ARTIGOS

Recepción: 24 Agosto 2022
Aprobación: 04 Mayo 2023
Resumo: O presente artigo busca evidenciar a relação entre saúde mental e espiritualidade a partir da escrita de si em Etty Hillesum, jovem judia que viveu em Amsterdã entre os anos de 1940 e 1943. De uma pessoa inconstante e com muitos episódios de ansiedade e depressão, Etty Hillesum tornou-se bálsamo para as feridas de tantos homens e mulheres que eram perseguidos durante a ascensão nazista. Além da apurada incursão biográfica, esta pesquisa estuda a escrita de si –escrita em diários – como a catalisadora da espiritualidade desenvolvida por Etty Hillesum, espiritualidade que contrariava o descompasso humano que a rodeava. Inicialmente assumida como terapia, a escrita nos diários assume o lugar de encontro consigo e com Deus. Desta relação dual – eu e Deus - verte uma nova atitude diante da realidade, marcada pelo cuidado de si que transborda em cuidado para com o outro e para com o mundo. Diante das atuais crises humanitárias, refletir os modos pelos quais Etty Hillesum fez seu processo de integração em meio ao caos, parece um importante aporte à sociedade que busca cada dia mais cuidado terapêutico e espiritual.
Palavras-chave: Mística, Feminino, Espiritualidade Contemporânea.
Abstract: This paper aims to highlight the relationship between mental health and spirituality from the self-writing of Etty Hillesum, a young jewish woman who lived in Amsterdam between 1940 and 1943. From an unstable person with many episodes of anxiety and depression, Etty Hillesum became balm for the wounds of so many men and women who were persecuted during the Nazi rise. In addition to the accurate biographical incursion, this research studies self-writing – writing in diaries – as the catalyst for the spirituality developed by Etty Hillesum, a spirituality that contradicted the human imbalance that surrounded it. Initially assumed as therapy, writing in diaries takes the place of meeting with oneself and with God. From this dual relationship - me and God - pours a new attitude towards reality, marked by the care of the self that overflows in care for the other and for the world. In view of the current humanitarian crises, reflecting on the ways in which Etty Hillesum made her integration process in the midst of chaos seems to be an important contribution to society that seeks more therapeutic and spiritual care every day.
Keywords: Mystic, Feminine, Contemporary Spirituality.
Resumen: El presente artículo busca mostrar la relación entre salud mental y espiritualidad desde la escritura del Yo en Etty Hillesum, una joven judía que vivió en Ámsterdam entre los años 1940 y 1943. De una persona voluble y con muchos episodios de depresión y ansiedad, Etty Hillesum se convirtió en bálsamo para las heridas de tantos hombres y mujeres que eran perseguidos durante el ascenso nazi. Además de la precisa incursión biográfica, esta investigación estudia la escritura del Yo – escritura de diarios – como el catalizador de la espiritualidad desarrollada por Etty Hillesum, espiritualidad que contradecía el descompás humano que la rodeaba. Inicialmente asumida como terapia, el ejercicio de escribir en diarios asume el lugar de encuentro con uno mismo y con Dios. De esta relación doble – Dios e yo - arroja una nueva actitud hacia la realidad, marcada por el cuidado de sí mismo que se desborda en el cuidado de los demás y del mundo. Ante las crisis humanitarias actuales, reflejar las formas por las cuales Etty Hillesum hizo su proceso de integración em medio del caos, parece ser una importante contribución a la sociedad que busca respuestas, cada día más en la atención terapéutica y espiritual.
Palabras clave: Mística, Femenino, Espiritualidad contemporánea.
1 INTRODUÇÃO
Os acontecimentos perpetrados pela Segunda Guerra Mundial no ideário humano, geraram inúmeras expressões artísticas, culturais, literárias, cinematográficas e sociais. Até os dias atuais são muito apreciados os textos que trouxeram à luz o sofrimento e às dificuldades vividas pelos judeus em meio à perseguição nazista.
Diários, poemas, poesias e novelas foram ricamente compostos em meio ao arame farpado dos campos de concentração, dos guetos judaicos, dos esconderijos secretos, enfim, a literatura foi composta diante de todo o descompasso humano da guerra. Não sem razão, por partilharem de um mesmo solo do qual decorrem suas reflexões e, por que não, intuições; em 1984 foi proposta por Mary Gerhart (1984, p. 103) a seguinte indagação: seriam os Escritos do Holocausto um gênero literário?
A nomenclatura generalícia nunca foi acordada, entretanto, o levantamento desta questão esclarece o objeto analisado neste artigo. Pois neste ambiente bélico dos anos 1930 e 1940 foram concebidos muitos escritos dos gêneros textuais mais diversos e com diferenças profundas. O objeto de análise deste artigo, os escritos da judia Etty Hillesum (1914-1943) compõem este emaranhado de textos provenientes do Holocausto.
Contudo, os diários de Etty Hillesum resguardam em seu interior um projeto muito mais audacioso do que o da recordação pessoal e da narrativa de fatos cotidianos. O projeto que fundamenta o início da escrita dos diários em 1941 é uma profunda preocupação humana, cuja finalidade idealizada é o conhecimento de si e a conservação de um espaço interior para o desenvolvimento do ser.
O mencionado projeto audacioso principiado por Etty Hillesum está ancorado em sua própria realidade e história. Filha de um professor de línguas clássicas, Louis Hillesum e de uma foragida de um pogrom, a russa Rebecca Hillesum-Bernstein, Etty Hillesum é a única mulher entre seus dois irmãos, Jaap e Mischa Hillesum. É no seio desta família que cresceram três jovens propensos a dificuldades emocionais e relacionais.
Como a própria Etty Hillesum aponta em seus diários, seus pais foram demasiados libertinos na sua educação. Da extrema liberdade, Etty Hillesum adquire rapidamente a predisposição para a inconstância. Cursa direito, forma-se sem nenhum impulso ou desejo interior. Interessa-se pelas línguas eslavas e chega até mesmo a dar aulas particulares. Salta de uma realidade à outra, até chegar à casa de Han Wegerif em 1937. Será nesta residência que Etty Hillesum vivenciará o horror da perseguição antissemita.
Outro dado importante de sua biografia é o encontro com o psicoquirólogo Julius Spier. A partir das sessões terapêuticas realizadas com ele, Etty Hillesum iniciará um árduo processo de interiorização e de conscientização. O mundo em colapso que lhe envolve será gradativamente entendido a partir do turbilhão de forças que se movem em seu exterior e em seu interior. É justamente este processo de integração principiado pelo acompanhamento psicológico e continuado nas entranhas da vida espiritual que revela ao ser humano contemporâneo a proximidade entre saúde, neste caso mental, e espiritualidade. Ambas são interdependentes para alçar o humano em sua integralidade diante de cenários de crise, sejam bélicas, como nas grandes guerras, ou sanitárias, como na Pandemia da Covid-19.
