RESUMO: O artigo apresenta, de forma inédita, o discurso pronunciado em Lisboa em 21 de Agosto de 1776 por Alberto Jaquéri de Sales (1731-1791), professor da Aula do Comércio (AC), por ocasião da inauguração do quinto curso da AC. Nesse ano, a AC registou o maior número de alunos matriculados da história da instituição, 307 no total. A literatura contém diversas referências a este documento impresso em 1776, mas, por circunstâncias desconhecidas, o opúsculo parece não constar do acervo documental das principais bibliotecas portuguesas; e tampouco a localização do folheto é fornecida pela literatura de forma precisa, pelo menos tanto quanto é do nosso conhecimento. Desta forma, este estudo visa mostrar à comunidade o documento que persiste mais ou menos desencontrado com a história da contabilidade portuguesa e que se localizou no Catálogo de Miscelâneas da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Aproveita-se também a oportunidade para dar conhecimento de uma fotografia da AC, datada de 1894 (que se crê inédita no âmbito do tema AC), a qual mostra o edifício em Lisboa onde a escola se instalou e funcionou de 1759 a 1768.
Palavras-chave: História da ContabilidadeHistória da Contabilidade,Século XVIIISéculo XVIII,LisboaLisboa,Aula do ComércioAula do Comércio,SalesSales,PortugalPortugal,Ensino de ContabilidadeEnsino de Contabilidade.
ABSTRACT: The article presents, in an unprecedented way, the speech given in Lisbon on August 21, 1776 by Alberto Jaquéri de Sales (1731-1791), professor of the School of Commerce (SC), on the occasion of the inauguration of the fifth course of the SC. In that year, the SC registered the largest number of students enrolled in the history of the institution, 307 in total. The literature contains several references to this document printed in 1776, but, for unknown circumstances, the booklet does not appear in the documentary collection of the main Portuguese libraries; nor is the location of the leaflet accurately provided, at least to the best of our knowledge. Thus, this study aims to show the community the document that persists more or less disassociated with the history of Portuguese accounting and that was located in the Catalog of Miscellaneous of the General Library of the University of Coimbra. The paper is also an opportunity to give notice of a photograph of the SC, dated 1894 (which is believed to be unprecedented in the SC subject), which shows the building in Lisbon, where the school has been installed and operated from 1759 to 1768.
Keywords: Accounting History, 18th Century, Lisbon, School of Commerce, Sales, Portugal, Accounting Education.
Artigo
Uma nota de investigação sobre a aula do comércio de Lisboa e sobre um discurso mercantilista de Alberto Jaquéri de Sales (1776), um professor de contabilidade
A research note on the school of commerce of Lisbon and on a mercantilist discourse by Alberto Jaquéri de Sales (1776), an accounting professor
Recepção: 02 Julho 2020
Revised document received: 01 Setembro 2020
Aprovação: 08 Setembro 2020
Uma das etapas mais bem estudadas da história da contabilidade portuguesa parece ser a segunda metade do século XVIII, por oposição ao período anterior a 1750, época em que, de acordo com Rodrigues, Gomes e Craig (2003, p. 100), existiam poucos contabilistas (guarda-livros) nacionais e os mercadores portugueses que havia desconheciam quase totalmente o sistema das partidas dobradas.
É geralmente aceite que o ano de 1750 marca um antes e um depois na história da contabilidade portuguesa (GONÇALVES, 2016, 2017). Isto fica a dever-se ao início do reinado de D. José I e à presença no seu governo de uma das figuras políticas mais controversas da história política e social portuguesa, Sebastião José de Carvalho e Melo (mais conhecido por Pombal). A figura de Pombal tem dominado o estudo do século XVIII português ao ponto de a grande maioria dos historiadores o dividir em três fases: antes, durante e depois de Pombal (MACEDO, 1971, p. 415). De um ângulo contabilístico, a afirmação precedente é igualmente válida. A contribuição deste governante para a sociedade setecentista portuguesa cruzou muitas disciplinas, incluindo a física, a química, a arquitetura, a sismologia, a viticultura e, o que é mais impressivo para o contexto deste artigo, a contabilidade.
Numa asserção conhecida, Gonçalves da Silva (1984, p. 509-510, 1985, p. 232) sublinhou que na história da contabilidade portuguesa a época de Pombal pode qualificar-se de revolucionária, porque as providências governativas respeitantes à matéria que então se tomaram modificaram sobremaneira o panorama contabilístico nacional. Uma dessas medidas legislativas prende-se com a área do ensino público da contabilidade por partidas dobradas. Malgrado Portugal não poder considerar-se um país que tenha desenvolvido um pensamento contabilístico original (HERNÁNDEZ ESTEVE, 2013, p. 443), pode orgulhar-se de, em princípio, ter sido a primeira nação a implementar uma escola pública na qual se ensinasse esse saber prático, a Aula do Comércio, em 1759 (RODRIGUES; GOMES; CRAIG, 2004). Esta escola encontra-se hoje historicamente muito bem documentada, sendo vastíssima a literatura produzida nos últimos anos, especialmente a partir dos trabalhos seminais de Santana (1986a,b,c, 1987a,b,c,d, 1988) e de Rodrigues, Gomes e Craig (2004), este último dando a conhecer pela primeira vez à comunidade internacional de historiadores da contabilidade, por via da publicação na conceituada revista de referência Accounting History, a escola que Pombal fundou na capital portuguesa em 1759.
