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DIALÉCTICA DA TEOLOGIA POLÍTICA:Carl Schmitt, Erik Peterson e Giorgio Agamben
DIALECTICS OF POLITICAL THEOLOGY: Carl Schmitt, Erik Peterson and Giorgio Agamben
Interações, vol. 15, núm. 1, 2020
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

ARTIGOS



Recepción: 02 Octubre 2019

Aprobación: 26 Junio 2020

Resumen: O presente artigo apresenta o debate sobre a teologia política entre Carl Schmitt e Erik Peterson sob a forma de uma estrutura dialéctica. Afirmando a decisão do soberano como uma secularização do milagre, a defesa por Carl Schmitt da soberania é apresentada como o momento afirmativo da teologia política. Ao invés, a negação da possibilidade de uma teologia política cristã, por Erik Peterson, aparece como a sua contraposição dialéctica. Ao opor-se a esta possibilidade, na recusa da teologia política imperial proposta por Eusébio de Cesareia, Peterson confronta-se com a concepção por Carl Schmitt de uma Igreja baseada na autoridade infalível do Papa. Erik Peterson, no entanto, estabelece um abismo entre teologia e política, tornando toda a teologia não política. Agamben parece, por seu lado, tenta pensar não uma teologia não política, mas uma teologia que torne possível uma política contra a política teológico-política. É este o sentido de uma teologia económica – uma afirmação da negação – a qual, no entanto, parece permanecer insuficiente.

Abstract: The present paper approaches the debate between Carl Schmitt and Erik Peterson on political theology in the form of a dialectical structure. Carl Schmitt’s defense of sovereignty is presented of political theology, when it characterizes sovereign’s decision as the secularization of a miracle. Instead, Erik Peterson’s denial of the possibility of Christian political theology appears as its dialectical counterpoint. By opposing its possibility, by refusing the imperial political theology proposed by Eusebius of Cesarea, Peterson opposes Schmitt’s conception of a Church based on Papal infallible authority. Erik Peterson, however, establishes an abyss between theology and politics, making all theology non political. Agamben seems, in his turn, trying to think not a non- political theology, but a theology that makes possible a policy against theological-political politics. This is the meaning of an economic theology – affirmation of denial – which, however, seems to remain insufficient.

Keywords: State, Church, Political Theology, Economic Theology.

Palavras chave: Estado, Igreja, Teologia Política, Teologia Econômica

1 INTRODUÇÃO

O tema da possibilidade de uma teologia política no âmbito cristão foi motivo de uma controvérsia que, ao longo do século XX, se arrastou por cinquenta anos. O primeiro passo do debate foi dado pelo jurista Carl Schmitt, num pequeno livro, publicado em 1922, redigido na sequência de um estudo de homenagem a Max Weber. Este livro, intitulado Teologia Política, procurava reflectir sobre conceitos políticos fundamentais, como soberania e estado de excepção, compreendendo-os a partir de um fundo teológico. Segundo Schmitt, tais conceitos seriam conceitos teológicos secularizados, pelo que seria possível estabelecer, na sequência da afirmação desta secularização, uma analogia estrutural entre a ordem teológica e cósmica, por um lado, e a ordem política, por outro.

A partir desta analogia dir-se-ia que, pelo menos de forma implícita, a evocação da teologia política como modo de compreender o sentido dos conceitos políticos e jurídicos fundamentais traduzir-se-ia na afirmação da possibilidade de fundar teologicamente o poder político. É diante da possibilidade desta tradução que, dez anos depois, um teólogo amigo de Schmitt, Erik Peterson, estabelece a impossibilidade de uma teologia política cristã. Se Schmitt afirmara a teologia política a partir da afirmação da possibilidade de compreender os conceitos políticos e jurídicos como conceitos teológicos secularizados, Peterson coloca-se, em contraposição a esta afirmação, numa posição de negação da teologia política. Longe de se articular com qualquer modo de fundamentação ou legitimação do poder político, a história do cristianismo emergente no seio do Império Romano seria, segundo Peterson, a história da emergência de uma rebelião contra os poderes mundanos, bem como de uma subversão das estruturas e das hierarquias que a caracterizam. Por essa razão, teologia cristã e política têm, para Peterson, uma relação de mútua exclusão: o cristianismo situa-se num plano teológico e, precisamente em função desta situação, está fora do plano político. A expressão teologia política seria, numa perspectiva cristã, em si mesma contraditória.

É diante da afirmação da teologia política por Schmitt e da sua negação por Peterson que Giorgio Agamben, nos seus trabalhos em torno do projecto filosófico que intitulou Homo Sacer, se procura situar no plano de uma espécie de superação dialéctica. A expressão teologia económica, que Agamben contrapõe frontalmente à teologia política, assinala justamente esta superação. E é uma reflexão sobre o sentido, bem como os limites a esta tentativa de superação, que caracteriza o presente trabalho. As três partes que o compõem correspondem ao desdobramento desta estrutura dialéctica. Se a primeira parte se dedicará à apresentação da afirmação da teologia política por Schmitt, a segunda mostrará o modo como esta afirmação será negada por Peterson. Diante desta contraposição entre afirmação e negação, a posição de Giorgio Agamben será pensada como a tentativa de uma afirmação da negação. No seu ponto culminante, o presente trabalho discutirá precisamente se é possível encontrar nesta afirmação da negação da teologia política – naquilo a que Agamben chama uma teologia económica – uma verdadeira resolução do embate entre afirmaçã0 e negação da teologia política, situando-se, nessa medida, no plano de uma superação dialéctica da confrontação da controvérsia entre Schmitt e Peterson em torno da sua possibilidade.

2 AFIRMAÇÃO DA TEOLOGIA POLÍTICA: CARL SCHMITT

Na frase lapidar que abre o terceiro capítulo de Teologia Política, proclamando que “[...] todos os conceitos marcantes da moderna doutrina do Estado são conceitos teológicos secularizados.” (SCHMITT, 1934, p. 45, tradução nossa)1, Schmitt afirma um modo de pensar os conceitos políticos a que, de uma forma que não foi isenta de ambiguidades, chamou teologia política. Coube-lhe afirmar a sua legitimidade, compreendo os conceitos políticos à luz de um sentido que lhes é fornecido pela referência do mundo espiritual ou da estrutura metafísica que os ampara, enquadra e sustenta. Uma tal forma de pensar tem, para Schmitt, uma dimensão prática iniludível. E esta é um elemento indispensável para compreender a afirmação da teologia política. Não penso que se trate em Schmitt, como sugere José Luís Villacañas, de sacrificar o plano teórico à “[...] apologia incondicional das suas valorizações e pressupostos políticos” (VILLACAÑAS, 2016, p. 10, tradução nossa)2. Mas trata-se indubitavelmente de aceitar que o desenvolvimento da teologia política como “[...] sociologia dos conceitos jurídicos [...]” (SCHMITT, 1934, p. 50, tradução nossa)3, particularmente da “[...] sociologia do conceito de soberania [...]” (SCHMITT, 1934, p. 59, tradução nossa)4, tem implicações no plano prático, e que estas não podem deixar de ser assumidas e explicitadas no plano das valorizações e pressupostos políticos. É esta aceitação que conduz Schmitt ao decisionismo que caracteriza a sua abordagem do direito, da soberania e do Estado.

Segundo o decisionismo, a decisão política não pode ser determinada pela simples norma jurídica. Em causa, nesta decisão, está sempre uma ordem concreta irredutível à norma. A razão da irredutibilidade é manifesta: longe de ser uma consequência da aplicação de normas jurídicas, a ordem é antes por elas pressuposta como condição dessa aplicação. Como escreve Schmitt: “Não há norma que seja aplicável a um caos. A ordem tem de ser produzida para que a ordem jurídica tenha um sentido” (SCHMITT, 1934, p. 20, tradução nossa)5. Sendo não o resultado, mas o pressuposto da norma jurídica, a ordem adquire o aspecto de uma base substancial e concreta em cujo seio a decisão jurídica e política pode emergir.

A referência de Schmitt àquilo a que chamará mais tarde – num livro de 1934 intitulado Sobre os três tipos do pensamento jurídico (SCHMITT, 1993) – ordem concreta (konkrete Ordnung), no seio da qual a ordem jurídica exclusivamente ganha sentido, visa, por conseguinte, a defesa de que seja possível a ocorrência de uma decisão política que possa defender a ordem. Trata-se de defendê-la sem restrições, mesmo, se tal for o caso, à custa das normas que fundamenta. É esta decisão que corresponde à soberania e se anuncia na possibilidade de um estado de excepção. O estado de excepção manifesta a distinção entre a ordem jurídica ou normativa e uma ordem concreta que a ultrapassa porque lhe está subjacente como fundamento. Nele, a decisão política soberana, em virtude do seu vínculo primordial à ordem substancial originária, liberta-se da norma jurídica, desactivando-a e actuando à margem dela:

Se este estado surgir, é claro que o Estado permanece enquanto o direito recua. Como o estado de excepção é diferente de uma anarquia ou um caos, mantém-se, em sentido jurídico, uma ordem, embora não uma ordem jurídica. A existência do Estado mostra aqui uma superioridade indubitável em relação à validade da norma jurídica.(SCHMITT, 1934, p. 18-19, tradução nossa)6.

O estado de excepção é, por isso, um limiar entre normalidade e caos que não se confunde com nenhum dos dois. Por um lado, quando um tal estado é proclamado, a decisão soberana suspende as normas e actua sem ser por elas determinada. No entanto, na medida em que a ordem é a condição de possibilidade das normas, o estado de excepção não significa, por outro lado, a simples eliminação das normas, ou a introdução de uma situação de anomia, mas uma sua presença peculiar. Na suspensão excepcional de aplicação das normas jurídicas, a ausência de aplicação corresponde não a uma pura e simples inexistência das normas, mas a uma forma de estas existirem e estarem presentes. Dir-se-ia que elas estão-no sob a forma peculiar da subtracção dos efeitos que podem produzir, da sua ausência de eficácia, da sua desactivação e inoperância. Nesta linha, Giorgio Agamben sugere que o estado de excepção não se encontra nem dentro, nem fora, do direito. Neste estado, as normas não estão nem presentes, nem ausentes, mas habitam um limiar em que convergem e se tornam indiferentes presença e ausência: “Na verdade, o estado de excepção não é nem externo nem interno ao ordenamento jurídico e o problema da sua definição concerne precisamente um limiar, ou uma zona de indiferença, na qual dentro e fora não se excluem, mas se indeterminam.” (AGAMBEN, 2018, p. 193, tradução nossa)7. Noutros termos, as normas estão aqui presentes enquanto ausentes e a suspensão dos seus efeitos é o modo paradoxal da sua vigência.

