Literatura

Recepção: 24 Abril 2019
Aprovação: 24 Setembro 2019
DOI: https://doi.org/10.4025/actascilangcult.v41i2.47661
Resumo: Retomando o que poderíamos chamar de uma historiografia do conto goês em língua portuguesa, o presente artigo pretende averiguar como intelectuais como Filinto Cristo Dias, em Esboço da história da literatura indo-portuguesa (1963), Vimala Devi e Manuel de Seabra, em A literatura indo-portuguesa (1971) ou Paul Melo e Castro, em Lengthening shadows: an anthology of Goan short stories translated from portuguese (2015), entre outros, narraram a história do desenvolvimento desse gênero literário em Goa. Nosso intuito é demonstrar como o conto goês de língua portuguesa foi imensamente profícuo, tendo se mantido vivo mesmo após o fim do colonialismo em 1961, quando a língua portuguesa perde o estatuto de língua oficial. O presente artigo inclui nessa tradição o livro Contos e narrativas (1997), de Carmo de Noronha, que até então não havia merecido uma abordagem crítica mais detida. Reflete sobre a importância de sua obra, o papel do escritor na manutenção do português como língua literária em Goa, assim como sobre sua inserção no universo literário plurilinguístico goês.
Palavras-chave: Goa, conto, literatura goesa de língua portuguesa, literatura indo-portuguesa, história da literatura.
Abstract: This article resumes what might be defined as a historiography of the Goan short story in Portuguese in order to discuss how intellectuals such as Filinto Cristo Dias, in Esboço da literatura indo-portuguesa (1963) [Sketch of indo-portuguese literature], Vimala Devi and Manuel de Seabra in A literatura indo-portuguesa (1971) [Indo-portuguese literature] or Paul Melo e Castro, in Lengthening shadows: an anthology of Goan short stories translated from the portuguese (2015), among others, narrate the development of this literary genre in Goa. Our aim is to demonstrate how the Goan short story in Portuguese was immensely profitable, so much that it still flourished after the end of colonialism in 1961, when Portuguese lost its status as an official language. Then, the article focuses on the book Contos e narrativas [Short stories and tales] (1997), by Carmo de Noronha, that so far has not had the attentive critical approach it deserves. It also deals with the importance of his work, the role of the writer in the maintenance of Portuguese as a literary language in Goa, as well as on its insertion in the plurilinguistic Goan literary universe.
Keywords: Goa, short stories, goan literature in portuguese, indo-portuguese literature, history of literature.
Uma introdução à historiografia do conto goês[1]
O primeiro texto de nosso conhecimento que busca apresentar uma visão geral da produção intelectual e literária de língua portuguesa de Goa é de autoria de um dos grandes colaboradores da imprensa oitocentista goesa, Jacinto Caetano Barreto Miranda, advogado e administrador das comunidades das ilhas, e intitula-se ‘Duas palavras sobre o progresso literário de Goa’, publicado na Revista Contemporânea de Portugal e Brasil, em abril 1884. Apesar de fazer referência nominalmente a diversos autores e títulos, seu intuito não é o de classificar essa produção em gêneros, sendo o conto sequer mencionado. O mesmo ocorre com o primeiro folheto que abordou a literatura goesa de língua portuguesa, intitulado Literatura indo-portuguesa – figuras e factos, de 1926, de Vicente de Bragança Cunha, que focaliza os escritores portugueses que estiveram em Goa, a imprensa goesa, a historiografia e o padroado português, mas não se volta para a produção dos contistas goeses. Mesmo o Esboço da história da literatura indo-portuguesa, de 1963, do padre Filinto Cristo Dias, primeira grande empreitada no âmbito da historiografia literária goesa de língua portuguesa, trata do romance, da poesia, da historiografia, da imprensa e do ensaísmo, mas não do conto.
Somente no maior empreendimento para escrever essa história, aquele da escritora Vimala Devi e do jornalista e também escritor Manuel de Seabra, intitulado A literatura indo-portuguesa, de 1971, temos finalmente um capítulo dedicado ao conto, ainda que dividindo espaço com o teatro. No que diz respeito especificamente ao conto, aborda autores desde o século XIX, como Júlio Gonçalves, Manoel Joaquim da Costa Campos e Cristovão Aires. Do século XX, assinala Ana D’Ayala, Adolfo Costa, José da Silva Coelho, Cláudia das Neves (pseudônimo de Claudiana de Noronha Ataíde Lobo), Beatriz da Conceição Ataíde Lobo, Paulino Dias, Alberto de Meneses Rodrigues, Ananta Rau Sar Dessai, Laxmanrao Sardessai, Vimala Devi, Epitácio Pais e Maria Elsa da Rocha. É de longe o trabalho mais exaustivo até hoje existente em relação à recolha e sistematização histórica de autores e obras dessa literatura, ainda que os comentários críticos sejam muitas vezes bastante genéricos, em vista da própria natureza da publicação, que abarca quatro séculos e meio de história. Analisam mais detidamente somente as obras de José da Silva Coelho, Alberto de Menezes Rodrigues, Laxmanrao Sardessai, Epitácio Pais, Maria Elsa da Rocha e da própria Vimala Devi.
Sobre José da Silva Coelho, por exemplo, sugerem que seguiu uma tradição já inaugurada pelo autor do romance Jacó e Dulce, Francisco João da Costa, uma vez que na literatura de ambos há fortes críticas à comunidade goesa de língua portuguesa. Notam que “[...] a obra de José da Silva Coelho revela-nos um dos mais notáveis contistas goeses, que soube retratar o seu povo com uma autenticidade que ainda hoje dói” (Devi & Seabra, 1971, p. 221). De Alberto Menezes Rodrigues, dizem que, para ele:
[...] os homens e as situações, como as sombras de Platão, têm de corresponder a ideais ou ideias pré-concebidas e pré-aceites: o amor, a amizade, o belo, o heroico, a bondade, etc. E, quando isso não acontece, cabe à imperfeição dos homens toda a culpa (Devi & Seabra, 1971, p. 223).