Todavia, como em qualquer área de conhecimento, existem lacunas e vazios por preencher. Um destes gaps da literatura prende-se com a inventariação, catalogação e estudo de documentos relacionados com os professores e os alunos da Aula do Comércio (e.g.: postilas, lições, manuscritos, aulas, discursos). Neste contexto, o artigo pretende responder, em parte, ao repto de Rodrigues, Carqueja e Ferreira (2016) para que se proceda à “inventariação e caracterização de todos os manuscritos [e demais documentação] baseados em notas de lições existentes nas bibliotecas portuguesas”. O artigo ambiciona subsidiar essa empreitada. Por conseguinte, o seu principal objectivo consiste na apresentação inédita e integral de um documento que, por qualquer motivo, persiste mais ou menos desencontrado com a história da contabilidade de língua portuguesa e que se localizou na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra: o discurso inaugural de Alberto Jaquéri de Sales, por ocasião da abertura do quinto curso da Aula do Comércio, em 21 de Agosto de 1776. O estudo também intenta incrementar o conhecimento contabilístico por intermédio da publicação de uma fotografia da Aula do Comércio, que se crê inédita neste domínio e que aqui é apresentada pela primeira vez em periódico internacional.
Investigações acerca da Aula do Comércio e dos seus assuntos colaterais afiguram-se importantes e têm interesse por três ordens de razão. Primeiro, porque a escola ajudou a criar um corpo de profissionais qualificados instrumentais para a difusão das partidas dobradas em Portugal (GOMES, 2007, p. 7). Depois, porque os actuais contabilistas certificados vêm desenvolvendo um gosto cada vez maior pelas origens da sua profissão em Portugal, a que não será alheio o financiamento da Ordem dos Contabilistas Certificados, nos primeiros anos da década transacta, de um projecto inédito de investigação no âmbito da instituição da Aula do Comércio (cf. RODRIGUES, 2009, p. 119). E, por último, porque a questão do ensino da contabilidade e da primeira escola no mundo a ministrá-lo em termos públicos representa um tema que capta a atenção dos estudantes de contabilidade, podendo até dizer-se que a primeira literatura no âmbito da história da contabilidade a que por norma dedicam ponderação é a relativa à Aula do Comércio de Lisboa. Assim, o artigo contribuirá para que, tanto profissionais, como estudantes de contabilidade, possam manter vivo o interesse pela origem e circunstâncias contextuais iniciais da actual e futura profissão, com a convicção de que o conhecimento do passado, além de contribuir para o enriquecimento cultural da disciplina, ajuda a preparar e a sustentar o futuro.
A presente nota de investigação faz uso de uma metodologia ancorada em dois pressupostos: a) quanto aos objectivos, descritiva; e b) quanto à abordagem do problema, qualitativa (RAUPP; BEUREN, 2006, p. 81-82, 91-92). Embora não seja fácil enunciar uma definição precisa de investigação qualitativa, considera-se que a mesma, no sentido mais lato do termo, está particularmente associada à investigação que adopta uma posição filosófica interpretativa (videVIEIRA; MAJOR; ROBALO, 2009, p. 132). A presente abordagem confirmará, por conclusão observável posteriormente, uma característica dos estudos qualitativos: a empatia (cf. STAKE, 2012, p. 62). Este estudo é empático, porque presta atenção à intencionalidade dos actores intervenientes no objecto em análise (STAKE, 2012, p. 62). Quanto à técnica particular de recolha de dados (o método de geração de informação, de acordo com SILVERMAN, 2001), esta consistiu na análise de arquivo e na análise de textos e documentos, fundamentalmente porque não foi possível o controlo, por parte do investigador, dos eventos comportamentais dos agentes estudados e porque, também, a pesquisa alude a acontecimentos não contemporâneos. Quanto aos elementos de trabalho recolhidos, os principais textos e documentos analisados cingiram-se a fontes primárias (manuscritas, impressas e fotográficas), a legislação da época e a fontes secundárias1.
Depois da introdução, a ordem de trabalhos prossegue com a segunda secção, dedicada ao período de ouro da contabilidade em Portugal. A terceira secção apresenta uma síntese da Aula do Comércio e dos seus dois primeiros lentes e a quarta identifica o vazio que este artigo projecta preencher. A quinta secção apresenta e comenta o discurso do lente Sales. Em fecho, a conclusão.
Um esclarecimento é devido: seguiu-se como regra actualizar a ortografia e a pontuação em citações de documentos antigos e traduzir todas as citações em língua estrangeira constantes neste artigo.
Portugal assistiu no século XVIII a uma mudança na contabilidade das empresas privadas e de alguns organismos públicos, em razão de o governo ter manifestado o seu poder coercivo para a imposição da contabilidade por partidas dobradas nos estatutos de algumas organizações privadas e públicas (GOMES, 2007, p. 222-223).