Para delinear o processo pelo qual Etty Hillesum passou, este artigo estará composto por três seções. Na primeira analisar-se-ão as relações de Etty Hillesum com o povo alemão: seu trabalho no Conselho Judaico e sua estada no Campo de Trânsito de Westerbork. Estes três lugares serão apresentados numa linha cronológica como situações em que Etty Hillesum vivenciou o profundo dilema humano e espiritual de sua vida.
Num segundo momento, esta imersão situacional, será aprofundada a partir dos próprios relatos e orações de Etty Hillesum. Este segundo ponto do artigo pretende evidenciar a trajetória interior que a impulsionou e como sua figura forte em Westerbork nasceu do conhecimento de si expresso nos diários.
Por último, a terceira seção apresentará algumas reflexões sobre a experiência da escrita no itinerário espiritual da autora. A partir de suas próprias ideias sobre a escrita e do aporte de Maurice Blanchot, pensar-se-á a escrita de si como um oásis espiritual hodierno. Espaço e palco do desenvolvimento e esgotamento do ser que ao escrever se consome, ao mesmo tempo que ao se consumir, reconhece-se como ser.
2. NAS ENTRELINHAS DOS DIÁRIOS DE ETTY HILLESUM
Os diários de Etty Hillesum inserem o leitor numa realidade de história vivida, que como afirmado por Paul Ricoeur (1913-2005) “é tudo aquilo que passa aquém dessa decomposição [singularização da história] e dessa supressão [abstração generalizadora].” (RICOEUR, 1968, p. 79). O conteúdo expresso nas linhas e palavras relatadas por Hillesum procedem de um caminho existencial que aclara a espiritualidade vivida e experimentada por ela.
Um gênero textual como os diários, que concebem a escrita particular e recorrente de dados da própria vida e existência do autor, exigem de seu interlocutor - muitas vezes distante daquele no tempo e no espaço – iluminar as palavras a partir de uma profunda apropriação da biografia e do mundo circundante daquele que escreveu. Os acontecimentos sociais, familiares e econômicos de Etty Hillesum são o bojo da sua espiritualidade que, ao fazer-se letra e papel, possuem como linha e delimitação das páginas os fatos que lhe cercam e propiciam seu contato com o imediato da vida. Por isso, é necessário desbravar a vida da autora para acessar a espiritualidade e a mística que germinam das páginas de seus diários.
O contexto imediato na qual se desenrola o diário é aquele mencionado acima sobre o encontro de Etty Hillesum com o psicoquirólogo Julius Spier. Em seu primeiro escrito nos diários, Etty Hillesum, descreve esse encontro com estas palavras:
Fiquei muito impressionada com o trabalho dele: a análise dos meus conflitos mais profundos através da leitura do meu segundo rosto: as mãos. Houve um breve momento desagradável quando me distraí e pensei que ele se estava a referir aos meus pais: [contesta Spier] “Não, tudo isso é você: filosófica, dotada de intuição” e outras maravilhas que tais, “Você é tudo isso”. Disse-o do mesmo modo que se mete uma bolacha nas mãos de um miúdo. (HILLESUM, 2020, p. 60).
Durante os escritos de março de 1941 até julho de 1942, Julius Spier será o paradigma existencial de Etty Hillesum. A espiritualidade encarnada por ela desdobra-se do grande impacto ocasionado pela relação com Spier. Mesmo que posteriormente ambos tenham estreitado as relações no campo intelectual e na intimidade sexual, o imperativo do discipulado ante a personalidade de Julius Spier sempre esteve presente para Etty Hillesum.
Julius Spier fornece para Etty Hillesum inúmeros instrumentos para seu desenvolvimento espiritual. São dele as indicações para que Hillesum redija seus diários, tome tempo matinal para exercícios físicos, realize meditação cotidiana e trabalhe seu espaço interior. Além disso, Julius Spier aproximou Etty Hillesum de uma literatura que marcaria sua jornada espiritual: a Bíblia, de textos de Tomás de Kempis, Agostinho, Rilke e tantos outros autores espirituais.
Deste modo é necessário apontar para a importante presença de Julius Spier na vida de Etty Hillesum, pois como a própria autora escreve: “Desde que o conheço, estou a passar por um processo de amadurecimento com o qual nunca teria sonhado nesta idade” (HILLESUM, 2020, p. 87). Para além das imbricações sentimentais e amorosas que marcaram o relacionamento de ambos, o grande dilema que pressupõe esta análise é o binômio mestre e discípula encarnado por Spier e Hillesum no que se refere a vida interior. Como elucidado acima, Etty Hillesum recebia os ensinamentos de Julius Spier como sugere a imagem da criança que recebe bolachas do adulto.
Ainda nas entrelinhas dos Diários é imperioso evidenciar a relação de Etty Hillesum com o mundo circundante do seu tempo, este mundo, entenda-se: o povo alemão, o Conselho Judaico e o Campo de Westerbork. Estas relações foram gradativas e contemporâneas. No entanto, a assunção destes elementos por Etty Hillesum são as linhas nas quais assenta-se a espiritualidade de seus registros, por isso, faz-se indispensável averiguá-los com atenção.
Etty Hillesum, desde 1937, estava domiciliada na Gabriël Metsustraat, n° 6. Residia ali como governanta do senhor Han Wegerif. Nesta mesma casa residiam outras pessoas, além do filho do senhor Han, estavam também a senhora Käthe e outros dois hóspedes: Bernard Meylink e Maria Tuizing, amiga e confidente de Etty Hillesum. Com a ascensão nazista e a submissão neerlandesa, Etty Hillesum e todos os residentes daquela casa estavam em meio aos arrastos – conduções forçadas a transportes ou lugares segregados – e outras práticas de supressão da dignidade judaica realizadas em Amsterdã.
Sobre este período em específico, Etty Hillesum teceu uma apurada leitura das relações interpessoais de sua residência e de seu dever para com esta situação:
Nos últimos tempos tenho visto como uma tarefa conservar a harmonia nesta família, que contém tantos elementos contraditórios: uma alemã cristã de origens rurais [Kathë], que para mim é como se fosse uma querida segunda mãe; uma estudante judia de Amesterdão [Maria]; o velho e equilibrado social-democrata [Han], o pequeno-burguês Bernard, um homem de sentimentos puros e bastante inteligente, contudo limitado pelos conceitos da pequena burguesia onde nasceu; e o jovem estudante de Economia [Hans, filho de Han Wegerif], íntegro e bom cristão, cheio de delicadeza e compreensão, mas também com toda a combatividade e decência dos cristão de hoje em dia. Isto era e é um mundo em turbilhão, ameaçado pela política exterior de desintegração interna. Mas considero uma tarefa manter esta pequena comunidade junta, como povo contra todas estas teorias artificiais e forçadas sobre raça, povo, etc. Como prova de que a vida não se deixa prender num determinado esquema. (HILLESUM, 2020, p.70, grifo nosso).