Veem em Rodrigues, portanto, o avesso do que veem em José da Silva Coelho, isto é, caracterizam-no como um autor totalmente integrado às normas vigentes em sua sociedade, sendo ambos oriundos de famílias cristãs.
Já Laxmanrao Sardessai, escritor também conhecido por sua obra em língua marata, cujo uso é corrente na região de Goa, tomam-no como um autor “[...] de fortes preocupações morais dentro da tradição clássica indiana, e sua ternura quase metafísica – em contraste com o mundanismo de Ananta Rau Sar Desssai – pelos homens, seus companheiros de aventura-aqui, ressalta como a sua mais forte característica” (Devi & Seabra, 1971, p. 224). Novamente confrontam a obra de dois escritores goeses, agora originários de famílias hindus, a partir da perspectiva temática.
Vimala Devi é uma das contistas mais conhecidas fora de Goa e, sendo coautora do livro, optam por apenas transcrever algumas apreciações críticas sobre sua obra – todas positivas –, tal como a do famoso crítico da então chamada literatura colonial, Amâncio César, que afirmava que Devi
[...] foi mais do que a analista de casos avulsos postos diante de seus olhos e da experiência: soube com esses casos separados dar-nos a paisagem humana e social de Goa, os seus hábitos, costumes, anseios, comportamentos e, ainda as tonalidades diversas do humano, escalonado nos factores religiosos e ancestrais (Devi & Seabra, 1971, p. 226).
Ao comentarem os trabalhos de Epitácio Pais, afirmam tratar-se de “[...] um contista de grande vigor, prosa tersa e sugestiva, sentindo o mundo que o cerca em toda a sua tragédia e poesia. A sua prosa descritiva [...] faz lembrar, pela plasticidade e recriação paisagística, certos russos como Turguenev ou Korolenko” (Devi & Seabra, 1971, p. 226).
Os contos de Maria Elsa da Rocha já não merecem a mesma apreciação crítica, pois “[...] esquecem-se com uma facilidade espantosa”. Atribuem esse fato à “[...] excessiva acumulação de detalhes para a criação dos ambientes” (Devi & Seabra, 1971, p. 229), o que acabaria por se sobrepor às personagens. Vale notar que a crítica que fazem à obra de Rocha não seria motivo suficiente para desqualificar esteticamente o texto, já que a sobreposição do cenário ao personagem configura uma opção estética.
Pelos trechos das apreciações críticas acima reproduzidas, vê-se que Devi e Seabra não estavam preocupados em identificar uma linha mestra que conectasse internamente essa produção literária, ainda que, por vezes, busquem algumas continuidades e o estabelecimento de confronto entre as obras. Leem a literatura goesa de língua portuguesa da perspectiva explicitamente freiriana, isto é, lusotropicalista, vendo-a como um ramo menor da literatura portuguesa, ao mesmo tempo que procuram conectá-la, frequentemente, com grandes autores da literatura europeia. É um trabalho que dá muitas pistas para se pensar uma tradição exclusivamente goesa, mas não aposta nessa tradição e sim na descontinuidade e lateralidade dela.
Vale ainda registrar que, em 1976, o professor L. A. Rodrigues publicou em uma separata do Boletim do Instituto Menezes Bragança um folheto de 22 páginas intitulado Goan literature in portuguese language, fundamentado nas obras acima referidas e no primeiro volume da primeira edição do Dicionário de literatura goesa, de Aleixo Manuel da Costa, de 1967, elegendo os contistas Júlio Gonçalves, Cristóvão Aires, Beatriz Ataíde Lobo, M. J. da Costa Campos, José da Silva Coelho, Alberto de Menezes Rodrigues, Ananta Rau Sar Dessai, Lamanrao Sar Dessai, Vimala Devi, Epitácio Pais, mas praticamente não tece quaisquer comentários críticos sobre as obras.
Passadas mais de três décadas do primeiro momento do período pós-colonial goês, essa literatura volta a despertar interesse, e temos publicados em 2012 dois estudos de fôlego. O padre Eufemiano de Jesus Miranda publica, em Goa, Oriente e Ocidente na literatura goesa: realidade, ficção, história e imaginação (2012), que não se pretende uma história da literatura goesa de língua portuguesa stricto sensu, mas, por tratar da identidade literária goesa de matriz cristã e da história da língua portuguesa em Goa, acaba por percorrer os séculos XIX e XX. Realiza um caminho bastante peculiar em meio a essa literatura, abordando, sobretudo, os romances Os brahamanes (1866), de Francisco Luís Gomes, Jacob e Dulce – scenas da vida indiana (1896), de Francisco João da Costa, O signo da ira (1961), de Orlando da Costa, Bodki (1962), de Agostinho Fernandes, e a obra de diversos poetas, sem focalizar especificamente o gênero conto, ainda que também lhe faça diversas referências nas abordagens temáticas que propõe, como as da Índia-Mãe e a da bailadeira, detendo-se mais pontualmente no conto ‘A ambrosia’ (1967), de Laxmanrao Sardessai. Portanto, o conto não é nesta obra um gênero em destaque, a despeito de todos os méritos de um trabalho que reflete profundamente sobre a identidade literária goesa.