Para Schmitt, a remissão da decisão política a uma ordem que ultrapasse o plano normativo é o vínculo primordial que fundamenta a possibilidade de a decisão soberana se desvincular das normas jurídicas. É porque se liga primordial e essencialmente a uma ordem irredutível às normas que a decisão se pode caracterizar, em relação a elas, por conter “[...] um momento de indiferença no que respeita ao conteúdo [...]”8 e permanecer “[...] um momento autónomo determinante.” (SCHMITT, 1934, p. 41, tradução nossa)9. Por outro lado, o vínculo da decisão à ordem evoca o seu lugar no contexto de uma visão do mundo e de uma base teológico-política que a fundamenta. A decisão soberana, uma decisão absoluta situada acima da lei e livre de constrangimentos normativos, alicerça-se nesse fundamento. Ela é a secularização da concepção teológica de uma vontade omnipotente de Deus e transporta a decisão proveniente desta vontade para o plano político. Do mesmo modo que Deus, enquanto omnipotente, pode intervir directamente no mundo sem que a sua intervenção esteja limitada pelas leis naturais por si criadas para o normalizar, assim também o soberano, trazendo para um plano secular a omnipotência divina, deve ser o senhor de uma decisão absoluta, capaz de proteger a ordem sem estar limitado pelas normas jurídicas por ele mesmo estabelecidas.

Apresentando a tese teológico-política da secularização dos conceitos teológicos em conceitos políticos, Schmitt evoca a decisão soberana sobre o estado de excepção como uma secularização da decisão divina de operar milagres: “O estado de excepção tem para a jurisprudência um significado análogo ao do milagre para a teologia” (SCHMITT, 1934, p. 45, tradução nossa)10. As leis civis e as normas jurídicas servem a uma ordem concreta cujo guardião é o soberano. Na medida em que as normas estão ao serviço da ordem e não o contrário, na medida em que a ordem é o pressuposto das normas e não o resultado da sua aplicação, ao soberano deve ser possível a decisão de um estado de excepção em que possa agir à margem destas. De modo análogo, as leis naturais estão ao serviço da ordem e da justiça depositadas na vontade omnipotente de Deus, mas Deus não está subordinado a leis naturais cuja vigência se alicerça na sua vontade. No quadro desta analogia, Schmitt contrapõe a defesa de uma decisão soberana que decida sem limites normativos a uma posição normativista que ataca e nega esta possibilidade. Para pensar em todo o seu alcance, a contraposição entre decisionismo e normativismo confronta as duas perspectivas teológicas que lhes servem de fundamento.

Segundo Schmitt (1934), no fundamento do normativismo encontra-se uma teologia deísta cujo desenvolvimento minaria de forma crescente a decisão soberana entre os séculos XVII e XIX. O deísmo apresenta Deus como uma entidade absolutamente transcendente e, como tal, alheada dos acontecimentos mundanos. Esse alheamento significa a entrega do mundo a si mesmo. Para ele, o mundo é governado exclusivamente pelas suas leis imanentes, por causas mecânicas e eficientes, sem a possibilidade de nele se introduzirem razões transcendentes, providenciais ou finalísticas. A exclusão do mundo de uma racionalidade pessoal e teleológica não pode deixar de se reflectir, no plano político, tanto na remissão do soberano para um estatuto nefelibático, meramente formal e alheio à realidade concreta, quanto na entrega desta mesma realidade à lógica de normas que se encerram numa legalidade imanente, funcionando de forma procedimental e automática, sem referência a uma racionalidade pessoal que lhes dê sentido e finalidade. Como escreve Schmitt (1934):

Do conceito de Deus dos séculos XVII e XVIII faz parte a transcendência de Deus em relação ao mundo, tal como a transcendência do soberano em relação ao Estado faz parte de uma filosofia do Estado. No século XIX, numa extensão cada vez maior, tudo é dominado por representações de imanência. (SCHMITT, 1934, p. 63, tradução nossa)11.

São as consequências políticas deste trânsito entre transcendência e imanência quese tornam maximamente visíveis no século XX.

Do mesmo modo que o Deus do deísmo é compreendido como desligado e sem intervenção no mundo, deixando à lei natural que lhe é imanente a determinação dos acontecimentos que nele ocorrem, assim também o soberano da política que lhe corresponde se transforma numa entidade impessoal: o povo. Em consequência desta transformação, a soberania converte-se num princípio abstracto – o princípio democrático da identidade entre governante e governado – e perde-se a capacidade de designar claramente quem é o soberano concreto, ou seja, quem é capaz de identificar a sua vontade com a vontade do povo soberano. Tal como o Deus do deísmo não intervém nem age por si mesmo, também o povo soberano, senhor daquilo a que Rousseau chama a vontade geral, não fala, não age e é aquela parte do Estado que, como diz Hegel, “[...] não sabe o que quer” (HEGEL, 2000, p. 262, tradução nossa)12. Por conseguinte, assim como o deísmo pode ser transmutado em ateísmo e o seu Deus, longínquo e inacessível, substituído por qualquer ídolo no plano da imanência histórica, também o povo, soberano da era democrática, pode ser capturado por qualquer partido revolucionário que, identificando-se com ele, o coaja em seu próprio nome e identifique a sua vontade com a própria vontade geral.

Para Schmitt (1934), a era democrática assente no conceito de soberania popular no quadro de uma secularização do deísmo, caracteriza-se sobretudo pela disputa em torno da captura do povo por partidos que com ele se pretendem identificar. Nesta disputa, comunismo e anarquismo são as consequências últimas do desenvolvimento de uma teologia deísta, do mesmo modo que é no deísmo que se encontra a raiz mais funda da formulação de Engels no Anti-Dühring, segundo a qual, com o fim do Estado, a divisão dos homens em governantes e governados, o governo político de homens sobre homens – “politische Regierung über Menschen” –, é substituído pela simples administração imanente das coisas por elas mesmas – “Verwaltung von Dingen” (MARX; ENGELS, 1975, p. 241). Se a política e o governo se ligam à necessidade de deliberar e tomar decisões face aos conflitos irredutíveis num mundo plural, a administração prescinde de decisões autoritárias ao pressupor que a pluralidade e os conflitos desaparecem com o triunfo de uma racionalidade já não política mas económico-técnica, uma racionalidade que já não discute sentido e fins, mas apenas meios e procedimentos.

É o desenvolvimento de uma racionalidade despolitizada, reduzida ao económico- técnico, que constitui, para Schmitt, o elo de ligação entre o deísmo e uma era democrática que encontra na visão dialéctica da história do marxismo a sua consequência última. Ambos convergem para a ideia de uma era histórica final na qual desaparece a necessidade de governar por decisões políticas uma realidade caótica e radicalmente conflitual. Ambos se dirigem para a crença numa realidade homogeneizada e pacificada, numa realidade que se administra a si mesma e onde, na sua imanência, não há lugar nem para conflitos políticos nem para decisões que, sem eliminá-los, lhes retirem o potencial destrutivo. Ambos pressupõem uma ordem imanente e natural do mundo da qual os conflitos políticos – conflitos pessoais, subjectivos, passionais e inultrapassáveis – estariam excluídos:

Hoje, nada é mais moderno do que o combate contra o político. Financeiros americanos, técnicos industriais, socialistas marxistas e revolucionários anarco-sindicalistas unem-se na exigência de que tenha de ser deixado de lado o domínio inobjectivo da política sobre a objectividade da vida económica. Devem haver ainda tarefas organizatório-técnicas e económico-sociológicas, mas já não problemas políticos. O tipo de pensamento económico- técnico hoje dominante já não consegue perceber uma ideia política. O Estado moderno parece efectivamente ter-se tornado aquilo que Max Weber vê nele: uma grande fábrica. (SCHMITT, 1934, p. 82, tradução nossa)13.

Se da substituição de um pensar político por um pensar económico-técnico faz parte a ideia de um abandono do exercício do poder político na resolução de conflitos tornados inexistentes, a transformação da política em administração é também o desaparecimento da pluralidade própria da política. É por isso que num mundo social determinado por técnicos ou no fim da história gerado pela revolução comunista não há lugar para dissensões, dissidências ou discordâncias e todos são constrangidos a pensarem da mesma maneira e partilharem a mesma vontade. Diante da função homogeneizante de um pensar económico- técnico, Schmitt pensa a teologia política como, em última análise, uma defesa da política. Esta pressupõe conflitualidade e pluralidade irredutíveis. Por conseguinte, para um pensar político, a unidade política requer não a eliminação dos conflitos, mas a sua conservação e articulação numa estrutura tensional que unicamente se pode manter unida se a isso for forçada por uma decisão unificadora a cada momento presente.

É para pensar o fundamento último dessa estrutura que Schmitt evoca, em contraposição ao deísmo, uma teologia teísta. Ao contrário do deísmo, o teísmo concebe Deus como um princípio cuja omnipotência se traduz em ser o contínuo criador e conservador de um mundo que, enquanto criatura, não poderia, por um instante que seja, existir sem ele. Longe de ser um criador que abandona o mundo à sua sorte e se alheia dos seus eventos, o Deus do teísmo é, pelo contrário, um Deus presente que a cada momento pode intervir. A sua vontade não destitui a lei natural, mas manifesta-se na possibilidade de a suspender, fazendo milagres e intervindo no mundo para salvá-lo. A analogia entre o Deus teísta e o soberano é, à luz da teologia política, clara. Do mesmo modo que o Deus do teísmo assume a responsabilidade pelo mundo que criou, governando-o pelas suas leis mas podendo intervir extraordinariamente à margem delas, também o soberano, inserido num mundo político essencialmente plural e conflitual, deve poder intervir sem limites normativos, se a tal exigir o salus populi de uma defesa da ordem, do Estado e da sua unidade.