A diversidade constituinte da rua Gabriël Metsu, n° 6, enfoca um problema social que se estendia por toda Amsterdã: a pluralidade de povos e relações. Nesta residência plural, muitas foram as ocasiões de dissensões ocasionadas pelo ódio contra as ações nazistas. Algumas vezes a cozinheira alemã, Kathë, acabava sendo vítima da cólera de seus companheiros que desejam o extermínio do povo alemão. É importante esclarecer que o medo e o ódio para com os alemães decorriam das constantes incursões contra os judeus em toda a Europa e que desde 1940 assolava a vida dos moradores de Amsterdã. Diante deste sentimento comunitário, Etty Hillesum relata uma postura diferente que começa a aflorar em si mesma, quando escreve:
Há umas semanas, me surgiu uma ideia libertadora, hesitante e frágil como um rebento de relva que começa a nascer num terreno bravio e rodeado de ervas daninhas: mesmo que só houvesse um alemão digno de ser protegido contra essa chusma bárbara, por causa desse alemão decente não se devia derramar o ódio sobre um povo inteiro. (HILLESUM, 2020, p. 69).
Esta anotação não morre sem ecos nos fatos e vivências da autora, pois se transfigura em ação e caridade para com um jovem oficial alemão da Gestapo que a ameaça em 25 de fevereiro de 1942. Nesta ocasião, Etty Hillesum acompanhava Julius Spier a uma apresentação obrigatória diante dos escritórios da Gestapo quando um jovem oficial rudemente a abordou e buscou impor-lhe medo. Ao passo que Etty Hillesum, diante de tal recordação, escreveu: “Talvez devesse ter ficado indignada ou amedrontada, mas o mais importante da manhã parece-me ter sido o facto de eu ter sentido uma compaixão sincera pelo rapaz [...]. O que mais me apeteceu foi começar logo ali com um tratamento psicológico” (HILLESUM, 2020, p. 173). A serenidade interior, construída ao longo deste ano que separa este acontecimento do início dos diários, foi capaz de mantê-la em sincronia diante do descompasso social reinante nas vias e canais de Amsterdã.
Aos 15 de julho de 1942, Etty Hillesum logrou um emprego no Conselho Judaico. Em linhas gerais, o Conselho Judaico intercedia junto às autoridades alemãs em prol dos judeus. Além disso, a partir de seus relatos é possível afirmar que o Conselho se ocupava da burocracia e documentação referente aos judeus deportados. O trabalho assumido inicialmente por Etty Hillesum é o de datilografar. Logo após o primeiro dia de trabalho, os diários guardam as seguintes anotações: “Amanhã desço ao inferno, preciso de descansar muito para aguentar o trabalho lá” (HILLESUM, 2020, p. 261).
No período em que Etty trabalhou no Conselho Judaico em Amsterdã, os judeus estavam proibidos de tomarem transportes públicos. Algumas ruas e muitíssimas lojas estampavam as placas: proibido para judeus. Não foram poucas as longas e dolorosas caminhadas empreendidas por ela para chegar a seu lugar de trabalho. Contudo, é a partir do Conselho Judaico que Etty Hillesum toma a decisão de ser transferida para Drente e trabalhar no Campo de Trânsito de Westerbork.
Muitas das vezes os relatos de Etty Hillesum são lidos a partir de uma superficial apreensão da biografia da autora. Forja-se uma escrita intrínseca ao período no Campo de Westerbork e ainda mais, borra-se a ideia de que inicialmente Etty Hillesum esteve em Westerbork como funcionária do Conselho Judaico e não como interna. Como funcionária do Conselho Judaico, Etty Hillesum esteve em Westerbork por três vezes: entre julho e agosto de 1942, novembro e dezembro de 1942 e junho e setembro de 1943. Deste último período não foram encontrados diários, no entanto, há evidências de que Etty os mantivera durante a permanência em Westerbork, como atesta a carta dirigida a Henny Tideman que diz: “Esta tarde, estava a descansar no meu catre e, de repente, senti a necessidade de escrever no meu diário umas palavrinhas que te vou enviar” (HILLESUM, 2009, p. 200).
As informações registradas e editadas sobre os períodos em que Etty Hillesum esteve em Westerbork são encontradas em suas correspondências, como no fragmento acima. Algumas cartas descrevem a vida cotidiana em Westerbork, outras são pedidos de alimento, outras ainda são a continuidade de diálogos travados entre ela, seus amigos e familiares.
As primeiras duas passagens de Etty Hillesum por Westerbork foram curtas e encerradas por causa de enfermidades que ela desenvolveu naquele período. Em seu primeiro retorno a Amsterdã em agosto de 1942, Etty Hillesum se deparou com a convalescência e morte de Julius Spier. Na segunda passagem por Westerbork, Etty evidencia uma mudança substancial no campo:
Em poucos meses, a população de Westerbork aumentou de mil para cerca de dez mil habitantes. O maior aumento data dos terríveis “dias de Outubro”, quando, após uma caça maciça aos judeus por todo o país, o campo foi varrido por uma enxurrada humana que quase ameaçou engoli-lo [...] De todas as necessidades do campo de concentração de Westerbork, a falta de espaço é, seguramente, a pior. (HILLESUM, 2009, p. 93).
Estas linhas são de dezembro de 1942, Etty Hillesum escreve-as desde Amsterdã. É o seu segundo regresso a casa por motivo de enfermidade. No entanto, algo curioso que perpassa todos os retornos de Etty Hillesum a Amsterdã é o seu desejo por voltar ao Campo de Westerbork. Em suas cartas e diários1 do período em que permaneceu em Amsterdã é possível averiguar certa angústia por não estar no campo. “Sinto-me compelida a voltar a esse ponto no meio da charneca para onde tantos destinos humanos foram atirados.” (HILLESUM, 2009, p. 48). Escreve Etty Hillesum à Osias Kormann.
A terceira passagem de Etty Hillesum por Westerbork é a mais longa, foram quatro meses. São inúmeras as situações que a distingue das outras duas. A degradação humana impera nos barracões de Westerbork. Desespero, angústia e medo são as regras que demarcam aquelas quatro linhas de arame farpado. Etty Hillesum, no entanto, em contrariedade com o descompasso emocional e psíquico que abala grande parte dos moradores de Westerbork, escreve: “estou feliz, Maria; hoje fiquei responsável por quatro barracões-hospital, um grande e três pequenos; tenho de verificar se as pessoas precisam de mantimentos ou de bagagens do exterior.” (HILLESUM, 2009, p. 123).
Neste período Etty Hillesum empreende serviços assistenciais e espirituais, além dos serviços como funcionária do Conselho Judaico. Seu desejo era o de auxiliar como possível para que as pessoas tivessem um espaço interior que lhes possibilitasse viver serenamente em Westerbork. Entretanto, no dia 21 de junho de 1943, Etty Hillesum viveu o dia mais difícil de sua vida, pois seus pais e seu irmão Mischa chegaram ao campo de Westerbork. Por trabalhar no Conselho Judaico e ter muitos amigos no campo, Etty logra “tornar-lhes a vida mais fácil no que toca a todo tipo de pequenos pormenores. [E ainda diz] Em breve terei que levá-los para os barracões grandes, que agora parecem um autêntico inferno.” (HILLESUM, 2009, p. 123).