A contribuir para o epíteto de período das luzes da história da contabilidade em Portugal estará decerto o arco cronológico correspondente ao governo (1750-1777) de Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782), uma fase que, segundo Faria (2005, p. 216), Gomes (2007, p. 11, 119) e Gonçalves e Marques (2015, p. 241), ficou marcada por uma série de acontecimentos que permitiram um grande desenvolvimento da contabilidade. Sobre este assunto colhem-se, cronologicamente, diversos exemplos concretos, a saber:
─ o estabelecimento da Junta do Comércio, em 1755 (GOMES, 2007, p. 120-121; GONÇALVES, 2011, p. 5-6; MACEDO, 1982, p. 74-75, 1984, p. 106-108; RATTON, 1813, p. 258-282; SERRÃO, 1982a, p. 129-130; cf. também os estatutos da Junta do Comércio);
─ a formação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, em 1755 (PINTO, 2017a,b; RICARDINO; MARTINS, 2004; RODRIGUES; RICARDINO; MARTINS, 2009; ver, também, os estatutos gerais desta empresa);
─ a fundação da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, em 1756 (OLIVEIRA, 2009; OLIVEIRA, 2013; SOUSA; PEREIRA, 2008; cf. também os estatutos desta sociedade);
─ o estabelecimento da Real Fábrica das Sedas, em 1757, depois da falência em 1750 da Companhia da Fábrica das Sedas (MAGALHÃES, 2010; MOREIRA, 1983; NEVES, 1827; ROSSA, 1998; vejam-se também os estatutos gerais desta corporação);
─ a publicação em língua portuguesa do primeiro livro de contabilidade por partidas dobradas, por João Baptista Bonavie em 1758, sob o título Mercador Exacto nos Seus Livros de Contas… pelos Princípios das Partidas Dobradas (AMORIM, 1968, p. 122; CARQUEJA, 2000, p. 206; GOMES, 2007, p. 23, 156, 218, 223; GONÇALVES da SILVA, 1948a, p. 22, 1948b, p. 226-227; GORDON, 1937, p. 46; GUIMARÃES, 2005, p. 509; MARTINS, 1944, p. 263, 1960, p. 16; PEQUITO, 1875, p. 143; STEVELINCK, 1970, p. 63; VLAEMMINCK; GONZÁLEZ FERRANDO, 1961, p. 232; YAMEY, 1969, p. 581; e, por todos, veja-se a seminal contribuição de CARQUEJA, 2011);
─ a instituição da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, em 1759 (JÚNIOR, 2004; RODRIGUES; SANGSTER, 2012; cf. também os estatutos gerais desta companhia);
─ a fundação da Aula do Comércio, em 1759 (AZEVEDO, 1961; CAIADO, 2000; CARDOSO, 1984; ESTEVENS, 2009; FERREIRA; KEDSLIE; FREITAS, 1995; GOMES, 2007; GONÇALVES, 2010a,b,c,d, 2011; LIRA, 2010, 2011; MACHADO, 2009; MARTINS, 1937, 1960; RATTON 1813, p. 252-258; RIBEIRO, 1871, p. 273-281; RICARDINO, 2012; SANTANA, 1970b, 1974, 1985, 1986a,b,c, 1987a,b,c,d, 1988a; e, por todos, RODRIGUES; GOMES, 2002) (leiam-se também, com muita utilidade, os estatutos da Aula do Comércio);
─ a introdução da contabilidade por partidas dobradas nas quatro contadorias-gerais do Erário Régio, em 1761 (GOMES; CARNEGIE; RODRIGUES, 2008, 2014; RODRIGUES, 1996a,b,c,d,e, 2000, 2011a,b; e, por todos, GOMES, 2007) (estude-se também a Carta de Lei de 22 de Dezembro de 1761);
─ a criação da Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve, em 1773, uma sociedade por acções cuja escrituração nos livros deveria efectuar-se pelo mesmo método mercantil que se achava estabelecido nas demais companhias pombalinas, isto é, as partidas dobradas (cf. a condição II do Alvará de 15 de Janeiro de 1773, lei de fundação da entidade).
De permeio, cumpre salientar que Pombal esteve directamente ligado à formação de quatro sociedades monopolistas por acções, todas elas com prestação de contas segundo a contabilidade por partidas dobradas: Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, 1755; Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, 1756; Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, 1759 (de longe a maior de todas elas, em termos de capital social); e Companhia Geral das Reais Pescarias do Reino do Algarve, 1773. O governante era sempre o primeiro subscritor [signatário proponente] das companhias gerais que ajudou a fundar (MARCOS, 1997, p. 383), tal como em França o foi Jean-Baptiste Colbert (1619-1683), secretário de Estado de Luís XIV, nas companhias privilegiadas por si fundadas (RODRIGUES; RICARDINO; MARTINS, 2009, p. 424).
Neste quadro sócio-económico, Pombal compreendeu que em termos de instrução prática seria necessário equipar e apetrechar as infra-estruturas que ajudou a promover, dotando-as de técnicos capazes de colocar em marcha o seu plano de desenvolvimento e recuperação do país face ao atraso que experimentava a partir do final do reinado de D. João V. A competência de que muitos destes profissionais beneficiaram foi proporcionada pela Aula do Comércio.
Em Portugal, em meados do século XVIII, ocorreu uma interessante e inovadora experiência escolar associada ao ensino da contabilidade: a fundação da Aula do Comércio. Em 1759, Pombal e a Junta do Comércio, sob a presidência do provedor José Francisco da Cruz (1717-1768) (GONÇALVES, 2013a,b; GONÇALVES; MARQUES, 2015), fundam em Lisboa, perto do actual Largo do Rato, mais concretamente na contemporânea Rua da Escola Politécnica, uma escola pública de comércio e de escrituração comercial pelo método das partidas dobradas.
Integrada num contexto de reformas pombalinas ocorridas na educação no reinado de D. José I, justamente cognominado O Reformador, este estabelecimento, como comenta Carvalho (2008, p. 458), “representou, cronologicamente, a primeira providência tomada pelo ministro de D. José [Pombal] para ocorrer às necessidades do nosso ensino”. A relevância para a história da contabilidade da fundação da Aula do Comércio advém essencialmente da circunstância de nela ter sido ensinada escrituração comercial por partidas dobradas pela primeira vez em Portugal.