O teísmo não pode, portanto, deixar de ser pensado em contraposição às consequências políticas do imanentismo deísta. Tais consequências são, para Schmitt, essencialmente duas. Primeiro, a ideia de que os conflitos se podem eliminar por si mesmos, por via de uma articulação dialéctica imanente, e a consequente transformação liberal do conflito político num simples debate. O deísmo desemboca, antes de mais, num romantismo liberal que vislumbra na política uma discussão ininterrupta em que tudo é possível e não existem momentos trágicos em que se tornam necessárias decisões e rupturas. Depois, ao articular-se com a incapacidade liberal para a decisão política, o deísmo tem como consequência a emergência de uma era democrática, marcada pelo surgimento de partidos fanáticos que, disputando a possibilidade de se identificarem democraticamente com o povo, pensam a revolução como produção de um homem novo: uma humanidade homogénea onde o conflito não tem lugar e a pluralidade é erradicada. É sobretudo diante dos perigos de tal revolução que Schmitt evoca uma teologia teísta como fundo a partir de onde seria possível compreender o sentido político dos pensadores da contra-revolução.

Aludindo a contra-revolucionários como Joseph de Maistre, Louis de Bonald e Juan Donoso Cortés, Schmitt evoca-os para pensar a existência de um poder soberano capaz de decidir sem limites normativos e, ao fazê-lo, representar a unidade política de uma realidade em si mesma irredutivelmente conflitual e plural. Contudo, a referência filosófica de Schmitt para pensar essa representação encontra-se, para além dos pensadores contra-revolucionários, em Thomas Hobbes, no momento em que este, no capítulo XVI do Leviathan, ao interrogar-se pelo modo como uma multidão de indivíduos se pode constituir como unidade, afirma que “[...] é a unidade do representante, não a unidade dos representados, que faz com que uma pessoa seja una” (HOBBES, 1996, p. 114, tradução nossa)14. A concepção hobbesiana da representação implica pensar os representados como uma pluralidade irredutível, intrinsecamente conflitual e, nessa medida, insusceptível de ser reconduzida a uma unidade imanente. Por essa razão, Hobbes leva o conceito de representação às mais extremas consequências: se o povo é o conceito de uma unidade política, é ao representante, é ao rei ou a uma assembleia, como Hobbes diz explicitamente no De Cive, Capítulo XII, 8 (HOBBES, 1998, p. 137), que se deve chamar povo. Incorporado no seu representante, o povo, na sua unidade política, está então diante da multidão essencialmente plural e conflitual dos representados. Ao evocar os autores contra-revolucionários à luz de uma teologia teísta e ao basear-se no conceito de representação de Hobbes para pensar as consequências políticas do teísmo, Schmitt defende uma instância soberana que represente não propriamente o povo enquanto multidão, mas a ideia da unidade política deste mesmo povo. Esta instância é o Estado como forma política, cuja unidade se constitui não ao eliminar o conflito ou a pluralidade sociais, mas ao representá-los, de forma tensional, como se fossem unidade.

Associando a concepção hobbesiana da representação ao fundo teológico teísta que está na base da contra-revolução, Schmitt encontra na Igreja católica romana o paradigma da racionalidade política subjacente a esta associação. Para Schmitt, a forma política do catolicismo romano é o modelo a partir do qual é possível pensar o Estado, pelo que Estado e Igreja devem estar irmanados ao constituírem a sua unidade política a partir de um mesmo princípio da representação. É nesta linha que, em 1923, num pequeno livro intitulado Catolicismo Romano e Forma Política, caracteriza a Igreja católica a partir de uma conflitualidade interna que não pode ser erradicada. Não sem ironia, Schmitt mobiliza, para a caracterizar, uma expressão colhida no teólogo luterano Adolf von Harnack. A Igreja católica romana é então designada como uma complexio oppositorum.

Chamar à Igreja católica complexio oppositorum significa, neste contexto, apontar- lhe uma ambiguidade que lhe permite estar com o poder independentemente de quem o ocupe. Schmitt joga com este sentido, mas transforma-o num elogio do tipo de racionalidade que possibilita esta atitude. Segundo Schmitt, a unidade da Igreja é intrinsecamente plural porque se baseia numa racionalidade particular, especificamente política, que exclui apenas a unilateralidade daquilo que poderia ser classificado como uma selvajaria fanática (fanatische Wildheit) (SCHMITT, 1984, p. 24), isto é, a atitude supersticiosa de quem se sente senhor da verdade, procurando eliminar conflitos e dissolver discordâncias numa uniformidade homogeneizante. Por isso, na sua unidade política, a Igreja é uma estrutura complexa que abrange as mais extremas diferenças: há católicos de direita e de esquerda, conservadores e progressistas, monárquicos e republicanos. Para usar uma imagem de Schmitt, ela abarca “[...] o abade mimado pela dama da corte junto do franciscano irlandês que encoraja os trabalhadores em greve a perseverar” (SCHMITT, 1984, p. 8, tradução nossa)15. Também por esta razão o catolicismo não se define teologicamente pela exclusão, pelo ou-ou (Entweder-Oder), mas por um tanto-um-como-outro (Sowohl-Als) (SCHMITT, 1984, p. 12) que se furta a perspectivas unilaterais e leva a ligação entre opostos “[...] às últimas raízes sociais e psicológicas dos motivos e representações humanos”. (SCHMITT, 1984, p. 13, tradução nossa)16. Tanto num plano teológico quanto político, o que caracteriza a racionalidade específica do catolicismo romano é a sua capacidade de unir posições plurais e contrapostas, de tal modo que, mantendo-as unidas sem lhes dissolver a pluralidade e a contraposição, “[...] parece não haver oposição que ela não abarque.” (SCHMITT, 1984, p. 11, tradução nossa)17.

A unidade tensional da complexio oppositorum, bem entendido, só sob o pressuposto da possibilidade da decisão soberana seria viável. Isso implica uma conclusão paradoxal: a ideia de que uma inclusão ilimitada exige, como sua condição, a possibilidade sempre presente da exclusão decretada pelo juízo inapelável de uma decisão absoluta. Roberto Esposito tem, por isso, razão ao caracterizar a teologia política como um processo de inclusão excludente que “[...] funciona precisamente separando aquilo que declara unir e unificando aquilo que divide [...]” (ESPOSITO, 2013, p. 5, tradução nossa)18. No entanto, para Schmitt, a possibilidade sempre presente de uma decisão excludente está muito longe daquilo que Esposito apresenta como uma máquina que a cada momento produz exclusão, cindindo uma realidade em duas partes – uma incluída e outra excluída – “[...] mediante a submissão de uma parte ao domínio da outra” (ESPOSITO, 2013, p. 5, tradução nossa)19. O que caracteriza tal decisão é a introdução de uma instância situada acima do conflito, depositária de uma intervenção caracterizada pela sua virtualidade, pela sua presença como possibilidade, não como realidade efectiva. Na medida em que todos os católicos reconhecem o Papa como o representante de Cristo, tornando concreta a sua autoridade transcendente, a unidade do catolicismo pode sobrepor-se à pluralidade das diferenças entre católicos, sem as reduzir nem eliminar. Longe de dissolver o seu conflito, a possibilidade da decisão excludente conserva as posições discordantes numa unidade tensional. Trata-se, por isso, de uma unidade gerada a partir de cima, através da representação da ideia de unidade, e não a partir de baixo, mediante um processo de correcção política e eliminação da pluralidade numa unidade imanente, concreta e real. É a forma política desta unidade que, segundo Schmitt, não pode deixar de surgir para o Estado moderno como um paradigma.

Para Schmitt, tal como a Igreja, o Estado é – e deve ser – não uma estrutura homogénea, mas a unidade política de uma complexio oppositorum. Daí que a Igreja “[...] queira viver com o Estado na comunidade particular em que duas representações estão face a face como parceiras” (SCHMITT, 1984, p. 42, tradução nossa)20. Na medida em que Igreja e Estado se aliam como duas societates perfectae, unidas por serem ambas a realização do princípio da representação, a soberania no Estado pode ser compreendida como uma secularização da infalibilidade papal na Igreja. A teologia política tem, então, o sentido de evocar a necessidade de uma aliança entre Estado e Igreja ao estabelecer a analogia, proposta explicitamente por Joseph de Maistre, entre soberania e infalibilidade: “A infalibilidade na ordem espiritual e a soberania na ordem temporal são duas palavras perfeitamente sinónimas.” (MAISTRE, 1878, p. 29-30, tradução nossa)21. Na Igreja católica, só a possibilidade de uma decisão infalível do Papa, em função do seu carácter dogmático e indisputado, pode garantir a sua forma política, constituída por tensões e contraposições irredutíveis. Do mesmo modo, no Estado moderno, só a possibilidade da soberania, a possibilidade de uma decisão não limitada normativamente, é a garantia de que a unidade política não seja formada pela homogeneização social exigida pela hegemonia de partidos fanáticos. A teologia política, baseada numa forma política comum entre o Estado e a Igreja, culmina na evocação da sua aliança enquanto testemunhos de uma racionalidade que rejeita a selvajaria fanática dos que procuram estabelecer um fim da história despolitizado onde a pluralidade não tem lugar.