Como campo de trânsito, Westerbork deportava semanalmente cerca de mil judeus para outros campos mais ao leste2. Eis o temido fim dos residentes de Westerbork, ter seu nome na lista dos que seriam transportados na terça-feira. Após a chegada da família Hillesum, Etty conseguira mantê-los fora desta lista por possuir carimbos que salvaguardavam os familiares dos funcionários do Conselho Judaico. No entanto, no dia 5 de julho de 1943, o Conselho Judaico foi dissolvido, fazendo com que Etty Hillesum perdesse as seguranças que garantiam os seus. A partir deste dia ela também passou a ser considerada uma interna no campo de concentração.
Uma carta de Etty Hillesum enviada no dia 8 de julho a Christine van Nooten revela a tensão gerada pela nova situação de insegurança e instabilidade: “Vivemos dias tensos e movimentados. O pai estava na lista de transporte. Conseguimos tirá-lo” (HILLESUM, 2009, p.171). Durante o período compreendido entre 5 de julho e 7 de setembro de 1943, dia da deportação da família Hillesum, Etty continuou desenvolvendo seu espaço interior. Numa carta enviada a Maria Tuizing, ela escreve: “Oh, Maria, o amor aqui é escasso, e eu própria sinto-me imensamente rica; não posso explicá-lo.” (HILLESUM, 2009, p. 190). Eis que no descompasso histórico e social no qual Etty Hillesum encontrava-se em Westerbork, na iminência de uma possível transferência para Auschwitz, ela continuou exercitando sua vida interior e seu relacionamento com Deus, caminho este que possibilitou a sua última afirmação convicta de serenidade e paz:
Abro a Bíblia ao acaso e eis que encontro: O Senhor é o meu alto refúgio. Estou sentada em cima da minha mochila, no meio de um vagão cheio. O pai, a mãe e Mischa estão uns vagões mais à frente. A partida acabou por chegar inesperadamente. [...] Deixamos o campo a cantar. (HILLESUM, 2009, p. 237)3.
Estas últimas palavras escritas por Etty Hillesum, juntamente com o testemunho de Jopie Vleeschhouwer, o qual afirma em carta que ela portava consigo seus diários, suas pequenas Bíblias e encarava aquela viagem com o bom humor e disposição que todos conheciam, são os últimos relatos sobre Etty Hillesum. Ela, por sua vez, foi assassinada em Auschwitz e teve sua morte comunicada pela Cruz Vermelha em 30 de novembro de 1943.
3. RELATOS, ORAÇÕES E CONFISSÕES: OS DIÁRIOS DE ETTY HILLESUM COMO EXPERIÊNCIA MÍSTICA
A detalhada apropriação histórica descrita revela os desdobramentos da vida espiritual de Etty Hillesum. Por debaixo da pele desta jovem judia, moviam-se com rebeldia moções, emoções e sentimentos que foram gradativamente assimilados pela prática da vida interior. Para compreender, Etty Hillesum cabe analisar a sua prática espiritual e esmiuçar os seus diários, baluartes da sua terapia e espiritualidade.
O primeiro período a ser visualizado está delimitado pelo início dos diários no dia 9 de março de 1941 e meados de agosto do mesmo ano. Neste primeiro recorte é pertinente dizer que a preocupação fundamental de seus escritos é o de apropriar-se de si mesma e desenvolver seu espaço interior. As mediações são dadas pela amizade de Spier e a concepção existencial que Etty Hillesum adquire contrasta com sua personalidade. Nesta primeira delimitação a escrita de si apresenta-se como um exercício pesaroso e complexo.
Vai ser um momento doloroso e difícil de ultrapassar para mim: confiar o meu ânimo reprimido a um insignificante pedaço de papel quadriculado. Os pensamentos são por vezes muito nítidos e claros na minha mente, os sentimentos extremamente profundos, é porém, difícil conseguir escrevê-los. (HILLESUM, 2020, p. 59).
As palavras escritas no seu primeiro relato revelam a difícil incursão iniciada, contudo, rapidamente Etty Hillesum se apropria da escrita para perscrutar a sua personalidade. Num curto espaço de tempo começa a inteirar-se de suas fragilidades e assumir uma postura de enfrentamento reflexivo e prático de suas inconsistências. Ao longo dos textos captam-se três ponderações que se sobressaltam: a indignação diante do erotismo e do desejo de possuir o belo; a admissão de expectativas excessivas e idealizações inconcebíveis para a sua própria vida e, por último, a constatação de uma vida desligada do presente, marcada pela antecipação e ansiedade. “Recusava-me a cumprir obrigações óbvias que tinha pela frente, recusava-me a subir ao encontro do futuro, degrau a degrau.” (HILLESUM, 2020, p. 78). Reflete Etty Hillesum sobre sua postura diante da vida.
A aceitação de sua personalidade só foi possível graças ao método empregado: exercícios físicos, silêncio, meditação, exame de consciência e a escrita nos diários. A espiritualidade de Etty Hillesum se desenvolveu sob um fundo metódico e disciplinado propiciado por uma profunda conversão evidenciada por Spier que diz: “Você não é assim tão caótica [...], a única coisa que você tem é aquela memória antiga em que achava que era muito mais genial ser caótica do que disciplinada. Eu acho-a sempre muito concentrada.” (HILLESUM, 2020, p. 97).
A assimilação de suas fragilidades e inconsistências possibilitou a Etty Hillesum adentrar num segundo nível de escrita de si, esta translucida e comprometida com a sua realidade pessoal e o mundo que se apresentava tão apático e hostil. Este nível mais profundo na escrita de Etty Hillesum pode ser evidenciado pelo relatado no dia 13 de agosto de 1941:
Por causa de todo este sofrimento à minha volta, uma pessoa começa a envergonhar-se de se levar, a si e a todos os seus estados de alma tão a sério, tem de permanecer ela própria o centro e aprender a conviver com tudo que se passa neste mundo, não deve fechar os olhos a coisa alguma, deve “entender-se” com esta época terrível e tentar encontrar resposta à quantidade de questões de vida e de morte que ela nos coloca. E talvez então encontre uma resposta a algumas destas questões, não apenas para si própria, mas também para os outros. A realidade é que vivo agora. Tenho de encarar tudo. E também não devo fugir de mim mesma. (HILLESUM, 2020, p. 108).
Desta apreensão de mundo e de seu posicionamento diante dele, Etty Hillesum fundamenta a postura que constituirá o elemento fulcral de sua vida: o cuidado pela interioridade. A partir deste ponto, a dura e penosa experiência de redigir textos em seus diários passa por uma marcante reavaliação, ao passo que Etty Hillesum escreve: “Uns dias atrás, ainda pensei: o pior para mim vai ser quando não me autorizarem mais a ter lápis e papel para me explicar a mim própria. Isso para mim é o que há de mais essencial, porque senão chega uma altura em que algo em mim rebenta e me destrói a partir de dentro.” (HILLESUM, 2020, p. 233).