Ainda em 2012, a pesquisadora portuguesa Joana Passos lança Literatura goesa em português nos séculos XIX e XX – perspectivas pós-coloniais e revisão crítica, que procura realizar um percurso histórico coeso no interior dessa literatura a partir das vertentes estéticas que ali se revelaram mais fortes e dos gêneros romance, poesia e conto. Há um capítulo quase que exclusivamente dedicado ao conto, intitulado ‘A prosa goesa no século XX’. Ali são abordados autores como Vimala Devi, Laxmanrao Sardessai, Maria Elsa da Rocha, José da Silva Coelho, Epitácio Pais e Ananta Rau Sardessai.
Joana Passos trata nos contos valorizando a questão colonial, coisa que pouco aparece na obra de Devi e Seabra. A começar com Laxmanrao Sardessai, ao analisar seu conto ‘O barco da África’, acaba por propor uma aliança entre goeses a africanos que escapa ao controle da então ditadura militar salazarista e associa o conto ao protagonismo que a Índia teve na aliança afro-asiática no âmbito da Segunda Guerra Mundial e no da Guerra Fria, concluindo que “[...] parte da prosa goesa do século XX teve um papel comprometido com o fim do colonialismo, num registro de qualidade literária digno de menção” (Passos, 2012, p. 195). Afirma Joana Passos:
A representação da sociedade goesa nas narrativas de Epitácio Pais, Laxmanrao Sardessai ou Maria Elsa da Rocha (que em 2005 publicou uma antologia intitulada Vivências partilhadas) é sintoma da autonomia em relação à influência estética ocidental, pois é a realidade local que se afirma como legítima matéria literária em lugar de apenas se tentar imitar outra cultura (colonial). (Passos, 2012, p. 196)
Assinala também o aspecto do humor como um dos elementos inovadores no que designa de ‘territorialização da literatura local’, que já remontava, como lembra, ao autor de Jacob e Dulce, Francisco João da Costa. Joana Passos também associa o contista José da Silva Coelho a Francisco João da Costa, como já tinham feito Devi e Seabra, mas da perspectiva de Passos, no confronte entre ambos, José da Silva Coelho sai perdendo:
José da Silva Coelho tem um interesse relativo. Não só a temática tratada nos seus contos é um pouco repetitiva, como a crítica à falta de critérios justos para gerir a mobilidade social dentro da sociedade goesa da época só tem validade e efeito cômico dentro da ordem social invocada, que era colonial e sob administração portuguesa, e essa realidade está extinta. Por isso seus textos têm um impacto datado. Se compararmos o humor de José da Silva Coelho com o corrosivo Gip [Francisco João da Costa], que se mantém vivo e atual, a diferença é que o leitor de hoje ainda concebe as negociações matrimoniais e as pretensões de uma aristocracia vaidosa que se reencontram no enredo de Jaco e Dulce (Passos, 2012, p. 198)
Joana Passos busca tomar essa literatura da perspectiva da realidade goesa, mas, nesse caso específico, acaba por valorizar pouco o contexto dos contos de José da Silva Coelho, pois emprega essa perspectiva para relativizar o interesse de sua obra e não para lhe atribuir maior sentido e valor. As narrativas de Jose da Silva Coelho, a nosso ver, estão menos preocupadas em discutir a questão colonial do que caracterizar comportamentos e episódios ‘tipicamente’ goeses, isto é, o escritor busca de maneira intencional uma tipificação picaresca daquela sociedade ou, inversamente, atribui-lhe uma dimensão lírica, o que resulta muitas vezes em uma atitude menos significativa da perspectiva à crítica ao colonialismo, mas não menos importante para a constituição da identidade literária goesa.
Joana Passos lembra ainda o humor de Ananta Rau Sardessai, mas, tal qual Devi e Seabra, pouco comenta sua obra. Aborda ainda a chamada corrente ‘indianista’ da literatura goesa, isto é, escritores que se voltavam para a tradição hindu, buscando retomar, sobretudo na primeira metade do século XX, as raízes locais dos goeses. Nesse filão inclui Cristóvão Aires e Paulino Dias, também lidos como uma forma de resistência à imposição da cultura europeia, pauta de todos os escritores que aderiram ao indianismo goês.
Ao final de sua reflexão, conclui que da “[...] presente discussão sobre o conto na literatura goesa em português reúnem-se três aspectos que parecem ser transversais a vários autores desta época, nomeadamente, a escrita de intervenção política, a representação ‘territorializada’ do mundo local e ainda o culto do humor” (Passos, 2012, p. 199, grifo da autora).
Se confrontarmos o que afirmam Devi e Seabra e o que diz Passos, somos levados a concluir que o aspecto que aparece unanimemente em todos esses autores é o que Passos chama de ‘representação ‘territorializada’ do mundo local’, ainda que o trabalho de Devi e Seabra não tenha, por diversas razões, chegado a afirmar isso.
