Recepção: 19 Março 2018
Aprovação: 16 Outubro 2018
DOI: https://doi.org/10.5902/1984686X30794
Resumo: Este trabalho analisa a relação entre educação e comunicação no contexto da educacional de surdos. A interface entre esses campos, para essa minoria, está baseada nas produções audiovisuais que têm desconsiderado as especificidades culturais e linguísticas da comunidade surda. Parte dessa produção cultural tem sido apenas adaptada por meio de legendas ou janelas de interpretação em língua de sinais, mas pouca produção é de autoria de surdos. A pesquisa[1] investiga a produção audiovisual de alunos surdos na perspectiva da educação para as mídias. Analisa o telejornal O Jornal do Surdo, realizado pelos participantes em uma oficina de linguagem audiovisual, instrumento de pesquisa-ação. Os dados evidenciam a urgência em se desenvolver políticas de incentivo à realização audiovisual de alunos surdos, considerando a relevância da visualidade desses sujeitos para a criação de novas estéticas audiovisuais. Conclui que a inclusão de surdos na produção de novas linguagens amplia o espaço de participação no contexto audiovisual e viabiliza o empoderamento de realizadores surdos.
Palavras-chave: Produção audiovisual, Surdez, Empoderamento.
Abstract: This study aimed to evaluate the relationship between education and communication for deaf people. The interface between education and communication for this minority is based upon audiovisual productions that have disregarded the cultural and linguistic specificities of the deaf community. Part of that cultural production has been adapted only by means of subtitles or windows of interpretation in sign language, but little is produced by the deaf themselves.The audiovisual data prepared by them inside the perspective of media studies. The “Jornal do Surdo (journal of deaf people)”, a tele journal made by students during an audiovisual workshop, was assessed as a tool of Research-Action. The data emphasize that the urgent need to develop policies to encourage audiovisual achievement of deaf students, considering the importance of the visuality of these subjects for the creation of new audio-visual aesthetics. The inclusion of deaf people in language creation processes extends the participation of different groups of students in audiovisual field. This work may contribute to development of politics that uses media studies as a tool to empower deaf people as leading filmmakers.
Keywords: Audiovisual creation, Deaf people, Empowerment.
Resumen: Este trabajo investiga la relación entre la educación y la comunicación en el contexto de educación de sordos. La interfaz entre esos campos, para esa minoría, está basada en las producciones audiovisuales que consideran las especificidades culturales y lingüísticas de la comunidad sorda. Parte de esa producción cultural solo se adapta mediante subtítulos o ventana de interpretación en lengua de señas, los sordos apenas los producían. La investigación explora la producción audiovisual de alumnos sordos en relación con la educación para los medios. Analiza el telediario O Jornal do Surdo, realizado por los participantes en un taller de lenguaje audiovisual, instrumento de investigación-acción. Los datos dan prueba de la urgencia de desarrollar políticas para estimular la realización audiovisual de alumnos sordos, considerando la relevancia de la visualidad de esos sujetos para la creación de nuevos valores estéticos audiovisuales. Concluye que la inclusión de sordos en la producción de nuevos lenguajes amplía el espacio de participación en el contexto audiovisual y permite empoderar los directores sordos.
Palabras clave: Producción audiovisual, Sordera, Empoderamiento.
Introdução
No mundo contemporâneo, a linguagem audiovisual tem função preponderante, ao ajudar na ampliação das formas de comunicação e informação. Compreender a produção audiovisual como um espaço de expressão comunicativa e de criação de novas estéticas faz-se necessário, pois ali estão em jogo questões como inclusão e exclusão.
Historicamente, algumas minorias, como as comunidades surdas, estiveram distantes da produção audiovisual, ficando restrito a elas apenas o consumo de tais produtos. A presença de grupos até então discriminados na produção audiovisual é reivindicada como uma forma de empoderamento, que implica uma mudança de posição nas relações de poder e de tomada de decisões dos sujeitos de classes minoritárias, a partir da tomada de consciência de seus direitos, produzindo condições de ampliar sua participação na sociedade (HALL, 2006). Além de redimensionar as relações de poder, dá às minorias a possibilidade de produzir suas próprias narrativas em imagem e som. A participação ativa de grupos minoritários na produção audiovisual, diferente da perspectiva hegemônica, permite a descoberta de novas formas de criação (BARBERO; REY, 1999).
