Resumo: O autismo foi identificado por volta de 1940 e desde essa época sua abordagem pauta-se em critérios diagnósticos que o explicam a partir de dificuldades, déficits ou atrasos, de acordo com o modelo médico. A partir dos anos 2000, surgem outros modos de pensar o autismo, como o movimento da neurodiversidade, com o intuito de superar as dicotomias entre o normal e o patológico e compreender o autismo como diferença. Com base nos estudos críticos sobre o autismo, este artigo buscou analisar, por meio de revisão de literatura, as explicações sobre autismo em teses e dissertações sobre inclusão escolar, produzidas entre 2008 e 2018. Foram encontradas 106 produções, 52 relacionadas à área da educação e 22 que compuseram o corpus deste artigo. As pesquisas foram categorizadas a partir de dois modelos: médico e crítico. Os resultados revelam que a maioria dos estudos se orienta pelo modelo médico e, dentre aqueles que se inserem na categoria “modelo crítico”, as explicações perpassam diferentes abordagens teóricas, como a fenomenologia, a psicologia histórico-cultural e a psicanálise. Analisar as pesquisas trouxe uma multiplicidade de narrativas sobre o autismo e a percepção de que cabe romper com a naturalização dos discursos e a hierarquização das ciências naturais sobre as humanas, garantindo reconhecimento do outro como sujeito de direito e ator social.
Palavras-chave:AutismoAutismo,Estudos críticosEstudos críticos,Pesquisa educacionalPesquisa educacional.
Abstract: Autism was identified around 1940 and since then its approach has been based on diagnostic criteria that explain it from difficulties, deficits or delays, according to the medical model. From the 2000s onwards, other ways of thinking about autism, such as the neurodiversity movement, emerge in order to overcome the dichotomies between normal and pathological and to understand autism as difference. Based on the critical studies on autism, this article sought to analyse, through literature review, the explanations on autism in theses and dissertations on school inclusion, produced between 2008 and 2018. There were 106 productions, 52 related to the area of education and 22 that composed the corpus of that article. The researches were categorized from two models: medical and critical. The results show that most of the studies are guided by the medical model and, among those who fall into the category "critical model", the explanations are based on different theoretical approaches, such as phenomenology, historical-cultural psychology and psychoanalysis. Analyzing the research brought a multiplicity of narratives about autism and the perception that it is necessary to break with the naturalization of the discourses and the hierarchy of the natural sciences over the human sciences, guaranteeing the recognition of the other as subject of rights and social actor.
Keywords: Autism, Critical studies, Educational research.
Resumen: El autismo se identificó alrededor de 1940 y, desde entonces, su enfoque se ha basado en criterios de diagnóstico que lo explican por dificultades, déficits o retrasos, según el modelo médico. A partir de la década de 2000, surgen otras formas de pensar sobre el autismo, como el movimiento de la neurodiversidad, para superar las dicotomías entre lo normal y lo patológico y para entender el autismo como una diferencia. Basado en los estudios críticos sobre autismo, este artículo buscó analisar, a través de la revisión de la literatura, las explicaciones sobre autismo en tesis y disertaciones sobre inclusión escolar, producidas entre 2008 y 2018. Hubo 106 producciones, 52 relacionadas con el área de educación. y 22 que componían el corpus de este artículo. Las investigaciones se categorizaron a partir de dos modelos: médico y crítico. Los resultados muestran que la mayoría de los estudios están guiados por el modelo médico y, entre los que entran en la categoría "modelo crítico", las explicaciones abarcan diferentes enfoques teóricos, como la fenomenología, la psicología histórico-cultural y el psicoanálisis. Al analizar la investigación surgieron múltiples narrativas sobre el autismo y la percepción de que es necesario romper con la naturalización de los discursos y la jerarquización de las ciencias naturales sobre las humanas, garantizando el reconocimiento del otro como sujeto de derecho y actor social.
Palabras clave: Autismo, Estudios críticos, Investigación educativa.