Um dos grandes estudiosos do conto goês de língua portuguesa nos dias de hoje é Paul Melo e Castro, professor da Universidade de Glasgow. Entre os diversos textos que publicou sobre o conto goês (Castro, 2013, 2014, 2015, entre outros), vale destacar Lengthening shadows: an anthology of Goan short stories translated from the portuguese (Castro, 2015), composto por dois volumes contendo 44 contos goeses de língua portuguesa de escritores distintos, traduzidos para o inglês e acompanhados de uma generosa introdução de 48 páginas, que funcionam como uma espécie de história do conto goês, já que, nas palavras do autor, buscam “[...] fornecer um recorte transversal de histórias que podem variar de assunto, época e visão de mundo, mas que compartilham o desejo de convergir para algo em comum” (Castro, 2015, p. 1),[2] recobrindo o período entre 1864 e 1987. Ao final do livro, há ainda um posfácio de autor do goês Augusto Pinto. Os 44 títulos de contos estão distribuídos em dois volumes e entre 14 escritores: Júlio Gonçalves, Wenceslau Proença, João Francisco da Costa (ou GIP), Joaquim F. N. Soares Rebelo, José da Silva Coelho, Anta Rau Sar Dessai, Vimala Devi, Telo de Mascarenhas, Epitácio Pais, Laxmanrao Sardessai, Elsa Maria da Rocha, Walfrido Antão, Eduardo de Sousa e Augusto do Rosário Rodrigues, predominando a obra de Coelho, Devi, Pais e Rocha, seguidos de Sardessai, Antão e dos outros. Tendemos a concordar com a eleição do tradutor, que deu mais voz a quatro contistas realmente exemplares dessa literatura. Paul Melo e Castro (2015) comenta detidamente cada um dos escritores, o que não caberia resenhar neste artigo. (Error 1: La referencia: 2015 está ligada a un elemento que ya no existe) (Error 2: La referencia: Castro, 2015 está ligada a un elemento que ya no existe) (Error 3: La referencia: Castro, 2015, p. 1 está ligada a un elemento que ya no existe) (Error 4: La referencia: Paul Melo e Castro (2015) está ligada a un elemento que ya no existe) (Error 1: La referencia: 2015 está ligada a un elemento que ya no existe) (Error 2: La referencia: Castro, 2015 está ligada a un elemento que ya no existe) (Error 3: La referencia: Castro, 2015 está ligada a un elemento que ya no existe) (Error 4: La referencia: Paul Melo e Castro (2015) está ligada a un elemento que ya no existe)
Chama nossa atenção, no entanto, a inclusão de nomes como Wenceslau Proença, que é mencionado apenas no referido Dicionário de Literatura Goesa, de Aleixo Manuel da Costa (1967). Foi uma escolha muita acertada do tradutor em eleger um contista esquecido nas páginas dos periódicos oitocentistas, como tantos outros. Também acertada foi a escolha de integrar na coletânea Walfrido Antão ou Augusto do Rosário Rodrigues, cujas obras, até onde sabemos, não foram objeto de atenção mais detida da crítica. Antão e Rodrigues são mencionados por Devi e Seabra, mas da seguinte forma: “Com este magnífico grupo de contistas, Goa pode ter a garantia da continuidade da sua literatura em língua portuguesa. Resta esperar ainda que Augusto do Rosário Rodrigues (1911) e Walfrido Antão publiquem os seus anunciados livros de contos” (Devi & Seabra, 1971, p. 229). Os críticos fechavam otimisticamente seu texto sobre o conto em Goa e felizmente os contistas de fato publicaram seus livros. No entanto, ainda assim o futuro do conto goês de língua portuguesa não foi e não tem sido tão promissor como esperavam. Também Eduardo de Sousa é mencionado por Devi e Seabra (1971), mas somente como estudioso do concanim e não como contista, como o faz Melo e Castro. Incluir textos de escritores que estão à margem daquilo que foi a incipiente formação do cânone goês contribui muito para estimular o estudo dessa literatura.
É importante nota que Paul Melo e Castro (2015) trata dessa literatura como um conjunto de textos que giram em torno de um centro comum: a dinâmica da sociedade goesa. Desse modo, acaba por elaborar uma história do conto goês que se coaduna com a noção de ‘literatura de comunidade’, utilizada por Cielo G. Festino (2016a, 2016b, 2017, entre outros), uma vez que os contos tratam, quase que invariavelmente, da relativamente pequena comunidade que constitui a Goa colonial e mesmo pós-colonial.
Importa reter desse percurso pela historiografia do conto goês que os seus agentes partiram de uma perspectiva colonialista, tanto no meio intelectual goês, quanto no meio metropolitano e, paulatinamente, se orientaram no sentido de entender essa literatura a partir de sua própria lógica de produção, demonstrando que ela vai além da condição colonial e da imitação do colonizador pelo colonizado.
Carmo de Noronha: entre a crônica da vida goesa e os preceitos morais
Um escritor que ficou praticamente fora da história do conto de língua portuguesa de Goa até os dias de hoje é Carmo de Noronha (1915-1999), colaborador assíduo de periódicos goeses nas décadas de 1970 e 1980 e autor de três livros: Contracorrente (Noronha, 1991), recolha de palestras e artigos do autor; Escavando na Belga (Noronha, 1993), que reúne reflexão histórica, uma peça teatral e memórias da juventude; Contos e narrativas (Noronha, 1997), que contempla a narrativa ficcional. Professor de português, advogado e, posteriormente, funcionário público de carreira, foi, segundo Maria Aurora Couto, “[...] um dos mais brilhantes funcionários da administração portuguesa a servir o governo indiano após a Libertação” (Couto, 2004, p. 323)[3].
Carmo de Noronha efetivamente acompanhou as transformações do regime colonial português para a integração de Goa no Estado da Índia, refletindo profundamente sobre o lugar que ocuparia nessa nova ordem social o grupo a que pertencia, isto é, os católicos de Goa, sobretudo os de casta considerada alta.
Nesse novo contexto político e social, em que o inglês ganha a primazia no campo da escrita, o autor sempre pugnou pela perpetuação da língua portuguesa. Pouco depois de sua morte, em 1999, publicou-se um artigo no jornal português O público, assinado por Rui Batista, que comentava a dura sobrevivência da língua portuguesa em Goa, lembrando o nome de Carmo de Noronha, ao lado de Cândido do Carmo Azevedo,[4] como representantes da frente de intelectuais e escritores que lutavam pela perpetuação do português na Índia. Ao lado deles, poderíamos ainda citar os escritores Augusto do Rosário Rodrigues, Alberto de Meneses Rodrigues, Leopoldo da Rocha, Epitácio Pais, Mariz Elsa da Rocha, Ave Cleto Afonso e mesmo, à distância, Vimala Devi e Orlando da Costa, entre vários outros, que mantiveram viva a literatura goesa de língua portuguesa após a fim do período colonial.
