Resumo: Este ensaio tem por objetivo o diálogo com os conceitos de “força de trabalho” para Marx, “pulsão” para Freud, e “carga psíquica do trabalho” para Dejours. O trabalho não é apenas uma realização pragmática, ele não se deixa apreender na prescrição definitiva de uma técnica, pois está submetido ao movimento errático daquilo que é desejo de outra coisa. O trabalho dispõe uma estética ao trabalhador, mais do que uma identidade. O trabalho é, antes, forma de se inscrever no mundo, delineando uma estilística de existência para o sujeito. Esta abordagem, de viés psicanalítico e marxista, indaga sobre o sofrimento e o sentido do trabalho. Tem como materialidade o curta-metragem “Veja bem”, com direção e roteiro de Jorge Furtado. No jogo de forças dos conceitos em interface, compreende-se a força de trabalho, energia vital do trabalhador, enquanto um desdobramento da libido, da pulsão de vida. Quando o trabalho não oferece espaço simbólico e o desejo do trabalhador está fora de questão, a dor toma conta da cena, instala - se a carga psíquica do trabalho. Aí cabe ao trabalhador iniciar uma outra tarefa, a qual não é dada a ele.
Palavras-chave:TrabalhoTrabalho, inconsciente inconsciente, cinema cinema.
Abstract: The aim of this article is putting on dialogue the concepts of “labour power” for Marx, “drive” for Freud and “psychic charge of the work” for Dejours. Work is not only a pragmatic realization. It does not let itself reach by a technical precept, because it is subjected to an erratic movement about what is desire of other thing. More than an identity, working affords aesthetics to workers. Thus, to work is rather an inscription in the world that traces a stylistic being for the subject. Based on psychoanalytic and Marxist approaches, the article discuss about suffering and meaning of work. The Brazilian short -movie “Veja bem”, directed and scripted by Jorge Furtado is the materiality for this study. The interface of these concepts are as in a contest of strength. The labor power, the worker’s vital energy is understood as a deployment of the libido from the life drive. When work does not offer a symbolic space for the worker and his/her desire is inconceivable with this, suffering takes the scene and the psychic charge of the work happens. Then the worker needs to start another kind of task, the kind that is not given to him.
Keywords: Labour, unconscious, cinema.
Resumen: Este artículo trata de la importancia del trabajo en la constitución del sujeto al discutir la relación entre inconsciente y trabajo. Partiendo de un abordaje psicoanalítico y marxista, tiene por objetivo el diálogo con los conceptos de “fuerza de trabajo” para Marx, “pulsión” para Freud, y “carga psíquica del trabajo” para Dejours. El trabajo no es solamente una realización pragmática, él no se deja aprehender por una prescripción definitiva de una técnica porque está sometido al movimiento errático del deseo de otra cosa. El trabajo dispone de una estética al trabajador, más que una identidad. El trabajo es antes una manera de inscribirse en el mundo, delineando una estilística de existencia para el sujeto. Este abordaje, tiene como materialidad el corto-metraje brasileño “Veja bem”, del director y guionista Jorge Furtado. En el juego de fuerzas entre los conceptos en interfaz, se comprende la fuerza del trabajo, energía vital del trabajador, como un despliegue de la libido, de la pulsión de vida. Cuando el trabajo no ofrece un espacio simbólico y el deseo del trabajador está fuera de cuestión, el dolor toma cuenta de la escena, se instala la carga psíquica del trabajo. Ahí toca al trabajador iniciar otra tarea, la cual no se le fue dada.
Palabras clave: Trabajo, inconsciente, cinema.
O TRABALHO E A OUTRA CENA: INDAGAÇÕES SOBRE O SOFRIMENTO NO TRABALHO1
THE WORK AND THE OTHER SCENE: QUESTIONS ABOUT SUFFERING AT WORK
EL TRABAJO Y LA OTRA ESCENA: CUESTIONES SOBRE EL SUFRIMIENTO EN EL TRABAJO
Recepção: 19 Agosto 2015
Aprovação: 13 Julho 2016
O tema sujeito-trabalho é um dos temas que se inclui na ordem das abordagens impossíveis. O sujeito trabalhador não domina o trabalho do exterior, como se fosse exterior a ele, pois o próprio sujeito se encontra no trabalho, num face a face inextricável com aquilo que escapa ao saber. Ao estudarmos o trabalho, somos sujeito e objeto de uma só vez. É a ambivalência do estatuto do sujeito no processo laboral que está em questão. O sujeito do saber e do saber fazer é ao mesmo tempo o sujeito que desconhece e o objeto a conhecer.
