Resumo: Este trabalho objetivou analisar as características das produções textuais em língua portuguesa de oito estudantes surdos, matriculados na 3º etapa da Educação de Jovens e Adultos (EJA), em uma escola estadual do município de São Luís, Maranhão. Utilizaram-se os seguintes instrumentos: 1) Questionários aplicados aos estudantes surdos; 2) Análise documental da produção textual dos estudantes surdos; 3) Entrevista não estruturada com a professora. Os resultados demonstram que, apesar de os alunos pesquisados realizarem a leitura de diferentes textos e reproduzirem suas concepções, a maioria (75%) não frequenta a biblioteca para a realização dessa atividade. Quanto à análise da produção, o estudo mostrou que há grandes dificuldades na produção de textos em língua portuguesa por esses estudantes surdos, considerando a obediência das regras gramaticais. Entretanto, esse resultado não afeta o gosto pela leitura da maioria desses estudantes (87,5%). Verificou-se que os estudantes tiveram bastante estímulo para produzir textos (87,5%), o que favorece a relação da prática leitora e do desempenho escolar; mais da metade (62,5%) dos estudantes pesquisados não consegue produzir mais de dois textos por semana na escola. Frente às dificuldades encontradas no processo de aquisição da língua escrita pelos estudantes surdos, recomenda-se a implementação de políticas de formação continuada aos professores de Língua Portuguesa, em particular para aqueles que atuam com esse público, visando à melhoria do processo de ensino e ao desempenho escolar como forma de efetivar o ensino bilíngue, respeitando as especificidades desses estudantes.
Palavras-chave:SurdoSurdo, Escrita Escrita, Ensino bilíngue Ensino bilíngue.
Abstract: This work aimed to analyze the characteristics of the Portuguese - language texts produced by 8 deaf students enrolled in the 3rd stage of Youth and Adult Education (EJA) of a state school in the city of São Luís - Maranhão. The following instruments were used: 1) Questionnaires applied to deaf students; 2) Documentary analysis of the textual production of deaf students; 3) Unstructured interview with the teacher. The results show that although the students studied read different texts and reproduce their conceptions, most (75%) do not attend the library to perform this activity. Regarding the analysis of the production, the study showed that there are great difficulties in the production of texts in Portuguese language by these deaf students obeying the grammatical rules, however, this result does not affect the taste for the reading of the majority of these students (87.5%). It was verified that the students had enough stimulus to produce texts (87.5%), which favors the relation of the reading practice and the school performance, more than half (62.5%) of the students studied can not produce more than two Texts per week at school. In view of the difficulties encountered in the process of acquisition of written language by deaf students, we recommend the implementation of continuing education policies for Portuguese language teachers who work with this public aiming at improving the teaching process of these students and consequent school performance As a way of effecting bilingual education with respect to the specificities of these students.
Keywords: Deaf, Writing, Bilingual education.
Resumen: Este estudio tuvo como objetivo analizar las características de las producciones textuales en portugués ocho estudiantes sordos inscrito en la tercera etapa de la Educación de Jóvenes y Adultos (EJA) en una escuela del estado de São Luís, Maranhão. Se utilizaron los siguientes instrumentos: 1) Cuestionarios aplicados a los estudiantes sordos; 2) Análisis documental de la producción textual de los estudiantes sordos; 3) Entrevista no estructurada con la profesora. Los resultados demuestran que, a pesar de que los alunos encuadrados realizar la lectura de diferentes textos y reproducir sus concepciones, la mayoría (75%) no frecuenta la biblioteca para la realización de esa actividad. El análisis de la producción, el estudio mostró que existen grandes dificultades en la producción de textos en Inglés por estos estudiantes sordos, teniendo en cuenta la obediencia de las reglas gramaticales. Sin embargo, este resultado no afecta el gusto por la lectura de la mayoría de estos estudiantes (87,5%). Se verificó que los estudiantes tuvieron bastante estímulo para producir textos (87,5%), lo que favorece la relación de la práctica lectora y del desempeño escolar; más de la mitad (62,5%) de los estudiantes encuestados no consegue producir más de dos textos por semana en la escuela. Frente a las dificultades en el processo de adquisición del lenguaje escrito por los estudiantes sordos, se recomienda la aplicación de las políticas de formación para profesores de inglés, en particular para aquellos que trabajan con esta población con el fin de mejorar el proceso de enseñanza y la el desempeño escolar como forma de efectivizar la enseñanza bilingüe, respetando las especificidades de estos estudiantes.