O movimento evidenciado até aqui demonstra que Etty Hillesum passou da dificuldade para a escrita de si à essencialidade desta como condição de seu existir. É nítida a compreensão de que a mudança vivida por Etty Hillesum não é decorrente apenas dos seus diários, senão, de todos os elementos metódicos mencionados anteriormente. Entretanto, os diários podem ser considerados a âncora deste processo, haja vista que é neles e no constante retorno a seus próprios escritos que Etty Hillesum se reconhece inteira.
Na esteira desta percepção de si, há uma mudança interessante no interlocutor dos diários. Numa primeira leitura, esta mudança é pouco evidente e possivelmente o leitor menos atento não perceberá que Etty deixa de ter Spier como referência de seus escritos e passa a tecer um profundo diálogo com Deus. Em agosto de 1941, ela anota pela primeira vez essa intuição que será uma constante: “É como se de repente também tivesse mudado de atitude em relação a Spier. Como se me tivesse soltado dele de repelão, embora seja só imaginação eu pensar que me libertei dele.” (HILLESUM, 2020, p. 141). Neste mesmo dia Etty Hillesum faz uma instigante prece a Deus, quase como uma consagração de sua vida.
Deus, pega-me pela mão, acompanhar-te-ei bem-comportadamente, sem muita resistência. Não me desviarei de nada do que nesta vida vier de encontro a mim, tentarei integrar tudo em mim com as minhas melhores forças. Mas, dá-me de vez em quando um momento de sossego. Também não pensarei mais, na minha ingenuidade, que a paz, se ela vier, será eterna; hei-de aceitar igualmente o desassossego e a luta que hão-de vir outra vez. Gosto de me sentir abrigada e segura, mas não irei revoltar-me se for exposta ao relento, desde que seja pela Tua mão. Hei-de acompanhar-te sempre guiada pela tua mão e tentarei não ter medo. Hei-de tentar irradiar algo do amor, do verdadeiro amor ao próximo, que tenho dentro de mim, onde quer que eu esteja (HILLESUM, 2020, p. 141-142).
Nesta mudança de interlocutor, não há uma ruptura com Julius Spier, senão a que se opera justamente uma superação da relação enunciada outrora no binômio mestre e discípula. Etty Hillesum dialoga com Deus; Deus é aquele com o qual Spier sempre buscou com que ela dialogasse. Neste sentido, Spier cumpriu com primazia sua missão de ser o obstetra da alma de Etty Hillesum, pois, como intermediário entre Deus e Etty, instigou-lhe a uma adesão de fé4. Deste ponto em diante, concebe-se o segundo período do diário a ser analisado, entre agosto de 1941 e outubro de 1942.
O processo de escrita de Etty Hillesum torna-se cada vez mais espiritual. Em seus relatos ganha força uma completa identificação com o povo judeu, principalmente no que se refere a necessidade de compartilhar do mesmo destino e dos sofrimentos destes. Com a contínua ascensão nazista, Etty Hillesum compadece-se do seu povo e se identifica ainda mais com ele. É verdade que como judia, Etty também era privada dos transportes, de aceder a estabelecimentos com a placa proibido para judeus e outras inúmeras degradações dos seus direitos. Entretanto, o que se nota de particular é a forma como ela se assume como parte do povo judeu, outrora um fato menos destacado em sua vida5. “À medida que vai emergindo de um passado obscuro e caótico, Etty descobre-se crente, uma mulher ‘religiosa’, não no sentido institucional da palavra, mas no seu sentido mais radical. Uma mulher profundamente ligada a Deus e profundamente comprometida com seu povo.” (PINHO, 2014, p. 45).
Este movimento de fraternidade e pertença ganha muita nitidez quando se descobre que Etty Hillesum recebeu algumas propostas para deixar Amsterdã. Diante destas propostas, ela nega-se a fugir, afirmando que incorreria numa contradição interior. A assunção da realidade do povo judeu é um apelo interior muito peculiar que aponta para a superação da inconstância que outrora regia a vida e os relacionamentos de Etty Hillesum. No lugar da inconstância emerge um forte e decidido espírito orientado pela convicção de não poder fugir a realidade dos dias; de não querer abandonar o espaço de diálogo e interioridade com Deus que conquistara nos últimos meses. Em junho de 1942, pouco mais de um ano após o início de sua jornada interior, Etty Hillesum escreve: “Já morri mil mortes em mil campos de concentração.” (HILLESUM, 2020, p. 211).
Neste diálogo ininterrupto com Deus, Etty Hillesum vai assumindo sua vida cotidiana de maneira mais radical e profunda. A partir de julho de 1942 começa a trabalhar como datilógrafa no Conselho Judaico, como já foi dito. Outro passo decisivo de sua vida é o de se postular para ir ao Campo de Trânsito de Westerbork, assistir socialmente os internos. Estas duas experiências poderiam ser consideradas opressoras. Entretanto, como é possível constatar nos relatos de Etty Hillesum, esta opressão foi vencida pela sua vida interior.
Etty Hillesum nos primeiros dias de trabalho no Conselho Judaico em Amsterdã, o qual ela descrevera como um autêntico inferno, encontra uma missão específica para estar ali: “Espero ser um núcleo de serenidade naquele manicômio.” (HILLESUM, 2020, p. 261). Diante das ensurdecedoras batidas das máquinas e das pessoas andando pelos corredores do departamento, o que mais incomodava Etty Hillesum era a falta de tato humano: “É isso o que mais me deprime, notar que o sofrimento destes tempos não alargou o horizonte íntimo de quase nenhum daqueles com quem trabalho.” (HILLESUM, 2020, p. 267).
Fruto de seu itinerário espiritual, Etty Hillesum compreende que sua calma e serenidade na assimilação do caos que cercava o povo judeu era um bem valioso. É diante desta realidade que o seu relacionamento com Deus, o interlocutor de seus diários, se torna fonte de energias e amparo no cansaço. Etty Hillesum no seu dia a dia era oprimida como todos os judeus, no seu interior vivia uma grande vitória de seu espírito contra o opressor. Vitória esta que se manifestou também em Westerbork.
A vida interior de Etty Hillesum parecia-se a um diálogo perene com Deus, interrompido em pequenas pausas assinaladas nos pontos finais de suas obrigações cotidianas e rapidamente retomadas nas linhas que se seguiam em seus diários. Nessa imbricação cotidiana entre afazeres diários e escrita de si, Etty acaba adotando uma reflexão muito profunda em relação à responsabilidade humana diante de Deus. É a partir desta última etapa relatada em seus diários que se observa a concepção de Deus que Etty Hillesum construiu e a profundidade de sua experiência mística.
Deus em Etty Hillesum não pode ser entendido nem de maneira judaica e tampouco à luz da doutrina cristã; é um Deus pessoal encontrado a partir dos caminhos que ela tinha disponíveis: a sua tradição familiar e o testemunho de Spier. Deste modo, Deus em Etty Hillesum possui um entendimento particular. Um conceito interessante que surge nos Diários é o de Deus Criador, quando Etty diz: “Eu encaro o teu mundo olhos nos olhos, Deus, e não me refugio da realidade em sonhos belos – estou convencida de que há espaço para sonhos formosos, em paralelo à realidade mais cruel – e, apesar de tudo, continuo a louvar a tua criação, Deus! (HILLESUM, 2020, p. 186).