Ir por esse caminho é abrir conhecimento de fatos que se recusam às evidências da gestão. É trabalhar na sua parte cega, no exame atento das suas margens. Este ensaio trata da relação entre o inconsciente e o trabalho que inscreve o sujeito na produção de sua subexistência. De viés psicanalítico e marxista, tem por objetivo o diálogo com os conceitos de “força de trabalho” para Marx, “pulsão” para Freud, e “carga psíquica do trabalho” para Dejours. A discussão dos conceitos se dá através da análise do curta-metragem Veja bem (Furtado, 1994/2005), com direção e roteiro de Jorge Furtado, que expõe o desligamento entre trabalho (o Lado de fora) e trabalhador (o Lado de dentro) em dois momentos bem distintos, por meio de duas poesias pontuadas por imagens e cenas. Nessa disjunção, daquilo que não se separa, o vídeo apresenta poeticamente o incômodo que a teoria explica, mas não sente.
Nesta abordagem, não são as medidas quantitativas nem as estatísticas que contam para observar o trabalho. Nem mesmo, os questionários ou as entrevistas estruturadas ou semiestruturadas. Mas, tudo que é esquecido, propositalmente: o sofrimento, o lugar do desejo e o lugar do sujeito no trabalho que não estão considerados na dita análise objetiva do trabalho. Trata-se de produzir indagações sobre o sem sentido do trabalho, na tentativa de dar lugar à Outra Cena do trabalho.
Contra a espetacularização da vida cotidiana, a investigação da Outra Cena do trabalho segue na linha criada por Freud desde os seus estudos sobre a histeria, o que vale retomar aqui. Freud vai mais além de Charcot, ao retirar as histéricas da cena teatral de hipnose. Esvazia a dimensão cênica aberta ao público. Charcot expunha suas pacientes em cena, no anfiteatro de La Salpetrière, onde elas, no palco, apresentavam na cena pública suas paralisias e contraturas convulsivas com seus corpos. Nas quintas-feiras, as sessões eram restritas aos médicos, mas nas terças eram abertas ao público interessado. Freud retira as histéricas de cena e se propõe a escutá-las com atenção. Ouve e valoriza os mínimos detalhes de sua história e de seus sentimentos. Acolhe as fantasias das pacientes, onde o que não está em cena tem papel central. Percebe a relação dos sintomas dessas mulheres com a sociedade patriarcal e repressora da época. Posiciona o sintoma como um produto do seu tempo. Descobre que é somente pela palavra que os afetos podem sair à flor da pele.
De forma semelhante, a dolorosa excitação provocada pelo sofrimento no trabalho não pode ser descarregada pelo pragmatismo da ação, mas unicamente pela fala do trabalhador. No trabalho espetacularizado, ali onde, muitas vezes, os gestos se aliam à parafernália tecnológica: no treinamento, na performance, nas metas, no desempenho, nos prêmios. O trabalho ata o corpo do sujeito no espaço com ferramentas e máquinas, trata-se de um espaço controlado e planejado. Porém, algo não está lá, algo falta, algo não se deixa ver. É na relação entre o visível e o dizível que o trabalho pode se apresentar. O trabalho é, sobretudo, o seu relato. O sentido do trabalho só poderia ser encontrado na fantasia. Assim, como nas histéricas, na cena imaginada, porém, central para a constituição do sujeito. A fantasia, enquanto enredo, um drama pessoal e social que organiza a subjetividade.
Nessa perspectiva, o sujeito e o trabalho se organizam numa linha de ficção, na relação direta do trabalho com o fantasma do sujeito. Fantasma como a ideia inconsciente, na teoria freudiana, em torno da qual se organiza um roteiro imaginário em que o sujeito está presente, e que figura, de maneira mais ou menos deformada pelos processos defensivos, a realização de um desejo. Por assim dizer, um desejo inconsciente. Algo que aproveita um resto, uma sobra que se despregou de uma experiência prazerosa perdida e anterior, que faz retorno. Nessa linha trilhada por Freud, desde o tratamento da histeria, a fantasia também é cena, é a Outra Cena. A Outra Cena do trabalho é a cena do inconsciente, que põe em jogo o desejo do trabalhador na busca de algo sobre sua infância. É nas palavras do trabalhador sobre seu trabalho que se refaz os caminhos metafóricos e metonímicos que comporiam o sentido do trabalho.
As interpretações sobre a experiência de trabalho feita pelo próprio trabalhador se compõem de um infindável emaranhado de pensamentos, sentimentos e de restos de outras experiências de seu corpo laboral. Por mais que o corpo do trabalhador possa se conformar à bem delineada organização do trabalho, o sentido do trabalho é fragmentário e gira em torno de uma densa opacidade, enigmática, impossível de interpretar. Existe pelo menos um ponto em todo trabalho no que ele é insondável – um nó, por assim dizer, que é seu ponto de contato com o desconhecido.
O trabalho não é apenas uma realização pragmática, ele não se deixa apreender na prescrição definitiva de uma técnica, pois está submetido ao movimento errático daquilo que é desejo de outra coisa.
