutura familiar”. Esse anticomunismo visceral em torno de temas morais deve ser compreendido também como reação à visibilidade de novos sujeitos sociais. Vale destacar a organização do Movimento Feminista, de Mulheres e dos Homossexuais (SIMÕES; FACCHINI, 2009, p. 106). A entrada em cena desses atores contribuiu para atualizar uma subjetividade pessimista em torno do final da ditadura e de um futuro assentado nos novos medos, pânicos, corpos abjetos e sujeitos indesejáveis cujas práticas ameaçavam a ordem e a “estrutura familiar”.
Os exemplos são suficientes para provar o quanto esses mantras sobre a família alimentaram o anticomunismo. Os documentos visavam provocar efeitos extradiscursivos delineando o inimigo e a subversão em termos morais e sexuais (COWAN, 2016). Subvertendo uma noção presente em Fanon (1968, p. 52), os papéis secretos visavam evitar “a subversão, mas, na realidade, (...) [introduziam] terríveis fermentos de subversão na consciência dos ouvintes ou dos leitores”, contribuindo para produzir a ameaça moral pairando a sociedade brasileira. Os argumentos centrais daquela papelada circularam de modo mais amplo, inclusive porque estavam enraizados na tradição anticomunista e no imaginário católico conservador.
Concluída a demonstração da presença do argumento familiar nos acervos repressivos, qual noção de família foi mobilizada nos discursos? Observando o teor dos papéis secretos ao abordar o tema, o que inspirava o discurso daqueles sujeitos era uma noção de família universal inspirada no padrão patriarcal e próprio da branquitude. O argumento mobilizado da “ameaça da família” representava a adoção de um modelo de família como o paradigma, único, universal, independente de contextos econômicos, sociais, regionais, demográficos, locais e globais. Era um padrão que naturalizava papéis de gênero, divisão do trabalho sexual no interior da instituição e fora dela, bem como silenciava sobre a dimensão racial, ainda que fosse estruturado por ela.
Na esfera do discurso, esse padrão não reconhecia legitimidade nas “inúmeras (...) possibilidades de arranjos familiares [existentes] que, por sua vez, também variaram no tempo, no espaço e de acordo com os distintos grupos sociais” (SCOTT, 2009, p. 16). Mariza Corrêa (1981) afirma que “este é o modelo tradicionalmente utilizado como parâmetro, é a história da família brasileira, todos os outros modos de organização familiar aparecendo como subsidiários dela ou de tal forma inexpressivos que não merecem atenção”. Noção universalista e autoritária, a recorrência da politização da família na escrita repressiva com seus temas correlatos – crise moral, sexual e de papéis de gênero – pode ser pensada como um símbolo “ou conjunto de símbolos que têm maior eficácia e que apresentam maior capacidade homogeneizadora ou aglutinadora” (VELHO, 1999, p. 59).
O componente autoritário atravessando o Estado e a cultura contribuiria para legitimar o suposto universalismo daquele padrão interditando no discurso oficial qualquer família imaginada e vivida fora da tradição. Ou seja, a visão de família é orientada por “posição subordinada da mulher” e pelo “predomínio de comportamentos sociais guiados por normas, valores e estruturas de autoridade cuja legitimidade fundava-se na tradição” (FARIA, 1989, p. 70). Retomando Gilberto Velho, “teríamos, portanto, uma estrutura social marcantemente rígida com normas e regras bastante estritas, com um forte controle social sobre o comportamento dos indivíduos”. Vale matizar a ideia de controle parecendo que essa noção foi mais imaginada, agenciada e desejada do que experimentada. Naquele cenário, o autor arremata argumento relevante para este artigo:
A família, especialmente, desempenharia essa função ao nível do cotidiano e das biografias, atualizando o código de emoções. Daí a sua centralidade, o seu caráter de foco legitimador de sociabilidade. É, portanto, ao nível do desempenho dos papéis familiares de pai, esposo, filho, mulher, avô etc., que se dá a socialização contínua (e não apenas na infância) nos aspectos afetivos e emocionais da cultura. Tudo, portanto, que perturbe ou torne ambíguos os desempenhos desses papéis ou projetos a ele associados é visto como altamente perigoso
(VELHO, 1981, p. 63).Além de delimitar qual noção de família orientou essas representações, convém investigar se o discurso da desagregação familiar estava assentado em premissas, noções e pertencimentos raciais. O tema é pantanoso, já que as fontes trabalhadas neste artigo não usam marcadores explícitos de cor. Os documentos não mobilizam categorias como branco, pardo, negro, mulato, preto ao descrever a percepção de crise moral. Não nomeiam os sujeitos a partir de classificações raciais. Uma agenda de pesquisa por respostas precisa partir de outras perguntas.
