Resumo: A Sagrada Escritura é peculiar no tratamento do tema violência, afirma René Girard (1923-2015). Segundo ele os textos bíblicos defendem as vítimas e denunciam a violência sobre elas; diferente das mitologias que justificam a perseguição e condenação das vítimas. Na Bíblia, para Girard, Deus não é aliado da violência como mostram, de início, três textos do livro de Gênesis: Caim e Abel (4, 1-24), Sacrifício de Isaac (22, 1-19), e José do Egito (37-50). O objetivo deste artigo é apresentar a leitura girardiana destes textos bíblicos, que mostram o registro do assassinato fundador (Caim e Abel); o vestígio dos sacrifícios humanos (Sacrifício de Isaac) e as etapas do ciclo mimético da violência: perseguição e morte-expulsão da vítima (José do Egito). A metodologia adotada é a pesquisa bibliográfica a partir das obras de Girard que tratam sobre o tema da violência e sua interpretação bíblico-teológica, concernente aos textos citados do livro de Gênesis, com o auxílio de um comentador das obras de René Girard, dos verbetes de um dicionário bíblico e diretamente dos textos bíblicos. Concluímos que é fundamental aprofundar o conhecimento de como a Sagrada Escritura trata o tema da violência, determinante para a práxis cristã na atualidade.
Palavras-chave: Violência, Sagrada Escritura, Gênesis, Girard.
Abstract: Sacred Scripture is peculiar in the theme’s treatment of violence, according to René Girard (1923-2015) the biblical texts defend the victims and denounce the violence against them; different from the mythologies that justify the persecution and condemnation of victims. In the Bible, for Girard, God is not an ally of violence as shown, at first, by three texts from the book of Genesis: Cain and Abel (4, 1-24), Sacrifice of Isaac (22, 1-19), and Joseph of Egypt (37-50). This article presents the Girardian reading of these biblical texts, which show the record of the founding murder (Cain and Abel); the trace of human sacrifices (Sacrifice of Isaac) and the stages of the mimetic cycle of violence: persecution and death-expulsion of the victim (Joseph of Egypt). The methodology adopted is bibliographical based on Girard’s work that deal with the violence and its biblical-theological interpretation, concerning the texts from the book of Genesis, with the help of a commentator on the works of René Girard, the entries in a biblical dictionary and directly from the biblical texts. We conclude it is essential to deepen the knowledge of how Sacred Scripture deals with the violence, which is crucial for Christian praxis today.
Keywords: Violence, Holy Scripture, Genesis, Girard.
Resumen: La Sagrada Escritura es única al tratar el tema de la violencia, dice René Girard (1923-2015) que los textos bíblicos defienden a las víctimas y denuncian la violencia; diferente a las mitologías que justifican la persecución y condena de las víctimas. En la Biblia, para Girard, Dios no es un aliado de la violencia como lo muestran tres textos del libro del Génesis: Caín y Abel (4, 1-24), Sacrificio de Isaac (22, 1-19) y José de Egipto (37-50). El propósito es presentar la lectura girardiana de estos textos, que muestran el registro del asesinato fundador (Caín y Abel); la huella de los sacrificios humanos (Sacrificio de Isaac) y las etapas del ciclo mimético de la violencia: persecución y muerte- expulsión de la víctima (José de Egipto). La metodología adoptada es bibliográfica basada en las obras de Girard que abordan la violencia y su interpretación bíblico-teológica, en torno a los textos del libro del Génesis, con la ayuda de un comentarista de la obra de René Girard, de las entradas de un diccionario bíblico y directamente de los textos bíblicos. Concluimos que es fundamental profundizar en el conocimiento de cómo la Sagrada Escritura aborda la violencia, crucial para la praxis cristiana hoy.
Palabras clave: Violencia, Sagrada Escritura, Génesis, Girard.