Em artigo intitulado ‘O futuro da língua portuguesa em Goa’, recolhido no livro Contracorrente, mas publicado originalmente no Diário de Notícias de Lisboa, em 6 de agosto de 1986, Carmo de Noronha tece severas críticas ao governo lusitano que, logo após o fim do colonialismo, nada fez para promover ali o português (Noronha, 1991). Se é muito provável que poucos portugueses o leram quando de sua publicação original em periódico, tais críticas republicadas no livro Contracorrente (Noronha, 1991), que mais facilmente pode ter circulado em Portugal, ainda que em grupos restritos, talvez tenham estimulado autoridades ligadas à cultura a tomar iniciativas no sentido de revitalizar a língua portuguesa na Índia. O fato é que, a partir da década de 1990,[5] ações nesse sentido começaram a ser tomadas pelo governo português, fazendo de Carmo de Noronha uma de suas vozes pioneiras.
Entre as tarefas que julgava importante cultivar, estava a de afirmar a identidade dos falantes de português em Goa por meio de diversas formas, o que incluía, de maneira privilegiada, a arte em geral e a literatura em particular. Desde o final da década de 1960, Carmo de Noronha passa a fazer uma crítica propositiva, que batia sempre nessa tecla. Já em palestra proferida originalmente no Clube Vasco da Gama em 29 de setembro de 1969 e intitulada ‘A libertação psíquica em Goa’, assim definia a personalidade goesa:
Não há, pelo menos nos últimos 100 anos, cousa alguma que possamos dizer originalmente goesa, tipicamente nossa. Nada que nos dê uma fisionomia própria, distinta, inequívoca. O traje que usamos não é originalmente nosso, a música que cantamos, salvo o mandó, dulpodas, dacni e motete, não é nossa; mesmo a maneira de pensar e a filosofia não são nossas. Ora se somos em tudo um plágio vivo e acabado, não compreendo como se pode dizer que temos uma personalidade distinta. Assim como estamos, a nossa personalidade será distinta do resto da Índia, mas não o é do resto do mundo. Ter personalidade distinta significa ter fisionomia própria e característica, que ao mesmo tempo identifica e distingue uma pessoa, uma sociedade, uma raça, apartando-a numa categoria étnica distinta, nas suas tradições, folclore, usos e costumes. Assim como estamos, repito, a nossa personalidade não passa de uma manta de retalhos, em que somos europeus no traje, ingleses na língua, portugueses na moleza dos hábitos e sentimentalismo, franceses na cozinha, italianos na música, medievais na religião, asiáticos na perfídia, astúcia e fatalismo e só goeses pelo registro civil (Noronha, 1991, p. 7).
Na sequência, inverte o argumento, acreditando na afirmação de uma identidade goesa, dizendo que “[...] o goês possui, em boa e apurada dose, excelentes qualidades de inteligência, imaginação, bom senso e fina sensibilidade, mas tudo em reserva, talvez por receio que seu conteúdo se esgote” (Noronha, 1991, p. 7). A partir daí passa a propor todo um programa de ‘reconstituição’ dessa identidade fundada no folclore, indumentária, habitação, cozinha e no que chama de ‘formas nativas e locais’. Nesse ponto, observa que:
Quando recomendo o retorno às formas nativas e locais, não é intenção minha instilar ódio e repulsa a tudo quanto seja estrangeiro. Se a xenomania é má, a xenofobia só revela curteza do espírito e miopia. O que pretendo dizer é que podemos e até devemos buscar a forma em qualquer parte do mundo, mas que o conteúdo seja nosso, genuinamente local. (Noronha, 1991, p. 12).
Forçando um tanto a aproximação, poderíamos dizer que essa última afirmação o aproximaria de escritores como Oswald de Andrade, que propunha que os brasileiros devorassem antropofagicamente a cultura dominante europeia e norte-americana, ou do uruguaio Angel Rama, que, empregando o conceito de transculturação, inverte a relação entre dominador e dominado, entre modelo e imitação. Mas não é exatamente isso que está ali colocado, já que o próprio Carmo de Noronha reconhece que o cinema cubano vinha fazendo aquilo que ele propunha que fosse feito em Goa e, no entanto, conclui: “Nós somos, em potencial, alguma coisa mais e melhor que os cubanos. Nas nossas veias ainda há gotas de sangue ária que civilizou o mundo todo. Nós temos a exacta noção do bom e do belo, do elevado e nobre” (Noronha, 1991, p. 9). Se até os cubanos poderiam fazer isso, como é que os goeses não poderiam? Deixando à parte a xenofobia conceitualmente negada, mas explicitamente praticada, a proposta identitária de Carmo de Noronha jamais se concretizará porque fundada em um grupo social que tinha seus dias contados na forma como vivera até aquele momento, isto é, como sinônimo de uma identidade, a goesa, que na verdade não representava majoritariamente, mas sim minoritariamente.
Dezessete anos depois dessa palestra, no referido artigo ‘O futuro da língua portuguesa em Goa’, Carmo de Noronha, ao falar da literatura goesa de língua portuguesa, continuava a bater na mesma tecla da imitação:
[...] não há em nossos escritos originalidade de ideias e de estilo, nem influência local, suscitando alterações diatópicas, como no caso do Brasil, à parte um que outro cancanismo que sorrateiramente nos escapou, marcando a nossa prosa.