Filgueiras (2006) reconstituiu a retomada da disciplina Educação Moral e Cívica em 1969. O anteprojeto retomou a “exposição de motivos” elaborada por um parecer de Costa e Silva de 1965 quando era Ministro da Guerra. Em 1969, já no lugar de chefe do executivo federal, o parecer foi retomado. A preocupação com a dissolução da família era central:
A família moderna facilita, de certo modo, a implantação e a evolução da Guerra revolucionária, de vez que, perturbada pela evolução econômica e social e por solicitações de toda ordem, ela não mais assegura de modo completo, sua função educadora. Frequentemente dissociada, particularmente em razão do trabalho da mulher fora do lar e da conjuntura econômica que a aflige, seus membros se vêm obrigados a operar fora do quadro familiar típico, cada qual atraído por um pólo exterior. A principal consequência dêsse estado de coisas é a flagrante deficiência de educação moral dos filhos. Por outro lado, a escola moderna ainda não tomou a si o encargo de compensar esta lacuna
(BRASIL, 1969).Esse fragmento é importante na medida em que perpassa a maioria dos discursos veiculados pelas agências repressivas. Ele é um pressuposto e um diagnóstico: havia um tipo de “família moderna perturbada” que fragilizava sua função educadora; além disso, sua dissociação estava marcada pelo “trabalho da mulher fora do lar”. Por último, isso resultava na constituição de arranjos “fora do quadro familiar típico” com consequência na “educação moral dos filhos”.
Uma pergunta legítima: existe algum elemento racial nesse discurso? Uma observação apenas nominativa responderia negativamente. Isso é suficiente para concluir inexistência de pressupostos raciais? Reiterando que a documentação analisada neste artigo não menciona a categoria cor, apresentamos uma hipótese de pesquisa: o foco das preocupações desses discursos morais residia nas famílias brancas de classe média e naquelas mulheres que somente nos anos 1960 ingressaram no mercado de trabalho. O marco temporal da percepção do problema é uma espécie de “índice de brancura” (SANTOS, 1983) que define a sua racialização. Tomando como inspiração Thula Pires (2018, p. 1057), é um exemplo de “branquitude” relatada “como racialidade não nomeada”, mas “representativa do universal”, parâmetro que organiza a identificação da problemática temporal da desagregação da família.
Se nos restringirmos apenas ao período republicano, as mulheres negras trabalham desde o início da república. Os diversos arranjos familiares ao longo do tempo e espaço demonstram isso. Valem dois exemplos. De acordo com Soihet (1987), as mulheres pobres do Rio de Janeiro, entre final do século XIX e início do século XX, “tinham papel relevante na economia familiar, sendo que muitas delas viviam sozinhas, garantindo sua subsistência e a de seus filhos” (SOIHET, 1989, p. 166). Em Salvador, até as primeiras décadas republicanas, o comércio de alimentos era marcado “pela massiva presença de pretas”. Para Heráclito (1999, p. 243), a “‘moça’ e a ‘senhora de família’ seriam os novos modelos de mulher que passariam a compor o cenário urbano republicano” se afastando das “prostitutas e trabalhadores de rua, uma vez que elas demarcavam linhas bem definidas entre o projeto de civilização das elites letradas baianas e a barbárie dos pobres pretos”.
Além de sinalizar a presença de mulheres negras trabalhando fora do lar no início da república e, logo, desde antes dos anos 19604, a percepção da racialização exige uma postura metodológica no trato dos arquivos, das fontes e dos discursos para apurar os “olhos de ver” a questão racial. Do contrário, certamente será mobilizado o argumento da especulação sem evidência, e a hipótese será facilmente descartada. A investigação exige pensar as diversas formas de violência desenvolvidas pela ditadura, inclusive a interdição de discursos sobre o racismo à época. Para isso, dos diversos trabalhos que abordam relações raciais e ditadura (GUIMARÃES, 1999; CRUZ, 2010; RIOS, 2014A; RIOS, 2014B; FIGUEIRÊDO, 2016; GOMES SILVA, 2019; ALVES E GIORI, 2020; PESTANA, 2022; e tantos outros), selecionamos alguns textos inspiradores a partir da problemática do artigo e da semelhança no uso de fontes de natureza repressiva.