Esta concepção comum ao judaísmo e ao cristianismo é admitida de maneira categórica por Etty Hillesum. Constitui o alicerce de sua espiritualidade. A criação é um dom de Deus, no entanto, o mundo experimentado pela autora não é o fenomênico e belo descrito nos primeiros capítulos do livro de Gênesis. O mundo encarado olhos nos olhos é o das bombas, das mortes e da guerra. A imagem madura que Etty Hillesum tem de Deus também lhe possibilita atribuir a responsabilidade humana por este mundo, quando ela escreve:
Estou pronta para tudo, para cada local deste mundo para onde Deus me enviar, e estou pronta a testemunhar sob qualquer circunstância e até à morte que esta vida é bela e prenhe de sentido, e que não é culpa de Deus as coisas serem actualmente como são, mas culpa nossa. (HILLESUM, 2020, p. 242).
Etty se desvencilha com muita habilidade, se é que em algum momento foi envolvida por isso, de qualquer imagem de um Deus de milagres ou de soluções. Seu Deus, o Deus de seus diários e o Deus de sua vida é um mistério de alteridade e diálogo no qual ela se reconhece como pessoa e destrincha sua personalidade e missão.
Não obstante, seus diários resguardam outra experiência muito pessoal com Deus e que pode ser lida como o elemento catalisador de sua mística: a imagem do Deus carente. Tal compreensão de Deus é muito original e peculiar e aparece desta maneira em Etty Hillesum (2020, p.252):
Torna-se-me cada vez mais claro o seguinte: que tu não nos podes ajudar, que nós é que temos de te ajudar, e, ajudando-te, ajudamo-nos a nós próprios. E esta é a única coisa que podemos preservar nestes tempos e também a única que importa: uma parte de ti em nós, Deus. (HILLESUM, 2020, p.252)
Etty Hillesum reconhece Deus como fonte de sua vida, lugar privilegiado de sua espiritualidade, Criador e lugar de seu repouso. Diante da espiral de horrores e sofrimento, ela também reconhece a incapacidade de Deus em ajudar a humanidade. Tu não nos podes ajudar, tal sentença afirmativa configura a confissão de que a própria humanidade caminhou para um espaço no qual a ação de Deus é impossível. A Segunda Guerra Mundial e suas atrocidades são para Etty Hillesum a negação da experiência de Deus. Para que a relação com Deus seja recuperada cabe à humanidade ajudar Deus e ajudando-o reestabelecer a Criação.
Outro elemento importante destacado acima é a necessidade imperiosa de conservar uma parte de Deus dentro de cada um. Esta afirmação ecoa de outra imagem profunda descrita por Etty no início de seu Diário:
Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo. Imagino que há pessoas que rezam com os olhos apontados ao céu. Esses procuram Deus fora de si. Há igualmente pessoas que curvam profundamente a cabeça e a escondem nas mãos, penso que essas procuram Deus dentro de si. (HILLESUM, 2020, p. 112).
A concepção de Deus dentro de si é muito importante para Etty Hillesum e ilumina a imagem do Deus carente. Deus é uma realidade a ser encontrada no íntimo do ser humano. Deste encontro procedem-se mudanças e uma profunda reavaliação da vida e do mundo. A espiritualidade de Etty Hillesum acontece a partir do reconhecimento das próprias limitações pessoais, sejam psicológicas ou materiais, estas são as pedras e os cascalhos do poço que soterram Deus, ou ainda como afirmam Zimmermann e Bahia (2020, p. 273): “O autoconhecimento em Etty era um grande desafio, indo na contramão da história ocidental hegemônica que apresentava valores e movimentos centrípetos como a competitividade, a produtividade, o consumismo e a centralidade no mundo egóico”. Assimiladas estas limitações, por meio da aceitação de si, a humanidade, assim como na própria trajetória de Etty Hillesum, encontra-se com a vida que é simbolizada pelo poço no qual está Deus.
A evocação desta citação confirma que a experiência mística constatada em Etty Hillesum se evidencia num movimento contrário ao de sua sociedade. As ebulições sociais que marcavam a vida holandesa, a perseguição nazista e a falta de sentido proporcionaram um cenário de grande descompasso humano. Neste ambiente caótico e inóspito, é a partir de dentro, do interior de seu próprio ser, que Etty Hillesum sincroniza suas ações e pensamentos a partir da realidade do Sagrado. É somente alicerçada neste movimento que ela não se deixou engolir pelas ferozes iniquidades humanas que lhe cercavam. É graças a esta experiência de sincronia em Deus que Etty Hillesum floresceu como um jardim de amor vivo e frutífero diante da assolada terra dos sofrimentos humanos que eram vislumbradas nos campos de concentração e nas ruas das cidades tomadas pela guerra.
4. NAS RETICÊNCIAS DO PORVIR: AS PALAVRAS NÃO ESCRITAS
Nas seções anteriores foram contempladas as questões relativas à vida de Etty Hillesum em suas entrelinhas e os textos que revelam seu percurso espiritual. Nesta seção objetiva-se refletir sobre a escrita de si, encontrada no gênero textual diário, em sua pungência espiritual, bem como analisar algumas reflexões da própria autora sobre o exercício da escrita e a própria escrita como lugar do desenvolvimento da saúde mental e da vida espiritual.
Os únicos documentos escritos herdados de Etty Hillesum são suas cartas e diários, além, é claro, do postal enviado à Christine van Nooten desde o vagão que tinha como destino Auschwitz. Com exceção das cartas e do postal que possuem destinatários, o gênero diário não tem a pretensão de ser publicado ou lido por outras pessoas. Em alguns momentos dos escritos de Etty Hillesum subsiste uma ideia de que esses textos possuem uma importância muito maior do que normalmente se concebe nos diários. Para Etty Hillesum, os diários são uma importante fonte espiritual, como ela mesma diz: “Agora vou continuar a ler os meus velhos diários. Afinal não os vou rasgar. Pode ser que mais tarde me ajudem a restabelecer o contacto comigo mesma.” (HILLESUM, 2020, p. 277).
Além de refletir sobre a importância do diário para si mesma no exercício da escrita, Etty Hillesum tece inúmeras reflexões sobre o próprio ato de escrever. Mormente, Etty Hillesum aborda o exercício da escrita a partir do seu desejo de ser escritora. Já no início de seus diários, ela apresenta a sua relação com a escrita como algo que lhe move por dentro.
Não sei o que fazer com este meu escrever. É tudo tão caótico ainda, e também não existe autoconfiança, ou melhor, a necessidade imperiosa de ter de fazer alguma coisa. Espero ainda um pouquinho, até tudo sair para fora por si próprio e tomar forma. Mas primeiro, preciso eu mesma achar a forma, a minha própria forma. (HILLESUM, 2020, p. 96).