ARTIGOS
A VIOLÊNCIA, SEGUNDO RENÉ GIRARD, NOS RELATOS DE CAIM E ABEL, SACRIFÍCIO DE ISAAC E JOSÉ DO EGITO
Violence, According to René Girard, in the Reports of Cain and Abel, Sacrifice of Isaac and José from Egypt
Violencia, Según René Girard, en los Informes de Caín y Abel, Sacrificio de Isaac y José de Egipto

Recepción: 28 Septiembre 2021
Aprobación: 23 Marzo 2023
O presente artigo tem por objetivo mostrar no livro de Gênesis, em Caim e Abel (Gn 4, 1-17), no Sacrifício de Isaac (Gn 22, 1-19) e em José do Egito (Gn 37-50), os elementos do Ciclo Mimético da Violência, na ótica de René Girard (1923-2015). O Ciclo Mimético da Violência é a estrutura da violência presente desde os grupos sociais primitivos1, os quais controlavam a violência dissimulando-a por meio do sacrifício de uma vítima. Para Girard, essa violência não é justificada, nem dissimulada nos autores bíblicos, pois na Sagrada Escritura há a defesa da vítima, e a rejeição da violência e dos sacrifícios humanos. Isto é possível verificar nos textos sobre Caim e Abel, que remetem ao assassinato fundador. No sacrifício não finalizado de Isaac, podemos ver a rejeição às religiões arcaicas, caracterizadas pelos sacrifícios humanos. E na narrativa sobre José do Egito, veremos que estão presentes as etapas do ciclo mimético da violência quando José é reiteradamente culpabilizado. Mas, é também defendido e agraciado por Deus, e no desfecho do relato não há o triunfo da violência.
O Ciclo mimético da violência é parte da Teoria Mimética de René Girard (1923- 2015)2. Para este autor, os seres humanos aprendem a conduzir seus desejos por imitação (mimésis) do objeto do desejo do Outro. Por isso, o desejo humano tem seu locus (lugar) no Outro, e na medida que dois ou mais indivíduos desejam o mesmo objeto, esse desejo desperta admiração ou rivalidade entre as pessoas, suscitando espaço para a violência.
Girard expôs as bases da Teoria Mimética, primeiro, no livro Mentira romântica e verdade romanesca (1961)3 sob a ótica da crítica literária. Depois, na obra A violência e o sagrado (1972)4 ele mostra que o sagrado e a violência estão na base das sociedades. Esta constatação o autor infere a partir de um estudo etnológico sobre o comportamento dos grupos primitivos, nos quais a violência precisava ser controlada, quando ameaçava destruir o grupo. Essa violência ao se multiplicar era o sinal de uma crise mimética, a saber: atos de “violência de todos contra todos, que acabaria por aniquilar a comunidade, caso, [...], não se transformasse [...], em todos contra um, graças ao qual é refeita a unidade da comunidade” (GIRARD, 2012, p.48).
A violência de todos contra um, para Girard, era quando os grupos primitivos solucionavam suas disputas com o sacrifício de uma vítima, pela qual acreditavam alcançar a pacificação de seus conflitos. Essa pacificação ocorria porque sobre a vítima imolada eram lançadas a culpa das tensões que o grupo enfrentava; as vítimas eram normalmente: estrangeiros, prisioneiros, deficientes etc. Estas vítimas eram responsabilizadas por algum mal dentro do grupo, mas depois do sacrifício elas eram sacralizadas, porque a tensão violenta grupal se apaziguava, arrefecendo-se os ímpetos vingativos. Para a vítima, sacrificada, era atribuída a harmonização das relações entre os membros do grupo, ocorria assim para eles uma epifania divina e por isso a vítima tornava-se sagrada.