A Junta do Comércio e a Aula do Comércio fizeram ambas parte da estratégia do Marquês de Pombal para o aumento do desenvolvimento económico do reino, em linha com as directrizes iluministas da época, as quais advogavam a existência de recursos humanos qualificados, tanto para o sector público, como para o privado (ALMODOVAR; CARDOSO, 2012, p. 190). É geralmente aceite que a Aula do Comércio constitui um produto do iluminismo português; ela foi instrumental para a concretização do plano de Pombal que apontava ao crescimento do comércio externo nacional, sendo determinante para a formação dos profissionais de contabilidade que vieram a dar apoio às instituições que corporizaram esse objectivo, em particular a Junta do Comércio (contadoria e secretaria), o Erário Régio, a Real Fábrica das Sedas e, bem se vê, as companhias de comércio monopolistas. Neste passo, mais não fazemos do que acompanhar com casos concretos a síntese certeira de Rodrigues, Gomes e Craig (2004, p. 64): “Os graduados da Aula do Comércio contribuíram para facilitar o crescimento das transacções comerciais entre Portugal e o mercado externo. Pombal […] não poderia ter fundado as grandes companhias gerais de comércio se Portugal não dispusesse de um fluxo contínuo de diplomados desta escola”.
Sob outro ângulo, eram dois os grandes grupos de disciplinas que se ministravam na Aula do Comércio: (1) a aritmética comercial e suas aplicações (pesos, medidas, câmbios, seguros, fretamentos, comissões); e (2) a escrituração comercial (contabilidade) pelo método das partidas dobradas (ver Estatutos da Aula do Comércio; parágrafo 15). A Geometria também veio a ser ensinada a partir do primeiro curso, ainda que em termos oficiais não fizesse parte dos estatutos da Aula.
O primeiro lente da Aula do Comércio foi João Henrique de Sousa (1720-1788), natural de Setúbal (SANTANA, 1970a, p. 4). A literatura reconhece o papel deste professor como um dos principais agentes da mudança contabilística operada em Portugal em meados da centúria de setecentos, sendo de assinalar com particular autoridade os trabalhos de Gomes (2007), Rodrigues e Craig (2009, 2010) e Santana (1970a, 1974, 1988a) e a contribuição seminal de Carqueja (2010), esta acerca de um manuscrito elaborado por João Henrique de Sousa para apoio à Aula do Comércio, o qual contém as matérias de escrituração comercial por partidas dobradas e de aritmética aplicada ao comércio, por esta ordem.
As resenhas mais frutíferas sobre o ponto de vista crítico-interpretativo da biografia de João Henrique de Sousa acham-se em Rodrigues e Craig (2009, p. 386-390, 2010, p. 48-51). Segmentando a sua vida em três períodos, antes de 1756, durante o consulado pombalino como Primeiro-Ministro (1756-1777) e depois do governo de Pombal (depois de 1777), as duas investigações precedentes dão-nos a conhecer, entre outros aspectos, que João Henrique de Sousa começou a trabalhar aos 12 anos numa casa comercial italiana em Lisboa, na qual ficou cerca de nove anos, trabalhou como guarda-livros na Companhia de Macau e viajou em negócios pela Argentina e Brasil, antes de ser nomeado oficialmente inspector (auditor) da Contadoria da Junta do Comércio e primeiro professor da Aula do Comércio de Lisboa2.
Um panegírico anónimo, impresso em 1764, noticiava que João Henrique de Sousa era em 1758 o mais capaz de entre os portugueses de subir à cadeira da nova aula para ensinar com método fácil tudo quanto da arte do comércio podia servir para utilidade pública, extraindo o corpo do comércio todas as conveniências que quase todos os negociantes ignoravam (ANÓNIMO, 1764, p. 10). Existem, pois, evidências tangíveis de que o perfil de Sousa, um profissional viajado e conhecedor de assuntos de comércio internacional, foi considerado por Pombal como ideal para dar início ao seu projecto de educação comercial e contabilística de uma classe até ali muito pouco ilustrada.
Pedreira (1995, p. 166) documenta João Henrique de Sousa como um dos 100 grandes negociantes no período pombalino, fazendo parte da elite comercial da segunda metade do século XVIII português. A influência deste tecnocrata da contabilidade estendeu-se ao reinado de D. Maria I, porquanto foi nomeado provedor da Junta do Comércio em 1780 (GONÇALVES; LIRA; MARQUES, 2013). Entre Maio de 1781 e Fevereiro de 1786 ele atingiu a cúpula do Erário Régio, como tesoureiro-mor desta repartição pública criada em 1761 (FRANCO; PAIXÃO, 1995, p. 54).
Ainda que a literatura reconheça a importância de João Henrique de Sousa na difusão das partidas dobradas em Portugal, acreditamos que o seu papel, em termos de ensino oficial da contabilidade, possa estar a sobrevalorizado, posto que ele não completou o primeiro curso da Aula do Comércio (1759-1763). De facto, João Henrique de Sousa em 29 de Dezembro de 1761 foi nomeado escrivão do tesoureiro-mor do Erário Régio, um ofício incompatível com o magistério exercido na Aula do Comércio. Sousa tomou posse em 11 de Janeiro de 1762 (veja-se a reprodução fac-simile do termo de posse dada por Pombal a João Henrique de Sousa em FRANCO e PAIXÃO, 1995, p. 55).
Esta circunstância leva Santana (1986c, p. 26, 30) e Carqueja (2010, p. 24, 27) a cenarizarem a hipótese muito plausível de que Sousa não chegou a leccionar contabilidade por partidas dobradas na Aula do Comércio de forma integral, embora possa ter preparado o texto sobre as partidas dobradas (o manual Arte da Escritura Dobrada) que mais tarde em 1762 e 1763 o seu sucessor Alberto Jaquéri de Sales leu e ditou na parte final do primeiro curso (Janeiro de 1762 a Maio de 1763). Sousa fôra nomeado lente da Aula do Comércio e auditor da contadoria da Junta do Comércio em Julho de 1758, pelo que parece lícito concluir que desde então iniciou a tarefa de elaboração dos dispositivos pedagógicos de apoio ao estudo a utilizar na escola que, a partir de Dezembro de 1756, se sabia que seria estabelecida em Lisboa.