Um dos grandes desafios dessa sociedade é exatamente reconhecer a relação entre as narrativas audiovisuais e a inclusão das minorias. O reconhecimento da necessidade de se criar práticas de inclusão (TUNES; BARTHOLO, 2006) e a urgência em entender como as novas tecnologias redimensionam nossas relações sociais são questões que representam bem a complexidade no mundo contemporâneo (MORIN, 2009), impondo uma profunda reflexão sobre a função da escola em frente a essa realidade (POSTMAN, 2002).
No âmbito da educação para surdos, o audiovisual tem se mostrado um parceiro importante por se apoiar em uma característica visual. A visualidade consiste no principal elemento de percepção do mundo pelas pessoas surdas. No entanto, são poucas as produções acadêmicas sobre essa temática. Examinando o banco de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), no período de 1998 a 2008, encontramos somente duas teses (CAMPELLO, 2008; THOMA, 2002) e três dissertações (LIRA, 2003; MARCATO, 2001; SANTANA, 2003) abrangendo as Novas Tecnologias da Informação e Comunicação (NTCs). Buscamos investigar nessas produções o lugar do sujeito surdo no contexto midiático. As dissertações dedicam-se a uma análise do impacto e contribuições dos usos das NTCs na educação de surdos. Nenhuma delas aponta para uma participação mais ativa dos surdos na criação das novas linguagens. Assim, a pouca produção científica nessa área evidencia que as práticas de educação audiovisual ainda não alcançaram a educação de surdos. Essa lacuna gerou o desejo de trazer para o campo teórico e acadêmico a investigação da produção audiovisual dos surdos, considerando a cultura surda e a modalidade visuoespacial da língua de sinais.
Dialogamos com o campo da educação para as mídias no sentido de nos apropriarmos desse referencial teórico, a fim de dar sustentabilidade ao propósito de investigar o audiovisual como objeto de estudo, no viés da composição dos elementos som e imagem pelos participantes surdos.
Atualmente, temos vivenciado avanços na área de acessibilidade de informação e comunicação. Uma dessas maiores conquistas se refere à regulamentação da lei nº 10.098/2000, por meio do Decreto-lei nº 5.296/2004, que obriga a inclusão de janela em língua brasileira de sinais (Libras) ou legenda em português para eliminar as barreiras de comunicação em mensagens veiculadas. A partir dessa decisão, as campanhas eleitorais, desde 2006, foram veiculadas com a presença do intérprete de Libras no canto da tela ou com a inclusão da legenda em português.
Mesmo representando um avanço, a hegemonia ouvinte ainda é mais representativa. A subalternação dos surdos no mundo midiático pode ser percebida pela ausência desse grupo nas telas da TV, pela presença da língua de sinais em um espaço reduzido e de difícil leitura, que são as janelinhas de interpretação, e pela presença da língua portuguesa escrita nas legendas, que é a língua da maioria. Somos favoráveis a todos esses recursos de acessibilidade na medida em que, até poucos anos, nenhum deles existia. No entanto, é necessário avançar esse conhecimento, a fim de se ampliar as possibilidades de produção audiovisual pelos próprios surdos.
Educação audiovisual
Direcionamos a fundamentação teórica neste trabalho para o campo da educação para as mídias, por sua proposta de intervenção mais crítica em relação à interface entre educação e comunicação e por compreendermos a mídia como objeto de estudo. Esse campo reforça a defesa de que as NTCs, desde o cinema mudo até às redes telemáticas, não são meros recursos tecnológicos de uso ou desuso a serviço do professor em sala de aula. Além disso, reivindica a transformação da mídia em ferramenta pedagógica no sentido técnico, mas ético também, e como objeto de estudo conceitual e estético (BELLONI, 2009).
Segundo essa autora (2009, p.12), os objetivos da educação para as mídias “[...] dizem respeito à formação do usuário ativo, crítico e criativo em todas as tecnologias de informação e comunicação”. A esse respeito, Kelman, Martínez e Madeira-Coelho (2009), na pesquisa sobre processos de comunicação em crianças surdas, [2] identificaram que os alunos surdos pesquisados desenvolveram uma rejeição ao uso excessivo do vídeo em sala de aula. A pesquisa não investiga todos os fatores que levaram a esse comportamento, mas indica uma abordagem metodológica distante do que tem sido sugerido pela educação para as mídias e as demais propostas de interface entre educação e comunicação. As capacidades dos alunos ficaram limitadas ao tipo de trabalho desenvolvido em sala de aula que, além de não ter aproveitado as possibilidades mediadoras do audiovisual, não incorporou ações que propiciassem aos alunos a descoberta de novas formas de escritura.