A sacralização das vítimas nos textos mitológicos, segundo Girard é o ponto central dessas narrativas. Para a vítima ser sacrificada ou expulsa da comunidade ela precisava ser culpabilizada pelos males do grupo; mesmo que a noção de perseguição fosse ausente5 ou seja, “a noção de violência sempre é aureolada pelo sagrado” (GIRARD, 2008, p.163). De outro modo, nos textos persecutórios é consciente a culpabilização das vítimas justamente porque a perseguição e a culpa se sobressaem, e a sacralização é mínima, ou inexistente.6
Para Girard os registros sobre sagrado e a violência são a memória das origens da cultura, e cada rito sacrificial é a recordação dessas origens. E para o estudo dos grupos primitivos, os mitos em geral e os textos bíblico o autor utiliza o método comparativo que interpreta aquilo que as culturas têm de semelhante 7. Deste modo, os textos da mitologia são o testemunho de algo que aconteceu na fundação de uma cultura: o assassinato fundador. Os ritos sacrificiais encenam esse ato primeiro de imolação, e repetem ritualmente o assassinato fundador, como um momento que marcou o início de um grupo, de um culto, ou de uma forma de conduzir uma sociedade.
O assassinato fundador, de caráter coletivo, é o fundamento das proibições e rituais, e estes engendram os sistemas culturais; as culturas fundadas sobre o assassinato fundador são sustentadas, no contexto das sociedades primitivas, pelos ritos sacrificiais e pelos mecanismos de vitimização, cuja figura central é a vítima expiatória, ou os bodes expiatórios.8 Os mecanismos vitimários, as vítimas e os ciclos miméticos de violência diferente da mitologia em geral, para Girard, são tratados de outra maneira pelas Escrituras Judaico-cristãs, visto que para ele a Bíblia é peculiar no tratamento da violência, nela as vítimas são inocentadas e a violência não é dissimulada, mas denunciada. E para Girard, os textos bíblicos não estão estruturados no sentido de sacralizar as vítimas, como estão os textos mitológicos.
Girard no livro Coisas ocultas desde a fundação do mundo (1978), reflete sistematicamente sobre a Sagrada Escritura na segunda parte da obra: Escritura Judaico-Cristã. E a sua chave de leitura e interpretação da Bíblia é a figura da vítima. Com isto ele contribui na análise hermenêutica de muitos textos bíblicos com a visão de uma antropologia fundamental, propondo uma teoria sobre a cultura, e afirmando que há um princípio comum na maioria dos modelos culturais: o sacrifício de uma vítima. E centraliza seus argumentos no que considera o elemento central das civilizações: a violência, sendo essa uma ação fundante junto com o sagrado, na prática dos rituais de sacrifício.
Girard dedicou-se a análise de textos bíblicos sob a perspectiva dos ciclos miméticos de violência no livro Coisas ocultas desde a fundação do mundo (1978), o qual “aparece como a culminação de um sistema coerente que integra uma teoria psicológica do desejo, uma teoria antropológica sobre as origens culturais e uma filosofia cristã apologética” (ANDRADE, 2011, p.306). E desse momento em diante os escritos girardianos tem como foco o aprofundamento da defesa do cristianismo, como denúncia de toda forma de violência.
Neste sentido, a literatura bíblica é diferente das narrativas mitológicas, ela faz oposição à violência, ilumina os ciclos de violência, e não obscurece a violência como fazem os mitos, “No mito, as expulsões do herói são sempre justificadas. No relato bíblico elas nunca são. A violência coletiva é injustificável” (GIRARD, 2012, p.162). Deus, na Bíblia é defensor das vítimas, ele não exige vítimas para sua satisfação, e por isso não é uma divindade violenta. Ou seja, a divindade bíblica e a violência não estão juntas, e na Bíblia temos a revelação de um Deus (único) que não é daqueles deuses que são adorados por meio da violência coletiva, como afirma Girard: “O Deus único é aquele que censura aos homens sua violência e que se apieda de suas vítimas, aquele que substitui o sacrifício dos primogênitos pela imolação dos animais, e mais tarde critica até mesmo os sacrifícios animais” (GIRARD, 2012, p.175-176).