Também há uma absoluta pobreza temática, porque, dada a pequenez do meio, a estandartização do meio social, a nossa vida de chouto, pacata e ordeira, sem aventuras de amor e sem crimes do espírito, não nos propiciam um ambiente de molde a nos fornecer esse plâncton de que se nutre a produção literária. (Noronha, 1991, p. 148)
É necessário aqui referendar o que Everton Machado afirma sobre Carmo de Noronha, dizendo ser ele um “[...] herdeiro direto de Gip na crítica à dependência cultural [...]” (Machado, 2011, p. 53), mas certamente não temos como concordar com a avaliação que o escritor realiza da tradição literária à qual pertence, pois entendemos ser de um excessivo rigor, compreensível, no entanto, para quem via aquela tradição desaparecer sem ter qualquer reconhecimento no mundo de língua portuguesa. Sempre comparando a produção literária goesa com a brasileira, em detrimento da primeira, Carmo de Noronha deixa à margem em sua análise o fato de o Brasil ter proporções continentais e, em consequência disso, ter contado sempre com uma gama muito maior de escritores, tendo oportunidade de desenvolver uma literatura bastante mais vasta e diversificada, mas nem por isso necessariamente superior àquela produzida em Goa.
Ao tratar da qualidade literária que parece não encontrar entre os escritores goeses, pergunta-se: “Que é isso que faz de quem escreve um verdadeiro escritor?” Em seguida responde: “À parte opiniões mais filosóficas e profundas, a meu ver, um que escreve alça-se à categoria de escritor, quando possui os seguintes predicados: Originalidade na linguagem e expressão; originalidade ou pessoalidade no estilo e originalidade no pensamento ou ideias” (Noronha, 1991, p. 150). Afirma, ainda, a necessidade de publicação de antologias literárias goesas e de uma crítica verdadeiramente rigorosa.
Seu livro Contos e narrativas, de 1994, vem no sentido de promover essa literatura. No prefácio do livro, o autor já observa: “Procuro, em primeiro lugar, manter, a todo custo, viva a língua portuguesa” (Noronha, 1994, p. 1). O outro motivo, mais pessoal, seria o próprio deleite de escrever, com propósitos terapêuticos, pois não estariam em jogo ‘pruridos de escritor’. Nota que seus contos não entrariam na ‘clave do conto moderno’: “Compu-los, assim como queria e podia, com alguma carga sentimental, talvez démodé, mas que está em sintonia com o temperamento indiano, que se compraz com uma ambivalência, temática e desfechos patéticos” (Noronha, 1994, p. 2).
Apesar de escritos na década de 1980, o estilo de Carmo de Noronha de fato não se liga à tradição do conto moderno, remontando a uma forma de narrar mais tradicional, em que o foco narrativo é geralmente onisciente. O narrador emite frequentemente julgamentos morais sobre as ações das personagens de uma perspectiva também bastante tradicional. O conto ‘Amor de estudante’, que fecha o volume, é um exemplo disso, ainda que à primeira vista possa não parecer.
Faremos primeiramente uma sinopse estendida da matéria narrada, para possibilitar sua análise. O conto relata o cotidiano de jovens que frequentavam o Liceu Nacional Afonso de Albuquerque de Pangim na altura da década de 1930, mais especificamente os amores de Francisco Siqueira por Helena. Inicia com uma conversa entre Raul Brito e Siqueira, na qual o primeiro narra a história de uma bela jovem das Fontainhas, Paquita, que fora expulsa de casa pelo pai por estar flertando com um rapaz muito feio e gago, chamado Chiquito. A punição exacerbada acaba por se reverter contra o pai, pois, abrigada na casa de uma tia, a jovem acerta o casamento com Chiquito e rejeita qualquer ajuda do pai, que fora pressionado por todos da comunidade a voltar atrás à expulsão da filha.
Após a narrativa desse episódio feita por Brito, chega outro estudante, o Manuel Colaço, de Margão, e os três amigos vão ao Café Central comer baji-puri. O narrador tem o cuidado de explicar o que é um baji-puri (baji: pedaços de batata imersos um molho picante; puri: folhas de massa de trigo em forma de disco), revelando que se dirige a leitores também fora do universo goês. Coerente com o espírito memorialista que caracteriza o conto, comenta a importância que tinha naquele meio social o Café Central:
Esse Café Central era, ao tempo, o centro académico. O baji-puri era um instrumento corruptor, para captar votos nas eleições para os postos da Associação Académica do Liceu, o que quer dizer que já se fazia, no meu tempo, entre estudantes, o que os políticos de hoje macaqueiam (Noronha, 1997, p. 155-157).
Sobre o Café, ainda nota que, diferentemente dos restaurantes da Europa, onde os estudantes discutiam literatura, filosofia e arte, ali não havia essa possibilidade, pois era tão cheio de gente que todos comiam rapidamente, pressionados por aqueles que esperavam lugares à mesa. Vale assinalar a dimensão política do comentário acerca do baji-puri, já que tanto se constitui uma crítica à corrupção na política nos tempos pós-coloniais, quanto uma crítica à formação política das elites coloniais, implicando que, de um estatuto político para o outro nada mudou no âmbito do papel da corrupção na prática política goesa.
Terminado o baji-puri, vão ao passeio em frente, ‘junto do tal do poste elétrico’. O emprego do pronome demonstrativo ‘tal’ para se referir ao poste elétrico sugere que a iluminação pública feita com eletricidade teria ainda alguma novidade em Panjim naquela altura, por volta de 1930.