Déficit ou diferença? Um estudo sobre o autismo em pesquisas educacionais
Deficit or difference? A study on autism in educational research
Déficit o diferencia? Un estudio sobre el autismo en investigaciones educativas
Recepção: 09 Julho 2019
Aprovação: 02 Setembro 2019
O histórico do diagnóstico de autismo acompanha as diferentes abordagens sobre as doenças psíquicas desenvolvidas ao longo dos séculos XX e XXI e legitimadas, sobretudo, pelas 5 edições do Manual Estatístico e Diagnóstico de Doenças Mentais (DSM). Em sua edição mais recente, o DSM-5, publicado em 2013, apresenta a tipologia Transtorno do Espectro Autista (TEA) em substituição à definição anterior do DSM-IV, que agrupava na categoria “Transtornos Globais do Desenvolvimento” a Síndrome Autista, a Síndrome de Asperger, a Síndrome de Rett, o Transtorno Desintegrativo da infância ou autismo secundário e o Transtorno Generalizado do Desenvolvimento Não-especificado. A nova tipologia proposta pelo DSM-5 elimina os 5 subgrupos da versão anterior e passa a adotar, como critérios de diagnóstico, apenas a escala de gravidade do transtorno, com base em um modelo bidimensional(BIANCHI, 2016). Segundo o novo modelo proposto pela American Psychiatric Association (APA), a conhecida tríade do autismo é agrupada em uma díade, a partir de duas dimensões. A primeira caracteriza-se por déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos. A segunda refere-se aos padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades (APA, 2014).
De acordo com Justo (2010), em uma crítica ao modelo biomédico de explicação sobre o autismo, a tentativa de agrupamento feita pelo DSM-5 fortalece a tendência de padronização dos indivíduos, ocultando suas diferenças e subjetividades. Reforça, com isso, uma perspectiva ontológica do autismo que o concebe como doença, entidade externa e maléfica ao indivíduo, que, mediante uma terapêutica adequada, poder ser eliminada (CANGUILHEM, 1995).
Ainda que os modos de categorização do autismo tenham se transformado ao longo dos anos, assim como suas denominações, mantém-se a concepção ontológica que sustenta, por sua vez, dicotomias que estabelecem as fronteiras entre o normal e o patológico: “[...] a doença difere da saúde, o normal do patológico como uma qualidade difere da outra, quer pela presença ou ausência de um princípio definido, quer pela reestruturação da totalidade orgânica” (CANGUILHEM, 1995, p. 21). A partir de uma noção socialmente imposta sobre o que é normal, define-se como anormal ou patológico tudo aquilo que, quantitativa ou qualitativamente, distancia-se do padrão. Normal e patológico assumem aqui um caráter estático e independente de condições culturais, sociais. No entanto, como afirma Canguilhem (1995, p.113), “não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação não são, em si mesmas, patológicas. Elas exprimem outras normas de vida possíveis”.
Em 1998, a socióloga e ativista Judy Singer inaugura, em sua tese de doutorado, o termo “neurodiversidade”, contrapondo-se a perspectiva médica do autismo. O movimento social, político e acadêmico, baseado na noção de “diversidade neurológica”, buscou romper com o estatuto ontológico do autismo e seus consequentes processos de estigmatização (SINGER, 2017; GOFFMAN, 1980; ORTEGA, 2008). Embasada nas teorias feministas, nos estudos culturais, no pós-modernismo e na noção da deficiência como construção social, Singer (2017) questiona o modelo médico e a noção hegemônica de normalidade, com vistas à emancipação e promoção dos direitos das pessoas com autismo.
A compreensão do autismo como diferença traz novas possibilidades de estudos, em especial nas ciências humanas. Situa-se no contexto dos chamados disability studies (DS) que, desde a década de 1970, buscam fortalecer o modelo social da deficiência em contraposição ao modelo biomédico ou modelo da tragédia pessoal. Diante do modelo social, as dificuldades vivenciadas pelas pessoas com deficiência deixam de ser compreendidas como individuais e se tornam barreiras impostas socialmente. A deficiência, antes pensada como tragédia, assume a posição de diversidade corporal e funcional, identidade social, cultural e política, e luta por direitos (GAUDENZI; ORTEGA, 2016).
Com relação ao autismo, destacam-se os Critical Autism Studies (CAS), termo cunhado por Davidson e Orsini em um encontro de pesquisadores no Canadá, em 2012, que resultou na obra Worlds of Autism: Across the spectrum of neurological difference (DAVIDSON; ORSINI, 2013). Compreendendo que o autismo é, para além de uma doença, uma rede de significados que se constrói a partir de múltiplas realidades, esse campo de estudos organiza-se a partir de três eixos: a) na ênfase sobre os modos como as relações de poder produzem o conhecimento sobre o autismo; b) na busca por novas narrativas sobre o autismo que discutam os discursos predominantes do modelo biomédico, centrado no déficit e degradação; e c) na construção de novas estruturas analíticas sobre o estudo da natureza e a cultura do autismo, com base em pressupostos teórico-metodológicos inclusivos (DAVIDSNON; ORSINI, 2013; O´DELL et al. , 2016).