As Escrituras Sagradas da tradição judaica, para Girard, são questionadoras da sacralização das vítimas nos sacrifícios rituais aos moldes das sociedades primitivas, exemplificado no texto sobre o sacrifício de Isaac (Gn 22,1-19); mostrando que a violência recíproca ou unânime, é um desvirtuamento das relações humanas, pois o outro deve ser amado (Lv 19,18b) e não rivalizado, mesmo o estrangeiro dever ser respeitado, ele não pode ser objeto de violência (Ex 22,20). Iahweh é o Deus liberto do ciclo da violência, ele não é dependente dos ritos sacrificiais, e por isso o judaísmo foi desde o seu início a rejeição de produzir divindades, para as quais imola-se vítimas. Para a tradição judaica, sacrificar uma vítima não é parte integrante da compreensão de Deus, visto que Ele próprio rejeita os sacrifícios (Is 1, 10-20).
Deste modo, nos textos bíblicos, as vítimas não são sacralizadas como eram nas religiões primitivas; e confirma-se com isto outra forma de leitura dos textos bíblicos, na perspectiva girardiana, que é a defesa da vítima injustamente acusada, perseguida e condenada, atitudes estas que correspondem as etapas do ciclo mimético de violência. Portanto, uma diferença fundamental entre os textos mitológicos e bíblicos, é de que estes inocentam as vítimas e não justificam a violência sobre elas, nem a imolação ou expulsão, e a consequente sacralização das mesmas.
Os redatores bíblicos, essencialmente, perceberam e foram além do desconhecimento (méconnaissance) que funda a crença na culpa de uma vítima, e que por isso é sacrificada. Eles reproduzem, sim, nos textos bíblicos o ciclo mimético de violência, mas apontam para ele, deixam claro que a violência está presente, e por isso colocam a vítima em outra perspectiva: a da inocência, e não da culpa. Ou seja, a literatura bíblica também sofre do contágio mimético, mas não da dissimulação dele; aquilo que os mitos escondem, a Bíblia mostra, e assim ela permite ir além das ilusões persecutórias. Isto é mérito dos redatores bíblicos, entende Girard: “Eles fornecem, para fenômenos de massa bastante análogos aos dos mitos, tanto na Bíblia hebraica quanto na Paixão, representações exatas quanto ao essencial” (GIRARD, 2012, p.19).
E, o fato de as Sagradas Escrituras não dissimularem os ciclos de violência, como identifica Girard, significa que colocam luzes sobre a violência desvalorizando a sacralidade do mecanismo vitimário, e desautorizando a mitologia. O enfraquecimento da violência, é neste sentido o resultado dela ser apontada, identificada, explicitada e denunciada; denunciar a violência já é colocá-la em posição de derrota. A Bíblia, portanto, dessacraliza a violência quando a denúncia. Essa denúncia acontece pelo desnudamento do ciclo mimético da violência, que ocorre quando é identificada a culpa da coletividade na perseguição da vítima; o que equivale a dizer que é o grupo persecutório que tem culpa pela violência sobre a vítima, e não ela. E isto significa então, destruir a legitimidade da vingança e da ilusão purificadora da imolação.
Na perspectiva girardiana ao analisarmos uma cultura a partir das narrativas mitológicas, vemos que estas servem como dissimulação do assassinato fundador. A dinâmica da violência, que tem sua raiz no assassinato fundador, permite que simultaneamente os ciclos de violência existam e mantenham os mecanismos de vitimização, e que eles não sejam vistos. E neste caso as Sagradas Escrituras, começando pelo Antigo Testamento, são a primeira chamada de atenção para essa violência, e o Novo Testamento, em Jesus, é o enfrentamento as claras dos efeitos da violência cíclica.