Amparada em documentação produzida pelo DOPS paulista, Kossling (2007) demonstrou como as estruturas repressivas leram pela chave da subversão e representaram negativamente os movimentos negros nos anos 1980. Indica que a Lei de Segurança Nacional (1967) criminalizava qualquer incitação pública “ao ódio ou à discriminação racial”, bem como a lei de imprensa também coibia propaganda sobre “preconceitos de raça”. As duas leis são sugestivas de como a ditadura lidou com as “lutas antirracistas e seu potencial de contestação política”. Por isso, atualizando uma mentalidade dos anos 1940 de que os movimentos negros “introduziam uma ‘falsa problemática’ na ‘democracia racial’ brasileira”, “tornaram-se alvo de vigilância e repressão” (KOSSING, 2007, p. 41).
Autora de publicação sobre o tema originalmente em inglês (2011), Paulina Alberto (2017, p. 337) postula que a ditadura visou o controle interno elegendo a “democracia racial como uma ideologia oficial do Estado” e utilizando “aspectos da herança africana no Brasil”, principalmente “as consideradas folclóricas e politicamente inofensivas”, inclusive na política externa. O propósito era ilustrar “a harmonia racial” encerrando “as discussões públicas sobre discriminação racial”, produzindo “essa aparente ausência de queixas raciais através da censura e da intimidação policial” e buscando suprimir as “organizações (negras) baseadas na raça”. Muitas organizações no Brasil foram acusadas de “movimento racista negro”.
Relatora da pesquisa sobre ditadura e racismo no Rio de Janeiro, Thula Pires (2015) privilegia a raça como categoria de análise central para colorir as memórias sobre a ditadura. O relatório aborda a “violência estrutural e racismo institucional” atravessando a ditadura, as estratégias do regime para lidar com as organizações e múltiplas formas de atuação negras e restitui memórias de pessoas negras sobre as violências perpetradas pela ditadura. Noutro artigo, Pires (2018) pontua que “a realidade de negros e negras [“nas favelas, subúrbio, Baixada Fluminense e outras regiões periféricas do Estado”] era, em regra, permeada por ‘blitz’, prisões arbitrárias, invasões a domicílio, expropriação de lugares de moradia (remoções), torturas físicas e psicológicas, além do convívio com a ameaça latente dos grupos de extermínio”. Enegrece os marcos temporais de periodização da violência ao sublinhar “a criação, em 1962, [antes do golpe de 1964 e da ditadura] da Invernada de Olaria, grupo ligado ao Departamento Estadual de Segurança Pública” da Guanabara e que possuía passaporte para matar, torturar, espancar e assassinar, inclusive com afogamentos (PIRES, 2018, p. 1063). Outro exemplo relevante diz respeito ao “arrastão” ocorrido no Rio de Janeiro em 1982 – rotina “que mais representa a herança escravista do racismo institucional da Polícia Militar”: uma “escolta” de “um grupo de homens negros amarrados por uma corda pelo pescoço, depois de blitz realizada nos Morros da Coroa/Cachoeirinha”. A autora arremata: tudo coberto pela imprensa e com a polícia de “armas em punho e ameaça de detenção” para todos que se indignassem com o arbítrio “para que não pairasse nenhuma dúvida de como se tratam os negros no país da democracia racial, e em franco processo de abertura política” (PIRES, 2018, p. 1066). As contribuições de Pires são fundamentais para racializar a abordagem: reconstitui a violência estrutural e o racismo institucional do regime ditatorial; “reposiciona o que se entende por violência e os contornos possíveis da liberdade”. Ajuda a compreender melhor “o patriarcado, a cis/heteronormatividade, a luta de classes e a dinâmica institucional” (PIRES, 2018, p. 1077).