O trabalho dispõe uma estética ao trabalhador, mais do que uma identidade – uma forma de se inscrever no mundo, delineando uma estilística de existência. A partir dessa premissa, pode-se pensar que o trabalho esquematiza de forma privilegiada o campo do sujeito e que o cinema e a poesia se doam na construção da trama e do drama do sujeito no trabalho.
Veja bem, dirigido por Jorge Furtado (1994/2005), apresenta uma montagem fragmentada, feita de recortes de desenhos e fotografias entre as cenas filmadas. A obra é um curta-metragem de pouco mais de seis minutos, composta por duas partes: o Lado de fora e o Lado de dentro. O Lado de fora com a locução da poesia de Carlos Drummond de Andrade em voz feminina e masculina; o Lado de dentro tem a locução da poesia de João Cabral de Melo Neto em voz masculina. A obra, ao mesmo tempo objeto visível e olho indagador, engendra um esquema intertextual para colocar em cena um herói silencioso, ajustado às exigências de produção, por oposição à tagarelice das máquinas.
O Lado de fora mostra máquinas em funcionamento, trânsito, objetos, utensílios, obra de arte. Colagem e bricolagem que de certa forma fazem retorno à sensibilidade estética dos anos 50, incluindo anúncios recortados de revistas de grande circulação, material que é apropriado e que passa a ser reconhecido nas imagens. O Lado de fora exalta a tecnologia, a oferta ilimitada de produtos e serviços, na exaustiva mobilidade da vida urbana.
Objetos que giram e podem ser observados por todos os lados, entre eles uma cuia de chimarrão, souvenir com a gravação “Lembrança de Itaqui”. O Elvis I e II, de Andy Warhol, onde Elvis Presley está maquiado, em versão andrógina, com uma pistola na mão, veiculando com humor e requinte o produto “revólver para pintura” e o serviço “pintores à pistola”. Aparece também o próprio Andy Warhol, com o rosto em tela inteira, atravessado por feixes luminosos de múltiplas cores, numa forte alusão à arte pop que busca inspiração na cultura de massa, aproximando arte e mercadoria. Warhol chamava o seu ateliê de fábrica na conotação de um “negócio” como qualquer outro (Mccarthy, 2002, p. 26). Warhol, Furtado e Drummond não negam seu pertencimento à cultura de consumo.
O poema de Drummond insiste em nomear as múltiplas possibilidades de mecanização das atividades, nas diferentes máquinas:
Máquinas de lavar
Máquinas de lixar
Máquinas de furar
Máquinas de curvar
Máquinas de dobrar
Máquinas de engarrafar
Máquinas de empacotar
Máquinas de ensacar
Máquinas de assar
Máquinas de faturamento
Serpenteando as imagens, para além das máquinas, desfilam inúmeros serviços e produtos na voz do locutor: “sistemas de segurança”, “vigilância noturna”, “vigilância industrial”, “interruptores de circuito”, “iscas”, “encanadores”, “supressão de ruídos”, “champanha por atacado”, “panela de pressão”, “rolos compressores”. No entanto, através das imagens do filme, o sentido das palavras do poeta se transporta em metáforas.
Por exemplo, para apresentar “máquinas de furar”, é usada a figura de revólveres. Assim como “coletores de resíduos” recebe a imagem de um cemitério. A obra contorna a dificuldade de transmitir o que é a morte na sociedade contemporânea, expõe o aspecto da maquinaria homicida e faz alusão ao corpo morto como dejeto – o remanescente de um bem – que já não é mais um trabalhador e também não é um consumidor, mas um detrito no fluxo do sistema.
É a fluidez de imagens que se coagula em cada mercadoria. A mercadoria aparentemente tão simples pelo uso e serventia e ao mesmo tempo, tão complexa. Complexa pela sua opacidade e densidade. A opacidade da mercadoria não deixa ver o trabalhador que a antecede, a sua força de trabalho em funcionamento, o sofrimento no trabalho, a mobilização do desejo do trabalhador, que suscitam os atos criativos para dar conta da tarefa. A densidade da mercadoria em suas várias camadas contém a espessura política e histórica expressa no contrato de trabalho, na divisão social do trabalho, nas questões de gênero, nas condições de trabalho, na precarização do trabalho.