Ainda que heterogêneas, as concepções sobre o autismo dos CAS criticam o modelo médico centrado na ideia de cura ou de “conserto” dos comportamentos autisticos. Enfatizam, por sua vez, o modelo social, tendo em vista seu esforço de buscar meios de acomodação das diferentes necessidades das pessoas na sociedade. No entanto, evitam radicalizar o debate, situando-se em um dos extremos, pois tal posicionamento paralisa o discurso público e pouco ajuda as pessoas com autismo. A visibilidade do autismo, muitas vezes promovida por um discurso sobre uma suposta epidemia, contribui para a construção de uma ponte entre “o mundo autista e os mundos onde as decisões são tomadas, os recursos alocados e as ações realizadas”, na política, na economia, na medicina e na ciência (DAVIDSON; ORSINI, 2013, paginação irregular, tradução nossa). Autores dos CAS chamam atenção para um olhar sobre os “mundos dos autismo” não desvinculados dos outros mundos, mas como parte do mundo social. Pois, a experiência autística não se encontra fora da realidade social; pelo contrário, constrói-se a partir desta.
Considerando os debates em torno dos estudos críticos do autismo, esta pesquisa pergunta sobre o atual estado do conhecimento sobre o autismo na perspectiva da neurodiversidade nas pesquisas educacionais brasileiras. Em um breve levantamento bibliográfico sobre pesquisas críticas sobre o autismo, a partir dos descritores ‘neurodiversidade’ e ‘autismo’ na base de dados “Periódicos CAPES”, foram encontrados, ao todo, 5 artigos escrito por pesquisadores da área da saúde, destacando-se os trabalhos de Ortega (2008, 2009), Ortega et al. (2013) e Rios e Andrada (2015). A mesma busca em língua inglesa resulta em 696 produções. Com relação às pesquisas na área da educação, tanto na base Periódicos Capes, como na Plataforma Educa, não foram encontrados artigos que tratasse o autismo na perspectiva da neurodiversidade.
Estudos de revisão de literatura sobre educação de pessoas com autismo mostram o crescimento de pesquisas sobre o tema, sobretudo a partir da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, publicada em 2008 (NASCIMENTO; CRUZ; BRAUN, 2017; NEVES et al., 2014; NUNES; AZEVEDO; SCHMIDT, 2013). Os resultados indicam que, a despeito da diversidade dos objetos de pesquisa investigado, são comuns a identificação de desafios relacionados à precariedade da formação docente, à adoção de práticas pedagógicas inclusivas e às concepções de atores escolares impõem limites à inclusão escolar e sugerem a necessidade de novas formas de pensar o autismo .
Com base na pergunta ‘como o autismo é pensado nas pesquisas educacionais?’, buscamos nesta pesquisa arrolar as explicações sobre autismo em teses e dissertações sobre inclusão escolar de pessoas com TEA e identificar trabalhos relacionados à neurodiversidade, produzidos em Programas de Pós-Graduação em Educação. Para isso, realizamos uma revisão de literatura, a partir do levantamento de teses e dissertações produzidas em programas de pós-graduação da área da educação, na Base Digital de Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação, Ciência e Tecnologia (BDTD/IBICT), entre os anos de 2008 e 2018. Com isso, esperamos contribuir para a problematização da noção de autismo na área da Educação, pois, como afirma Woods et al. (2018, p. 976, tradução nossa), “o autismo não é uma coisa, mas um debate sobre uma coisa”.
Tendo em vista o caráter exploratório e qualitativo desta pesquisa, a opção pelo universo de pesquisa partiu de alguns critérios. O período escolhido – de 2008 a 20181 – abrange os 10 anos de publicação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008). Com relação à literatura escolhida, as teses e dissertações, caracterizadas como relatórios de pesquisa, apresentam conteúdos detalhados e pormenorizados no que diz respeito às suas perspectivas teóricas e metodológicas, além de serem, em geral, inéditas e atualizadas em suas fontes (BOTELHO; OLIVEIRA, 2015). Tais características contribuem para o aprofundamento da análise pretendida, sobretudo no tocante à compreensão dos pressupostos teórico-metodológicos que orientam as explicações sobre o autismo. A opção pela BDTD/IBICT, por sua vez, deve-se à abrangência nacional dessa base de dados e à disponibilidade dos metadados das teses e dissertações para coleta. Embora encontramos produções das diferentes regiões do Brasil, vale lembrar que esta pesquisa não esgota o amplo universo de teses e dissertações produzidas no país, uma vez que a BDTD/IBICT não contempla todas as instituições de educação superior e seus programas de pós-graduação.