No decorrer de seu processo de interiorização, do qual a escrita constitui uma importante ferramenta espiritual, Etty Hillesum compreende a importância do exercício da escrita num desabafo profundo e, por isso, anota estas palavras em seu diário: “Deixa-me ser patética a vontade, raios, escrever tudo exatamente como sinto por dentro, se puser cá fora todo esse páthos e exagero, pode ser que descubra o meu eu” (HILLESUM, 2020, p. 98). A forma intentada parece ter sido encontrada: escrever tudo exatamente como sentia por dentro. Existe nesta segunda compreensão uma superação da anterior, não no que se refere ao fato de Etty Hillesum estar apinhada por este desejo de escrever, senão na compreensão de que a manifestação de sua escrita se desdobra na descoberta do próprio eu.
A descoberta do próprio eu mediada pela escrita revela um modo de escrever que não pode ser compreendido como pura manualidade e capacidade humana, senão que compõe uma escrita muito mais intrínseca ao próprio ser. Neste sentido, delimita-se uma diferença axial para os relatos de Etty Hillesum, pois estes figuram numa perspectiva de escrita específica, que pode ser introduzida pela diferença entre a escrita de si e uma escrita, denominada por Leila Machado, como higiênica:
Essa escrita é “do quê”? Essa escrita é “como”? Essa escrita é “para que”? Pode-se, podemos, posso fazer uma escrita “higiênica”, uma escrita neutra e distante acerca de alguma coisa. Escrita de um objeto separado e distinto de um sujeito. Nesse caso, “eu” ou “nós” ou “se” são apenas figuras de linguagem que denotam a originalidade e competência de um “eu” autor ou uma certa humildade do mesmo ou um apagamento de qualquer rastro de singularidade no discurso. No entanto, esse tipo de texto carrega muito pouco de uma potência de transformação. Por que? Talvez porque não haja paixão. A razão no estilo cartesiano assegura métodos de pesquisa e, por conseguinte, também de escrita assépticos e tristes. São todos aqueles textos que nossos olhos percorrem por obrigação e que pouco depois esquecemos. São textos que não nos tiram do lugar, que não nos provocam, ou agradam ou desagradam, ou nos trazem alguma ideia ou nos deixam alguma indagação (MACHADO, 2004, p. 147).
Os diários de Etty Hillesum não comungam desta concepção asséptica de escrita. Seu conteúdo é existencial e marcado pela própria vida. É na externalização da escrita do páthos e do exagero que ela encontra o seu próprio eu. Mediante o exercício da escrita, Etty Hillesum transforma sua personalidade insegura e inconstante numa fonte de vida confiante e marcada pela capacidade de manter-se sã diante dos descalabros do antissemitismo.
Por esta razão, os textos de Etty Hillesum se aproximam da compreensão de Maurice Blanchot (1907 - 2003) em sua análise dos diários íntimos na obra: O livro por vir. Nesta obra, Blanchot analisa os diários em relação a alguns escritores, seu julgamento não é positivo, avaliando que os diários são uma grande armadilha para aquele que anseia escrever. No entanto, sua reflexão é bem pertinente para o caso analisado, para ele: “escreve- se para salvar a escrita, para salvar sua vida pela escrita, para salvar seu pequeno eu [...] ou para salvar seu grande eu, dando-lhe um pouco de ar, e então se escreve para não se perder na pobreza dos dias.” (BLANCHOT, 2005, p. 274).
A escrita em diários é, para Etty Hillesum, a âncora de seu empreendimento espiritual. O eixo que sustenta o exercício da escrita é a sinceridade do cotidiano. Também Blanchot diz:
A sinceridade representa, para o diário, a exigência que ele deve atingir, mas não deve ultrapassar. Ninguém deve ser mais sincero do que o autor de um diário, e a sinceridade é a transparência que lhe permite não lançar sombras sobre a existência confinada de cada dia, à qual ele limita o cuidado da escrita. (BLANCHOT, 2005, p. 271).
Esta mesma sinceridade, ou análise real dos fatos, é o que auxilia Etty Hillesum na superação das infrutíferas preocupações com o futuro e idealização fantasiosa de si mesma. Diante de tal constatação, é possível afirmar que a escrita em diários, limitada à sinceridade do cotidiano, tenha possibilitado a Etty Hillesum a apreensão humana dos fatos que marcaram sua vida. A escrita obrigava-a a contemplar a realidade da perseguição nazista, da pouca humanidade expressa nas relações vigentes, do empobrecimento cultural conjuntamente com as suas próprias inconsistências, sem se arrogar o direito de juíza, senão, colocando-se como parte no emaranhado de sua realidade.
Por sua vez, os diários também apresentam outra experiência convergente nos textos de Etty Hillesum e Maurice Blanchot: a experiência do indizível. Em Maurice Blanchot o indizível é uma característica negativa atrelada ao diário e constatada na vida de autores que se desdobraram sobre a escrita de diários e na síntese de suas vidas reconheceram que justamente o fato de ter diários os tornariam incapazes ou estéreis para o exercício da escrita narrativa. O indizível aqui se apresenta como o que não foi escrito por ter sido suplantado pela escrita em diários.
Já para Etty Hillesum o indizível também a persegue no seu desejo de ser escritora, pois ela mesma escreve, “passa-se algo bastante cômico comigo: poderia escrever capítulos inteiros sobre como gostaria de escrever na realidade, e é bem possível que para além de receitas nunca consiga por uma letra no papel.” (HILLESUM, 2020, p. 191). Etty Hillesum sublinha seu desejo de ser escritora, no entanto, também se torna consciente da limitação das palavras, quando diz: “as palavras nunca te poderão conter inteiramente. O mundo e o céu que Deus criou são tão vastos.” (HILLESUM, 2020, p. 130).
De ambas as reflexões sobre o diário e o indizível apreende-se algo muito importante: analisando o que Blanchot reflete, entende-se que o diário não pode ser tomado como uma obra literária pública ou como um produto do escritor. O diário não respeita as regras do mercado literário e do mundo técnico, seu estatuto é outro, pertencente ao núcleo fundamental da experiência humana, o ser enquanto homo viator¸ caminheiro da existência (MARCEL, 2005). Mesmo que essa não seja a conclusão do próprio Maurice Blanchot na obra citada, é uma conclusão possível a partir da contribuição de Etty Hillesum que se escrevendo em seus diários logrou ser também escritora, como no relato de julho de 1942 que diz: “Serei mais tarde a cronista das nossas vicissitudes. Forjarei uma nova linguagem em mim e guardá-la-ei se não tiver a oportunidade de escrever alguma coisa.” (HILLESUM, 2020, p. 276).
Etty Hillesum, consciente da limitação das palavras diante de Deus, consegue exprimir em suas anotações cotidianas a profunda experiência espiritual que viveu ao lado do descompasso humano. Suas páginas compreendem um itinerário espiritual particular, que nem por isso, deixou de ser também uma obra literária pública. No interior de sua grande aflição por não conseguir escrever um livro, Etty Hillesum compõe sua obra-prima. Seus diários são o relato do indizível que se manifesta em suas linhas mais íntimas. É no esgotamento de si mesma enquanto cronista de seus diários que Etty Hillesum relaciona-se com Deus e torna-se escritora.