Pedretti (2022) analisou os bailes black soul realizados no Rio de Janeiro. Em um capítulo, se debruçou sobre fontes produzidas por “agências governamentais que acompanharam, monitoraram e reprimiram os bailes” (2022, p. 66). Ele demonstra que “o olhar dos agentes ditatoriais para o tema foi marcado por uma interseção entre o mito da democracia racial e a Doutrina de Segurança Nacional”. E identifica como a temática do racismo – reflexões e mobilizações – foi alvo de vigilância pelas agências de segurança e informações. O autor demonstra preocupações dos agentes e sugestões de proibição de notícias na imprensa sobre a temática, bem como nos pronunciamentos de autoridades, religiosos, professores, novelas, literatura, material audiovisual.
Em outro trabalho, tendo como inspiração a preocupação de Thula Pires (2014) em colorir as memórias sobre a violência da ditadura, Pedretti postula a necessidade de colorir categorias como ditadura, direitos humanos, vítimas, anistia. Uma instigante pergunta não quer calar: “o que faz com que um indivíduo vitimado pela violência de Estado durante aquele período [ditatorial] seja compreendido como uma vítima da ditadura”? (PEDRETTI, 2020, p. 312). A interrogação é amparada em um dado: 434 é o número de mortos identificados pela Comissão Nacional da Verdade durante a ditadura no Brasil, enquanto 434 foi o número de mortos pela polícia militar de São Paulo em 1982. Mobilizando outros argumentos, pensando a violência contra a população negra como regra na ação do Estado na longa duração incluindo o período pós-ditadura, rasurando os marcos ditadura e democracia, o autor contribuiu para pensar na “dimensão racial das violações de direitos humanos” (PEDRETTI, 2020, p. 313).
Reiterando que os fundos documentais trabalhados neste artigo não explicitam a categoria raça, as reflexões de Gonzalez sobre racismo são tomadas como sugestivas para pensar no silêncio sobre a família negra na escrita repressiva: “ele[s] pouco teria[m] a dizer sobre essa mulher negra, seu homem, seus irmãos e seus filhos (...). Exatamente porque lhes nega o estatuto de sujeito humano. Trata-os sempre como objeto. Até mesmo como objeto de saber” (GONZALEZ, 1984, p. 232). Para a autora, o mito da democracia racial “exerce sua violência simbólica de maneira especial sobre a mulher negra”. Gonzalez (1984, p. 231) restituiu dimensões da experiência da mulher negra anônima moradora da periferia, “que sobrevive na base da prestação de serviços, segurando a barra familiar praticamente sozinha. Isto porque seu homem, seus irmãos ou seus filhos são objeto de perseguição policial sistemática”.
Desse modo, racismo e sexismo não seriam categorias importantes para decifrar outras camadas da escrita repressiva sobre família? Essa e outras perguntas devem orientar uma agenda de pesquisa que analise as representações construídas pela ditadura a respeito da crise da família sob a chave da racialização. Lembrando que os trabalhos acima demonstram o quanto a ditadura visou produzir silêncio sobre o tema racial e negar o racismo, nossa hipótese é que se trata de uma presença ausente, não nomeada. Tendo Pires (2018) como inspiração, não devemos renunciar à categoria raça ao investigar os discursos sobre “crise da família” nos acervos repressivos. É necessária “a escrita da ausência” (GONZALEZ, 1984).
A documentação demonstra que as agências repressivas (re)produziram representações anticomunistas pautando o discurso da família ameaçada por subversão moral e sexual. Construída como célula-máter, alicerce da nação e símbolo da estabilidade social, a defesa da família era apresentada na escrita repressiva como uma questão moral da Nação brasileira naquele contexto de Guerra Fria. A nova ordem instaurada pós 1964 deveria defender o bem maior da sociedade – a família brasileira. Como já mencionado, o que inspirava o discurso daqueles sujeitos era uma noção de família universal inspirada no padrão patriarcal da branquitude. No nível do discurso, a sua defesa passava pela honra das mulheres, bem como por uma retórica de proteção de crianças, adolescentes e jovens diante da subversão moral comunista e das transformações vividas pela sociedade brasileira, desde a difusão da pílula anticoncepcional a partir dos anos 1960, passando pelo enfraquecimento das “autoridades tradicionais (padres, pais, irmãos e maridos)” (FARIA, 1989, p. 91), a profusão dos meios de comunicação de massa e da indústria cultural.