A evidência mais robusta que sustenta esta tese encontra-se no documento de 1764 já referido. Nele, o autor observa que João Henrique de Sousa ensinou na Aula do Comércio os fundamentos da Aritmética Comercial, logo na primeira parte do curso (ANÓNIMO, 1764, p. 12); depois passou à leccionação dos elementos de Geometria, em especial as aplicações práticas relacionadas com o cálculo das quantidades e do volume das carregações que Portugal faria em termos de comércio externo, em especial para o Brasil (ANÓNIMO, 1764, p. 15). Observa, ainda, que “cuidadosamente aplicado a este grande trabalho se achava o senhor João Henrique de Sousa quando foi chamado por D. José I para exercer no Erário Régio, removendo-o do magistério na escola” (ANÓNIMO, 1764, p. 16). Alzira Moreira3, uma antiga primeira-bibliotecária e arquivista do Tribunal de Contas, instituição sucessora do Erário Régio, revela-nos que Sousa foi o responsável pela elaboração do plano de escrituração contabilística do Erário em partidas dobradas, segundo o sistema mercantil usado no comércio (MOREIRA, 1977, p. x-xi).
Sousa preparou as lições da Aula do Comércio (Aritmética, Geometria e Escritura Dobrada) para futura impressão por parte da Junta do Comércio, ditou algumas (Aritmética e Geometria, por certo) e deixou preparadas as restantes, que Sales leu, na íntegra ou em grande parte. Esta é, pelo menos, a sugestão deixada pela leitura de um excerto do texto que temos vindo a seguir: “à custa das horas de descanso se achariam prontas para se entregarem ao prelo as importantes lições que ele [Sousa] ditou e tinha prevenido, para por meio delas fazer utilíssimos progressos à nobilíssima arte do comércio” (ANÓNIMO, 1764, p. 16-17).
Em 1765, João Henrique de Sousa viu recompensadas as suas qualidades pelo ensino da Aula do Comércio e pelo ofício de escrivão do tesoureiro-mor no Erário Régio; nesse ano foi-lhe atribuída a mercê do hábito de Cavaleiro da Ordem de Cristo (RODRIGUES; CRAIG, 2009, p. 389), a mais elevada condecoração social em Portugal no Antigo Regime. A ascensão de Sousa à nobreza, pela via do hábito concedido, resultou da preferência de Pombal pela nobilitação dos grandes comerciantes, mas também por aqueles que prestavam serviços civis excepcionais a Portugal. Tratou-se efectivamente deste último caso, o de uma recompensa pelo mérito civil e do candidato, tanto mais que o prémio não foi atribuído de forma directa em função da detenção de 10 acções das empresas pombalinas, como advogavam os estatutos societários das companhias gerais de comércio. Neste ponto, sabe-se que João Henrique de Sousa não fez parte das listas de accionistas das companhias pombalinas.
Como quer que seja, os trabalhos sobre as origens da profissão de contabilista e, concretamente, sobre os primeiros professores de instrução comercial e contabilística, assumem-se importantes para a prática, porque qualquer domínio de conhecimento para se afirmar e ser reconhecido pela sociedade tem de ter uma identidade própria consubstanciada pelos homens/mulheres que lhe dedicaram o seu labor intelectual e profissional. Nestes termos, o segundo professor da Aula do Comércio foi, de 1762 a 1784, Alberto Jaquéri de Sales.
São fornecidos pela literatura seis trabalhos indispensáveis ao estudo bio-bibliográfico de Sales: Cardoso (1984), Rodrigues e Craig (2009, 2010) e Santana (1974, 1986c, 1988). Estas pesquisas permitem-nos retirar a conclusão de que os perfis de Sousa e Sales são semelhantes (RODRIGUES; CRAIG, 2010, p. 44).
Durante o seu exercício de 22 anos (1762-1784), o lente Sales foi o responsável pelo auge da Aula do Comércio, tanto em termos de influência e reconhecimento social, como em afluência de alunos. Acredita-se que Sales ter-se-á estabelecido em Lisboa por volta de 1755 (SANTANA, 1988, p. 23-24; de onde são extraídas todas as informações constantes deste parágrafo, salvo indicação em contrário). Era suíço de nascimento, mas naturalizou-se português em 1758 (ALMODOVAR; CARDOSO, 2012, p. 191). A sua colaboração com a Junta do Comércio iniciou-se em 1760, com a nomeação para auditar as contas do contrato do tabaco no Porto de um comerciante que entretanto falira, Feliciano Velho Oldemberg (1689-1767), homem de negócios português com ascendência alemã. Foi agraciado com a mercê do hábito de Cavaleiro da Ordem de Cristo em 1770 e nomeado em 1771 director da Real Fábrica das Sedas. Também foi fiscal (auditor) de duas fábricas na Covilhã.
Sales não fez parte dos 100 maiores negociantes do período pombalino. A sua competência era reconhecida pelo governo ao ponto de ser ele quem, de 1769 a 1779, averiguava a capacidade de escrituração por partidas simples dos mercadores candidatos à abertura de estabelecimentos de retalho em Lisboa.
Com excepção dos dois discursos proferidos por ocasião da inauguração de cursos da Aula do Comércio, em 1771 e 1776, Sales não publicou qualquer obra. O que sabemos do seu ensino é o que se pode apurar através dos apontamentos copiados pelos alunos que frequentaram as suas lições. As suas lições manuscritas, em especial a Notícia Geral do Comércio e a Notícia Geral da Escritura Dobrada, influenciaram centenas de alunos, tanto em economia política como em contabilidade. Ribeiro (1876, p. 18) referia que em 1834 os exames da Aula do Comércio ainda versavam sobre a Notícia Geral do Comércio. O tomo I do Guarda-Livros Moderno (1815), de Cabral de Mendonça (antigo aluno da aula), e a Postilla do Comércio, impressa em Paris pelo autor J.M.P e S., em 1817, são uma cópia da Notícia Geral do Comércio, mudando apenas a ordem das lições e omitindo-se uma ou outra.