3 NEGAÇÃO DA TEOLOGIA POLÍTICA: ERIK PETERSON

Se a afirmação da teologia política se desenvolve no quadro de uma reflexão política que alude a uma aliança entre Estado e Igreja no quadro de uma forma política comum, a negação da teologia política – ou, mais concretamente, a negação de que seja possível o desenvolvimento de uma teologia política no seio do catolicismo romano – aparece como uma tentativa de libertar a Igreja católica da sua relação com o âmbito político. Do ponto de vista do catolicismo, esta tentativa surge como uma exigência de que a Igreja católica recupere a sua independência em relação não só a uma forma política particular, como é o caso do Estado moderno, mas a qualquer forma política e ao próprio plano político. Negar a possibilidade da teologia política, neste sentido, é negar que o discurso teológico se articule com a política ou, em particular, cumpra o propósito de legitimar uma forma política específica. Uma tal negação é desenvolvida sobretudo por Erik Peterson, em 1935, num pequeno texto intitulado O Monoteísmo como Problema Político. Escrito num contexto político particular, em que importantes figuras da igreja evangélica alemã, constituindo o movimento dos Cristãos Alemães (Deutsche Christen), propunham uma articulação estreita entre a Igreja e o Terceiro Reich, Peterson recua às origens do cristianismo e evoca o problema da sua articulação com o Império Romano.

O Império Romano tem na base da sua forma política uma estrutura teológica imediatamente reconhecível: a um universum corresponde um único imperium; a um Deus único, um único Imperador. É com este quadro teológico-político que o cristianismo emergente se confronta e é nele que, a partir da conversão de Constantino e do Edito de Milão de 313, depois de se tornar uma religião lícita no seio do Império, o cristianismo se irá integral. É este mesmo quadro que Peterson visará ao levar a cabo a sua crítica da possibilidade do desenvolvimento de uma teologia política no âmbito do catolicismo romano.

Pensada a partir da relação entre Igreja e Império, a analogia entre Deus e o Imperador ultrapassa o contexto cristão. O paradigma um Deus – um Monarca encontra, segundo Peterson, as suas raízes no monoteísmo judaico e na estrutura dos impérios helenísticos. Sem as mencionar explicitamente, Peterson evoca então um conjunto de abordagens ao conceito de Império que, no início do século XX, podem ser caracterizadas como neopagãs. Como exemplo, poder-se-ia mencionar o livro Religião e Política no Império Romano, que Giovanni Costa publica em Itália em 1923, no mesmo ano em que sai na Alemanha Catolicismo Romano e Forma Política de Schmitt. Neste livro, numa Itália ainda dividida pela Questão Romana, Costa adere à tese segundo a qual, num Império Romano largo de tolerância e indulgência, a perseguição aos cristãos se teria justificado pela “[...] preocupação dos imperadores romanos de verem triunfar com o cristianismo a intolerância religiosa [...]” (COSTA, 1923, p. 94, tradução nossa)22. Esta explicação para a perseguição dos cristãos no Império Romano, apresentada primeiro pelo historiador Bouché-Leclerq em 1911, no livro A intolerância religiosa e a política (BOUCHÉ-LECLERQ, 1911), conduz a um renovado interesse pelo tema do paganismo e da sua relação com o cristianismo emergente. É nesse contexto que se situa a tentativa de compreender a primeira polémica pagã contra os cristãos, apresentada por Celso no seu Discurso Verdadeiro. Este texto perdido mas amplamente citado por Orígenes, na defesa do cristianismo que produz no seu Contra Celso, pôde ser parcialmente reconstituído a partir dessas citações. É a esse trabalho que procede Louis Rougier, o qual, em 1925, faz acompanhar a sua reconstituição de um ensaio interpretativo onde se aludia de forma veemente ao fanatismo e proselitismo dos cristãos em contraste com a abertura e tolerância religiosa do paganismo.

Partindo de Celso, Rougier considera a confrontação do paganismo com o cristianismo um problema político e não estritamente religioso. Sob o paganismo, o Império Romano considerara lícitas as religiões nacionais de cada povo. O próprio judaísmo, cujo Deus era ciumento e exclusivista, adquirira o estatuto de religio licita devido à integração e renúncia dos judeus a um proselitismo intolerante. Por seu lado, o culto imperial sobrepunha-se às várias religiões étnicas como uma religião cívica e sem dogmas que simbolizava essencialmente a unidade política do Império. Neste quadro, ao recusar a divindade do imperador em nome da religião do único Deus verdadeiro, o cristianismo significava uma στάσις, um problema de rebelião e de subversão da unidade política. Fora este problema político que, em última análise, justificara a sua perseguição. No texto que acompanha a sua reconstituição do Discurso Verdadeiro de Celso, Rougier (1925) enfatiza precisamente esta dimensão subversiva como característica fundamental do cristianismo:

As verdadeiras causas das perseguições foram razões de ordem social. Os cristãos apareciam às classes cultivadas da sociedade pagã como, na Revolução, os jacobinos às velhas monarquias da Europa e, nos nossos dias, os bolcheviques às nossas sociedades capitalistas: uma ninhada execrável formada pela liga de todos os inimigos do género humano; um bando de escravos, indigentes, descontentes, de gente sem eira nem beira, conspirando contra a ordem estabelecida, desertando do serviço militar, fugindo das funções públicas, preconizando o celibato, maldizendo a doçura de viver, lançando o anátema sobre toda a cultura pagã, profetizando o fim do mundo, apesar dos augúrios que prediziam a Roma um destino eterno. (ROUGIER, 1925, p. 187, tradução nossa)23.

O retrato esboçado por Rougier é depois seguido por uma série de pensadores hostis ao cristianismo, os quais, na linha de Nietzsche, estabelecem o contraste entre o carácter aristocrático da tolerância e do pluralismo pagãos e a reivindicação fanática da verdade absoluta por parte de uma superstição intolerante. A unidade política do Império Romano pagão era compatível, como escreve Julius Evola, com “[...] a mais ilimitada tolerância no que toca às crenças, aos ritos e às opiniões filosóficas” (EVOLA, 2004, p. 96, tradução nossa)24. Em contraste com a abertura pagã, o Império Romano cristianizado exigiu a homogeneização religiosa como condição da sua unidade política. Para tal, impôs um dogma como verdade absoluta que não admitia dúvidas, discussões ou dissidências: “Só a unidade da Roma cristã foi a unidade violenta de uma espécie de tirania ignorada pelo mundo antigo, clássico e oriental: a tirania do espírito.” (EVOLA, 2004, 96, tradução nossa)25. Por conseguinte, se o Império pagão tinha sabido constituir a unidade política de uma pluralidade irredutível, conjugando a unidade do culto imperial com a pluralidade das religiões dos diversos povos, o cristianismo “[...] no seu proselitismo fanático, na sua presunção de ser a única religião verdadeira, na intolerância católica que não hesitou em armar o braço secular para conseguir impor-se às consciências, nada conheceu da liberdade, do seu grande sopro, quando o seu império apareceu” (EVOLA, 2004, p. 96, tradução nossa)26.

Em contraposição ao contraste estabelecido por Evola ou Rougier entre o Império Romano pagão e o Império Romano cristão, Peterson (1994) encontra neles uma continuidade em função de uma estrutura de poder comum. Face a tal estrutura, a proposta de Peterson será a de pensar o cristianismo desligando-o do poder e desmontando um discurso teológico que, no cristianismo emergente, se procurou desenvolver como uma fundamentação teológica do Império Romano cristianizado. É neste contexto que a sua análise começa por se referir ao Império pagão. No seu entender, o que caracteriza o culto imperial pagão, assente na analogia entre o Imperador e Deus, é que neste culto nem Deus nem o Imperador surgem como interventivos. Peterson evoca esta não intervenção a partir de Fílon e do tratado pseudo-aristotélico sobre o mundo:

Podemos pensar no imperar de Deus de acordo com o tipo do Grande Rei persa. Este habita de forma invisível no seu palácio, separado por muitas antecâmaras, e está rodeado por uma grande Corte. Do mesmo modo que seria indigno assumir que o próprio Xerxes faz tudo, ainda mais indigno seria se se quisesse crer isso de Deus. (PETERSON, 1994, p. 26, tradução nossa).27

No paganismo, Deus está presente numa pluralidade de cultos e religiões que medeiam, cada uma à sua maneira, o acesso à verdade e à divindade. Do mesmo modo, o Imperador helenístico ou romano não age por si mesmo, mas detém uma autoridade que está presente num conjunto de magistrados mediadores que exercem o poder em seu nome.

A analogia entre Deus e o Imperador, e a teologia política imperial que lhe serve de base, estabelece, por isso, a diferença entre duas formas de poder cuja distinção é essencial. Por um lado, Deus ou o Imperador têm o poder propriamente dito. Eles são a essência ou a substância do poder, o qual é expresso por Peterson pela palavra alemã Gewalt. Um tal poder corresponde ao governo ou autoridade, àquilo que o grego expressou como ἀρχή e o latim como auctoritas. Por outro lado, o exercício do poder, o acto pelo qual o poder é exercido – o qual não se pode confundir com o poder em si mesmo, mas constitui condição necessária para que ele se manifeste – é aquilo a que o grego chamou δύναμις e o latim potestas. É neste exercício que se encontra depositada a manifestação do poder, ou seja, a verdadeira potência a que se refere o termo alemão Macht. Pode-se compreender, a partir desta distinção, que no paganismo o Imperador seja uma divindade, tal como Deus é um monarca. Contudo, nem Deus nem o Imperador exercem o seu poder. A potência de Deus está entregue a divindades regionais, locais e étnicas, à pluralidade dos δαίμονες que manifestam a divindade, tal como a potência imperial é exercida não pelo imperador, mas pelos magistrados e administradores que o representam. Para Peterson (1994), o que caracteriza a estrutura do Império é precisamente a cisão entre substância e manifestação, ou entre essência e acção, pela qual o poder se subtrai à acção e se diferencia do seu exercício. Daí que seja o problema do exercício do poder que, desde o paganismo, determina a teologia política: “Não é a questão sobre se há um ou muitos poderes [Gewalten, ἀρχαί] que aqui determina a imagem do monarca divino, mas a pergunta pela participação de Deus nas potências [Mächte] que actuam no cosmos” (PETERSON, 1994, p. 27, tradução nossa)28.