Em seu texto Trabalho Estranhado e Propriedade Privada (1844/2010a), Marx inicia com a frase: “Partimos dos pressupostos da economia nacional. Aceitamos sua linguagem e suas leis” (p. 79). Assim, esse autor reconhece a ordem simbólica na forma de linguagem e de lei que estrutura o sistema de produção e não cessa de lembrar que por trás de toda mercadoria, existe um trabalhador:
A partir da própria economia nacional, com suas próprias palavras, constatamos que o trabalhador baixa à condição de mercadoria e a de mais miserável mercadoria, que a miséria do trabalhador põese em relação inversa à potencia (Macht) e à grandeza (Grösse) da sua produção, que o resultado necessário da concorrência é a acumulação em poucas mãos. (Marx, 1844/2010a, p. 79)
Com isso, entende-se que com a valorização de quinquilharias, aumenta a desvalorização do humano que trabalha em relação direta. O trabalhador empobrece à medida que produz riqueza, pois o trabalho não produz somente mercadorias. O trabalho produz o trabalho e o trabalhador no ato de produção da mercadoria. E Marx busca ainda ser mais explícito:
... o objeto (Gegenstand) que o trabalho produz, o seu produto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisal (sachlich), é a objetivação (Vergegenständlichung) do trabalho. (Marx, 1844/2010a, p. 80)
Para Marx (1844/2010a), a efetivação do trabalho reverbera na desefetivação do trabalhador. A objetivação funciona ao mesmo tempo como “perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação como estranhamento (Entfremdung), como alienação (Entäusserung)” (p. 80).
De onde se observa, o trabalho é linguagem. Por isso, o sentido do trabalho não é transparente, trata-se de uma construção histórico-político-ideológica que se tece na opacidade e na densidade da mercadoria que a segunda parte do curta-metragem – o Lado de dentro – deixa ver em “imagem-furo”, que cintila e expõe radicalmente a questão do trabalhador.
No Lado de dentro, ao contrário da fluidez caudalosa e diversificada das imagens da primeira parte, o que se vê são cenas enclausurantes do trabalho repetitivo. Pampa árido onde se desenrola o trabalho, o mais específico produto do ser humano, na busca de um contorno para o seu desatino. É nessa atividade sempre recomeçada, e para sempre tão insatisfatória quanto necessária e boa, onde cada qual se debate: são apresentadas as três cenas. A primeira cena mostra um trabalhador quebrando uma parede. A câmera privilegia o movimento da cintura para cima, o dorso nu – parede de carne – que se contrai a cada golpe de marreta contra o cimento armado. A imagem não é bem definida, quase um vulto. Mesmo assim, pelo capacete levantado na testa, supõe-se a transpiração do trabalhador anônimo.
Em meio às marteladas, a poesia de João Cabral de Melo Neto (1943/1979) se faz ouvir em voz masculina. Enfática, solicita a atenção do espectador:
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome...
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte. (Melo Neto, 1943/1979, pp. 365-372)
A “imagem-furo”, para Tania Rivera (2008), é este agenciamento de imagem que nos implica e que “pode nos colocar na vertigem, por vezes poética, de um mundo heterogêneo do qual não somos senhores” (p. 8), embora sejamos parte. É nessas brechas entre imagem e voz que se estabelece o caos pulsante do trabalho.
Na segunda cena, um operário da construção civil sai por uma porta, sobe uma escada e entra por outra porta com um balde em cada mão. A ação se dá num prédio em construção (num misto de construção e demolição), por trás do esboço de um grande relógio que abarca a cena inteira. A circulação contínua de um mesmo trabalhador pela escada produz um efeito de duplicação, triplicação – muito próximo à linguagem dos sonhos, e também do pesadelo – como se fosse uma fila de trabalhadores subindo a escada num movimento ininterrupto, num único sentido ascendente. Engolidos pela porta de cima, ressurgem, pelos mecanismos de divisão e de reprodução na porta de baixo, para reiniciar o mesmo movimento. É o sujeito redobrado que se desdobra. Pode-se associar a cena ao “mecanismo vivo da manufatura”, observado por Marx (1867/2013) numa contínua repetição da mesma ação limitada durante horas.
A cena se dá sob a narrativa insistente:
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel....
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos (Melo Neto,1943/1979, pp. 366-370).
Marx (1867/2013), em seu texto Divisão do trabalho e manufatura, refere-se ao “trabalhador parcial e sua ferramenta”, denunciando a forma-sujeito do capitalismo industrial. Menciona que “um trabalhador que executa uma mesma operação simples durante toda sua vida transforma seu corpo inteiro num órgão automaticamente unilateral dessa operação” (Marx, 1867/2013, p. 414). Trata-se da imagem da “indignidade operária”, a que se refere Dejours (1992, p. 49), fruto do contato forçado com uma tarefa desinteressante, pobre em atividades psíquicas, psicomotoras e fantasmáticas.
Na terceira cena, certa constelação aí se repete, aliando trabalho monótono e poesia: uma trabalhadora ajoelhada, esfregando o chão com o braço estendido à frente, em movimentos amplos e sucessivos de um lado para o outro na limpeza de um piso, usando pano e balde. Ao lado esquerdo da tela, os ponteiros de um relógio giram rapidamente em sentido anti-horário – como se fossem outros dois braços úteis e acelerados na execução de uma tarefa qualquer na conjugação trabalho-esforço-tempo. Permeando a cena, seguem os versos do poeta (Melo Neto, 1943/1979, pp. 366-371):
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina....