O levantamento bibliográfico foi realizado em setembro de 2018 na BDTD/IBICT, a partir dos descritores autismo, autista e educação, com periodicidade definida entre 2008 e 2018. A pesquisa inicial resultou em 106 títulos que foram exportados da BDTD para uma planilha excel. Os dados da planilha foram organizados, conforme as informações fornecidas automaticamente pela base de dados, por autoria, título, orientador(a), ano de defesa, região da instituição de origem, programa de pós-graduação, tipo (tese ou dissertação), área de conhecimento do CNPq (quando indicado) e palavras-chave
A produção do corpus da pesquisa baseou-se nos seguintes critérios: (a) defesa realizada em Programas de Pós-graduação em Educação e; (b) presença de termos relacionados à educação inclusiva em seus títulos ou palavras-chave. Com o propósito de identificar as pesquisas em educação, agrupamos as produções em diferentes áreas de conhecimento, com base nos Programas de Pós-Graduação de origem. A tabela 1 apresenta a distribuição das pesquisas encontradas, por área de conhecimento:
Dos 52 trabalhos produzidos em PPGs da área de educação (Educação, Educação especial, Gestão e Políticas Públicas, Educação para a Ciência, Educação Escolar, Mestrado Profissional em Educação, Docência para a Educação Básica), selecionamos apenas aqueles que tivessem nos títulos ou nas palavras-chave termos relacionados à educação inclusiva, a saber: inclusão escolar, inclusão educacional, escolarização, educação inclusiva, inclusão. Excluímos os trabalhos referentes à cognição, desenvolvimento físico e motor, comunicação alternativa e tecnologias alternativas, família e saúde. Obtivemos, assim, o corpus da pesquisa composto por 22 produções.
A análise de conteúdo do corpus orientou-se pelos seguintes procedimentos: identificação do contexto de produção das pesquisas, por ano, instituição e programa de pós-graduação de origem, natureza da instituição, região e tipo; leitura das obras na íntegra; elaboração de fichas de leitura, de cada produção, a partir dos critérios: objeto de pesquisa, método (abordagem, instrumentos, procedimentos), fundamentação teórica (quando explicitada), explicações sobre autismo (termos mais utilizados, abordagens teóricas, apropriação das definições segundo os manuais de diagnóstico, uso abordagens críticas, citações que corroborem a explicação), resultados; sistematização e organização dos dados obtidos nas fichas de leitura em quadro-resumo, organizado por título, método, fundamentação teórica, explicações sobre autismo; categorização das explicações sobre autismo, com base no quadro resumo e nas fichas de leitura.
As pesquisas sobre educação de pessoas com TEA identificadas na BDTD/IBICT concentram-se em instituições públicas, totalizando 20 das 22 produções. Com relação às regiões, as IES da região sudeste contam com maior número de produções (n=10). Encontramos apenas duas teses, uma produzida no sudeste e uma no nordeste, conforme mostra a tabela 2.
Com relação à periodicidade, observamos o crescimento das produções entre os anos de 2014 e 2016. O aumento de tais produções pode estar relacionado à crescente visibilidade do TEA, oriunda de movimentos sociais e destaques na mídia (ORTEGA, 2008), de fatores de ordem política como a publicação da lei Berenice Piana (BRASIL, 2012) e a atribuição do status de deficiência ao autismo, da Lei Brasileira de Inclusão, em 2015 e dos processos de implementação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva de Educação Inclusiva desde 2008. Nesta pesquisa não identificamos trabalhos anteriores a 2010, o que se deve, possivelmente às restrições da própria base de dados e dos descritores utilizados, já que outros estudos de revisão, como o de Neves et al. (2014), evidenciam a existência de pesquisas sobre inclusão escolar de pessoas com TEA já na década de 1990. Do mesmo modo, a queda observada em 2018 pode estar relacionada ao período definido para o levantamento da literatura, finalizado em setembro de 2018.
Todas as 22 pesquisas que integraram o corpus deste estudo adotaram metodologias de abordagem qualitativa, utilizando-se de instrumentos de geração de dados como observação, entrevistas, questionários e análise documental e pesquisa bibliográfica, característicos das pesquisas qualitativas. Em 19 das 22 produções, o professor é o principal participante dos processos de investigação que abordam as práticas pedagógicas, as interações com o estudante e com a família, a formação docente, as políticas educacionais e as concepções sobre inclusão de estudantes com TEA (AFONSO, 2014; AZEVEDO, 2017; BIANCHI, 2017; COSTA, 2015; FERNANDES, 2017; FERREIRA, 2015; GALLO, 2016; LAGO, 2017; MACÊDO, 2015; PEREIRA, 2016; RAHME, 2010; REDMERSKI, 2018; RIBEIRO, 2014; RINALDO, 2016; RODRIGUES, 2018; SILVA, 2016; SILVA, 2018; VIEIRA,2016; SILVA, 2013 ).