O próprio Cristo, não é sacralizado ou divinizado por ter sido crucificado, mas ele é divino (Filho de Deus) antes da Cruz, de seu sacrifício, e a violência sobre ele é explicitada, e por isso denunciada. Nos Evangelhos, particularmente nos relatos da paixão de Cristo, Girard indica o repúdio ao equívoco persecutório, e a desautorização do ciclo de violência, bem como a rejeição da legitimação da culpa da vítima. E os relatos da ressurreição de Jesus, não se coadunam com a sacralização pós-imolação.9
A chave de leitura girardiana da Bíblia é a vítima submetida ao ciclo mimético de violência, ciclo este apontado pelos autores bíblicos, os quais insistem em mostrar que Deus não é uma divindade que justifica a violência, e mais ainda, é defensor das vítimas. É com esta chave que Girard irá ler os textos de Caim e Abel (Gn 4, 1-17), Sacrifício de Isaac (Gn 22, 1-19) e José do Egito (Gn 37-50).
O primeiro livro canônico da Bíblia é Gênesis, cujos textos introduzem a história do povo de Israel, com os temas da criação do mundo, alienação do homem e sua degeneração. O tema da promessa é apresentado com a história de Abraão, e a relação de Deus com os patriarcas é descrita em forma de pacto, um vínculo entre Deus e Israel. Gênesis, do grego, significa princípio ou origem. Primeiro dos cinco livros do pentateuco o texto de Gênesis está organizado nos seguintes temas: História primitiva (1, 1-11, 26) que descreve a Criação; Paraíso; Queda; Caim e Abel; Personagens pré-dilúvio; Gigantes; Dilúvio; Noé; Lista das nações; Torre de Babel e a Genealogia semita. E depois temos a História Patriarcal (12-50): Abraão e a chegada a Canaã; Isaac; Jacó e José do Egito (McKENZIE, 1983).
No Gênesis, já podemos identificar como as relações humanas conflituosas surgem na narrativa sobre Caim e Abel: Caim é o assassino de Abel, isso depois de o texto explicitar que Deus agradou-se da oferta de Abel, mas não se agradou da oferta de Caim, e este irritou- se e matou o irmão, mesmo Deus tendo conversado com ele (Gn 4, 4-8). Deus condena o que Caim fez e coloca uma marca sobre ele, e Caim depois disto torna-se um construtor de cidades, e temos assim a fundação da cultura cainita (Gn 4, 15b-17).
é a atribuição a Caim da primeira cultura que se situa claramente no prolongamento direto do assassinato, [...] Sua violência inspira aos assassinos um temor saudável. Ela os faz compreender a natureza contagiosa dos comportamentos miméticos e vislumbrar possibilidades desastrosas para o futuro: agora que matei meu irmão, diz Caim, “o primeiro que me encontrar me matará” (Gênesis 4, 14). [...] A palavra Caim designa a primeira comunidade reunida pelo primeiro assassinato fundador. Pois há assassinos potenciais e é preciso impedi-los de matar. [...] A fundação da cultura cainita é essa primeira lei contra o assassinato: [...] (GIRARD, 2012, p.129).
No relato sobre Caim e Abel já temos a separação entre Deus e a violência, pois ele a condena. O texto sobre o assassinato de Abel (Gn 4, 1-17) é para Girard uma demonstração da raiz da violência: o assassinato fundador, uma vez que Caim tornar-se-á fundador de cidades (v.17), ou seja, ele funda uma sociedade a partir de um assassinato. Mas, até afirmar isto o relato destaca que a violência não é aprovada por Deus; Ele repreende Caim (v.9-11) e coloca-se ao lado da vítima, Abel, ouvindo seu grito (v.10) e pune a Caim (v.11-12), contudo não multiplica a violência sobre este, e não deixa que a escalada da violência continue não permitindo assim que o assassinato fundador seja repetido, mas ao contrário, faz uma marca sobre Caim (v.15b) para que ele não seja morto. É o sinal, da parte da divindade, do fim da sacralização de qualquer ciclo de violência. Ciclo este que na história, tem seu registro nos sacrifícios humanos, como podemos verificar, ainda na própria literatura bíblica, quando vemos Deus a pedir que Abraão sacrifique Isaac (Gn 22, 1-19).