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
No entanto, a poesia, em seu saber, reconstrói a Outra Cena que só pode se oferecer em palavras que estranham e surpreendem o próprio falante. Essa cena não se satisfaz como espetáculo, ela não se dá propriamente a ver, as lembranças e os sentimentos a atraiçoam e não a apresentam como tal. Só um espaço de palavra constrói a Outra Cena do trabalho na associação livre sobre seus gestos, seu fazer, seu saber. Imagens que podem reconstituir, mais do que um espetáculo, uma área de sombra onde o trabalhador não reencontra ali a sua figura.
Veja bem (Melo Neto, 1994/2005) faz pensar na desconexão entre o Lado de fora e o Lado de dentro e trata de exibir essa divisão. Exibe o paradoxo do trabalho que enquanto garantia de sobrevivência, bem pode se tornar prenúncio de aniquilamento. Ao mesmo tempo em que se constitui numa segunda oportunidade para lidar com as fragilidades psíquicas infantis (Dejours, 1996), o trabalho também é fonte de adoecimento.
Isso se produz, finalmente, quando o sujeito é tratado como um objeto, um recurso humano ou quando o corpo é entregue ao esgotamento. Os desejos afastados e os pensamentos renegados são arremessados sob forma de forças estranhas ao sujeito, ao mesmo tempo em que a insistência dessas forças atesta a divisão, a clivagem do eu. Pode-se pensar o trabalho enquanto uma experiência de risco, no momento em que o sujeito precisa fazer um esforço para excluir alguma coisa de si mesmo, levandoo a negar sua existência, experimentando sentimentos de estranheza e despersonalizações. Assim, na Outra Cena, a da atividade fantasmática, quando o recalcamento relaxa, o sofrimento pode se dar a reconhecer e o desejo – esse estranho interno – mostra-se como parte do real do sujeito trabalhador. A tela do inconsciente constitui esse lócus onde a verdade da estranheza pode ser pensada.
Freud (1930/1976e) aborda em seu texto O mal-estar na civilização, que a vida, tal como a encontramos, é árdua demais já que temos que lidar com as decepções e as tarefas impossíveis que se apresentam no seu percurso, por isso, não podemos passar sem a ciência e a arte – essas construções auxiliares que oferecem guarida para o nosso desamparo: “a ciência e a arte são derivativos poderosos que nos fazem extrair luz de nossa própria desgraça” (Freud, 1930/1976e, p. 93).
O saber que a obra cinematográfica aporta funciona como um disparador para pensar a relação trabalho-subjetividade. Convoca os conceitos de força de trabalho, pulsão e carga psíquica do trabalho abordados por Marx, Freud e Dejours e oferece guarida para suportar a desmedida do trabalho.
Marx é enfático e perturbador ao afirmar que a força de trabalho é essa “mercadoria particular que só existe na carne e no sangue do homem” (Marx, 1848/2010b, p. 34). No que segue nas páginas seguintes:
... a força de trabalho em ação, o trabalho, é a própria atividade vital do operário, a própria manifestação da sua vida. E é essa atividade vital que ele vende a um terceiro para se assegurar dos meios de vida necessários. A sua atividade vital é para ele, portanto, apenas um meio para poder existir. Trabalha para viver. Ele nem sequer considera o trabalho parte da sua vida, é antes o sacrifício da sua vida. É uma mercadoria que ele adjudicou a um terceiro (Marx, 1848/2010b, p. 36).
Na citação acima, a questão da alienação do desejo do sujeito no trabalho é tocante, pois antes do trabalho ser parte de sua vida, ele é o sacrifício da sua vida. Isso que Marx chama de “força” de trabalho, de “atividade vital”, complementando que a força de trabalho é a própria manifestação de vida do operário, pode-se relacionar com a “energia psíquica” que é trabalhada por Freud, desde a Interpretação dos sonhos (1900/1976a), onde ele convoca a psicologia a se interessar não pelos conteúdos da consciência, mas pelos processos inconscientes como os fatores decisivos para o psiquismo. Ele se propõe a tratar a energia psíquica a partir das premissas da psicanálise, enquanto processo inconsciente e vinculado ao domínio do sexual.
Em As pulsões e suas vicissitudes, Freud (1915/1976b) avança nesta questão ao introduzir o conceito de pulsão – enquanto o representante da energia psíquica:
a pulsão nos aparecerá como um conceito situado na fronteira entre o psíquico e o somático, como representante psíquico das excitações que se originam no interior do corpo e chegam ao psiquismo, como medida da exigência feita ao psiquismo no sentido de trabalhar em consequência de sua liga ção com o corpo (Freud, 1915/1976b, p. 142).