Para ilustrar a diferenciação entre Gewalt e Macht, ἀρχή e δύναμις, auctoritas e potestas, Peterson evoca repetidamente a expressão com que Adolphe Thiers se referia à monarquia constitucional: “Le roi règne, mais il ne gouverne pas” (PETERSON, 1994, p. 27). Segundo Peterson, é este estatuto de um rei que reina mas não governa, ou que tem o poder de governar mas não o exerce, que passa directamente do paganismo para a figura do Imperador cristão. O cristianismo depara-se “[...] com um conceito da teologia política dos pagãos, segundo o qual o monarca divino reina, mas são os deuses nacionais que governam.” (PETERSON, 1994, p. 58, tradução nossa)29. Naturalmente, se o cristianismo não reconhece religiões étnicas, “[...] os deuses nacionais já não poderiam governar, pois o pluralismo nacional foi superado pelo Imperium Romanum” (PETERSON, 1994, p. 58, tradução nossa)30. No entanto, a estrutura de poder imperial, bem como a teologia política que lhe serve de base, mantém-se inalterada. A única diferença é a de que, no lugar de um status quo politeísta, onde a pluralidade de religiões étnicas coincide com a unidade do culto imperial, o cristianismo introduz a ideia de que, com a aproximação do fim dos tempos e do Reino de Deus, a forma política do império corresponde a uma era de paz definitiva – a Pax Augusta – que os antecede e anuncia: “A Pax Augusta foi então interpretada como o cumprimento das profecias escatológicas do Antigo Testamento.” (PETERSON, 1994, p. 58, tradução nossa)31.

Com a conversão de Constantino, caberá ao mais influente teólogo da Corte Imperial, Eusébio de Cesareia, discípulo de Orígenes, a missão de assinalar a continuidade do Império Romano, mostrando como a nova religião cristã, tornada a religião do seu Imperador, correspondia ao cumprimento do destino que a Providência reservara a Roma. Segundo Eusébio, a coincidência cronológica entre a fundação do Império e a emergência do cristianismo constitui um acontecimento providencial que abre na história uma era definitiva de paz. A uniformização religiosa do império corresponde, por isso, a uma sua pacificação definitiva: “Já não há guerras porque já não há deuses, já não há batalhas no campo e nas cidades, como antes, quando permanecia o culto dos deuses, nem rios de sangue derramado entre os homens, como acontecia com a loucura do politeísmo” (De laudibus Constantini, VIII, 9) (EUSÈBE DE CESARÉE, 2001, p. 131, tradução nossa)32. Por outro lado, se é na convergência entre Império Romano e monoteísmo cristão que assenta a paz, a tríade entre império, cristianismo e paz encontra o seu fundamento numa teologia política em que o Deus único é o fundamento de que haja um único Imperador. Como conclui Peterson (1994):

Os três conceitos Imperium Romanum, paz e monoteísmo estão indissoluvelmente ligados entre si. Mas introduz-se ainda um quarto momento: a monarquia do imperador romano. O único monarca sobre a terra – e esse, para Eusébio, é só Constantino – corresponde ao único monarca divino no Céu. (PETERSON, 1994, p. 51, tradução nossa).33

Segundo Eusébio, é Cristo ou o Logos divino que assegura na história uma providência, uma lógica, pela qual esta desemboca numa paz definitiva assente na estrutura Um Deus – Um Imperador: “É por isso que, na verdade, não há senão um Deus, e não dois ou três ou até mais (pois o politeísmo é ateísmo), um único Rei, e deste um único Logos e uma única Lei real” (ibid., III, 6) (EUSÈBE DE CESARÉE, 2001, p. 97, tradução nossa)34. À teologia política imperial de Eusébio, assente no estabelecimento de uma relação providencial entre cristianismo e império, contrapõe Peterson a ideia de que o cristianismo se teve de libertar de uma visão imperial da história, para a qual a Pax Augusta surge como uma era final e definitiva, e de que esta libertação encontra o seu fundamento na doutrina trinitária, a qual seria, por princípio, incompatível com a noção de monarquia divina.

Para Peterson (1994), a tentação cristã de constituir uma teologia política imperial corresponde, no contexto do cristianismo do século IV, aos efeitos políticos da heresia ariana. Só a partir da concepção subordinacionista de Ário, com a afirmação de que Deus Pai é o único princípio sem princípio e de que o Filho, o Cristo enquanto Logos de Deus, está subordinado ao Pai, seria possível fundamentar teologicamente uma monarquia divina. O arianismo era útil para fundamentar teologicamente o poder autocrático do imperador. Daí que “[...] fosse de um interesse político premente que o Imperador se pusesse, à partida, ao lado dos arianos e que, por outro lado, os arianos se tivessem de tornar nos teólogos da Corte bizantina.” (PETERSON, 1994, p. 57, tradução nossa)35. Em contraposição ao arianismo, a doutrina trinitária estabelece a consubstancialidade entre as Pessoas divinas e implica a impossibilidade de fazer corresponder os planos de Deus e das criaturas. Não sendo possível encontrar algo equivalente à Trindade divina no âmbito das coisas criadas, caía pela base a fundamentação teológica do Império. Daí que Peterson conclua categoricamente que “[...] a doutrina ortodoxa da Trindade ameaçava, de facto, a teologia política do Imperium Romanum” (PETERSON, 1994, p. 57, tradução nossa)36. A doutrina trinitária exigia, segundo Peterson, a libertação da Igreja diante do Império e da sua teologia política: a compreensão de que “[...] só na base do judaísmo ou do paganismo pode haver algo como uma ‘teologia política’” (PETERSON, 1994, p. 59, tradução nossa)37 e de que com o cristianismo “[...] é realizado o corte com toda a ‘teologia política’” (PETERSON, 1994, p. 59).

Confrontando-se com a tese de Peterson já depois da morte deste, Schmitt dá a Teologia Política II, publicado em 1970, um subtítulo significativo: “A lenda da eliminação de toda a teologia política”38. Para Schmitt, a tese de Peterson acerca da teologia política – a eliminação da sua possibilidade por uma concepção trinitária de Deus – é uma lenda precisamente porque, longe de se comprovar, antes confirma a afirmação da teologia política. Schmitt (1996) detém-se na descrição por Peterson do estatuto do Imperador a partir da expressão encontrada em Thiers para ilustrar a situação do Rei Luís Filipe de Orleães, no contexto de um regime constitucional liberal como o da França na Monarquia de Julho: o rei reina, mas não governa. O emprego de tal expressão não pode deixar de trair, no seu entender, ao contrário do que pretende Peterson, um significado teológico- político claro. Caracterizar o estatuto do Grande Rei persa ou do Imperador helenístico a partir de uma formulação que respeita a uma monarquia constitucional confirma, afinal, que o modo como os conceitos políticos são compreendidos é sempre, de alguma maneira, uma expressão secularizada da teologia e das concepções metafísicas de uma época. Daí que o uso de tal formulação seja “[...] o contributo mais interessante que Peterson – talvez inconscientemente – forneceu à teologia política.” (SCHMITT, 1996, p. 42, tradução nossa)39.

Segundo Schmitt (1996), a rejeição por Peterson da teologia política, a lenda da sua incompatibilidade com a religião cristã, surge do ímpeto político de libertar a Igreja de uma relação com o poder. Em 1935, a sua defesa de que a doutrina trinitária remete a teologia política de Eusébio para uma posição próxima da heresia ariana manifesta sobretudo a sua contraposição política à integração da Igreja, proposta pelos evangélicos alemães, no Estado hitleriano. Na sua resposta a Peterson, é sempre este pano de fundo político que é visado por Schmitt: a rejeição da teologia política é motivada politicamente. E o próprio Peterson parece, de facto, reconhecê-lo. Daí que admita as objecções pagãs de que o cristianismo corresponderia a uma στάσις, a uma rebelião no seio do Império: “O cristianismo teria então de se manifestar como ‘rebelião’ tanto na ordem metafísica quanto política, tal como Celso tinha predito.” (PETERSON, 1994, p. 57, tradução nossa)40. Por conseguinte, apesar da proclamação da lenda da eliminação de toda a teologia política, dir-se-ia que Peterson acaba por admitir a concepção schmittiana de uma ubiquidade da política. Partindo daí, uma suposta libertação teológica da política não pode deixar de ser vista como já em si mesma uma atitude política.

4 AFIRMAÇÃO DA NEGAÇÃO: GIORGIO AGAMBEN E A TEOLOGIA ECONÓMICA

As reflexões de Peterson (1994), no entanto, não se dirigem àquilo que se poderia caracterizar como uma política contra a política. Para este, recusar a possibilidade da teologia política católica e subtrair o cristianismo à articulação com a política implica remetê-lo para uma esfera puramente teológica. Ao admitir que o cristianismo significa tanto teológica quanto politicamente uma στάσις, Peterson diz apenas que a teologia não é política e que ao cristianismo não pode ser atribuída uma função de legitimação política. Nesse sentido, ele não abre a possibilidade de uma política alternativa à política da teologia política. Será Giorgio Agamben e não Peterson que, situando-se para além do debate deste com Schmitt, tenta pensar semelhante possibilidade.