Nessa direção, afirmamos que, na área educação para as mídias, há um aprofundamento que vai além da ordem ideológica e da linguagem afetiva e simbólica. Existe um pressuposto interventivo de apropriação das tecnologias pelo professor e pelo aluno no sentido da recepção ativa, da produção criativa e da transformação no campo pela formação dos sujeitos (BELLONI, 2009; GONNET, 2004). O aluno e o professor participam e intervêm, seja pela recepção, seja pela produção, isto é, “[...] estudante e educador enquanto ‘usuários’ e criadores das TICs e não como meros receptores” (BELLONI, 2009, p. 9).
A educação para as mídias preocupa-se com as demandas do século XXI, que impõem aos educadores a compreensão dos novos contextos sociais que trazem para a sala de aula outras possibilidades de leitura e escrita. Tanto o surgimento de novas tecnologias na sociedade moderna como o processo de globalização fizeram emergir textos diferentes dos considerados clássicos e únicos representantes do conhecimento historicamente acumulado. No entanto, ainda existe a tendência de reduzir todas essas potencialidades da mídia na educação a um caráter mais utilitário. Por descrédito ou por falta de preparo, os professores continuam dando exclusividade ao texto escrito em detrimento dos textos audiovisuais. Além disso, a mídia não tem sido contemplada no currículo da educação como mais uma área do conhecimento.
Refletindo sobre essa realidade, Gonnet (2004, p. 53) afirma que “[...] a linguagem audiovisual, muito presente no universo das crianças, não suscita a atenção dos educadores comparativamente ao escrito e à comunicação verbal [...]” e tal escolha está relacionada com as concepções de aprendizagem e trabalho pedagógico, nas quais a imagem e o som têm menor valor. Em uma crítica mais enfática sobre o privilégio do texto escrito, Tardy (1976, p. 17) afirma que os professores “[...] não se recusam a serem destruidores de imagens”. Segundo o pensador, na área pedagógica a imagem é relegada ao mais elementar mecanismo da espécie humana, a um estágio rudimentar da filogenética. Profetizando uma revolução metodológica no ensino, o autor sugere que os professores, ao invés de menosprezarem as imagens, busquem inspiração metodológica para a preparação de suas aulas nas imagens veiculadas pelo cinema e pela televisão. Nessa perspectiva, Carneiro (1999) defende que a escola opte pelo fascínio e pela sedução da narrativa audiovisual, que tocam a sensibilidade e proporcionam mais recursos para a imaginação das crianças.
Nesse sentido, durante o processo de formação, os participantes foram desafiados a se apropriarem da linguagem audiovisual de forma crítica, participativa e criadora.
O audiovisual no contexto da minoria surda
O debate em torno da inclusão e da exclusão tem estado presente nos campos de estudo da mídia e da educação, entretanto não com a intensidade que gostaríamos de encontrar. Para Belloni (2009), a integração das mídias como instrumento de inclusão é uma das funções da escola. A autora aborda o assunto no sentido de dar aos sujeitos imersos em “desigualdades sociais e regionais” a oportunidade de experimentar as novas tecnologias no contexto escolar como uma forma compensatória de sua situação excludente. Concordamos com a autora, mas consideramos que as desigualdades de acesso ao meio tecnológico têm atingido, de maneira mais perversa, outros grupos que não são desiguais apenas nas questões sociais e regionais, como as relações excludentes entre regiões mais desfavorecidas que outras.
A temática inclusiva nos processos de produção também permeia a reflexão de Gonnet (2004), que analisa o advento da mídia no contexto educacional. O autor lança um questionamento relevante a respeito dos valores que a sociedade pretende promover em frente a questões que emergem com as novas tecnologias. Nessa linha de reflexão, apresenta-nos a produção audiovisual pela diferença. Na afirmação de que “[...] a escola tem pouca habilidade para tratar seus excluídos”, Gonnet (2004, p.87) revela sua preocupação com a desigualdade no processo de criação de novas linguagens, em que os alunos com deficiência se encontram em grande desvantagem quanto ao acesso. Esses alunos não dependem apenas da estrutura tecnológica para produzir, mas também de que os professores acreditem em sua capacidade para criar e imaginar, para serem sujeitos de sua aprendizagem com todos os seus sentidos.