Como escritora, Etty Hillesum também concebeu uma obra que não foi possível concatenar em palavras, linhas e cadernos. A experiência de sua vida levou-a a conceber uma preocupação com o futuro e o pós-guerra que não pôde ser concretizada por conta de sua morte prematura. São as reticências do porvir, ou seja, o que a sociedade humana ainda poderia construir sob os escombros daquela experiência, que amparam o sonho de Etty Hillesum. Ela já vislumbrava o fim da guerra e diante desta iminente realidade que meditava interiormente, compreendia também que a humanidade teria uma profunda missão proveniente daquela catástrofe.
A compreensão das palavras inauditas de Etty Hillesum pode ser entendida a partir de alguns trechos de sua obra. Num primeiro momento, Etty Hillesum, reconhece-se portadora de um bem a ser compartilhado: “Sinto-me como o tabernáculo de um pedaço de vida preciosa, com toda a responsabilidade por ela. Sinto-me responsável pelo belo e grande sentimento por esta vida que tenho dentro de mim e que devo tentar encaminhar intacto através desta época, rumo a um tempo melhor” (HILLESUM, 2020, p. 264). Desta compreensão de portadora de uma mensagem que deve ser guardada diante das vicissitudes e dos acontecimentos, depreende-se outra importante compreensão espiritual de Etty Hillesum ao contemplar a missão humana após a guerra e o sofrimento, pois “se este sofrimento não levar a um alargamento de horizontes, a uma maior humanidade pela derrocada de todas as mesquinhices e superfluidades desta vida, nesse caso foi em vão.” (HILLESUM, 2020, p. 270).
A consciência de sua nova capacidade de delinear os contornos da alma humana a partir do contato com o Criador, ou a imagem de Deus à qual Etty Hillesum acessou, leva-a a reconhecer-se como emissária desta experiência. A partir deste momento, Etty Hillesum compreende que deve ensinar os outros a se trabalhar e conquistar a serenidade interior. Impossibilitada de exercitar esta missão em clínicas psicológicas, ou em grupos religiosos, Etty Hillesum busca auxiliar os internos de Westerbork, para que estes, mesmo em meio ao sofrimento de um campo de concentração, possam cuidar de seu interior.
De sua experiência vital marcada pelo descompasso de sua época, desabrochou, de sua escrita e meditação, uma mulher empoderada e disposta a tornar-se mediadora desta mesma experiência para as demais pessoas. Por isso, é possível reconhecer nas palavras de Etty Hillesum a grande compreensão que lhe permitiu delinear as linhas de sua história vivida e colocar-se diante dela com coragem, para transformá-la ali onde era possível, pois:
A maldade dos outros também está dentro de nós, continuei eu a pregar. E não vejo outra solução, não vejo mesmo outra solução que não seja voltar ao seu próprio centro e daí erradicar toda a maldade. Já não acredito que possamos melhorar alguma coisa no mundo exterior sem nos melhorarmos a nós mesmos. E essa parece-me ser a única lição desta guerra, termos aprendido a procurar somente dentro de nós e em mais nenhuma parte. (HILLESUM, 2020, p. 170).
Desta forma, é possível alinhavar que a experiência da escrita em Etty Hillesum é um fator preponderante na sua mística. Desde a adesão aos diários até a incapacidade de escrever, sua jornada em busca de si, se constitui como reintegração do ser. A profunda experiência psicológica realizada por Etty Hillesum fez com que sua personalidade abalada pelos fatores congênitos de predisposição a psicopatologias fosse forjada a partir do reconhecimento de si. A escrita neste cenário tornou-se um exercício terapêutico. Entretanto, posteriormente assumida como realidade espiritual, a escrita tornou-se também religação íntima com Deus.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do cenário atual de descompasso e intranquilidade gerado pela degradação da vida humana, pelas guerras e pelo findar gradativo da Pandemia, a experiência mística e secular de Etty Hillesum vem como bálsamo para milhares de pessoas que não se encontram nas religiões institucionais e buscam entender-se a si mesmas.
A vida de Etty Hillesum corrobora a afirmação de Maria Clara Bingemer quando esta afirma que “em uma era secular, em que os vestígios de Deus são quase invisíveis e as religiões parecem tomar uma forma nebulosa e algo vaga, as experiências místicas continuam a acontecer.” (BINGEMER, 2018, p. 83). O processo pelo qual Etty Hillesum desenvolveu sua vida interior a partir de um consultório psicológico e não de um templo, faz com que uma vez mais se reflita a questão da espiritualidade secularizada. O entrelaçamento entre exercício terapêutico e espiritualidade parece ser muito propício para uma sociedade marcada pela pouca interioridade e pela massiva exposição a problemas exteriores.
Tendo em vista o conteúdo exposto no artigo, é possível concluir que o exercício da escrita de si se constitui como uma profunda ferramenta terapêutica e espiritual. Neste mesmo sentido, cabe ao ser humano contemporâneo experimentar a sua realidade, para que sua reflexão interior não se converta em uma abstração alienada. A realidade, mesmo que caótica e problemática, é o solo fecundo da espiritualidade, como a própria Etty Hillesum diz em sua oração: “Estou grata por não me teres deixado ficar sossegada a esta secretaria, mas teres-me colocado no meio do sofrimento e das relações desta época.” (HILLESUM, 2020, p. 266). O binômio saúde e espiritualidade, assim como em Etty Hillesum, parece tornar-se o eixo fundamental do ser humano contemporâneo.
REFERÊNCIAS
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. Mais espiritualidade e menos religião. Revista Brasileira de Filosofia da Religião, [S. l.], v. 3, n. 1, p. 75–91, 2018. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/rbfr/article/view/14250, Acesso em: 24 ago. 2022.
CONGRESSO JUDAICO MUNDIAL. Qual era a função do campo de Westerbork nos Países Baixos? Disponível em: https://aboutholocaust.org/pt/facts/qual-era-a-funcao- do-campo-de-westerbork-nos-paises-baixos, Acesso em: 24 ago. 2022.
GERHART, Mary. Escritos do Holocausto: Um gênero literário? Concilium, Petrópolis, v. 195, n. 5, p. 103-110, 1984.
HILLESUM, Etty. Cartas 1941-1943. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.
HILLESUM, Etty. Diário 1941-1943. 3. ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2020.
MACHADO, Leila Domingues. O desafio ético da escrita. Psicologia & Sociedade, Porto Alegre, v. 16, n. 1, p. 146-150, 2004.
MARCEL, Gabriel. Homo Viator: Prolegómenos a uma metafísica de la esperanza. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2005.
PINHO, Teresa Cláudia Correia de. O acesso a Deus em Etty Hillesum. Orientador: Dr. Domingos Terra, 2014. 133 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Teologia, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2014.
RICOEUR, Paul. História e Verdade. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1968.
ZIMMERMANN, Tânia; BAHIA, Cristiano Anderson. "Escrita de si em Etty Hillesum: da condição feminina a experiência mística" TEOLITERARIA - Revista de Literaturas e Teologias, v. 21, n. 10, p. 262-281, 2020.
Notas