Apenas uma pesquisa, que discutiu o caráter emancipador da educação, realizou entrevista com os estudantes com TEA, além de pais e professores (SANTOS, 2016). Os trabalhos de Furtado (2011) e Castanha (2016), por sua vez, distanciam-se das abordagens centradas na figura do professor. O primeiro trata das concepções sobre o autismo no discurso científico, por meio de uma pesquisa bibliográfica e, o segundo, discute a história das políticas educacionais por meio de pesquisa de documentos produzidos em associações de pais e amigos dos autistas.
As explicações sobre o autismo apresentadas nas 22 produções foram categorizadas em dois modelos distintos: o modelo médico e o modelo crítico. No modelo médico, foram incluídos os trabalhos cujas explicações fundamentaram-se nos manuais psiquiátricos (DSM IV, DSM 5 e Classificação Internacional de Doenças - CID 10), centrados na definição do autismo como déficit ou transtorno e na tríade ou na díade dificuldades2 relacionadas à comunicação, às habilidades sociais e ao desenvolvimento intelectual. No modelo crítico, por sua vez, inserem-se os trabalhos que problematizaram a perspectiva biomédica e buscaram outros modelos explicativos, alternativos ao modelo dominante.
A tabela 3 apresenta as pesquisas inseridas nos dois modelos, organizadas por assuntos pesquisados. Nota-se a concentração de pesquisas produzidas com base no modelo médico, 17 das 22, destacando-se os estudos sobre os processos de ensinar e aprender e as pesquisas sobre políticas públicas. (AZEVEDO, 2017; BIANCHI, 2017; CASTANHA, 2016; COSTA, 2015; FERNANDES, 2017; FERREIRA, 2015; GALLO, 2016; MACÊDO, 2015; OLIVEIRA, 2014; REDMERSKI, 2018; RIBEIRO, 2014; RINALDO, 2016; SANTOS, 2016; SILVA, 2013; SILVA, 2016; SILVA, 2018; VIEIRA, 2016). As pesquisas inseridas no modelo crítico abordam as interações entre atores escolares, as perspectivas sobre autismo e apenas uma delas trata dos processos de ensinar e aprender. (FURTADO, 2011; LAGO; 2017; PEREIRA, 2016; RAHME, 2010; RODRIGUES, 2018)
As categorias são amplas e os trabalhos que nelas se inserem apresentam diferenças significativas no modo como explicam o autismo e o relacionam com a educação. Com relação ao modelo médico, percebe-se, em alguns trabalhos, uma relação de causalidade entre as dificuldades dos estudantes com TEA e os desafios da inclusão escolar (RIBEIRO, 2013; GALLO, 2016; COSTA, 2015). Ou seja, com base nos manuais médicos, os autores evidenciam os ‘prejuízos do autismo’ como causa do impacto na escola, desconsiderando fatores de ordem social, como as barreiras pedagógicas, educacionais, comunicacionais e, principalmente, atitudinais no processo de escolarização das pessoas com TEA.
Também inserido no modelo médico, encontram-se pesquisas que, embora adotem os manuais médicos e as explicações genético-biológicas para definir o autismo, centrado no déficit e nos prejuízos, remetem às diferenças individuais e sociais, além de atribuir à educação, o papel de contribuir para o desenvolvimento dos estudantes com TEA (SILVA, 2013; SILVA, 2016; MACEDO, 2015; REDMERSKI, 2018; RINALDO, 2016). Entretanto, para que isso seja possível, é necessário “preparar as escolas e professores para atuar de maneira a propiciar a estas pessoas educação de qualidade” (SILVA, 2016, p. 40). Fundamentada em uma verdade que se fundamenta no saber médico, a pesquisa, assim como a escola, estabelece condições para incluir o outro-autista. Com isso, reafirma o processo de estigmatização do outro, por meio do que Goffman (1988) denomina de “aceitação fantasma”.