Na sequência da narrativa do conto, atravessa o passeio uma belíssima jovem que nenhum dos três conhecia. Ela vinha pelo passeio da loja do Vagló, passa em frente a Maganlal, passa por eles e depois sobe a calçada do Bar Coelho, torneando em direção à Igreja de Panjim. Traça, assim, um percurso por um trecho do centro da cidade frequentado por aqueles jovens. Indagam-se quem seria, pois nenhum deles a conhecia. Quando retorna, a jovem chama de longe, com um sinal, o Siqueira, que, espantado, vai encontrá-la. O foco narrativo permanece nos dois rapazes, completamente atônitos, que veem o Siqueira, todo efusivo e radiante, entrar com a menina em um ‘carro de cavalos’ e seguir pelo jardim para o lado da Alfândega. Ali ficava o Hotel Mesquita, mas o Brito pensa que o Siqueira não teria como levá-la ali nessa altura do mês, pois estaria sem dinheiro. O Colaço já o considerava um aldrabão, um dissimulado, pois fingira que não conhecia a jovem somente para monopolizar a situação e sair dali sozinho com ela.
Dali a algum tempo, o Siqueira retorna com a jovem, demonstrando grande intimidade. Faz mistério para revelar aos colegas quem ela era, mas acaba dizendo que se tratava de uma amiga de escola de sua irmã, que era de Saligão, mas agora vivia em Bombaim com os pais e precisava de ajuda para obter uns bilhetes. Tudo esclarecido, Colaço se despede e os outros dois vão a um alfaiate, ajustar os termos, como já tinham combinado.
Siqueira fica completamente apaixonado pela jovem, o que tem um efeito extremamente deletério em seus estudos, passando de um dos mais brilhantes alunos da sala a antepenúltimo. Professores e depois seu primo e tutor de estudos, assim como o encarregado da educação e um psiquiatra, todos procuram solucionar o caso, mas a nenhum Siqueira revela o verdadeiro motivo de seu desregramento. Finalmente, o encarregado da educação acaba indo conversar com Brito, que, preocupado com a saúde mental de seu amigo Siqueira, revela-lhe a história da paixão fulminante.
O encarregado da educação escreve uma carta para a irmã de Siqueira, expondo o caso, já que o pai era cardíaco e a mãe sofria dos nervos. Esta, mais jovem que o irmão e sem autoridade para repreendê-lo, mostra a carta a sua amiga de Bombaim, que agora ficamos sabendo chamar-se Helena e, na intimidade, Lena. Ao saber da paixão que inspirara e querendo ajudar o rapaz, Helena escreve-lhe uma carta dizendo que agradecia tudo o que o fizera por ela, mas precisava dizer que era recém-casada e logo se mudaria para Nova York com o marido. Após ler a carta, o jovem simplesmente enlouquece. E o conto assim se fecha: “Moral da história: Era assim o amor nos meus tempos de estudante. Fora hoje, a rapariga seria raptada, desonrada e talvez... morta” (Noronha, 1997, p. 165).
O conto está repleto de referências à vida cotidiana dos jovens de Panjim: o Café Central e seu baji-puri, a loja do Vagló, a Maganlal, o Bar Coelho, a Igreja central, o hábito de frequentar cafés, alfaiates, o flerte à janela ou no passeio público, enfim, traz toda uma ambientação de Panjim por volta da década de 1930 ligada ao meio estudantil, atribuindo-lhe um estatuto literário até então inexistente, pois se Antônio de Salvador Fernandes (1946) já nos narrou a história do Liceu Nacional, da vida cotidiana de seus alunos pouco se a sabe. Universo semelhante se encontra bastante desenvolvido nas memórias de estudantes de Carmo de Noronha, publicadas na terceira parte Escavando na Belga (1993). Ali aparecem diversos episódios acerca da vida estudantil, sobretudo episódios escolares, envolvendo alunos, professores, compêndios utilizados em aula, avaliações, entre outros aspectos do dia a dia daquela instituição.
O conto ‘Amor de estudante’ tem a particularidade de focalizar as relações amorosas daqueles estudantes. Há ali duas narrativas amorosas: a primeira, na qual impera a arbitrariedade e injustiça paterna, que condena a filha de forma excessiva e a jovem acaba por seguir seu próprio caminho, sugerindo que a disciplina paterna tem limites, assim como assinalando o fato de o amor romper convenções sociais, já que Paquita era bonita e Chiquito feio; a segunda narrativa, em que o mote central é o enlouquecimento pela paixão, focalizando a pureza e ingenuidade desse sentimento no passado, isto é, por volta da década de 1930, em contraste com o pragmatismo e sexismo do momento em que o conto é narrado – em meio à segunda metade do século XX. Em ambas as narrativas, a relação entre integração social e desregramento na vida da juventude constitui o eixo central.
Na primeira narrativa, temos um episódio mais convencional, tratado de uma perspectiva aparentemente bastante liberal, já que, ao final, é a jovem quem escolhe com quem se casar, mesmo sem a aprovação paterna. Portanto, o amor aí teria vencido todas as barreiras. Todavia, isso só acontece por conta do erro do pai ao ter humilhado publicamente sua filha de forma desnecessária. Assim, menos que defender a escolha amorosa da filha, o episódio de fato vem condenar a atitude paterna equivocada.