Agamben (2018) alude a uma hipotética alternativa à teologia política ao explorar a ideia de que a doutrina trinitária do cristianismo, estabelecendo Deus Pai e Deus Filho como consubstanciais, apontou não para uma despolitização da teologia, mas para uma política de desactivação da monarquia paterna, isto é, para uma política de desautorização da autoridade e de inoperosidade das suas decisões. Colocando o Filho no mesmo nível de Deus Pai, os defensores ortodoxos da Trindade teriam aberto, segundo Agamben, uma política marcada pela não subordinação da vida imanente à autoridade transcendente; uma política em que nem Peterson nem Schmitt ousaram pensar. Daí que Agamben encontre no aparente desacordo entre Peterson e Schmitt em torno da possibilidade da teologia política uma “[...] solidariedade mais essencial” (AGAMBEN, 2018, p. 449, tradução nossa)41. Uma tal solidariedade baseia-se na recusa de pensar a possibilidade de uma política não autoritária a que a fórmula o rei reina, mas não governa pode aludir. Por essa razão, ambos são, no entender de Agamben, “[...] convictos adversários da fórmula” (AGAMBEN, 2018, p. 449, tradução nossa)42. Se para Peterson a recusa da teologia política tem o sentido de uma negação teológica da política, ou de uma separação abissal entre teologia e política, isso significa que ambos partem da noção de que a política ou será autoritária, assente numa teologia politicamente subordinacionista, ou não será. Ao defender a solidariedade entre Peterson e Schmitt na crítica da fórmula o rei reina, mas não governa, Agamben não simplesmente nega a teologia política afirmada por Schmitt, mas afirma a sua negação. Neste sentido, ele subverte a abordagem schmittiana da fórmula, marcada pela afirmação da teologia política, e transforma-a numa afirmação da negação.

Na verdade, Schmitt não é um simples crítico da fórmula o rei reina, mas não governa, mas esta tem, para ele, um significado ambíguo. É nesta ambiguidade que se sustenta a sua afirmação da teologia política como uma defesa da autoridade. Por um lado, para Schmitt, a fórmula o rei reina, mas não governa pode ser expressão de uma forma política bem ordenada, na qual uma autoridade é reconhecida como a representação soberana de uma ordem por ela salvaguardada. É por isso que a soberania se define pela relação com o estado de excepção. O que a caracteriza não é que governe ou intervenha quotidianamente no curso dos acontecimentos, mas que a sua não actuação quotidiana inclua a possibilidade de uma decisão e intervenção excepcionais. Em 1933, quando procura pensar a estrutura constitucional do Estado alemão no contexto da emergência do nazismo, Schmitt utiliza a fórmula para aludir a uma situação política em que o governo volta a ocupar o lugar do exercício quotidiano do poder, o exercício da potestas, que Schmitt designa então por condução (Führung), ficando reservada ao Presidente a auctoritas que garante a ordem e as instituições. Nessa época, na opinião de Schmitt (1933), a chegada de Hitler ao poder significava a superação da crise da República de Weimar – a qual tinha exigido a decisão excepcional, isto é, a intervenção do Presidente no plano do governo ou condução política – e a entrada num período de normalidade:

A situação anormal dos últimos anos do sistema de Weimar, na qual o Presidente do Reich estava constrangido a sair da peculiaridade do seu alto cargo e funcionar como substituto de uma condução política [politische Führung], foi agora eliminada. Ele regressou agora para uma espécie de posição “constitucional” de um Chefe de Estado autoritário, qui règne et ne gouverne pas. (SCHMITT, 1933, p. 9-10, tradução nossa)43.

No entanto, se esta fórmula pode assinalar uma situação política bem ordenada, ela pode evocar também, por outro lado, a situação de possível despolitização em que nenhuma instância esteja apta a decidir politicamente em nome da ordem. Numa tal situação, dizer o rei reina, mas não governa significa dizer que ninguém detém a auctoritas que lhe permita, se necessário, exercer extraordinariamente a potestas, evitando a ingovernabilidade e assegurando a condução política. Esta ausência da auctoritas origina-se da redução da política à administração, bem como da entrega do Estado à influência dos mais variados partidos e interesses. O resultado previsível da falta de auctoritas é a queda da população nas mãos manipuladoras de toda a sorte de agendas – religiosas, morais, económicas, sociais, doutrinárias, culturais, etc. – e a impotência do Estado diante de grupos que, através dele, pretendem determinar a totalidade da sua vida.

Face a esta distinção, a evocação por Peterson da fórmula o rei reina, mas não governa no contexto da descrição do Império Romano parece atribuir-lhe um terceiro sentido. Ela não alude nem a uma forma política bem ordenada, em que a autoridade soberana garante a ordem mas não intervém quotidianamente, nem a uma situação de crise e de despolitização, em que um Estado fraco se torna – para evocar a descrição por Schmitt da República de Weimar na véspera da chegada ao poder do nazismo – “[...] total por fraqueza e ausência de resistência, por incapacidade de fazer face ao assalto dos partidos e dos interesses organizados” (SCHMITT, 1988, p. 213, tradução nossa)44. Trata-se antes de descrever uma situação na qual o Estado politiza a religião. Peterson atribui implicitamente ao poder do Imperador uma dimensão tirânica, traduzida nesta politização. Seria desta que o cristianismo se teria tido de libertar. Por isso, a argumentação de Peterson contra a possibilidade de uma teologia política cristã é, no fundo, um discurso dirigido contra a auctoritas erigida à condição de um poder total que se apropria da religião, instrumentalizando-a e convertendo-a em legitimação do seu poder. É neste contexto que, para Peterson (1994), o cristianismo tem o sentido de uma rebelião metafísica e política. Tem-no porque nele se encerra uma resistência contra a pretensão de o determinar – e de determinar a vida humana na sua totalidade – a partir da política.

É da ideia de uma resistência da vida face à sua determinação pelo poder que, por outro lado, emerge o projecto de encontrar as raízes teológicas de uma política alternativa à política da auctoritas sustentada na teologia política. Tomando como indistintos auctoritas e poder totalitário, soberania e biopoder exercido sobre a vida nua, Agamben (2018) propõe- se pensar o fundamento teológico de uma nova política que se lhes contraponha. Se a política da soberania e da decisão, assente no paradigma da autoridade e do governo, se articula com a teologia política, uma nova política pensada contra este paradigma não pode deixar de ter no seu princípio uma teologia não subordinacionista. É para esta teologia que, segundo Agamben, conduz a doutrina da Trindade. À posição de Peterson de que a doutrina trinitária rompe os laços entre teologia e política, fazendo com que o verdadeiro cristianismo seja apolítico face à teologia política imperial do Império Romano, contrapõe Agamben a proposta daquilo a que chama teologia económica como uma teologia da libertação face à teologia política. Esta libertação assenta na recusa da soberania como consequência de um paradigma teológico subordinacionista e autoritário e na quebra da relação entre autoridade e acção. Do mesmo modo que, na Trindade, o Filho de Deus – a Palavra ou a Acção de Deus, o λόγος θεοῦ ou o Opus Dei – tem um princípio próprio na economia do Deus Trino, não podendo ser compreendido como subordinado, como tendo o seu princípio na monarquia de um único princípio sem princípio presente em Deus Pai, à maneira dos arianos, assim também o plano político da vida imanente deve estar entregue a leis próprias que desactivem a soberania e tornem a sua acção – a sua possibilidade de decidir ou governar – inoperante.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Será Agamben bem sucedido ao procurar na doutrina trinitária, numa incursão arqueológica, a raiz teológica de uma política contra a autoridade política? A resposta a esta questão depende sobretudo de uma confrontação entre a proposta da teologia económica e aquilo a que poderíamos chamar o sentido político da teologia política proposta por Schmitt. Ao contrário de Peterson, cuja análise se centra numa dicotomia excludente entre teologia e política, Agamben pensa a teologia económica como um explícito desafio político à teologia política. E é por isso que, ao criticar a posição de Peterson sob o argumento da ubiquidade do político, Schmitt consegue antecipar também o que será o sentido político da proposta de Agamben de pensar uma política fundamentada na inoperância da autoridade e no eclipse da sua possibilidade de decisão. Schmitt descreve-a, em Teologia Política, ao reflectir sobre as consequências políticas do deísmo.

Embora a expressão não apareça em 1922, o Deus deísta não é senão um monarca que reina, mas não governa. Contudo não é porque mede e modera a sua intervenção no mundo, manifestando-se de forma directa apenas excepcionalmente, num milagre que interrompa as leis naturais e seja testemunho de uma autoridade providencial, que um tal Deus não governa não. Noutros termos: ao contrário do que acontece com o Deus teísta, não é porque se remete a uma autoridade capaz de se diferenciar do governo, mas de nele intervir excepcionalmente quando necessário, que um tal Deus se afasta do governo do mundo. Pelo contrário: o Deus do deísmo não governa porque a sua autoridade é algo vazio e meramente formal, não estando de todo presente e abandonando o mundo ao seu curso imanente. É por essa razão que, na teologia política de Schmitt, o deísmo é a teologia da retirada ou subtracção de Deus. Na mesma linha, poder-se-ia dizer que a teologia económica proposta por Agamben é, face à teologia política enquanto base de uma autoridade capaz de agir e de exercer o seu poder quando necessário, a fundamentação teológica da destituição desta autoridade. É por isso que se poderia dizer que Schmitt afirma antecipadamente a teologia política diante da proposta da teologia económica enquanto afirmação da sua negação. Trata-se de afirmar, face aos projectos de desactivação da autoridade política, a necessidade da sua presença no curso da história.

Diante da sugestão de Peterson de que o verdadeiro cristianismo se caracteriza por já sempre subverter qualquer forma de teologia política, rebelando-se contra a autoridade e o governo, Schmitt encontra na teologia política imperial de Eusébio de Cesareia, na sua articulação entre Igreja e Império, a referência fundamental para pensar a relação entre cristianismo e poder. Para Schmitt (1996), Eusébio de Cesareia é o protótipo da teologia política. E é-o por uma razão simples. Ao elogiar Constantino no quadro da relação entre Cristianismo e Império Romano, Eusébio não defende que o imperador seja divinizado ou que a religião seja politizada e a teologia colocada ao serviço do poder. O que ele estabelece, no contexto dessa relação, é que a teologia não pode ser estranha ao mundo e à sua racionalidade, tal como Deus se relaciona providencialmente com a história e não fica à margem dela, indiferente e alheado. Se a Igreja se encontra no mundo, e deste mundo faz parte a política e o poder, a Igreja não pode refugiar-se numa esfera puramente teológica. Querer levá-la para tal esfera, separando um plano teológico puro de um plano político impuro, significa mover-se, tal como no entender de Schmitt acontece a Peterson, “[...] numa disjunção abstracta absoluta” (SCHMITT, 1996, p. 64-65, tradução nossa)45. A teologia económica de Agamben é, em última análise, o reconhecimento da impossibilidade desta disjunção. Daí que ela, tal como a teologia política, procure pensar o poder e a história. Mas se, procurando pensá-los, a teologia política defende a necessidade da autoridade na história, a teologia económica dirige-se a uma política que a negue. Para isso, inspira-se no messianismo de Walter Benjamin e na sua tentativa de pensar um poder divino que se constitua, face ao poder mítico da soberania e do direito, como sua negação e destruição.