Gonnet (2004) avança nessa direção ao afirmar que o trabalho pedagógico, a partir das mídias, é favorecedor do desenvolvimento das crianças com necessidades especiais em sistemas de integração escolar. Para ele (p. 91), “[...] o jovem especial encontra, então, naturalmente, seu lugar; melhor ainda, às vezes, só ele é capaz de esclarecer, graças à sua sensibilidade, certos problemas, e os outros alunos sentem isso”.
Enfatizamos o caráter progressista e avante de seu tempo no discurso de Gonnet (2004), quando propõe a inclusão com a efetiva participação das crianças com necessidades especiais nas discussões de temas oriundos da apropriação da mídia pela escola. Ressaltamos o enfoque na relação entre mídia e inclusão, no sentido de propiciar práticas de ensino que contemplem a troca, a solidariedade e a integração.
Convergimos com as proposições de participação no contexto educacional e midiático. No entanto, não associaremos a ideia de “jovens especiais” aos pesquisados surdos de nosso trabalho. Optamos por abordar os surdos por sua diferença linguística e cultural e não como deficientes ou especiais, características recorrentes nos discursos sobre a surdez.
A respeito da sensibilidade a que se refere Gonnet, acreditamos que, na diferença, novas formas de sensibilidade surgem, não pela deficiência, mas por uma maneira diferente de ser e estar no mundo (PERLIN, 2004). Soma-se à sensibilidade a realização sofisticada de tecnologias midiáticas que podem alavancar processos mais elaborados do desenvolvimento humano. Então, tomamos o cuidado de não caracterizar o surdo como uma pessoa com deficiência com sensibilidade mais aguçada que a das pessoas consideradas normais. Discutimos aqui a participação dos surdos na produção audiovisual sob a égide de pertencimento a uma minoria linguística e cultural.
Muitas pesquisas na área da educação de surdos foram impulsionadas pela premissa de que a língua de sinais é uma língua que tem a singularidade visuoespacial (KELMAN, 2005; QUADROS; KARNOPP, 2004; RODRIGUES, 2009; SALLES, 2003). Compreendemos a minoria linguística surda tramada na perspectiva histórico-cultural e dialógica (BAKHTIN, 1997; VYGOTSKI 1983, 2000). Na visão vygotskyana, as relações mediadas dos homens são indispensáveis para a formação das funções psíquicas superiores na criança. As relações mediadas correspondem a um nível superior de desenvolvimento “[...] cuyo rasgo fundamental es el signo gracias al cual se estabelece la comunicación” (1983, p. 148). Para Bakhtin (1997) o processo de comunicação é inerente à linguagem, ou seja, a constituição dialógica da linguagem é ontológica. Em síntese, a linguagem é a língua em uso e seu lócus de produção é o campo discursivo onde os sujeitos constroem e produzem sentido aos enunciados que circulam dialogicamente. A produção audiovisual pode ser considerada uma complexa modalidade de expressão comunicativa, apoiada na linguagem e na língua. As pesquisas de Kelman (2005) e Rodrigues (2009) comprovam que as pessoas são comunicativas e dialógicas, em uma modalidade de língua espaço-visual.
Tais fundamentos contribuíram para analisar a produção audiovisual dos participantes surdos como um processo de representação do mundo que subjaz ao desenvolvimento da linguagem, no qual a língua é constituída.
Metodologia
Impulsionados pelo desejo de intervenção na área, optamos pela pesquisa qualitativa e utilizamos a pesquisa-ação. A pesquisa-ação, segundo definição de Thiollent (2002, p. 14):
[...] é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo.
Quando iniciamos a pesquisa[3], tínhamos claro que um projeto de dissertação não teria a pretensão de solucionar o problema. A esse respeito, as considerações de Thiollent (2002) relacionadas com os objetivos da pesquisa-ação, especificamente na área da comunicação, contribuem no sentido de localizar este trabalho, seus limites e suas possibilidades. Por essa metodologia, buscamos no campo um grupo que tivesse interesse em discutir os problemas relativos a essa temática. A resolução de problemas nesse tipo de pesquisa deve ser compreendida, a priori, considerando a complexidade que abarca as demandas sociais excludentes.
Realizamos a pesquisa em uma escola pública de Taguatinga, cidade administrativa do Distrito Federal, para alunos do ensino médio. A caracterização da escola foi feita com a coordenadora pedagógica. Durante a conversa, a coordenadora disponibilizou o projeto pedagógico da escola para confirmação dos dados.