Outro texto que no livro de Gênesis indica, segundo Girard, a distinção entre Deus e a violência é Abraão levando Isaac, o seu filho, para ser sacrificado (Gn 22,1-19), mas o sacrifício não acontece segundo a narrativa. Ainda que, a imolação de Isaac não aconteça (v.12) um cordeiro é sacrificado no lugar dele (v.13), e assim podemos ver a permanência das etapas fundamentais dos ritos sacrificiais das religiões arcaicas (v.9 e 10) com a substituição vitimária de uma pessoa por um animal. Mas, importa nessa narrativa a mensagem do não sacrifício de Isaac pela interrupção da ação sacrificial na iminência de sua realização (v.10-12), e quem o interrompe é Deus, ensinando que Ele não exige o sacrifício de pessoas. A própria versão da Bíblia de Jerusalém traz uma exegese sobre o texto de Gênesis 22, 1-19, na linha da perspectiva apresentada.10 No Antigo Testamento continuou a existir a oferta de sacrifícios de animais, ainda que sob fortes críticas, principalmente dos profetas. Já no Novo Testamento, a partir de Jesus, somente o único e permanente sacrifício Dele por todas as vítimas, é agora a expiação única, completa e definitiva.
Todavia, a defesa da vítima e a ausência do rito de imolação sacrificial temos desde o primeiro livro canônico da Bíblia, da parte do próprio Deus, como poderemos ver no caso de José do Egito (Gn 37-50).
E ainda no Gênesis temos a narrativa sobre José do Egito (37-50), nela não há o sacrifício de uma vítima, mas sim todo processo de perseguição da vítima, sua condenação e expulsão, e, fica clara a defesa da vítima por parte de Deus. A narrativa começa no capítulo 37 onde José é vendido pelos irmãos para os ismaelitas; os capítulos 39 a 41 descrevem os acontecimentos da vida de José no Egito, no capítulo 42 e 45 temos o reencontro de José com os irmãos e no capítulo 46 o reencontro com seu pai Jacó, e por fim a morte de Jacó e de José descrita no capítulo 50. Para René Girard, “A história de José do Egito é uma recusa das ilusões religiosas do paganismo” (GIRARD, 2012, p.169).
A narrativa sobre José do Egito (Gn 37-50) mostra claramente a dinâmica da violência coletiva sobre a vítima. José, no hebraico yôsef11, era filho de Jacó e de Raquel (Gn 30,22- 24; 35,24), ele ao lado de Benjamim era o filho da velhice de Jacó, e destaca o texto bíblico que José era mais amado que os demais irmãos por seu pai, que mostrava esse amor mandando tecer roupas diferentes para José (Gn 37,3). Os demais dez irmãos de José, por este apreço do pai a ele, odiavam a José (Gn 37,4) a ponto de desejarem matá-lo, mas antes disso o prenderam em uma cisterna por insistência de Rubén e depois o venderam aos mercadores ismaelitas, sem o conhecimento de Rubén (Gn 37, 27-30). E os irmãos argumentaram a Jacó que José havia sido devorado por uma fera, e mostraram a túnica dele ao pai que fora mergulhada no sangue de um bode (Gn 37,31-33).
Uma vez vendido, José é levado para o Egito (Gn 37,28), lá ele é comprado por Putifar, um oficial do faraó (Gn 37,36). Pela dedicação no serviço da casa do oficial egípcio José ganha a confiança do seu dono, a ponto de receber a função de administrar toda a casa (Gn 39, 4), e cresce em consideração diante de Putifar. Essa consideração, interpreta Girard, tinha características de um tratamento paterno (2008, p.194), e por isso, quando José é acusado pela esposa de Putifar de ter tentado deitar-se com ela (Gn 39,14) o peso da acusação é a de um incesto.12 A mesma acusação, de incesto, está muito presente em narrativas mitológicas como a de Édipo Rei, como indicação de uma infração gravíssima do ordenamento familiar. Contudo, o próprio texto de Gênesis destaca a falsidade da acusação contra José destacando a ofensiva da mulher para com ele, antes de acusá-lo (Gn 39, 7-12), mas mesmo assim, José é expulso da casa de Putifar e colocado na prisão (Gn 39, 19-20).