Partindo da ambiguidade entre poder e violência que o uso do termo alemão Gewalt permite, Benjamin (1991) explora radicalmente a força destruidora de uma política dirigida contra a autoridade política, a força divina colocada contra os mitos nos quais o direito e as instituições políticas assentam:

Como em todos os âmbitos Deus se contrapõe ao mito, o poder divino contrapõe-se ao mítico. E ele designa o contrário dele em todos os aspectos. Se o poder mítico institui o direito, o divino aniquila-o, se aquele estabelece limites, este elimina-os sem limite, se o poder mítico é simultaneamente culpabilizante e pecador, o divino é desculpabilizante, se aquele ameaça, este bate, se aquele é sangrento, este é letal de modo não sangrento. (BENJAMIN, 1991, p. 199, tradução nossa).46

Inspirada na contraposição benjaminiana do poder divino ao poder mítico, a teologia económica tenta encontrar o espaço para uma política que nega o governo e a autoridade a que serve de base o paradigma da teologia política. Isso significa, para Agamben, tentar pensar a negação política desse paradigma, mas sem a violência revolucionária e destruidora que ainda inspirava a descrição de Benjamin do poder divino. A política da teologia económica adquire, por isso, um carácter essencialmente ambíguo. Por um lado, ela é intrinsecamente política e, nesse sentido, totalmente afastada da tentativa de Peterson de desligar radicalmente política e teologia. Por outro, ela não é propriamente revolucionária, mas tenta encontrar, nas leituras revolucionárias da história e nos despojos simbólicos da revolução, um paradigma teológico escondido que se possa manter como inspirador para desactivar autoridade e governo, bem como o paradigma teológico-político em que se baseiam. Na sua contraposição política à teologia política, a teologia económica culmina, por isso, na transformação da revolução, e da leitura revolucionária da história como luta de classes, numa política de desactivação e inoperosidade de toda a política. Como escreve Agamben (2018): “Na inoperosidade, a sociedade sem classes está já presente na sociedade capitalista, tal como, segundo Benjamin, as lascas do tempo messiânico estão já presentes na história em formas eventualmente infames e risíveis.” (AGAMBEN, 2018, p. 1105, tradução nossa)47.

Se a revolução concebera o tempo como progresso em direcção a um futuro que, no fim da história, lhe assegura o sentido definitivo, a teologia económica é marcada por uma visão messiânica da história na qual o tempo já não se projecta no futuro, mas situa-se no presente pensado como testemunho, presença e afirmação de um outro que é a sua negação e inversão. Tal como no messianismo de Benjamin o Messias não está no futuro, mas dá-se no presente como o seu fim e o seu outro, a teologia económica assenta não na projecção de um tempo futuro e final, mas na manifestação no tempo presente da sua inversão e destruição. Já não se trata, portanto, de pensar o fim revolucionário da história, mas a história a partir da sua destruição, da sua negação e do seu fim. Neste sentido, a teologia económica de Agamben procura pensar de forma não-cristã aquilo que é uma experiência messiânica cristã do tempo. Nesta experiência, o tempo com o qual a Igreja se confronta é um tempo peculiar, o tempo que decorre entre a encarnação de Cristo e a sua segunda e derradeira vinda. Agamben descreve-o como um tempo messiânico para o distinguir do apocalíptico. Se o tempo apocalíptico, tal como o revolucionário, se concentra no fim, o tempo cristão não é messiânico no sentido de uma espera pela vinda do Messias no futuro, mas pode ser assim descrito porque concebe o seu presente como a própria presença, a manifestação misteriosa e invisível, do fim que o inverte e o destrói. Nesse sentido, ele é um espaço de tempo que se abre entre a vinda do Messias, que já aconteceu, e o Dia do Juízo, ainda por vir. Para a Igreja, este “tempo do fim” antes do “fim do tempo” (AGAMBEN, 2000, p. 63) consiste num mistério cujo sentido é problemático: o mistério de um tempo desordenado, fora de ordem e sem lugar, porque subsequente ao próprio tempo consumado pela vinda do Messias.

Se a experiência messiânica da teologia económica, inspirada em Benjamin, procura desactivar a política presente, pensando um governo subtraído aos seus efeitos e uma autoridade presente sob a forma da sua inoperância e desautorização, a experiência cristã da história, a sua efectiva crença em Jesus como o Cristo, requer uma atitude diferente. Se Jesus é o Cristo, tal significa que a Revelação foi consumada e os tempos estão no fim. Por essa razão, a mensagem de Jesus centrou-se no anúncio da proximidade do Reino de Deus. O tempo que o precede, o tempo do fim antes do fim do tempo, não poderia deixar de ser constituído por uma desordem crescente, pela sua desagregação e pela emergência de um caos a que só uma autoridade se poderia contrapor. A desordem, como afirma São Paulo na Segunda Epístola aos Tessalonicenses (II Tes. 2, 7), a iniquidade, como frequentemente esta é traduzida (LOURENÇO, 2017, p. 391), precede e anuncia o fim e, antes dele, a chegada do Anticristo. Por isso, nos últimos tempos opera já, está já em acto (ἐνεργεῖται), o “mistério da anomia” (μυστήριον τῆς ἀνομίας). É este mistério que, numa perspectiva cristã, antecede o Dia da Ira, o último dia em que Deus julgará a humanidade, cindindo-a entre os eleitos e os que se perderão eternamente. O terror diante do Juízo Final de Deus, inapelável e definitivo, não poderia deixar de conduzir os cristãos, uma vez organizados em Igreja, a uma atitude ambivalente diante da representação desse Dia. Como escreve Hans Blumenberg (1999):

Se a comunidade originária ainda tinha chamado pela vinda do Senhor, a Igreja reza antes pro mora finis, pelo adiamento do fim. O conceito de história que, no máximo, se podia formar neste sentimento fundamental é o de um tempo de graça, não o de uma expectativa orientada para o futuro e ansiando por ali se consumar. Os acontecimentos finais tornam- se uma secreta manutenção de Deus diante da história, a qual põe menos a consciência humana diante da sua decisão de salvação do que serve de justificação a Deus para que não poupe os cristãos aos efeitos da sua ira em relação aos pagãos e, com isso, lhes imponha o preço pela continuidade implorada de um genus humanum que prossiga não cindido entre eleitos e condenados. (BLUMENBERG, 1999, p. 54, tradução nossa)48.

Diante do terror inspirado pela promessa de um Juízo derradeiro de Deus, definitivo e inapelável, a reflexão cristã sobre a história converte-se, de uma forma crescente, numa tentativa de encontrar o travão que se pode contrapor ao mistério da anomia que o precede e anuncia. Isso significa que, para uma experiência cristã do tempo histórico, a Igreja não pode deixar de se articular com aquilo a que São Paulo chama o κατέχων, a força misteriosa que abre um espaço de tempo entre a sua consumação e o seu fim definitivo. Diante do mistério da anomia, face ao terror suscitado pela manifestação crescente da desordem própria dos últimos dias, bem como do Dia da Ira que se lhes segue, o κατέχων – que, para a interpretação corrente iniciada por Tertuliano, seria o Império Romano – sustém o tempo histórico e trava ou detém, sem o parar nem eliminar, o curso crescentemente caótico da história rumo ao desfecho final. É a partir desta concepção especificamente cristã do tempo histórico que Schmitt encontra em Eusébio de Cesareia um teólogo racional que procura pensar o papel da política – da Igreja e do Império – na história. Trata-se, para ele, de um teólogo “[...] cujas concepções, particularmente a opinião sobre o Império Romano enquanto detentor do Anticristo, o Kat-Echon da Carta de São Paulo (II Tes. 2, 6), seria interessante conhecer mais exactamente.” (SCHMITT, 1996, p. 64, tradução nossa)49. Longe de ser um ideólogo fanático que procura fundamentar teologicamente o poder do Imperador romano, aquele a quem Schmitt chama o protótipo da teologia política é, afinal, o protótipo de um modo de pensar cristão sobre a história. Deste modo de pensar não pode deixar de fazer parte o apelo a um travão, a uma força conservadora cuja autoridade se anteponha à crescente onda avassaladora da desordem e do fanatismo. Encontrando em Eusébio de Cesareia o seu paradigma, a teologia política proposta por Schmitt assume-se não como a fundamentação irracional de um poder tirânico e absoluto, mas como uma forma racional de pensar a história a partir do pressuposto, essencialmente cristão, da sua irracionalidade crescente.

REFERÊNCIAS

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AGAMBEN, Giorgio. Iustitium. Stato di eccezione. In: Homo Sacer. Edizione integrale. Macerata: Quodlibet, 2018..

BENJAMIN, Walter. Zur Kritik der Gewalt. In: Gesammelte Schriften, Band 2-1. Frankfurt: Suhrkamp, 1991.

BLUMENBERG, Hans. Die Legitimität der Neuzeit. Frankfurt: Suhrkamp, 1999.

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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Werke, vol. XX. Berlin: Dietz Verlag, 1975.

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VILLACAÑAS, José Luís. Teología Política Imperial y Comunidad de Salvación Cristiana. Madrid: Trotta, 2016.