Exige-se do indivíduo estigmatizado que ele se comporte de maneira tal que não signifique nem que sua carga é pesada, e nem que carregá-la tornou-o diferente de nós; ao mesmo tempo, ele deve se manter a uma distância tal que nos assegure que podemos confirmar, de forma indolor, essa crença sobre ele. Em outras palavras, ele é aconselhado a corresponder naturalmente, aceitando com naturalidade a si mesmo e aos outros, uma aceitação de si mesmo que nós não fomos os primeiros a lhe dar. Assim, permite-se que uma aceitação-fantasma forneça a base para uma normalidade-fantasma.(GOFFMAN, 1988, p.133)
A discussão sobre a garantia de direitos de pessoas com autismo, embora presente em trabalhos de abordagem crítica, também se encontra naqueles inseridos no modelo médico (VIEIRA, 2016; SILVA, 2013). Tal relação é possível pela própria natureza normativa do Direito que exige clareza na definição dos sujeitos inseridos em determinados instrumentos legais, como a Lei 12.764 que Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (BRASIL, 2012). Pois, é apenas mediante o diagnóstico médico que é garantido, por lei, os direitos das pessoas com TEA. (CASTANHA, 2016).
Algumas pesquisas trazem a definição da Classificação Internacional de Funcionalidade (SILVA, 2018) e articulam o modelo médico a um modelo biopsicossocial de autismo. Aqui, ainda que prevaleça a explicação genética neurológica, com base nos manuais e centrada no déficit, própria do modelo médico, nota-se a busca por uma visão de indissociabilidade entre as condições biológicas, psicológicas e sociais da pessoa com TEA (SILVA, 2018; FERREIRA, 2015). Nesse ínterim, há pesquisas que destacam que apesar dos limites das pessoas com TEA, elas também possuem talentos que propiciam sua aprendizagem na escola (SILVA, 2016).
Há estudos cujas explicações oscilam entre os dois modelos, como é o caso de Afonso (2014) que, em seu capítulo teórico, apresenta um olhar crítico sobre a apropriação do discurso médico pela educação. No entanto, em sua pesquisa, que buscou captar compreensões de professores sobre o autismo, utiliza o discurso do DSM como um indicador da verdade. Assim, em sua análise de dados, as falas de professores que se aproximavam das explicações do DSM eram consideradas mais adequadas do que aquelas mais distantes. Estas, por sua vez, se encaixavam, por exemplo, na categoria ‘mito’. Com isso, Afonso (2014) ressalta a necessidade de formações que possibilitem os docentes de conhecer o autismo no tocante ao seu modelo médico, sem, entretanto, problematizá-lo à luz de teorias sociais ou educacionais.
Outra dissertação identificada como híbrida, oscilando entre o biomédico e o crítico, é o trabalho de Santos (2016). Embora o autor adote a abordagem biomédica de explicação do autismo, entende a educação como processo capaz de emancipar e transformar a realidade dos estudantes com TEA. Essa compreensão fundamenta-se na perspectiva freireana de educação, que acaba por romper com o determinismo biológico que condiciona os processos educacionais.
Dos 5 estudos inseridos na categoria “modelos críticos”, 2 são teses de doutorado. Assim como na categoria anterior, esta apresenta particularidades no tocante às suas abordagens. A crítica à abordagem médica oficial do autismo tanto em capítulo específico sobre o tema como sua sustentação ao longo do trabalho foi o critério utilizado para a inclusão de trabalhos nesta categoria.
Um ponto que diferencia os trabalhos de abordagem crítica dos trabalhos do modelo médico é a definição clara dos pressupostos epistemológicos. Assim, foi possível identificar três pesquisas de matriz psicanalítica, sendo duas teses e uma dissertação; uma tese de matriz materialista-histórico e; uma dissertação de matriz fenomenológica. A explicitação do posicionamento epistemológico do autor permite o desenvolvimento de uma “vigilância epistemológica” (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2004) ao longo do trabalho de pesquisa. Por sua vez, a coerência entre teoria e dados alcançada por tal vigilância reduz os riscos de se cair em empirismos, senso comum ou perspectivas contraditórias sobre a realidade, como no caso da educação inclusiva.
A pesquisa de Pereira (2016), orientadas pelo materialismo histórico, trata sobre as contribuições da psicologia histórico-cultural para a formação de professores de estudantes com TEA. Na leitura de sua tese, percebe, já no sumário, a diferença de tratamento dada ao autismo, com relação às pesquisas do modelo médico. O título da seção dedicada ao tema do autismo – “significados do autismo e suas repercussões escolarização” – já indica a problematização do discurso hegemônico, médico, e a importância de pensar o autismo em relação à área de produção da pesquisa, a educação. A coerência teórica permeia a tese como um todo, tanto no tocante às questões educacionais como ao autismo, distanciando-se, assim, do enfoque biomédico. A autora explica:
Tendo por base que o significado e o sentido pessoal são indissociáveis para compreender o processo de atribuição de sentido pessoal pelo professor nas formações ofertadas pelas Políticas de Educação Inclusiva envolvendo alunos com autismo, é preciso, entre outras ações, entender as condições históricas da conceituação do transtorno e dos objetivos para a escolarização e, então, discutir suas possíveis relações com a apropriação do significado pelos professores (PEREIRA, 2016, p. 81)
Em Pereira (2016), o autismo deixa de ser doença para se tornar um discurso permeado por sentidos e significados, concepção pela qual é possível, segundo a autora, transformar a prática docente, pois “as significações para o TEA e as justificativas para a escolarização desses sujeitos na busca de explicações etiológicas e classificações diagnósticas não acarretaram a superação de impasses pela educação escolar” (PEREIRA, 2016, p. 155).