Palabras clave: Sordera, Escrita, Enseñanza bilingue.
O PROCESSO DE PRODUÇÃO TEXTUAL EM LÍNGUA PORTUGUESA DE ESTUDANTES SURDOS DE UMA ESCOLA PÚBLICA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES
THE TEXTUAL PRODUCTION PROCESS IN PORTUGUESE LANGUAGE OF DEAF STUDENTS OF A PUBLIC SCHOOL: CHALLENGES AND POSSIBILITIES
EL PROCESO DE PRODUCCIÓN TEXTUAL EN LENGUA PORTUGUESA DE ESTUDIANTES SORDOS DE UNA ESCUELA PÚBLICA: RETOS Y OPORTUNIDADES
Recepção: 19 Junho 2018
Aprovação: 05 Dezembro 2018
Ao longo dos anos, a educação de pessoas surdas esteve alicerçada na concepção clínico-terapêutica, cujo objetivo principal era a oralização, uma vez que os surdos, nesse modelo, são vistos como deficientes que devem ser “curados” para que possam se aproximar dos ouvintes (SKLIAR, 2006; ALPENDRE, 2008; ALMEIDA; JÚNIOR, 2011). Paralelamente a essa visão dominante, durante décadas outra concepção relevante caracterizou a surdez do ponto de vista antropológico, considerando que os surdos constroem sua visão do mundo diferente dos ouvintes por meio do canal gestual-visual (a língua de sinais), desenvolvendo aspectos linguísticos, cognitivos e sócio-emocionais (SKLIAR, 2006).
Cabe salientar que a comunidade composta por surdos tem sido caracterizada por seus aspectos linguísticos, cuja comunicação está baseada na língua de sinais (gesto-visual), bem como em valores culturais, hábitos e modos de socialização próprios (ALPENDRE, 2008).
Skliar (2011) reitera que, dentro da comunidade surda, não se considera relevante o grau de perda auditiva de seus membros, mas antes se valoriza os sentimentos, o autorreconhecimento e a identificação como surdo. Nessa comunidade, a surdez não seria percebida como déficit, deficiência ou desvio da normalidade, o que forçaria esses indivíduos às situações de preconceito e marginalidade, conforme afirmam Lacerda (2006) e Witkoski (2009). Assim, reforçam-se os laços de identidade grupal em uma comunidade linguística minoritária da sociedade (SÁ, 1999; ALPENDRE, 2008).
Com os avanços científicos e metodológicos, principalmente durante o século XX, surdos oralistas ficaram livres para usar a sua língua natural por meio de gestos e expressões faciais como canal de comunicação (ALMEIDA, 2000; MEIRELLES; SPINILLO, 2004).
No Brasil, a língua de sinais, denominada Língua Brasileira de Sinais (Libras), desde a sua oficialização por meio da Lei nº 10.436 de 24 de abril de 2002 (BRASIL, 2002), tem possibilitado a difusão e o ensino a partir de uma proposta bilíngue para estudantes surdos. Nesse aspecto, compreende-se que a língua brasileira de sinais é o meio ideal para que os estudantes surdos tenham acesso à educação, à comunicação e à informação, favorecendo condições de igualdade com os estudantes ouvintes (QUIXABA; SANTAROSA, 2015).
Atualmente, a educação desses estudantes encontra-se alicerçada no modelo sócio-antropológico, que os vê como diferentes, mas, ao mesmo tempo, dotados de inteligência, sociáveis e capazes de conquistar com autonomia o espaço que lhes é devido na sociedade e no âmbito educacional (MEIRELLES; SPINILLO, 2004). As condições de letramento de cada sujeito têm uma correlação direta com as práticas de linguagem vivenciadas em seus contextos de vida (GUARINELLO, 2009). Por isso, educar em uma proposta bilíngue permite ao estudante surdo o respeito ao processo de aquisição de aprendizagem na sua língua primeira, a qual mostra os instrumentos indispensáveis para o ensino de uma outra língua, como a portuguesa (CAPOVILLA, 2006; POKER, 2007; QUIXABA; SANTAROSA, 2015).