No mesmo artigo, Freud propõe uma reteorização do conceito de energia, ao tratar do destino pulsional. Com isto, marca a entrada do Objeto, do mundo externo. Portanto, do Outro na proposição do trabalho do aparelho psíquico, abordando a mobilidade das vias associativas que a energia pulsional pode tomar. Assim, o trabalho da energia psíquica será regido “por três polaridades, as antíteses: sujeito (eu) – Objeto (mundo externo), prazer – desprazer e ativo – passivo” (Freud, 1915/1976b, p. 155). As polaridades e antíteses propõem uma escala de sentimentos determinantes da aproximação de um polo ou de outro, introduzindo o ponto de vista econômico/quantitativo da energia psíquica.
Em Psicologia de grupo e análise do eu, Freud (1921/1976c) retoma a questão da energia psíquica na perspectiva da libido, ligando-a ao amor e à maleabilidade desse significante. Ao mesmo tempo em que afirma a impossibilidade de medir os afetos:
Libido é expressão extraída da teoria das emoções. Damos esse nome à energia, considerada como magnitude quantitativa (embora na realidade não seja presentemente mensurável), daquelas pulsões que têm a ver com tudo o que pode ser abrangido sob a palavra “amor”. O núcleo de que queremos significar por amor consiste naturalmente (e é isso que os poetas cantam) no amor sexual, com a união sexual como objetivo. Mas não isolamos disso – que, em qualquer caso, tem sua parte no nome “amor” – por um lado o amor próprio e, por outro, o amor pelos pais e filhos, a amizade e o amor pela humanidade em geral, bem como a devoção a objetos concretos e ideias abstratas (Freud, 1921/1976c, p. 116).
A insistência do poeta com o enunciado o amor comeu, que repetidamente, adquire o estatuto de enigma posto sobre o destino da energia psíquica no trabalho, onde o amor comeu denuncia o sofrimento do trabalhador que aparece como o equívoco no real do trabalho. O sofrimento do trabalhador, ao ser transposto pela poesia em linguagem, faz com que a dor participe da cena, permitindo o deslizamento das certezas lógicas, faz mexer com as regularidades que orientam o trabalho, expõe o real da imagem, torna-se um ato.
Freud insiste no “amor” como uma palavra-ponte que se liga tanto à poesia quanto à ciência, ainda que se pague caro por ousar trabalhar com ela:
Somos de opinião, pois, que a linguagem efetuou uma unificação inteiramente justificável ao criar a palavra amor com seus numerosos usos, e que não podemos fazer nada melhor senão toma-la também como base de nossas discussões e exposições científicas (Freud, 1921/1976c, p.116).
Freud discute em o Eu e o Isso (1923/1976d) que as experiências de caráter agradável, não são coercitivas. Ao passo que as impressões de desprazer provocam tensão e incitam à descarga. Por isso, o desprazer é tomado como um aumento e o prazer como uma diminuição do investimento energético. Constata na experiência clínica que o impulso reprimido, o Isso “pode exercer força impulsiva sem que o eu note a compulsão. Somente quando se dá resistência a esta [força impulsiva], uma detenção na reação de descarga, é que o Isso se torna consciente como desprazer” (Freud, 1923/1976d, p. 36).
É a antítese desprazer – prazer no trabalho que a abordagem de Cristophe Dejours privilegia para tratar os conceitos de carga psíquica e descarga. Refere: “O organismo do trabalhador não é um “motor humano”, na medida em que é permanentemente objeto de excitações, não somente exógenas, mas também endógenas” (Dejours, 1994, p. 24).
Neste jogo da economia das excitações internas e externas, Dejours (1992) elege a organização do trabalho como o principal aspecto do trabalho capaz de colocar em risco a relação trabalho-subjetividade. O autor justifica que a organização do trabalho promove: a divisão do trabalho e a fragmentação do trabalho; a divisão dos trabalhadores no sistema hierárquico em chefes e subordinados, as modalidades de comando, as relações de poder; as metas, as questões de responsabilidade, as formas de remuneração, métodos de avaliação de desempenho dos trabalhadores. É a organização do trabalho que põe em risco as atividades psíquicas e fantasmáticas do trabalhador e instaura o sofrimento:
Ela [a organização do trabalho] é primeiramente, a divisão do trabalho e sua repartição entre os trabalhadores, isto é, a divisão de homens: a organização do trabalho recorta assim, de uma só vez, o conteúdo da tarefa e as relações humanas de trabalho. Não acharemos abusivo observar nisso o exercício de uma vontade: a de dominar, controlar, de explorar ao máximo a força de trabalho (Dejours, 1994, p. 27).
Para Marx, a força de trabalho é uma mercadoria, chamada assim de “trabalho livre”, onde o trabalhador vende a si mesmo e ainda por partes: “Vende em leilão 8, 10, 12, 15 horas da sua vida, dia após dia a quem melhor pagar” (Marx, 1848/2010b, p. 36). Introduz a ideia de alienação no trabalho ao referir que o produto de seu trabalho não lhe pertence:
O que o operário produz para si próprio não é a seda que tece, não é o ouro que extrai das minas, não é o palácio que constrói. O que ele produz para si próprio é o salário; e a seda, o ouro e o palácio reduzem-se para ele a uma determinada quantidade de meios de subsistência, talvez a uma roupa de algodão, a umas moedas, a um quarto num porão (Marx, 1848/2010b, p. 36).