As pesquisas de abordagem psicanalítica expõem uma crítica ao discurso médico dominante e buscam as relações entre Psicanálise e Educação para pensar o autismo, como um processo de constituição subjetiva (FURTADO, 2011; RAHME, 2010; LAGO, 2017). Rahme (2010) e Lago (2017) realizam estudos de caso em escolas regulares e abordam os laços sociais construídos nesse contexto. As seções dedicadas à discussão sobre o autismo não se reduzem às explicações baseadas nos manuais diagnósticos, trazendo uma compreensão de base psicanalítica, que supera o rótulo imposto pelo diagnóstico:
Pensamos assim que a psicanálise se diferencia por seu compromisso ético ao considerar o sujeito em toda sua singularidade, não o restringindo a um sistema de classificação diagnóstica, de modo que ao enquadrarmos uma criança em determinado quadro diagnóstico, estamos oferecendo um nome, além de lhe outorgar um lugar, definindo não só o que ela é, mas também delimitando o que será (LAGO, 2017, p. 43)
A partir da crítica ao modelo médico, os desafios da educação inclusiva residem não no sujeito, mas na abordagem que recai sobre ele por meio da “busca por classificação, homogeneização, adaptação e ajustamento social via educação escolar” (RAHME, 2010, p. 11). Em consonância com Gaudenzi e Ortega (2016, p.3063), as abordagens desses trabalhos aproximam-se de um modelo social da deficiência, uma vez que consideram que “habitar um corpo anômalo é uma experiência singular que pode ser descrita de diversas formas, dependendo da experiência subjetiva e do aporte ambiental.”
No cenário de crítica à hegemonia do discurso científico, a tese de Furtado (2011, p.11) aprofunda a problemática ao “investigar os sentidos do fascínio do autismo em suas determinações fantasísticas e ideológicas”. O autor analisa a história das ideias sobre o autismo desde os seus primórdios do século XVIII com Jean Itard e o menino-selvagem Vitor de Aveyron, passando pelo processo de psiquiatrização da infância e seus diagnósticos. Discorre sobre a abordagem psicanalítica, chegando por fim nas abordagem multiculturais contemporâneas, como o movimento da neurodiversidade3. Ao se debruçar sobre as diferentes explicações sobre o autismo, relacionando a problemática à educação, Furtado (2011) conclui que a leitura maniqueísta do autismo, ou seja, aquela que ontologiza a condição autista, provoca intolerâncias às diferenças, promovendo exclusões em uma situação que se almeja inclusiva.
A dissertação de Rodrigues (2018) também apresenta a crítica ao modelo médico, fundamentando-se em autores de matriz pós-crítica como Foucault e Canguilhem. A autora realiza uma pesquisa bibliográfica sobre escolarização de pessoas com TEA, analisando as concepções predominantes, em especial, no âmbito do ensino e aprendizagem. Nessa parte de sua dissertação, evidencia “a presença de pesquisas que fundamentam sua discussão a respeito do autismo tão somente em documentos oficiais e manuais diagnósticos, especialmente o DSM.” (RODRIGUES, 2018, p.121). O autor conclui que:
Grande parte dos pesquisadores apresentam suas concepções sobre essas crianças como se fossem fatos, o que, na verdade, é uma distorção ideológica. O estabelecimento do diagnóstico médico como verdade sobre o sujeito não é operativo para a educação e, por isso, vemos alguns trabalhos (como no caso da segunda categoria) que discutem o quanto a produção dessa verdade desimplica o professor de seu trabalho. (RODRIGUES, 2018, p.130)
Na segunda parte de sua dissertação Rodrigues (2018) buscou investigar, a partir de relatos de experiências, as perspectivas dos professores sobre a escolarização de estudantes com TEA. Os resultados mostraram que, conforme a fala dos professores os diagnósticos médicos atuam como barreiras em suas práticas, pois o que lhes falta “[...] não é conhecer tecnicamente as especificidades de cada diagnóstico clínico, [mas] sondar e avaliar os processos de ensino-aprendizagem a partir do próprio conhecimento técnico da professora.” (RODRIGUES, 2018, p. 152).