Na prisão, o texto bíblico mostra que Deus não abandona a José: “Mas Iahweh assistiu José, estendeu sobre ele sua bondade e lhe fez encontrar graça aos olhos do carcereiro-chefe” (Gn 39, 21). Isto, para Girard, é uma demonstração de que o Deus bíblico é favorável à vítima, Ele coloca-se ao lado daquele que é acusado. Na prisão, José entre os demais prisioneiros, além de prestativo e cuidadoso com todos, interpretava os sonhos dos soldados (Gn 39,22-40,13).
Eis que o faraó do Egito, segundo o texto bíblico, uma noite sonhou com sete vacas gordas que eram devoradas por sete vacas magras, e sonhou também com sete espigas de trigos grandes e cheias, devoradas por sete espigas pequenas e ralas; este sonho deixou o soberano egípcio muito preocupado (Gn 41, 1-8). E, por meio dos servos do faraó chegou a ele a informação da existência de um prisioneiro hebreu, José, que interpretava sonhos, e assim ele é levado à presença do faraó e interpreta o sonho deste, alertando para os sete anos de fartura de alimentos, seguido por outros sete de fome sobre o Egito (Gn 41,25-36). Esta interpretação agradou o faraó, e este nomeou José como seu imediato na administração do reino (Gn 41, 37-49).
Enquanto José administrava o reino do Egito, em sua terra e de sua família, Canaã, houve fome e Jacó mandou seus filhos, menos Benjamin, ao Egito para comprarem trigo (Gn 42,1-4). Eles ao chegarem foram levados à presença de José, ao qual não reconheceram, e por ele foram acusados de espionagem (Gn 42, 5-14). Simeão, um dos irmãos, foi mantido como refém e José ordenou aos irmãos que voltassem a Canaã e na próxima vinda ao Egito trouxessem junto Benjamim (Gn 42, 15-24). Os irmãos de José retornaram à sua casa e relataram todo o ocorrido a Jacó (Gn 42, 29-38) e depois foram uma segunda vez ao Egito, levando Benjamim (Gn 43, 1-14). Eles, lá chegando, são colocados à prova com a acusação de terem roubado uma taça, a qual foi encontrada nas coisas de Benjamim (Gn 44, 1-17). Para salvar a este Judá ofereceu-se para ser punido no lugar dele (Gn 44, 18-34), mas a partir disso, José revela quem é e pede que os irmãos tragam ao Egito toda sua família (Gn 45,3) e Jacó assim se estabelece no Egito (Gn 46, 1-47, 12).
Para Girard a narrativa sobre José do Egito, desde que foi vendido pelos irmãos e o reencontro com eles, mostra os elementos do mecanismo vitimário, uma vez que ele José é expulso pelos irmãos, por estes terem ódio a ele, isto foi um processo de culpabilização, por isso José torna-se uma vítima sacrificial, já que a intenção era matá-lo. Ou seja, ele é acusado e considerado um mau elemento para o grupo, e para resolver essa maldade era preciso matá-lo, ou livrar-se dele. Mas quando os irmãos reencontram José, ele é alguém próximo do faraó (uma figura divina).13 Contudo, os irmãos de José não se rendem à idolatria, e isto mostra aquilo que é peculiar aos judeus: não divinizar as criaturas.
Na expulsão de José há repetição do ciclo de violência, mas não os efeitos da imolação, onde a vítima primeiro é acusada dos males que sobrevêm ao grupo e depois de sacrificada ou expulsa, é divinizada no sentido de que a ela é atribuída o poder de resolver as crises e tensões da comunidade; José é sim odiado antes de ser vendido, mas no reencontro com os irmãos ele próprio mostra sua humanidade, pois assume sua identidade como irmão daqueles que o expulsaram. Não há vingança, mas acolhida da família no Egito. José não se torna uma vítima divinizada, mas defendida por Deus, e ao final manifesta misericórdia e ninguém passa a adorá-lo, no sentido das narrativas míticas. Essa diferença dos textos bíblicos em relação aos mitos é fundamental para Girard, pois para ele a Bíblia não é somente a literatura mítica dos hebreus, mas “a genialidade do texto está em sua renúncia à idolatria” e principalmente que “A recusa de divinizar as vítimas é inseparável de outro aspecto da revelação bíblica, o mais importante de todos: o divino não é mais vitimizado (GIRARD, 2012, p.175).