Nessa forma da organização do trabalho, a preocupação não é em relação ao emprego excessivo das habilidades, como é o caso da carga física que produz distúrbios osteomusculares e outras lesões por esforço repetitivo. Mas, o risco é o subemprego de atividades psíquicas que conduzem a uma retenção de energia pulsional e que vai produzir sofrimento, a carga psíquica (Dejours, 1994).
A partir disso, pode-se inferir que o subemprego das atividades psíquicas e fantasmáticas no trabalho, tão bem caracterizado por Dejours (1994), interfere diretamente nas possibilidades de atribuição de sentido ao trabalho repetitivo e fragmentado, o que Marx já denunciava:
E o operário que durante 12h tece, escava, maneja um torno, uma pá de pedreiro “valerão para ele essas horas como manifestação de sua vida, como sua vida? Ao contrário. A vida para ele começa quando termina essa atividade, à mesa, no bar, na cama. As 12h de trabalho não têm de modo algum, para ele o sentido de tecer, de fiar, de perfurar [grifos nossos] etc, mas representam unicamente o meio de ganhar dinheiro que lhe permitirá sentar-se à mesa, ir ao bar, deitar-se na cama” (Marx, 1848/2010b, p. 36).
Portanto, para Marx e para Dejours, a organização do trabalho materializa-se como a vontade de um outro. Como salienta Dejours (1994), trata-se da vontade do empregador, que muitas vezes é mediada por uma chefia técnica, onde o trabalhador, de certa forma é despossuído de seu corpo físico e nervoso e forçado a agir conforme a vontade de um outro. Na linha dos “corpos dóceis”, de Foucault (1987): corpos ao mesmo tempo dóceis e frágeis, facilmente treináveis e manipuláveis, altamente suscetíveis à dominação. É nessas circunstâncias que se dá o que Dejours (1994) identifica como “a carga psíquica do trabalho” resultante da confrontação do desejo do trabalhador à determinação do empregador, contida na organização do trabalho.
A carga psíquica do trabalho é a carga, isto é, o eco ao nível do trabalhador da pressão que constitui a organização do trabalho. Quando não há mais arranjo possível da organização do trabalho pelo trabalhador, a relação conflitual do aparelho psíquico à tarefa é bloqueada. Abre-se, então, o domínio do sofrimento (Dejours, 1994, p.28).
Ao instalar a impossibilidade de transformar o conteúdo da tarefa e o processo de trabalho, a própria organização do trabalho engendra para o trabalhador uma contradição fundamental: o desejo de trabalhar contra a vontade do empregador (Dejours,1994).
Nesse gesto, o trabalhador busca preservar sua integridade psíquica, enquanto sujeito do desejo. No plano ideológico, sempre que houver dominação vai haver resistência, nesta operação, o trabalhador tenta recriar seu mundo simbólico, pois é um sujeito de linguagem.
Cabe perguntar se a tarefa prescrita não seria o coração da organização do trabalho.
A tarefa prescrita, aqui compreendida como aquela que está no manual de descrição de funções e procedimentos e que, por sua vez, orienta a seleção, a contratação de pessoal, o treinamento e a avaliação de desempenho. A tarefa prescrita como parte da organização do trabalho remete aos espaços discursivos logicamente estabilizados, propostos por Michel Pêcheux (2006, p. 34) que pressupõe que todo o sujeito sabe o que diz e que tem o controle daquilo que faz. “Coisas a saber” da gestão produzidas pelo neocapitalismo e pelo neopositivismo, conhecimentos a gerir e a transmitir socialmente. No entanto, esse universo logicamente estabilizado está em relação com as formulações irremediavelmente equívocas frente ao real da tarefa, aos pontos de deriva, sempre suscetível de tornar-se outro. Está instalado o fundo duplo da tarefa com o qual o trabalhador tem que lidar, o que reivindica um inconsciente para o trabalhador. No entanto, como afirma Pêcheux (2006):
A burguesia insiste na velha certeza elitista que pretende que as classes dominadas não inventem jamais nada, por que elas estão muito absorvidas pelas lógicas do cotidiano ...: Os proletários não têm (o tempo de se pagar um luxo de) um inconsciente (pp. 52-53).
É sobre a questão da negação de um inconsciente ao trabalhador, justamente para reafirmá-lo, que se pretende abalar a positividade pragmática do trabalho, abordando o trabalho e a Outra Cena, onde o sujeito parece ser a questão central do trabalho. Pois, a vulnerabilidade e a precariedade de sua posição, enquanto trabalhador, não indica uma garantia de seu lugar como produtor inconteste do trabalho.