Diante das diferentes práticas pedagógicas aplicadas à educação de estudantes surdos, Silva e Nembri (2008) destacam que grande número desses estudantes, ao concluir sua escolarização básica, não é capaz de ler e escrever fluentemente ou de dominar os conteúdos pertinentes ao nível a que eles estão submetidos. Essa lacuna no processo de ensino e aprendizagem pode estar relacionada às metodologias inadequadas, que vêm sendo utilizadas ao longo de várias gerações.
O cenário educacional atual requer o compromisso com a inclusão de todos os estudantes, tendo em vista suas especificidades (LACERDA, 2006; AVELAR; FREITAS, 2016). Por esse motivo, o presente estudo justifica-se por reconhecer as relações entre a estrutura da língua de sinais e a língua portuguesa a partir da produção escrita de estudantes surdos. O estudo considerou as singularidades desses estudantes ao se apropriar de conhecimentos de outra língua. Assim, analisaram-se as características das produções textuais em língua portuguesa de oito estudantes surdos, matriculados na 3º etapa da Educação de Jovens e Adultos (EJA) em uma escola estadual do município de São Luís, Maranhão.
Acredita-se que esses elementos podem nortear as metodologias de ensino por meio das especificidades de aprendizagem desses estudantes, e oferecer sentido às práticas pedagógicas utilizadas pelos professores. Nesse sentido, contribui-se para a garantia do ensino bilíngue em Língua de Sinais.
Adotou-se a abordagem qualitativa e quantitativa. Os sujeitos deste estudo correspondem a oito estudantes surdos de uma escola pública do município de São Luís, Maranhão, a qual oferece a inclusão desses estudantes especificamente na 3ª etapa do EJA.
A fim de preservar suas identidades, os oito participantes receberam as denominações indicadas por: P1, P2, P3, P4, P5, P6, P7 e P8. As características pertinentes aos estudantes participantes deste estudo estão descritas no Quadro 1 abaixo.
Para a coleta dos dados foram utilizadas as seguintes técnicas: i) questionários aplicados aos estudantes surdos; ii) análise documental da produção textual dos estudantes surdos, com produção de textos a partir de gravuras; i) entrevistas não estruturadas com a professora de língua portuguesa.
A análise das informações do questionário foi feita por meio das frequências simples nas respostas obtidas pelos estudantes, priorizando o cálculo dos percentuais. Os dados qualitativos foram feitos por meio da análise da produção textual. Abaixo, no Quadro 2, demonstra-se como a pesquisa foi organizada no que se refere às variáveis elencadas, o que favorece uma melhor análise e discussão de seus conceitos e indicadores.
Apresentam-se textos produzidos pelos oito estudantes surdos a partir de leituras de textos e de gravuras, bem como a identificação de aspectos semânticos, morfológicos, ortográficos, os quais são de maior relevância para esta investigação.
P1: Produziu o seu texto como demonstrado na Figura 1, com base em uma sequência de imagens que trata da história de um felino, o qual queria devorar um pintinho.
Pintinho feliz
um dia passear fazenda
vovó terreiro tem pintinho ciscando terra.
Escondido gato esperava pode matar pintinho.
A galinha brava bicou gato.
Galinha e gato brigaram.
O gato viu estrela.
Galinha e pintinho ficaram rir.
Constatou-se que, apesar da falta de alguns conectivos, o texto de P1 dá pistas para interpretações; porém, alguns segmentos posteriores acabam configurando problemas de sentido indefinido. É possível identificar protagonistas e um incidente envolvendo uma briga, embora o modo de construção e sequência dos enunciados não permita a composição de um encadeamento claro dos constituintes temáticos. Ainda, observou-se na produção escrita de P1 o pouco uso das convenções gramaticais da língua portuguesa. Além disso, sua construção omite parcialmente as pontuações e mostra sequências em que o primeiro termo da oração (“galinha”) se repete.
Algumas dessas características foram atribuídas à influência da Libras na construção textual e na estruturação frasal do português escrito, parecendo indicar que a aprendizagem da modalidade escrita do português estaria sendo prejudicada pela Libras. Nesse cenário, a hipótese mais plausível é de que o ensino do português não estaria levando em conta a existência de uma primeira língua diferente do português (ANTIA et al., 2005; GUARINELLO et al., 2009).