O grupo de participantes foi composto por sete alunos. Para a construção dos dados, recorremos a instrumentos previamente planejados e a outros que surgiram no decorrer do processo de investigação. Segundo Thiollent (2002), na pesquisa-ação, a aprendizagem se revela um caminho singular para a produção de informações em uma investigação. Nesse viés, novos instrumentos de investigação foram criados ao longo do processo, como o curso de audiovisual, composto por etapas de formação, realização e montagem, que se revelou um instrumento valioso. A flexibilidade da pesquisa-ação, no que se refere aos instrumentos, está consubstanciada na própria característica desse tipo de pesquisa, que permite ao pesquisador inserir novos caminhos metodológicos. Assim, no decorrer do curso, o roteiro escrito e o roteiro desenhado, chamado de storyboard, criados individualmente e na coletividade, constituíram-se também como instrumentos de produção de informação. Dentre eles, selecionamos o O Jornal do Surdo para análise e discussão da apropriação audiovisual dos surdos.
O telejornal O Jornal do Surdo: trânsito
O telejornal, composto por imagem e som em formato DVD, editado pelos participantes, tem a duração de 02h50min e é composto de 24 planos. Os caracteres inseridos correspondem à logomarca, aos nomes das apresentadoras, à legenda em português, à lista dos realizadores e informações adicionais no final do programa. Inicia-se com uma sequência de imagens do making of. Em seguida, surge a logomarca com o nome do Telejornal e o tema tratado, a cabeça da matéria com as duas apresentadoras, as apresentadoras em separado, imagens visuais do tema, cabeça da entrevista, entrevista, novamente as imagens visuais do tema, rol dos realizadores e logomarca. Para ilustrar o telejornal, inserimos uma seleção de imagens na Foto 1.
Análise e discussão
A pesquisa voltou-se à investigação da visualidade dos surdos no contexto da educação audiovisual, enfocando a manipulação dos elementos som e imagem pelos participantes. A relação entre esses elementos, na visualidade dos participantes da pesquisa, trouxe novas significações.
Diferente de vídeos, filmes, telejornais e produtos audiovisuais educativos adaptados para surdos, a produção desses participantes não incorpora a janelinha de interpretação ou mesmo janelas de tamanho maior. O espaço da tela é destinado ao empoderamento dos realizadores, que privilegiam a língua de sinais. Os participantes surdos, produtores de narrativas audiovisuais, fazem parte de um contexto linguístico, dialógico e enunciativo organizado visuoespacialmente, conforme Foto 2.
É importante destacar que a mensagem audiovisual está adequada à especificidade da experiência visual de seus realizadores que é destinada aos usuários da língua de sinais. Entretanto, os realizadores surdos consideraram fundamental tornar seu produto acessível. Nesse sentido, um dos elementos incorporado foi a legenda em português, no entanto ela aparece no sentido inverso em que os surdos a realizam para as pessoas ouvintes.
É interessante observar que a acessibilidade permeou toda a formação em debates nas propostas individuais e na montagem do produto coletivo. A legenda representou um importante aspecto de consolidação da educação bilíngue. Ao comparar a escrita dos alunos com a escrita inserida no telejornal, identificamos que os estudantes demonstraram desenvoltura quanto à sua manipulação. Essa pode ser uma resposta aos investimentos dos Governos Federal e Distrital nos cursos de formação realizados na área do ensino de português como segunda língua e da utilização da Libras no ambiente escolar (SALLES, 2003).
Na escola onde a pesquisa foi realizada existem dois projetos voltados ao ensino de português para surdos. No caso do audiovisual, a conclusão é que ele cria maior motivação para a apropriação dessa língua. A escrita aparece em todos os storyboards. Para alguns alunos a elaboração é mais sofisticada. Um exemplo interessante é o de TH que, ao escrever a história de seu filme, incluiu como personagem sua ex-professora de Português, do ensino fundamental de 5ª a 8ª séries, intérprete de Libras, que ministra aulas de Português somente para surdos, utilizando a Libras. MAY escreveu um filme de amor, no qual todos os diálogos são registrados em língua portuguesa. Os alunos que sentiram mais dificuldade em escrever participaram da produção coletiva em que o texto foi sendo incorporado na tela com o aval de todos eles.