Para utilidade dos estudos da Aula, Sales traduziu e adaptou para o caso português, a expensas da Junta do Comércio, um clássico de comércio da época: o Dictionnaire Universel de Commerce, de Jacques Savary des Bruslons (1657-1716) (filho de Jacques Savary, 1622-1690).
Sales foi demitido em 1784 pela Junta do Comércio, órgão no qual pontificava como provedor João Henrique de Sousa. Não obstante, como argumentam Rodrigues e Craig (2009, 2010), Alberto Jaquéri de Sales foi um funcionário instrumental para o governo e os seus manuscritos e lições revelaram-se essenciais para a disseminação e implementação da ideologia mercantilista pombalina.
A tabela 1 sintetiza as principais características da Aula do Comércio relativas ao século XVIII.

Como foi dito, a primeira morada da escola foi no Palácio dos Soares de Noronha, na antiga Rua da Fábrica das Sedas, em Lisboa. Neste local funcionou a Aula do Comércio no período de 1759 a 1768; portanto, ali tiveram lugar os dois primeiros cursos da aula e parte do terceiro, iniciado em 1767. O edifício, arrendado pela Junta do Comércio, localizava-se concretamente na confluência das antigas Rua (Direita) da Fábrica das Sedas (actual Rua da Escola Politécnica) e Travessa do Pombal (actual Rua da Imprensa Nacional).
Em 1 de Janeiro de 1769 a escola foi mudada para a Praça do Comércio (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Real Fábrica das Sedas e Fábricas Anexas, Livro 384, fólio 13v), sendo que o novo inquilino do antigo palácio passou a ser a Imprensa Régia, fundada em 1768. O edifício original (ver fotografia 1) foi demolido apenas em 1904 para dar lugar, em 1913, após as obras de construção, ao edifício da Imprensa Nacional, que ainda hoje existe na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa.
A fotografia 1 mostra de forma inédita na temática da Aula do Comércio a primeira morada da mais antiga escola pública oficial de contabilidade de Portugal e, tudo assim o indica, do mundo.

Com uma meritória existência autónoma de 85 anos (1759-1844), a Aula, encontrada decadente em sede de reorganização do ensino liceal levada a efeito em 1844 pelo decreto orgânico da instrução pública de 20 de Setembro, de iniciativa de Costa Cabral, foi rebaixada ao nível de ensino secundário, passando a integrar a secção comercial do Liceu Nacional de Lisboa (GONÇALVES, 2011).
No século XVIII a Aula do Comércio registou a abertura de 11 cursos. Esses cursos abriram em Lisboa nos anos de 1759 (1.º curso), 1763 (2.º curso), 1767 (3.º curso), 1771 (4.º curso), 1776 (5.º curso), 1783 (6.º curso), 1787 (7.º curso), 1790 (8.º curso), 1792 (9.º curso), 1794 (10.º curso) e 1798 (11.º curso). De acordo com Sales (1761, tomo 1, fólio 214), João Henrique de Sousa pronunciou um “discurso eloquente” aquando da inauguração da Aula do Comércio em 1 de Setembro de 1759. Contudo, não foram até ao momento encontrados vestígios da impressão do texto.
A literatura reconhece que dos diversos cursos da Aula do Comércio apenas dois deles tiveram direito a um discurso inaugural que foi ao prelo: as orações de sapiência relativas ao quarto curso da Aula do Comércio (1771-1774) e ao quinto curso (1776-1783). Santana (1986c, p. 34) refere que a ‘Oração para a Abertura do 4.º Curso’ (título simplificado) é um dos elementos certamente mais conhecidos da Aula do Comércio. De facto, o pequeno folheto impresso em 1771 corresponde a um dos textos mais bem documentados da Aula do Comércio, tendo sido inclusivamente objecto de análise e leitura em 2009 no II Encontro de História da Contabilidade da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas (OTOC) (cf. GOMES, 2009) e de reprodução integral em 2012 por uma publicação científica brasileira (cf. DIAS, 2012), o que sinaliza o interesse que a literatura tem dedicado aos escritos relacionados com a instituição que Pombal ajudou a fundar em 1759. Também Rodrigues, Gomes e Craig (2004, p. 61) mencionaram o documento de Sales de 1771, aquando da publicação do primeiro artigo internacional de história da contabilidade por parte de académicos portugueses.
Numerosos autores referem a edição/impressão da ‘Oração para a Abertura do 5.º curso’ (título simplificado) (e.g.: AZEVEDO, 1961, p. 24; CARDOSO, 1984, p. 101; RIBEIRO, 1871, p. 280; SERRÃO, 1982b, p. 250-251; SILVA4, 1867, p. 23), mas até ao momento, por uma razão qualquer, o documento nunca foi apresentado na literatura de forma integral. O texto foi impresso em 1776 (a expensas da Junta do Comércio), mas, por circunstâncias desconhecidas, o opúsculo parece não constar do acervo documental das principais bibliotecas nacionais; e tampouco a localização do folheto é fornecida pela literatura de forma precisa, pelo menos tanto quanto é do nosso conhecimento. De facto, a consulta directa nos catálogos electrónicos dessas bibliotecas não devolve o resultado expectável, tanto mais quanto se sabe que o folheto foi impresso autonomamente na oficina (impressão) de António Rodrigues Galhardo, em 1776.
