Resumo: A literatura tem constatado atrasos substanciais na capacidade de leitura e escrita em crianças surdas, sendo, contudo, escassa no que se refere à língua portuguesa. O presente estudo pretendeu caraterizar uma amostra de alunos surdos portugueses (3 meninos, 4 meninas, entre os 11 e os 12 anos de idade) do ensino fundamental em termos de grau de surdez, idade de diagnóstico, tempo de utilização de próteses/implantes e idade de ingresso numa escola especializada; e avaliar a competência destes alunos relativamente ao domínio da leitura e da escrita na sua segunda língua. Os alunos foram submetidos a uma bateria composta por 6 tarefas, que avaliaram o reconhecimento de palavras, a correspondência imagem-palavra, o cumprimento de instruções escritas, a legendagem de imagens, a compreensão de uma narrativa escrita e a produção de uma narrativa escrita. Foram observadas grandes discrepâncias em todas as variáveis independentes. Quanto às dependentes, a compreensão e a produção de uma narrativa escrita foram as competências em que os alunos revelaram maiores dificuldades. As estratégias de intervenção devem centrar-se na melhoria da compreensão da leitura, concentrando-se não apenas nas habilidades de nível básico, garantindo um conhecimento adequado do vocabulário usado em uma história específica, mas também em habilidades mais complexas, escalpelizando a sua estrutura e treinando habilidades de inferência a um nível global. Os dados revelados podem constituir um importante contributo, na medida em que a identificação de áreas fortes e fracas pode permitir um ajustamento de objetivos, métodos e/ou estratégias que, efetivamente, atendam às suas reais necessidades.
Palavras-chave:SurdezSurdez,diagnóstico, ensino especializadodiagnóstico, ensino especializado,prótesespróteses,leituraleitura,escritaescrita.
Abstract: The article aims to understand how academic research expresses in their productions speeches about the bodies of women said to have intellectual disabilities. The literature has found substantial delays in reading and writing skills in deaf children, but it is scarce regarding the Portuguese language. The present study aimed to characterize a sample of Portuguese deaf students (3 boys, 4 girls, ages 11 to 12) in terms of degree of deafness, age of diagnosis, time of use of prostheses or implants and age of admission in a specialized school; and to evaluate the competence of these students in the reading and writing in their second language. The students were submitted to a battery composed of 6 tasks, evaluated word decoding, image-word matching, compliance with written instructions, subtitling of images, understanding a written narrative, and producing a written narrative. Large discrepancies were observed in all independent variables. As for the dependent ones, the understanding and the production of a written narrative were the competences in which the students revealed greater difficulties. Intervention strategies should focus on improving reading comprehension, focusing not only on basic skills, ensuring adequate knowledge of the vocabulary used in a specific story, but also on more complex skills, scalping its structure and training inference skills at a global level. The data revealed can be an important contribution, insofar as the identification of strong and weak areas can allow an adjustment of objectives, methods and / or strategies that effectively meet their real needs.
Keywords: Deafness, diagnosis, specialized teaching, prosthetics, reading, writing.
Resumen: La literatura ha encontrado retrasos importantes en la lectura y la escritura en los niños sordos, sin embargo, es escasa en relación con la lengua portuguesa. Este estudio tuvo como objetivo caracterizar una muestra de estudiantes sordos portugués (3, 4 chicos, chicas entre 11 y 12 años) de la escuela primaria en términos de grado de pérdida, la edad de diagnóstico, uso de prótesis o implantes de tiempo audición y edad de ingreso en una escuela especializada; y evaluar la competencia de estos alumnos sobre el dominio de la lectura y la escritura en su segunda lengua. Los alumnos fueron sometidos a una batería compuesta por 6 tareas, evaluaron la decodificación de palabras, la correspondencia imagen-palabra, el cumplimiento de instrucciones escritas, el subtitulado de imágenes, la comprensión de una narrativa escrita y la producción de una narrativa escrita. Se observaron grandes discrepancias en todas las variables independientes. En cuanto a las dependientes, la comprensión y la producción de una narrativa escrita fueron las competencias en que los alumnos revelaron mayores dificultades. Las estrategias de intervención deben enfocarse en mejorar la comprensión de lectura, enfocándose no solo en las habilidades básicas, asegurando un conocimiento adecuado del vocabulario utilizado en una historia específica, sino también en habilidades más complejas, desglosando su estructura y capacitar habilidades de inferencia a nivel global. Los datos revelados pueden constituir una importante contribución en la medida en que la identificación de áreas fuertes y débil puede permitir un ajuste de objetivos, métodos y / o estrategias que en realidad, atiendan a sus reales necesidades.
Palabras clave: Sordera, diagnóstico, enseñanza especializada, próteses, lectura, escritura.