Notas

1 Alle prägnanten Begriffe der modernen Staatslehre sind säkularisierte theologische Begriffe.
2 […] apologia incondicional de sus valoraciones y supuestos políticos.
3 [...] Soziologie juristischer Begriffe [...].
4 [...] Soziologie des Souveränitätsbegriffes [...].
5 Es gibt keine Norm, die auf ein Chaos anwendbar wäre. Die Ordnung muß hergestellt sein, damit die Rechtsordnung einen Sinn hat.
6 Ist dieser Zustand eingetreten, so ist klar, daß der Staat bestehen bleibt, während das Recht zurücktritt. Weil der Ausnahmezustand immer noch etwas anderes ist als eine Anarchie und ein Chaos, besteht im juristischen Sinne immer noch eine Ordnung, wenn auch keine Rechtsordnung. Die Existenz des Staates bewährt hier eine zweifellose Überlegenheit über die Geltung der Rechtsnorm.
7 In verità, lo stato di eccezione non è né esterno né interno all’ordinamento giuridico e il problema della sua definizione concerne appunto una soglia, o una zona di indifferenza, in cui dentro e fuori non si escludono, ma s’indeterminano.
8 [...] ein Moment inhaltlicher Indifferenz [...].
9 [...] ein selbständiges determinierendes Moment.
10 Der Ausnahmezustand hat für die Jurisprudenz eine analoge Bedeutung wie das Wunder für die Theologie.
11 Zu dem Gottesbegriff des 17. und 18. Jahrhunderts gehört die Transzendenz Gottes gegenüber der Welt, wie eine Transzendenz des Souveräns gegenüber dem Staat zu seiner Staatsphilosophie gehört. Im 19. Jahrhundert wird in immer weirerer Ausdehnung alles von Immanenzvorstellungen beherrscht.
12 [...] der nicht weiß was er will.
13 Heute ist nichts moderner als der Kampf gegen das Politische. Amerikanische Finanzleeute, industrielle Techniker, marxistische Sozlalisten und anarcho-syndikalistische Revolutionäre vereinigen sich in der Forderung, daß die unsachliche Herrschaft der Politik über die Sachlichkeit des wirtschaftlichen Lebens beseitigt warden müsse. Es soll nur noch organisatorisch-technische und ökonomisch-soziologische Aufgaben, aber keine politischen Probleme mehr geben. Die heute herrschende Art ökonomisch-technischen Denkens vermag eine politische Idee gar nicht mehr zu perzipieren. Der moderne Staat scheint wirklich das geworden zu sein, was Max Weber in ihm sieht: ein großer Betrieb.
14 For it is the Unity of the Representer, not the Unity of the Represented, that maketh the Person One.
15 [...] den von Hofdamen verwöhnten Abbé neben dem irischen Franziskaner, der streikende Arbeiter zum Ausharren ermuntert.
16 [...] die letzten sozialpsychologischen Wurzeln menschlicher Motive und Vorstellungen.
17 [...] es scheint keinen Gegensatz zu geben, den sie nicht umfaßt.
18 Essa funziona precisamente separando ciò che dichiara unire e unificando ciò che divide [...].
19 [...] mediante la sottomissione di una parte al dominio dell’altra.
20 Sie will mit dem Staat in der besonderen Gemeinschaft leben, in der zwei Repräsentationen sich als Partner gegenüberstehen.
21 L’infallibilité dans l’ordre spirituel, et la souveraineté dans l’ordre temporel, sont deux mots parfaitement synonymes.
22 [...] preoccupazione degli imperatori romani di veder trionfare col cristianesimo l’intolleranza religiosa [...].
23 Les véritables causes des persecutions furent des raisons d’ordre social. Les Chrétiens apparurent aux classes cultivées de la société païenne comme, sous la Révolution, les Jacobins aux vieilles monarchies de l’Europe et, de nos jours, les Bolcheviks à nos societies capitalists: une engeance execrable formée de la ligue de tous les ennemis du genre humain; un ramas d’esclaves, d’indigents, de mécontents, de gens de rien et sans aveu, conspirant contre l’ordre établi, désertant le service militaire, fuyant les fonctions publiques, préconisant le célibat, maudissant la douceur de vivre, jetant l’anathème sur toute la culture païenne, prophétisant la fin du monde, malgré les augures qui prédisaient à Rome une destinée éternelle.
24 […] la più illimitata tolleranza in fatto di credenze, di riti e di opinioni filosofiche.
25 E soltanto l’unità della Roma cristiana fu quella violenta di una specie di tirannide ignorata del mondo antico, classico ed orientale: la tirannide dello spirito.
26 Per convers oil cristianesimo nel suo proselitismo fanatico, nella sua presunzione di essere la sola vera religione, nell’intollerenza cattolica che non si peritò di armare il braccio secolare per riuscire ad imporsi alle coscienze, nulla conobbe della libertà, del gran soffio del largo, nella parvenza del suo impero.
27 Wir können uns das Walten Gottes nach Art des Persischen Großkönigs denken. Der wohnt unsichtbar in seinem Palast, durch viele Vorzimmer getrennt, und ist umgeben von einem großen Hofstaat. Wie es unwürdig wäre anzunehmen, daß Xerxes selber alles verrichtet, noch unwürdiger wäre es, wenn man so etwas von Gott glauben wollte.
28 Nicht die Frage, ob e seine oder mehrere Gewalten [ἀρχαί] gibt, bestimmt hier das Bild von dem göttlichen Monarchen, sondern die Frage nach dem Anteil Gottes an den Mächten, die im Kosmos wirken.
29 Er stößt dann auf einen Begriff der politischen Theologie der Heiden, wonach der göttliche Monarch wohl herrschen, aber die nationalen Götter regieren müssen.
30 [...] die nationalen Götter könnten gar nicht regieren, da durch das Imperium Romanum der nationale Pluralismus aufgehoben worden sei.
31 In diesem Sinne wurde die Pax Augusta dann als die Erfüllung der alttestamentlichen eschatologischen Weissagungen gedeutet.
32 Il n’y avait plus de guerres lorsqu’il n’y avait plus de dieux, pas non plus de batailles dans les campagnes et dans les villes, comme auparavant, lorsque prévalait le culte des dieux, ni de flots de sang répandus parmi les hommes, comme lorsque la folie du polythéisme était au plus haut.
33 Die drei Begriffe: Imperium Romanum, Friede und Monotheismus, sind also unauflöslisch miteinander verknüpft. Abe rein viertes Moment tritt dann noch hinzu: die Monarchie des Römischen Kaisers. Der eine Monarch auf Erden – und das ist für Euseb nur Konstantin – korrespondiert dem einem göttlichen Monarchen im Himmel.
34 C’est pourquoi en vérité il n’y a qu’un seul Dieu, et non deux ou trois ou davantage encore (car à dire vrai le polythéisme est atheism), un seul roi, et de celui-ci un seul Logos et une seule loi royale.
35 Man begreift , daß es ein dringendes politisches Interesse war, das die Kaiser zunächst auf die Seite der Arianer trieb, und daß andrerseits die Arianer die Theologen des byzantinischen Hofes warden mußten.
36 Die orthodoxe Trinitätslehre bedrohte in der Tat die politische Theologie des Imperium Romanum.
37 Nur auf dem Boden des Judentums oder Heidentums kann es so etwas wie eine »politische Theologie« geben.
38 Tradução nossa: “Die Legende von der Erledigung jeder Politischen Theologie”.
39 […] den interessantesten Beitrag, den Peterson – vielleicht unbewußt – zur Politischen Theologie beigesteuert hat.
40 Das Christentum mußte dann als »Aufstand« in der metaphysischen wie in der politischen Ordnung offenbar warden, ganz wie das Celsus vorausgesagt hatte.
41 [...] una solidarietà più essenziale.
42 [...] convinti avversari della formula.
43 Aber die abnorme Lage der letzten Jahre des Weimarer Systems, in denen der Reichspräsident aus der Eigenart seines hohen Amtes herauszutreten und als Ersatz für eine politische Führung zu fungieren gezwungen war, ist jetzt entfallen. Er ist jetzt wieder in eine Art “konstitutioneller” Position eines autoritären Staatshauptes, “qui règne et ne gouverne pas”, zurückgekehrt.
44 Der heutige deutsche Staat ist total aus Schwäche und Widerstandslosigkeit, aus der Unfähigkeit heraus, dem Ansturm der Parteien und der organisierten Interessenten standzuhalten.
45 […] in einer abstrakt absoluten Disjunktion.
46 Wie in allen Bereichen dem Mythos Gott, so tritt der mythischen Gewalt die göttliche entgegen. Und zwar bezeichnet sie zu ihr der Gegensatz in allen Stücken. Ist die mythische Gewalt rechtsetzend, so die göttliche rechtsvernichtend, setzt jene Grenzen, so vernichtet diese grenzenlos, ist die mythische verschuldend und sühnend zugleich, so die göttliche entsühnend, ist jene drohend, so diese schlagend, jene blutig, so diese auf unblutige Weise letal.
47 Nell’inoperosità, la società senza classi è già presente nella società capitalistica, così come, secondo Benjamin, le schegge del tempo messianico sono presenti nella storia in forme eventualmente infami e risibili.
48 Hatte die Urgemeinde noch nach dem Kommen ihres Herrn gerufen, so bittet die Kirche alsbald pro mora finis, um Aufschub des Endes. Der Geschichtsbegriff, der sich in dieser Grundstimmung allenfalls herausbilden konnte, ist der einer Gnadenfrist, nicht einer in die Zukunft gerichteten und dort Erfüllung suchenden Erwartung. Die Endereignisse werden zu einem geheimen Vorbehalt Gottes gegenüber der Geschichte, der weniger das menschliche Bewußtsein vor seine Heilsentscheidung stellt, als vielmehr zur Rechtfertigung Gottes dafür dient, daß er die Christen vor den Wirkungen seines Zornes gegenüber den Heiden nicht verschont un ihnen damit den Preis für den erflehten Forbestand eines aus Erwählten un Verworfenen weiterhin ungeschieden genus humanum auferlegt.
49 Es wäre interessant, die Auffassungen des Eusebius genauer kennenzulernen und insbesondere Näheres über seine Meinung vom Römischen Imperium als dem Aufhalter des Antichrist, dem Kat-Echon des Paulus-Briefes (2. Thess. 2, 6) zu erfahren.


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