A pesquisa de Silva (2016), também de abordagem crítica, trata da perspectiva dos professores sobre o ensino de ciências aos estudantes com TEA, com base na fenomenologia. A explicação sobre o autismo exposta em sua dissertação, assim como as outras pesquisas inseridas no modelo crítico, problematizam a versão dos manuais diagnósticos. Traz, entretanto, uma diferença em relação às outras, ao evidenciar as potencialidades cognitivas das pessoas com autismo.
Este artigo objetivou analisar, por meio de revisão de literatura, as explicações sobre autismo em teses e dissertações sobre inclusão escolar, produzidas entre os anos de 2008 e 2018 e publicadas na BDTD/IBICT. As 106 produções levantadas inicialmente foram organizadas por área de conhecimento, sendo identificadas 52 relacionadas à área da educação. Destas, 22 compuseram o corpus da pesquisa por atender os seguintes critérios: (a) defesa realizada em Programas de Pós-graduação em Educação e; (b) presença de termos relacionados à educação inclusiva em seus títulos ou palavras-chave.
Sob o enfoque dos estudos críticos sobre autismo (DAVIDSON; ORSINI, 2013, WOORDS et al. , 2018; SINGER, 2017), as explicações sobre o autismo presente nas pesquisas foram categorizadas a partir de dois modelos, a saber: o modelo médico e o modelo crítico. No primeiro modelo, as explicações assentam-se nos manuais médicos, em especial os DSM IV e 5, reproduzido o modelo biomédico da deficiência. No segundo, as explicações adotam um olhar crítico sobre o modelo anterior, ressaltando aspectos de ordem social e cultural na construção da subjetividade da pessoa com TEA, bem como entre aqueles envolvidos, como os professores.
Distúrbio, transtorno, déficit, perturbação, inadequacidade, dificuldade e comprometimento são alguns dos nomes que acompanham o autismo nas 17 pesquisas aqui inseridas no modelo médico. Ao categorizá-las por assuntos, ressaltamos que 11 delas relacionam-se à temática do ensinar e aprender, como as práticas pedagógicas inclusivas e a formação docente. A conexão que se estabelece entre modelo médico e educação inclusiva nos trabalhos analisados tende a reforçar a perspectiva segregacionista da educação especial, ao colocar o estudante (e seu “defeito”) como eixo explicativo das falhas educacionais. Embora os discursos sobre inclusão apareçam sob a roupagem dos direitos e da ‘educação para todos’, as análises dos dados apresentadas, sustentadas pelo saber médico e pela empiria da pesquisa, reproduzem o velho modelo centrado na deficiência.
O impasse apresentado pelas pesquisas que aqui identificamos como de modelo médico, pode estar relacionado com o que Gonzalez (2015) identifica como uma ausência epistemológica da educação inclusiva, que esvazia a capacidade de reflexividade do discurso. A “economia explicativa” do fenômeno da educação inclusiva, reduzida apenas às pessoas com deficiência, provoca uma inclusão excludente, marginal, perversa. Nas palavras de Gonzalez (2015, p. 7), “uma epistemologia da educação inclusiva não deve se visualizar como uma construção teórica separada das problemáticas sociais e educativas co-existentes e circundantes.”. Deve, outrossim, romper com os discursos clássicos de naturalização do sujeito, buscando “assumir novas visões que não problematizem a condição, mas a situação de aprendizagem em um contexto de heterogeneidade cognitiva [e neurológica] do alunado”.
As 5 pesquisas inseridas no ‘modelo crítico’ adotam modelos teóricos distintos – psicanálise, psicologia histórico-cultural, pós-críticos, fenomenologia -, que, mediante a constante vigilância epistemológica (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2004), permitiram a produção de resultados que superam a perspectiva que naturaliza o autismo. Termos recorrentes no modelo anterior, como prejuízo e déficit, foram raramente identificados nesses trabalhos. O autismo deixa de ser substância, patologia, entidade externa ao indivíduo e torna-se diferença que se constrói nas complexas relações entre indivíduo, cultura e sociedade.
Por fim, podemos dizer que analisar produções científicas sobre o autismo traz uma multiplicidade de narrativas que revela, mais do que o conhecimento psíquico ou biológico, a natureza política, discursiva e cultural dos corpos. Para a educação, que se pretende inclusiva, cabe o desafio de desnaturalizar os discursos tradicionalmente elaborados a partir de uma suposta hierarquia as ciências naturais e humanas. E, com isso, construir epistemologias que garantam o reconhecimento do outro como sujeito de direitos, ator social, político, enfim, potência.