Em 21 de Agosto de 1776 o lente Sales apresentava o discurso inaugural por ocasião da abertura de mais um triénio de aprendizagem de comércio e contabilidade. Nesse ano, a Aula do Comércio promovia o seu quinto curso, aquele que veio a registar o maior número de alunos matriculados da história da instituição, 307 no total (CARDOSO, 1984; SANTANA, 1985).
O documento-texto que abaixo se reproduz faz parte do acervo da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, como oportunamente se expôs.

Se de falar em público, foi sempre árduo o empenho, quanto não deve ser o meu bem fundado receio, e justo temor; quando, no meio do mais íntimo prazer, comparo a extrema fraqueza do meu engenho, com a vastidão e sublimidade do assunto; para poder celebrar, com as vozes da verdadeira eloquência a abertura do quinto curso da Aula do Comércio: e para poder pintar, com as mais vivas cores, a nossa incomparável felicidade, neste faustíssimo e suspirado dia? Dia este para sempre memorável nos fastos [na história] da monarquia portuguesa, em que vimos sair à luz do mundo, o objecto precioso das nossas esperanças, e dos nossos ardentes desejos, o SERENÍSSIMO SENHOR D. JOSÉ5, PRÍNCIPE DA BEIRA [maiúsculas no documento original]. A grandeza do seu ânimo, a bondade do seu coração, suas brilhantes virtudes, generosas disposições e sublimes inclinações, nos seus tenros anos e na sua elevada situação, são juntamente o mais seguro e interessante penhor da nossa ventura; e da perpétua sucessão da sua AUGUSTÍSSIMA CASA, NO REAL TRONO [maiúsculas no documento original] destes felicíssimos reinos; como todos ardentissimamente desejamos e imploramos.
Que bem fundada não deve pois ser a alegria e eterna a gratidão de todo o corpo desta Aula em particular? Congratulando-se da sua incomparável ventura, na honrosíssima graça de celebrar-se este acto no dia de tão festivas aclamações e de tão favoráveis auspícios. E que generosos estímulos não se devem esperar destes discípulos em concorrerem com a sua boa aplicação e incansáveis estudos para eternizar a glória da sua nação, achando-se animados e intimamente penetrados os seus corações do justo e devido reconhecimento de tão exultante benefício?
À sombra de tão propícia e nunca assaz aplaudida época, é que se dá princípio ao novo curso desta Aula, estabelecida para nela se ensinar a Ciência do Comércio. Ciência que, sendo fundada na segura base das Matemáticas (o mais evidente dos conhecimentos humanos) deriva uma nova importância da sua natureza e do seu objecto. Vejo desenvolver-se o entendimento à luz das verdades que se lhe demonstram; e a razão sair do cativeiro da confusão originada da falta de cálculo e de método. Vejo, na prática do Comércio, as fontes inexauríveis e o princípio único da opulência em que se fundam os sólidos progressos da Agricultura, das Manufacturas e da Navegação, e de onde dimanam a perfeição das Artes, as invenções novas, o adiantamento de todas as outras ciências. E, por isto mesmo, a fama das nações, o poder dos Estados, o respeito dos reinos, a conservação das monarquias e a felicidade dos povos. Uma ciência, finalmente, que longe de ser sujeita a experimentar alguma revolução prejudicial, se perpetuará firme até ao fim dos séculos, porque, enquanto houver homens, existirão sempre entre eles uma mútua dependência, e uma necessária comunicação dos bens da natureza e da indústria.
Este numeroso concurso de alunos, que se acham qualificados para serem admitidos ao estudo desta importante ciência, mostra o quanto toda a nação está intimamente persuadida da sua sólida utilidade e dos perduráveis frutos que se esperam do exercício do mesmo comércio para a república mercantil, em geral, e para a Pátria, em particular.
Não vos lisonjeeis, porém, amados discípulos, com a enganosa ideia de que basta frequentar esta Aula para corresponder à expectação [expectativa] pública e para merecer, com este título, o vosso adiantamento. Persuadi-vos, muito pelo contrário, na forma declarada nos vossos provimentos, e no Aviso que logo vos será lido, que só pela vossa diligente aplicação, pela vossa emulação e pelos vossos progressos, podereis conseguir os frutos das vossas louváveis fadigas. Estudai pelo próprio interesse para que tenhais sempre um seguro asilo no fundo da vossa mesma doutrina, que sirva para vos eximir das perdas e dos trabalhos a que a ignorância condena uma grande parte dos homens.
Mostrai-vos sempre penetrados dos sentimentos da mais viva gratidão à MAJESTADE SOBERANA DO NOSSO AUGUSTÍSSIMO MONARCA [maiúsculas no documento original], que se tem dignado instituir e fundar, com tanta grandeza, esta utilíssima Academia e que, como especial Protector do Comércio destes reinos, tem feito completa a vossa esperançada felicidade pelas sábias e benignas disposições da Lei de 30 de Agosto de 1770.
Reconhecei, com a mais agradecida lembrança, a singular protecção com que o maior MINISTRO6 DE ESTADO [maiúsculas no documento original] que tem a Europa, favorece esta Aula; e a generosíssima benevolência com que se digna atender ao vosso adiantamento. Procurai, pois, de constituir-vos, cada vez mais dignos do alto patrocínio do mesmo incomparável Ministro, cujo glorioso e brilhante ministério se fará para sempre memorável nos fastos da História, pelas inimitáveis e providentíssimas direcções com que promove, em toda a monarquia, o mais acertado e triunfante governo.