Os dados evidenciam que a realização audiovisual colabora para que atividades de escrita ganhem novos sentidos, mais ligados ao fascínio que o audiovisual produz naqueles que o realizam (CARNEIRO, 1999, 2003). Os participantes tiveram a oportunidade de discutir palavras isoladas, frases em contexto e mais adequadas para inserir a mensagem escrita no texto audiovisual em forma de legenda.
Um fato interessante ocorreu durante a gravação das apresentadoras do telejornal e remete a esse mundo percebido pela visão: a participante GB, responsável pela escrita do roteiro, atuou como uma espécie de teleprompter, equipamento tecnológico que fica acoplado à câmera e no qual o texto escrito é passado para que o apresentador faça a leitura. As apresentadoras surdas recorriam à GB quando esqueciam o texto. Por se tratar de um trabalho exploratório, não houve crítica ao fato de as duas apresentadoras deixarem transparecer a ação de leitura da língua de sinais, como expresso na Foto 3.
Considerando que em nenhum momento os alunos tivessem visto o equipamento ou sua utilização houvesse sido sugerida, concluímos que a participação dos surdos na produção visual, de composição de elementos de imagem e som, sinaliza a possibilidade de criação de tecnologias adequadas à demanda visuoespacial, como um teleprompter com a sinalização das línguas de sinais. A leitura da sinalização revelou a necessidade de ajuda para relembrar o texto. Rodrigues (2009, p.183-184), ao investigar a escrita de crianças surdas, afirma que “[...] para que a criança surda se relacione com a linguagem escrita, ela não poderá prescindir da própria escrita como recurso mnemônico”. A pesquisa evidencia que a língua de sinais pode ser utilizada no aspecto mnemônico e, de forma associada, a escrita em português também. Sobre o apoio à memória, o roteiro escrito foi utilizado para relembrar palavras a serem incluídas na legenda em português. Esse fato reforça a importância do ensino do português como segunda língua, na mesma medida em que políticas de ensino de Libras para alunos surdos precisam ser desenvolvidas.
Percebemos um dado interessante referente ao corte de um plano a outro na elaboração surda. Quando um sinal é realizado, as unidades mínimas envolvem movimento e mudanças rápidas e estes devem ser observados ao justapor os planos que se sucedem em uma narrativa. Nesse sentido, o corte, na perspectiva da língua de sinais, cria uma nova dinâmica para a montagem, pois a modalidade visuoespacial requer um cuidado ao compor o entrelaçamento de planos, como no caso da sinalização da apresentadora que, por ter feito um sinal errado, pediu que fosse cortado. Ao tirarem a falha, o sinal anterior ficou comprometido fazendo com que o corte, no sinal em movimento, parecesse um pulo de uma imagem a outra (Foto 4). Os participantes perceberam o prejuízo para a montagem, mas não interferiram de forma a reelaborar a composição.
O som
Os resultados mostram que os participantes se relacionam com o elemento som, dando a ele significados diferenciados. A participante TH incorpora o sentido estético ao desejar uma trilha sonora no telejornal. Ela pergunta à pesquisadora se a música selecionada pelo editor ouvinte é bonita. Para o participante JO, o telejornal não deve ter música, trilha sonora, apenas a voz das pessoas ouvintes. Ao ouvirmos a versão sem trilha sonora, sugerida por JO, damos conta desse universo silencioso. O programa começa com imagens do makking off, depois passa para as imagens das apresentadoras sinalizando o texto em Libras, em absoluto silêncio. De repente, surge, no meio do telejornal, a voz do entrevistado, um policial militar que explica para a entrevistadora surda a importância da educação para o trânsito. Uma estética nova, em que a manipulação de som e imagem obedece às regras impostas pela surdez. Acreditamos que essa informação seja relevante no sentido de refletirmos sobre que espaços podem ser criados para que todos tenham acesso à produção de mensagens audiovisuais e à sua transmissão. Em que meio de comunicação de mensagens audiovisuais a produção de JO poderia ser veiculada? Esse é um questionamento para os comunicadores e para Indústria Cultural.