P2: Produziu o seu texto como demonstrado na Figura 2, com base em uma sequência de imagens que trata da história de dois garotos em uma pescaria no lago.
O pescador de sapato
Dois amigos junto pescar no rio Paulo e Josevaldo
Paulo pescou uma bota
Josevaldo rir Paulo zangado
Josevaldo pescar peixe levar comer
Paulo pescou outra bota era mágica
Ficou feliz porque não tem sapato
Josevaldo ficou pescar agua riso
Alguns enunciados são interpretáveis. O participante P2 compôs o texto a partir das gravuras que parecem elementos, como “bota”, “peixe” e “pessoas pescando”. Embora o texto sugira imagens de uma situação de pescaria (peixe, pescar, vara) e alguns incidentes cômicos, várias dificuldades dificultam ou até suspendem a construção do sentido, como: a) as referências alternadas dos homens “Paulo e Josevaldo”; b) a inserção não esclarecida da bota mágica; c) e o sentido incompleto ou indefinido de vários enunciados.
A escrita contém alguns enunciados construídos convencionalmente, porém, apresenta com frequência sentido indefinido e incompleto. Além disso, em sua escrita, a pontuação é omitida. O texto de P2 é composto pela alternância e repetição do primeiro termo da oração. Algumas vezes, o estudante apresenta produções que fogem desse padrão, mas, no que diz respeito à constituição temática, os enunciados compõem um encadeamento de difícil apreensão pelo leitor. Sobre essa relação entre organização, sentido e texto, toma-se Koch (2016), que afirma que a coesão textual faz parte do sistema de uma língua e refere-se à presença de ligação entre os elementos do texto, formando sequências por meio de mecanismos que marcam algumas relações entre enunciados ou partes deles.
P3: Relata em seu texto sobre o início e o desenrolar de seus contatos com outros surdos que se reuniam em uma praça. Ele viu nesses encontros a oportunidade de interagir com outros surdos e aprender a “mímica” (Libras). O texto de P3 está ilustrado na Figura 3.
Praça Deodoro
Faz tempo, meu amigo do surdo convi-
vio no centro ano 2008, começa, meu amigo
do surdo encontrar as pessoas do surdo pouco.
Meu primeiro encontro na praça Deodoro
foi no ano.
Eu conversa as pessoas dos surdos na
praça Deodoro.
Futuro eu não conheço as pessoas
dos surdos reunião na praça Deodoro.
Eu encontra conversar coisa importante
com thiago e Ronaldo.
As pessoas dos surdos é problema continua.
De modo semelhante aos outros estudantes surdos com mais anos de estudo, P3 elabora textos mais extensos e de construção mais sofisticada do que as produções daqueles que estão nas séries iniciais. Encontra-se no texto de P3 uma incompletude de sentido e de ordenação dos termos dos enunciados. A escrita desse participante apresenta sentido incompleto, ordenação lexical e referencialidade ambígua.
Almeida et al. (2010) observaram que os textos, por si sós, são difíceis de serem compreendidos sem a interação direta com o participante. Por isso, os autores concluíram que quanto maior a coesão textual, menor seria a necessidade de explicações do autor sobre a mensagem em seu texto. Eles também inferem que a competência na escrita dos participantes melhorou conforme o aumento do nível de escolaridade e o contato com a Libras, por meio dos interlocutores de qualidade.
P4: O estudante passou a trabalhar com mais intensidade com a produção e interpretação de textos que tivessem pequenos trechos apresentados a ele. Sua produção está exposta na Figura 4, a seguir.
Alcol e jovem
Perigos como vida mal não muito
fim de semana da mode mamãe, alcol
es jovem que foi perigos
Pessoas errada bebe pode em.
Essa família quals filhos bebe, droga muito triste nós porque polícia
bate prende mal policial.
Na produção escrita acima, P4 busca reproduzir a estrutura do texto lido. Embora não tenha pleno domínio das regras de pontuação, ele as explora para organizar o texto e, muitas vezes, o faz com êxito.
Porém, ao lado dessas questões, aparecem várias dificuldades, tanto na parte ortográfica, como no encadeamento temático geral. Além disso, os períodos eram iniciados, alternadamente, com letra maiúscula e minúscula. Percebe-se nesse trecho que há a transposição direta do uso das regras da Libras para o português escrito.