Nunca vos esqueçais do muito que deveis ao Tribunal da Junta do Comércio pela grande vigilância e incansável cuidado com que atende à vossa instrução; e pelo seu constante desejo de premiar os vossos bons estudos, procurando fazer-vos úteis a vós, às vossas famílias, e ao público, não somente com as lições próprias desta Aula, mas com todas as mais instruções civis, que ornando o espírito, distinguem a acreditam os homens.
Fazei, finalmente, os vossos maiores esforços para que se seja frutuosa a execução, que a mim me compete, para infundir-vos todas estas louváveis doutrinas, como já proveitosamente elas se têm infundido nos vossos predecessores, que vos proponho para o exemplo, que deveis imitar.
Eu, pela minha parte, não cessarei de empregar-me, com o mais zeloso e constante desvelo, na boa direcção e no crédito desta Aula, para que dela continuem de resultar os saudáveis efeitos que se têm experimentado e que se devem sucessivamente esperar deste utilíssimo estabelecimento, para se perpetuar nesta nação, com princípios certos e invariáveis, a ciência teórica e Prática do Comércio.
Disse.
O texto da oração de sapiência tem correspondência com o ideário pombalino ainda em vigor à época. Estamos em presença de um escrito hiperbólico, encomiástico e panfletário, como era apanágio da literatura do tempo. Todavia, a conclusão não surpreende e deve ser entendida à luz do contexto histórico em que o discurso foi proferido, isto é, a oração é um reflexo do sistema de ideias e políticas governamentais em curso em Portugal à época. Em termos políticos, económicos e sociais, o comércio era considerado a mais importante das actividades económicas, a partir da qual todos os outros sectores beneficiariam. Apesar da fisiocracia de François Quesnay (1694-1774) ser já o pensamento económico dominante em França e de 1776 marcar o ano de publicação da Riqueza das Nações de Adam Smith (1723-1790), em Portugal ainda não se fazia sentir a influência das ideias fisiocratas, do liberalismo económico e do comércio livre.
As noções mercantilistas veiculadas por Sales registavam o apoio implícito de todos, em especial do rei D. José I (o protector do comércio), de Pombal e da Junta do Comércio. Como estavam assegurados privilégios para os diplomados do comércio, por intermédio das “sábias e benignas disposições da [Carta de] Lei de 30 de Agosto de 1770” (ver texto de Sales, acima), isto mostra como estavam ainda muito afastados das influências de Smith e de Quesnay os alunos de Sales, futuros quadros de instituições públicas e privadas de finais do século XVIII/inícios do século XIX (cf. ALMODOVAR; CARDOSO, 2012, p. 191).
A referência final neste comentário à oração pronunciada por Sales em 1776 prende-se com o primado do Estado e da pátria sobre o indivíduo, ideia fulcral daquilo que se convencionou posteriormente designar por Mercantilismo: os estadistas e autores mercantilistas viam nos súbditos do Estado meios para um fim e o fim era o poder do próprio Estado (cf. PEDREIRA, 1992, p. 194) para felicidade de todos.
O artigo pretendeu constituir uma réplica ao repto de Rodrigues, Carqueja e Ferreira (2016) para que se possa dispor de um espólio documental de antigos documentos da Aula do Comércio, devidamente catalogado e organizado, com especial referência a manuscritos dos lentes e de antigos aulistas. Alargámos o leque a textos impressos, contribuindo com a publicação de um discurso inaugural proferido em 1776 pelo lente Alberto Jaquéri de Sales, por ocasião da abertura do quinto curso da Aula do Comércio.
Este trabalho adoptou uma dimensão da contabilidade abrangente. Assume-se que a contabilidade não tem apenas uma faceta quantitativa ou de ordem numérica; também pode ser constituída por textos produzidos por professores de contabilidade, no caso concreto, por um professor de contabilidade por partidas dobradas, talvez o primeiro a exercer esse magistério em Portugal. Desde o século XVI que na Europa o uso da contabilidade por partidas dobradas é considerado exemplo de boa gestão, quer nos governos, quer nos negócios (SOLL, 2014, p. 10). A contabilidade por partidas dobradas leccionada e aprendida na Aula do Comércio foi fundamental para os propósitos de Pombal relacionados com o controlo da gestão das organizações nas quais se encontrava obrigatoriamente instituída por força dos estatutos societários. “O Marquês de Pombal, um estudioso da governação, compreendeu que a contabilidade por partidas dobradas era fundamental para os programas de modernização do Estado” (SOLL, 2014, p. 11).
Sob o ponto de vista da contribuição teórica da pesquisa, esta valida, em grandíssima parte, a teoria7 pré-existente sobre a Aula do Comércio de Lisboa, designadamente o corpo de conhecimentos prevalecentes que explicam e interpretam a ordem dos factos associados à escola, como sejam a importância da acção do Marquês de Pombal para a fundação da instituição e o protagonismo dos lentes de contabilidade como agentes da política mercantilista em vigor na época.
Em fecho, o registo de uma sugestão para a sociedade. Entre outros aspectos, este estudo centrou a atenção em dois negociantes setecentistas, figuras gradas da administração pública após as suas chegadas a Lisboa em 1755, homens de negócio renovadores de métodos contabilísticos e professores de um ensino pioneiro em Portugal, João Henrique de Sousa e Alberto Jaquéri de Sales. Como tal, na esteira de Santana (1970a, p. 4), aqui se reproduz à sociedade um repto já com mais de 45 anos: não mereciam estes professores de contabilidade ver os seus nomes num canto de rua ou, sobretudo, na frontaria de uma escola secundária em Portugal?
Endereço do Autor: - Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra (ISCAC) | Coimbra Business School, Quinta Agrícola - Bencanta, Gabinete 315, Código Postal: 3040-316, Coimbra, Portugal