Considerações finais
Após intensa imersão no contexto educacional deste estudo, avaliamos que os objetivos de pesquisa, ajudados pela fundamentação teórica e pela escolha metodológica, proporcionaram a sustentação necessária para percorrermos a visualidade dos participantes surdos no contexto da educação audiovisual. Neste capítulo, destacamos as principais contribuições dos resultados obtidos. A educação audiovisual mostrou-se um poderoso instrumento de empoderamento e protagonismo dos jovens surdos. Ressaltamos que as características dialógicas e comunicativas são elaboradas na visuoespacialidade, o que impõe alternativas de acessibilidade. Os surdos apresentaram uma rejeição ao formato de acessibilidade oferecido por meio de janelas de interpretação. Não podemos nos calar diante das queixas dos realizadores surdos, mas, ao mesmo tempo, não devemos desconsiderar o avanço trazido por essa tecnologia. No entanto, concordamos que as janelas de interpretação e legendas não consideram as pessoas surdas em seu canal de percepção prioritário, que é a visão.
Os realizadores apresentam alternativas mais adequadas de acesso ao mundo audiovisual partindo de suas próprias realizações. No viés de uma estética surda, não houve proposta com inserção de janela de interpretação. Consideramos relevante esse dado para refletir a respeito dos vídeos educativos que circulam na escola, das políticas públicas de educação para as mídias e da própria configuração de educação inclusiva. Em sua maioria, a inclusão coloca à disposição de alunos surdos um modelo similar ao desenho de acessibilidade criticado pelo grupo. Na televisão e na sala de aula, o intérprete ocupa o cantinho do espaço. Essa disposição contradiz os dados apresentados, pois os realizadores surdos deram à língua de sinais o espaço privilegiado no enquadramento.
Na educação audiovisual, é possível criar espaços de autoria e empoderamento, mas depende dos recursos disponibilizados ao sujeito surdo e, acima de tudo, da crença no que as pessoas surdas sejam capazes de realizar. Não significa compensar a surdez com a ideia de que o surdo é super-herói, mas compreender que ele tem condições de produzir e deliberar, se as condições adequadas forem concedidas. O acesso não se dá apenas pela recepção da mensagem do outro, mas pela criação de mensagens pelos próprios surdos.
O uso de legenda demonstra a relevância do ensino do português como segunda língua e viabiliza a circulação das narrativas surdas para todos. Esse dado reforça a ideia de que a criação audiovisual colabora no sentido de criar novo significado para a aprendizagem de uma segunda língua. Alguns alunos utilizaram o português escrito de forma mais segura, o que revela a autonomia conquistada por eles quanto ao uso da língua. Nessa perspectiva, as políticas de ensino de português para surdos, em modalidade escrita, poderiam incluir propostas de interface entre educação e comunicação, específicas à elaboração de mensagens audiovisuais. Além de políticas públicas, o professor de ensino de português pode se apropriar dessa linguagem, criando intervenções pedagógicas que considerem a narrativa audiovisual um dispositivo legítimo de ensino da língua portuguesa.
A acessibilidade das obras dos alunos não está condicionada a uma determinação legal. Acreditamos que as experiências com a desigualdade e exclusão produziram sentido em tais realizadores para que propusessem esse tipo de acessibilidade. O salto qualitativo da pesquisa é mostrar que os surdos podem criar uma mensagem que os represente e seja acessível aos ouvintes.
O processo de produção audiovisual em que surdos e ouvintes participam, a nosso ver, contribui para negociar as relações de poder entre surdos e ouvintes e entre surdo-surdo. A relação entre surdo-surdo também pode revelar desigualdades, por isso enfatizamos que o surdo deve ser considerado parte de uma cultura, mas sem homogeneizá-lo. Ainda sobre as relações, elas se revelam afetivas e emocionais. Os participantes demonstram, por meio da convivência com os técnicos em audiovisual, um clima de descontração, diversão e entretenimento.
Reforçamos a necessidade de políticas de formação, de educação audiovisual, para que mais surdos se apropriem do conhecimento referente à edição, captura de imagem e som e demais recursos audiovisuais, uma vez, que essa produção representa inovação no cenário audiovisual. Para os limites da pesquisa, reconhecemos que todos os participantes tiveram condições de produzir um audiovisual.
Nesse sentido, podemos afirmar que a visualidade é uma rainha, mas não reina sozinha. Outros canais de percepção estão em jogo. No entanto, reconhecemos que os aspectos de espacialidade e de visualidade linguística imperam. Assim, esse dado reforça a experiência visual como uma marca da cultura surda (PERLIN, 2004; THOMA, 2004).
A importância da interface entre educação e comunicação e a educação de surdos está clara para nós, entretanto reconhecemos a necessidade de mais pesquisas que desenvolvam o conhecimento nesse campo.
Referências
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Notas