O trabalhador em sua errância faz retorno ao inconsciente, capaz de se lançar sobre a tarefa ou em sua periferia e recolher algo sobre si mesmo, enquanto sujeito de discurso heterogêneo na relação com a história e com a ideologia. Na organização do trabalho, a Outra Cena não se deixaria mostrar, se não houvesse falhas nesse ritual e se o trabalhador não tivesse um inconsciente. Trata-se do sujeito contraditório e sofredor capaz de reconstruir a tarefa a partir de suas ruínas. Ele nos ensina sobre a capacidade para recusar o peso do corpo orgânico e dá o testemunho de sua imaterialidade, assegura a urgência da fantasia no processo.
Veja bem (Furtado, 1994/2005) mostra a língua indecifrável do trabalho, captada na execução da atividade, na iminência de seu surgimento como um lapso. O Lado de fora e o Lado de dentro assinalam um momento dialético do funcionamento do trabalho, é como uma pontuação absurda que esqueceu a imagem que está mediando. O trabalho aparece em sua ruptura, divisão, não-conformidade, e se inscreve em contraponto ao que é evocado pela ideia de coerência. Revela a crise, o compromisso, a difícil negociação entre forças ou partes, cordatas ou dominantes, que o trabalho rege a seu critério. O trabalho dá manifestações da economia interna do sujeito. O trabalho é o sintoma do sujeito.
O mundo do trabalho é vivido na tela como reativação em laboratório de um princípio de divisão e alienação que se faz permear por inteiro de uma dimensão que torna claro tudo se tratar de uma representação que efetiva, pela forma, um constante comentário a circunscrever a experiência encenada e que avança um diagnóstico sobre os limites do sujeito no trabalho.
O desdobramento desses dois pontos: máquinas/mercadorias e o corpo do trabalhador, no entanto, solidários numa mesma corda. Máquinas e mercadorias em torno de um corpo. Veja bem é um ato que propõe um círculo de reversão. Suporta o atamento e a torção de duas seções: “O lado de fora” e o “Olado de dentro”. O desejo do Outro, esse grande Outro da ideologia capitalista onde se dá a comercialização de mercadorias e serviços – campo radical – em que o desejo do sujeito está irremediavelmente atado por essa torção onde se revela que a demanda do trabalhador, na organização do trabalho, está sempre alijada do desejo do trabalhador. Essa superfície topológica que está em questão não cessa de lembrar o que implica para o trabalhador ser um sujeito falante. Ele se constitui no lugar do Outro, do imaginário, da tarefa prescrita e é preciso explicitar para o trabalhador, de sua dependência incondicional da cadeia significante: convém compreender o que resulta dela para o sujeito do inconsciente, nos dois poemas de João Cabral e de Drummond.
Na perspectiva teórica psicanalítica e marxista, a Outra Cena do trabalho se mostra no interjogo de forças em que se dá o trabalho: entre a espetacularização da mercadoria e o apagamento do sujeito que trabalha. Onde se pode afirmar que o conceito de força de trabalho, energia vital do trabalhador, segundo Marx, está intimamente ligado com o conceito de libido, pulsão de vida, para Freud. Trabalho é amor transformado. É preciso amar para trabalhar. No entanto, o trabalho pode ser o sacrifício da vida e do amor do trabalhador, numa relação mal correspondida e desigual. Isso se dá quando o desejo do trabalhador não está em questão. Quando o desejo do trabalhador não pode entrar na cena do trabalho, o trabalho reside sem sentido, fora do simbólico. Situação em que se instala a carga psíquica do trabalho, segundo Dejours, provocando tensão e sofrimento. Esse percurso é a trama teórica deste artigo.
As cenas de trabalho repetitivo, no vídeo de Jorge Furtado, expõem a relação com o trabalho penoso, do qual o sujeito não é o mestre. Trata-se do subemprego de atividades psíquicas e fantasmáticas no trabalho da subsistência e da reprodução das condições de vida.
O trabalho não é um ato isolado, é um ato de relação, é um ato de linguagem, portanto endereçado. Para que o trabalho seja compartilhado como um sistema coletivo de expressão, é preciso que ele alcance o simbólico, que se coloque no sentido, que perca sua cercadura individualista e de pura extração para dar acesso a um campo de trocas solidárias. Isso não é uma tarefa dada ao trabalhador, ao contrário, é a dificuldade com a qual ele tem de lidar. Submerso pela violência de antigas e novas representações imaginárias, precisa se ocupar em reinscrevê-las na ordem do comum e do partilhável e de lhes atribuir um valor ao mesmo tempo universal e irrisório, singular e coletivo. Talvez esse gesto possa produzir algum abalo na estrutura da organização do trabalho e na reconfiguração das relações de trabalho, onde o sofrimento pode ser entendido como o esforço do trabalhador para não se deixar exaurir no gozo do Outro.