Já a narrativa do extremo amor de Siqueira por Helena aborda um outro excesso, o de abandonar-se integralmente ao sentimento amoroso, o que constituiria um perigo para os jovens, resultando em loucura e consequente perda, por parte do jovem, de seu lugar social. Vale lembrar que não se trata aqui de um amor sensual e sexualizado, mas sim puro, ingênuo e verdadeiro. Os jovens do conto são simples e ordeiros, tendo o narrador o cuidado de assinalar que sequer frequentavam o Bar Coelho, onde se vendia bebidas alcoólicas, mas somente o Café Central e seu baji-puri. Apesar de dizer ironicamente, na introdução de suas memórias de estudante em Escavando na Belga, que os goeses bebem somente em duas ocasiões: “[...] quando há festa e quando não há festa” (Noronha, 1993, p. 105), suas memórias não narram histórias envolvendo o espaço boêmio. Diferentemente das narrativas europeias, que inspiraram o escritor a narrar suas memórias de estudante, tanto suas memórias como o conto em foco têm por narrador e por personagens indivíduos que estão longe da vida boêmia. No conto, narrador e protagonista partilham do mesmo sentimento de pureza em relação às relações amorosas, com a diferença que o narrador compreende o perigo desse sentimento, enquanto o protagonista se abandona a ele sem reservas, chegando a um fim trágico.
Da conjunção entre as duas narrativas, é possível inferir que, nos contos de Carmo de Noronha, ser estudante em Panjim nas décadas de 1920 e 1930 era algo muito distinto de o ser na metrópole. Na Índia Portuguesa os excessos seriam outros: sem noitadas, sem álcool, sem frequentar espaços de prostituição, o maior risco que um jovem corria era se abandonar sem reserva ao sentimento amoroso. O maior erro dos pais, por sua vez, seria abandonar-se também aos excessos dos sentimentos e acabar por expor os filhos à execração pública. Assim, se há no conto a reconstituição do espaço social do jovem estudante goês da primeira metade do século XX, revelando seus lugares de convívio e suas formas de sociabilidade, há, sobretudo, uma vontade explícita do narrador em apresentar uma lição de moral, em que os excessos de toda sorte são condenados. O conto se apresenta, assim, tanto como uma crônica de época, quanto como uma narrativa moral, revelando a preocupação do narrador em agir junto à sociedade, vendo na literatura uma forma de intervenção social.
Da perspectiva da tradição crítica moderna, os contos de Carmo de Noronha não seriam considerados de grande originalidade, quer no plano da linguagem e da expressão, quer no plano do estilo, quer ainda no do pensamento e ideias, para referir-se aos critérios adotados por ele mesmo para avaliar a qualidade de uma obra literária. Todavia, o retorno a uma forma de narrar tradicional, coerente com as ideias tradicionais que veicula e, sobretudo, coerente com a realidade da qual emerge essa maneira de narrar, tem seu lugar e valor na literatura contemporânea. Carmo de Noronha, portanto, se inscreve nesse lugar. Seus contos dão forma a uma realidade muito peculiar, dando vida, substância, materialidade, isto é, presentificando mesmo aos olhos do leitor o cotidiano, os valores, o imaginário de um determinado estrato social muito peculiar e historicamente circunscrito, a saber, o de uma elite intelectual que viveu uma transformação radical de referências sociais e culturais e procurou manter vivo o seu passado, dando-lhe forma literária.
Considerações finais
Se o livro Contos e narrativas não cumpriu a tarefa tão esperada por Carmo de Noronha (1997) de renovar a tradição literária goesa de língua portuguesa, que tem desaparecido sistematicamente, é possível apresentar aqui uma alternativa mais realista para essa renovação, lembrando os já referidos trabalhos que tem desenvolvido Cielo G. Festino (2007), estudiosa da literatura indiana de língua inglesa na Índia e, hoje, voltada sobretudo para a literatura de Goa. Festino (2016a) tem trabalhado sistematicamente com o conto goês, não só em inglês, mas também em português, em concani e em marata (a partir de traduções para o inglês). Seus trabalhos valorizam o aspecto plurilinguista de Goa, pois o repertório de contos goês guarda um amplo arquivo de narrativas literárias em várias línguas. Segundo Festino, essas línguas e suas respectivas literaturas não são unidades separadas, mas estão profundamente inter-relacionadas em Goa. Conforme afirma em seu artigo ‘If Goa is your land, which are your stories? Narrating the village, narrating home’, o que interessa, mais do que em qual língua o conto foi escrito, é o fato que existem contos em todas as línguas que falam da mesma comunidade, embora, muitas vezes, de perspectivas conflitantes.
Assim, propõe relacionar os contos dessas tradições a partir de uma metáfora em comum que ajude a estabelecer um contraponto entre todas elas em nível literário, linguístico e cultural: a metáfora da aldeia goesa. Este é certamente um caminho seguro para se chegar a uma leitura mais totalizadora da produção do conto goês, além de permitir que a tradição literária em língua portuguesa ali constituída permaneça viva, pois poderá sempre ser relida, guardado seu momento histórico, em diálogo com as línguas que hoje ali são literariamente fortes.
Essa é uma forma eficaz e realista de perpetuar a vitalidade literária dos textos escritos em português em Goa. Com essa grande biblioteca plurilinguística contribuíram, mesmo sem clara consciência disso, escritores como Carmo de Noronha e tantos outros contistas goeses de língua portuguesa. Lutando pela afirmação de sua identidade de grupo e de sua língua, nem sempre se deram conta que estavam também contribuindo para a fundamentação de um substrato literário comum, plurilinguístico e, em certo sentido, também pluricultural. Afinal, exercendo assiduamente sua atividade intelectual e literária, Carmo de Noronha, sem plena ciência da extensão desse processo, contribuiu grandemente para constituição desse substrato efetivamente goês, cumprindo seu propósito de perpetuar a literatura goesa de língua portuguesa, mas também auxiliando na formação de uma rede literária bem mais complexa, que corresponde à complexidade histórica e cultural da sociedade goesa.
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Notas