Essas características das elaborações conceituais e textuais dos estudantes surdos não podem ser desvinculadas dos métodos e recursos didáticos pelos quais se têm organizado o processo de ensino-aprendizagem. As pesquisas de Witkoski (2009), Pereira (2014) e Silva (2015) apontam para as peculiaridades que não podem ser negligenciadas nas discussões sobre o atendimento educacional do estudante surdo.
P5: Relata a entrega de um anel a uma pessoa, que, conforme o narrador, trabalhou muito para adquiri-lo (Figura 5).
O Anel
Meu anel de pedra verde, para qual pessoa dar
Entrego a Nayara, quero namorar.
ora um, dois, três, ora quatro, cinco, seis
ora sete trabalham três sempre união.
tambêm amor bom
Em todo o texto escrito por P5 observa-se a ausência do verbo "ser". É evidente a falta de conectivos e de pontuação no término de algumas frases e a omissão das vírgulas entre os termos em alguns enunciados. Há o emprego do verbo na 1º pessoa (“entrego”, “quero”), porém, com tempo verbal impreciso. Também há nesse texto o uso das regras da Libras e não da língua portuguesa escrita. Há inversão da expressão “uma hora” para “ora um”.
O comportamento de P5 direciona à seguinte reflexão: até que ponto a educação bilíngue está sendo bem aplicada? Nesse sentido, questiona-se a preparação de quem intermedia essa educação, a fim de que estudantes, como os investigados desta pesquisa, possam tirar melhor proveito dessa oferta, fazendo com que suas produções textuais sofram menos interferências de sistemas linguísticos distintos.
A educação bilíngue, com intérpretes ou instrutores bem preparados, e o aprendizado eficaz das regras da língua de sinais (como primeira língua) e da língua portuguesa (como segunda língua), favorecem ao estudante surdo a apreensão dos conceitos (ALMEIDA et al., 2010). Logo, considera-se que a língua de sinais é o principal canal, mas não o único que pode ser construído com maior significado e afetividade, o que contribui sobremaneira para sua inserção no mundo da escrita, segundo a teoria sócio-antropológica (SKLIAR, 2006; PEREIRA, 2014).
P6: O texto produzido, conforme demonstra a Figura 6, descreve a observação do narrador a respeito do desenvolvimento de uma mulher desde sua infância.
Três idades
A vez primeira que vi, era eu menino e tu menina. Sorria muito
havia graça tu formosa e fina,
franzinha, quando vi segunda vez
moça jovem bonita. adolescente fez
flor, sorrir muito chorar
Destaca-se na análise do texto de P6 a ausência de conectivos e de artigos indefinidos. Há inversão de “primeira vez” para “vez primeira”. Observa-se a ausência do verbo "ser" em vários trechos. No último enunciado, o tempo verbal está impreciso com o uso dos verbos no infinitivo ("sorrir"; “chorar”). Apesar do arranjo incomum da sequência dos termos correspondentes à língua portuguesa, é possível identificar protagonistas (“menino”, “menina”, “adolescentes”). O texto permite compor um encadeamento parcial do sentido. Destaca-se o uso de adjetivos, como: “tu formosa e fina, franzinha”; “moça jovem bonita”.
Parece que P6 escreve da forma como se expressa em Libras. Isso também é frequentemente observado em pessoas ouvintes que estão aprendendo a escrever e "escrevem do jeito que falam", transpondo diretamente o modo da fala para a escrita. Esse dado demonstra que ainda não há compreensão das diferenças entre as duas modalidades da língua (ALMEIDA et al., 2010).
As análises dos textos demonstram que as condições de letramento de cada sujeito têm uma correlação direta com as práticas de linguagem vivenciadas em seus contextos de vida. Guarinello et al. (2009) comentam que leitores e escritores surdos evidenciam grande dificuldade no processo de interpretação e produção textual de gêneros secundários de maior circulação na sociedade, uma vez que eles vêm interagindo com maior frequência e eficiência com os gêneros primários de escrita e de leitura.
P7: O texto abaixo é o rascunho de P7, escrito na prova de redação do ENEM, cuja temática de pesquisa correspondia às células-tronco (Figura 7).