A narrativa sobre José do Egito é uma construção literária, sobre a qual há muitas hipóteses referente a autenticidade do relato, e também sobre as tradições orais e escritas que deram origem ao texto, assim como sobre o caráter lendário dos acontecimentos e do personagem central: José. A despeito dessas questões exegéticas, para Girard o importante é ter em conta o aspecto edificante que os capítulos 37 a 50 de Gênesis apresentam. Neste sentido, podemos afirmar que “José é apresentado como um ideal, um homem que, com sua generosidade e disposição para o perdão, mantém a unidade familiar e impede que a família se destrua em disputas” (McKENZIE, 1983, p.463). Ou seja, José é uma referência para o fim dos fratricídios e vinganças, que fazem repetir ciclicamente a violência; e ainda mais, um exemplar literário de não divinização das vítimas da violência. No tocante ao tema do fratricídio, José do Egito e seus irmãos são o sinal contrário de Caim e Abel; mesmo com as desavenças e a intenção inicial dos irmãos de matar José o assassinato dele não ocorre, e o relato termina com reconciliação. E não há na história de José do Egito nenhuma substituição vitimária, como no sacrifício de Isaac, mesmo quando ele está no início do relato sob a ameaça de morte por parte dos irmãos.
Entende Girard, que o texto acerca de José foi na redação dos textos bíblicos uma releitura de mitos que relatavam rivalidades entre irmãos. E por isso, é interessante observar como na narrativa sobre José do Egito em dois momentos aparece claramente a mediação dos irmãos de José para evitar a violência, ou uma injustiça sobre a vítima, a primeira mediação aparece quando os irmãos tramam matar José (Gn 37,20-24) e Rúben, um dos irmãos, tentando ganhar tempo sugere colocá-lo na cisterna, e assim José é despido e lançado nela, mas não é morto (Gn 37, 23-24). Outra mediação é no Egito, quando José em condição de administrador ordena que Benjamin, acusado de roubo, seja seu servo (Gn 44, 14-34) e Judá oferece-se para ficar no lugar dele; Judá foi o irmão que sugeriu a venda de José aos mercadores que rumavam para o Egito (Gn 37, 26).
Na análise que apresentamos, vimos que o texto bíblico de Gênesis 37-50 está construído de forma que evidencia a defesa da vítima. Pois, ao invés de os redatores condenarem José pelo ódio que ele provoca entre os irmãos e pelo suposto assédio à mulher de Putifar, eles insistem que eram os irmãos que tinham ódio de José e de que a mulher era quem o perseguia insistindo em se deitar com ele. E mais, na prisão José é reconhecido pela sua dedicação e ganha destaque nas tarefas, mostrando a falsidade e a injustiça da acusação e da prisão dele, e que não merecia ser preso e nem sofrer. Nisto temos um processo inverso à literatura mítica sobre Édipo Rei, por exemplo, onde toda a descrição do mito reforça a culpa do personagem por ele ter matado o pai (parricídio) e casado com a mãe (incesto) e assim ter atraído a peste para Tebas (GIRARD, 2008).
Contudo, apesar de a literatura bíblica ser diferente dos mitos e ser favorável às vítimas, lembra Girard que nem sempre elas têm o mesmo tratamento de José e não são salvas de seus algozes, por isso muitas perecem. Mas permanece o princípio interpretativo girardiano para o sentido geral das Escrituras Sagradas: a defesa da vítima e a denúncia dos ciclos miméticos de violência.