O tema foi agenciado especialmente a partir da explosiva e transnacional conjuntura de 1968 por agentes do Estado para desqualificar a participação política de estudantes no movimento estudantil, a sociabilidade universitária – em geral e nas residências universitárias em particular – e a inserção de jovens nas organizações clandestinas de esquerda após o AI-5. Após a derrota da resistência da esquerda armada, a questão atravessou os anos da ditadura no olhar de suspeição convicto das comunidades de segurança e informação em relação ao papel dos meios de comunicação de massa e do sistema educacional na destruição da família, especialmente num contexto de expansão da indústria cultural. O argumento foi mobilizado na atualização dos novos perigos. E foi lido como um dos efeitos nocivos dos novos sujeitos, comportamentos e das demandas emergentes nos anos 1980 com a visibilização do movimento feminista, do movimento gay e de agendas como a descriminalização do aborto. A pauta moral e a politização da retórica em defesa da família foi uma das tópicas centrais no anticomunismo militar.
A família desestruturada e instável foi vista como causa do desvio da subversão. Mas foi alçada também ao lugar de solução. Daí a importância da disciplina Educação Moral e Cívica; da celebração do Dia da Família – ainda que não ultrapassando tanto a retórica governamental; da preocupação com a interdição de eventos, imagens, sons e textos que rasurassem a instituição familiar com papéis sociais e lugares de gênero bem delimitados em torno da tradição patriarcal. Vem dessa matriz discursiva a preocupação com o deslocamento de mulheres brancas de camadas médias urbanas do lugar tradicional do lar e do trabalho doméstico com a inserção no mercado de trabalho. Essa matriz parece ser atravessada por outra que merece ser investigada – a racial que, ausente explicitamente na documentação pesquisada, presente implicitamente, silencia sobre a questão do trabalho das mulheres negras.
Muitos dos conteúdos exaustivamente repetidos na documentação parecem falar dos anticomunistas. São textos que constroem uma identidade por contraste (SAID, 1990) moldando uma polarização binária eles versus nós. O ponto de partida básico é a distinção assentada em teorias, contextos, tradições. Tudo isso esteve amparado em instituições e burocracia para a gestão do anticomunismo, o que incluiu agentes, peritos, rotinas, organizações, hierarquias, burocracias e muita papelada. Junto a tudo isso, uma prática cultural assentada em ideias de moral, sexualidade desviante, famílias desajustadas, instabilidade emocional, carência afetiva, manipulação, oportunismo, traição, infiltração etc. e diversos outros atributos depreciativos do inimigo comunista desprovido de humanidade.
A mobilização do discurso da família durante a ditadura nos escritos da repressão deve ser compreendida numa história do anticomunismo e do conservadorismo no Brasil na média e longa duração. Pensar essa escala de análise é importante para a compreensão das permanências do anticomunismo com seu tempero de moralidade tradicional no campo dos costumes ao longo do tempo. Apesar das suas diferentes matrizes terem tido maior ou menor impacto nas diferentes conjunturas, a tradição anticomunista oferece um quadro cognitivo pouco permeável à mudança, pois está assentado em dogmas, convicções anteriores à experiência e teorias da conspiração.
Investigar a politização da moral em diferentes períodos históricos e a persistência do discurso em defesa da família na longa duração é uma agenda de urgência. A presença desse lema na campanha eleitoral de 2022 é apenas uma evidência da relevância do tema; e a sua presença antes e durante a ditadura evidencia o quanto há de passado neste presente, inclusive atravessado por noções de gênero, regulações da sexualidade e dispositivos morais e raciais.
Um dos mantras mobilizadores de parte da comunidade historiadora atualmente é uma história que não desperdice experiências, não universalize uma história, que recupere sujeitos, autoras e atores. No caso do Brasil, esse horizonte historiográfico não pode prescindir de atentar para a racialização da vida social, mesmo quando a palavra raça não é explicitada.
Além da historiografia que tem sido produzida sobre a questão racial durante a ditadura, as reflexões em torno do apagamento de experiências e das violências nos/dos arquivos são instigantes para aprofundar os caminhos (TROUILLOT, 2016; HARTMAN, 2022). Inspirado por essas perspectivas, este artigo é uma contribuição. Que outras fluam!
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