Pesquisa com célula tronco- embrionárias: contra ou a favor?
Agora desenvolvimento pesquisa genética possível, encontrar doença cura. Milhoes das pessoas mundo com doenças incuráveis, deficientes, sonho futuro de vida muito saúde Mas problema algum os pessoas de social é contra usado células- tronco. Tem conselho de Etica, igreja, não aceita essa pesquisa. Debates entre sociedade e também cientista faz. Tribunal Federal que vimos na televisão, mostra como é difícil maioria ou pessoas aceitam experiência DNA em humanos. Essa experiência é fazem com fetos que não desenvolvimento normal. A igreja contra, porque de acreditam seja aborto. Na verdade o que tem é possível mudanças de pessoas que vontade profunda seja curado.
Observou-se que o texto de P7 apresenta ausência de conectivos e de artigos definidos. Observa-se a ausência dos verbos "ser" e “ter”. Há, ainda, o uso inadequado do pronome indefinido plural feminino (“algum os”). A escrita parece em poucos momentos reproduzir a linguagem em Libras ao comparar com os textos anteriores já apresentados. Portanto, fica claro que as regras que regem verbos transitivos diretos e indiretos no português não foram bem compreendidas, nesse caso.
P8: A Figura 8 traz a narrativa produzida por P8 sobre a visita em uma casa mal-assombrada.
A casa mal assombrada como
tem as quero pessoa uma medo com
Porque nossas algumas vezes sentimentos
emoções são para vida nesmos (sic) ou contada
não como porque.
A casa as maldito muitos você
filha menina tem vida quero
como pessoa nós só amor
mamãe meu familia algumas
todos norte sol água com.
A madrasta mal porque não
tristes antes são menina tem alguma
não mal professor compartilhe com
inesqueciveis matal onze.
A fada amiga bom rir abraçar
paz uma meu menina amor
amiga saudades todo trande que
porque bom nós seus casa vai
chuva água familia para.
Apesar de fazer referência ao tema proposto, o texto escrito por P8 apresenta desconhecimento das regras de pontuação. No texto como um todo, a coesão sequencial é prejudicada, mas há alguns elementos gramaticais necessários à coesão referencial, o que indica uma tentativa de construção linguística.
Nota-se a ausência de conectivos e de artigos; o verbo aparece inadequadamente no infinitivo. Torna-se evidente uma confusão por parte do autor do texto sobre o próprio vocabulário da língua portuguesa, evidente nas palavras (“nesmos”, “matal”, “trande”), quando tentou se expressar por meio do português escrito.
As dificuldades encontradas nessa produção de P8 implicam diferentes graus de prejuízo de interpretação. Como indicam os exemplos apresentados, as construções desviantes podem ou não permitir pistas para ajustamentos na tentativa de construção de sentido. Casos de referencialidade ambígua, escolha lexical indevida, ordenação inadequada e sentido incompleto variam quanto às demandas de interpretação postas ao leitor.
A seguir destacam-se algumas dificuldades identificadas nos textos dos oito estudantes surdos participantes deste estudo, como: (1) instâncias de referencialidade ambígua (resultado da inserção de nomes e pronomes pessoais e possessivos no enunciado, gerando prejuízo à interpretação do referente); (2) escolha lexical indevida; (3) construções desviantes em função de uma ordenação não convencional; (4) omissão de constituintes para a construção de sentidos; (5) e inadequações que afetam o inter-relacionamento das partes textuais, tornando o seu sentido incompleto. Ressaltam-se abaixo exemplos de produções textuais com referencialidade ambígua.
P2 - Dois amigos junto pescar no rio Paulo e Josevaldo
P3 - As pessoas dos surdos é problema continua.
P6 - A vez primeira que vi, era eu menino e tu menina. Sorria muito
P4 - Essa família quals filhos bebe [...]
O segundo tipo de prejuízo para a interpretação dos enunciados é decorrente de uma escolha lexical indevida, que consiste na inclusão de palavras com significado não convencional ou de palavras criadas:
P7 - Mas problema algum os pessoas de social é contra usado células- tronco.
P5 - ora sete trabalham três sempre união.
P4 - fim de semana da mode mamãe, alcol
As construções desviantes ocorrem em função de uma ordenação não convencional de constituintes no enunciado, o que demanda certos ajustamentos para a interpretação, conforme ilustrado a seguir.
P5 - Meu anel de pedra verde, para qual pessoa dar? Entrego a Nayara quero namorar. Ora, um, dois, três ora quatro, cinco, seis ora, sete trabalham três.
P4 - Perigos como vida mal não muito.
P6 - sorrir muito chorar.
P8 - amiga saudades todo trande que
A omissão de constituintes é outra dificuldade encontrada. São exemplos de sentido incompleto:
P7 - Debates entre sociedade e também cientista faz
P7 - A verdade o que tem é possível mudanças de pessoas que vontade profunda seja curado.
P3 - meu amigo do surdo encontrar as pessoas do surdo pouco.
P8 - chuva água familia para [...] todos norte sol água com.
Por fim, destaca-se a dificuldade relativa aos enunciados que contêm inadequações, as quais afetam o inter-relacionamento de suas partes e trazem prejuízos generalizados para a composição de um sentido, isto é, à coesão textual. No enunciado, os tempos e modos verbais são imprecisos e os constituintes se articulam de modo a limitar uma interpretação plena, como está identificado na produção do participante P8:
A casa mal assombrada como
tem as quero pessoa uma medo com
Porque nossas algumas vezes sentimentos
emoções são para vida nesmos (sic) ou contada
não como porque.
A casa as maldito muitos você
filha menina tem vida quero
como pessoa nós só amor
mamãe meu familia algumas
todos norte sol água com.
A madrasta mal porque não
tristes antes são menina tem alguma
não mal professor compartilhe com
inesqueciveis matal onze.
A fada amiga bom rir abraçar
paz uma meu menina amor
amiga saudades todo trande que
porque bom nós seus casa vai
chuva água familia para.
Almeida et al. (2010) afirmam que a coesão sequencial e referencial nos textos produzidos são consequência da transposição direta das regras da língua de sinais. Nos casos de P4, P5 e P6, e com menor intensidade no texto de P3, há a transposição das regras da Libras para o texto escrito em língua portuguesa, que conta com o uso inapropriado ou a falta de elos coesivos (as flexões de tempo e de modo dos verbos, além das conjunções, são mecanismos responsáveis pela coesão sequencial nos textos).
Os resultados desta pesquisa demonstram a necessidade de adaptações curriculares que privilegiem o ensino da Libras como primeira língua. O intuito é ampliar as possibilidades de aprendizagem na Língua Portuguesa e contemplar aquisições cognitivas de acordo com as especificidades dos estudantes surdos. Assim, contribui-se para o processo de inclusão educacional e melhoria do desempenho escolar.
O presente estudo teve como objetivos analisar as características das produções textuais em língua portuguesa de estudantes surdos e identificar as características dessa produção, considerando as principais dificuldades de aprendizagem desses estudantes. Nesse sentido, os principais resultados revelaram que as dificuldades mais comuns desses estudantes são: a referencialidade ambígua; a escolha lexical indevida; as construções não convencionais de termos e tempos/modos verbais nos enunciados; e a omissão de constituintes necessários à plena construção de sentidos, como conectivos gramaticais (artigos, conjunções preposições, pronomes). Essas dificuldades prejudicaram a coesão textual e a interpretação das produções escritas, segundo as regras da língua portuguesa. Nesse caso, sugere-se que no processo de ensino de língua portuguesa para estudantes surdos seja priorizado o acesso à língua de sinais como primeira língua para garantir futuras aquisições em outra língua.
O estudo mostrou que alguns participantes (P4, P5, P6 e P8) necessitam de intervenções mais intensas na escrita de língua portuguesa, centradas nas especificidades da língua de sinais e na utilização de recursos visuais, pois o sentido do que escreveram em seus textos nem sempre esteve claro. Essa característica foi muito relevante para a nossa conclusão sobre o modo pelo qual o estudante surdo relaciona-se com a língua portuguesa, que é bem diferente da estrutura textual de um estudante ouvinte.
Por fim, diante das dificuldades encontradas no processo de produção textual em língua portuguesa pelos estudantes surdos, sugere-se ainda a implementação de políticas de formação continuada aos professores desse componente curricular, visando à melhoria do processo de ensino e consequente desempenho escolar desses estudantes.