Relato de pesquisa
Desempenho em tarefas de leitura e escrita de alunos surdos do 1º Ciclo do Ensino Básico ao nível do Português L2
Performance in Reading and Writing Tasks of Deaf Students in Elementary Education regarding the learning of Portuguese as Second Language
Desempeño en tareas de Lectura y Escritura de los Estudiantes Sordos del 1er Ciclo de Educación Básica a nivel de L2 portugués
Recepção: 07 Setembro 2020
Aprovação: 28 Outubro 2020
Publicado: 27 Novembro 2020
Em Portugal, o artigo 23.º do Decreto-Lei n.º 3/2008, de 7 de janeiro, assim como o Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho, que o substitui, disponibilizam às crianças surdas o acesso à educação bilingue, que tem como premissa a aprendizagem da Língua Gestual Portuguesa (LGP) e o acesso ao currículo através desta, assim como o domínio do português escrito, competindo à escola contribuir para o seu crescimento linguístico, para a adequação do processo de ensino-aprendizagem e para a inclusão escolar e social dos alunos surdos. Para a consecução destes objetivos, foram criadas Escolas de Referência para a Educação Bilingue de Alunos Surdos (EREBAS), onde estão alocados os recursos materiais e humanos (i.e., Terapeutas da Fala, Docentes especializados na área da surdez, Formadores e Intérpretes de LGP) necessários à implementação de metodologias e estratégias de intervenção que atendam às suas necessidades específicas de aprendizagem.
Em termos curriculares, a principal adequação de que estes alunos beneficiam é a aprendizagem da LGP como primeira língua (L1) e o português escrito como segunda língua (L2), sendo as demais disciplinas curriculares idênticas a dos seus pares ouvintes, não obstante a possibilidade de introdução de objetivos e conteúdos intermédios em função das competências terminais do ciclo, das características de aprendizagem e/ou de dificuldades específicas que os alunos revelem (Ponto 4 do artigo 18.º). Apesar das interações entre professores e alunos ocorrer através da LGP, a leitura e a escrita são competências fundamentais para o seu sucesso escolar, na medida em que grande parte dos conteúdos curriculares são adquiridos e posteriormente avaliados através destas. Contudo, a sua aprendizagem constitui um processo extenso e particularmente complexo no caso de crianças surdas, dada a privação sensorial e os atrasos associados ao nível da aquisição e do desenvolvimento da linguagem (UZUNER, 2008).
O ensino da Língua Portuguesa, como segunda língua, justifica-se por estar presente em todas as esferas sociais, tornando-se necessária, entre outros aspectos, para que os alunos surdos oriundos de países cuja língua oficial seja o português (falado) possam ter acesso aos conhecimentos historicamente construídos pela humanidade e que se encontram perpetuados por meio da escrita (CARVALHO; CAVALCANTI; SILVA, 2019). Contudo, a investigação tem observado em crianças surdas atrasos substanciais na capacidade de compreensão, relativamente aos seus pares ouvintes (WAUTERS; VAN BON; TELLINGS, 2006), assim como dificuldades em outros aspetos relacionados, como o domínio do vocabulário, o reconhecimento de palavras e o conhecimento da estrutura sintática da língua falada (SULLIVAN; OAKHILL, 2015). Consequentemente, estas crianças tendem a deixar com frequência a escola precocemente, sem competências de leitura e de escrita consolidadas, comprometendo a longo prazo o prosseguimento de estudos e/ou o acesso a oportunidades de emprego (KYLE; HARRIS, 2011). No que se refere à avaliação do desempenho de alunos com deficiência auditiva em tarefas específicas de leitura e de escrita, existe uma grande lacuna de investigação não apenas em Portugal, mas no contexto global da lusofonia, atendendo a que a maioria dos estudos existentes referem-se, sobretudo, à resenhas histórias acerca da educação de surdos a partir da emancipação das línguas gestuais de países onde se fala português (PERLIN; STROBEL, 2014; ALMEIDA; VAZ; CORREIA, 2019; PALHA; MINEIRO, 2019), reflexões sobre o bilinguismo enquanto modelo de escolarização de alunos surdos (FERREIRA, 2005; BAPTISTA, 2010; PREUSS; ÁLVARES, 2014; STREIECHEN et al, 2017), aquisição da Língua Gestual como fator indispensável à aprendizagem do portugês como segunda língua (NASCIMENTO; RIBEIRO, 2013; SILVA, 2015), relatos de experiências de ensino com alunos surdos (GEDIEL et al, 2012; ROCHA et al, 2015) e/ou sobre os contributos das relações familiares para o seu sucesso escolar (RUELA, 2000).
No entanto, sendo a surdez uma patologia não observável, a maioria dos casos não é detetado até se verificar um atraso no desenvolvimento da fala e da linguagem (GHIRRI et al., 2011). Assim, é fundamental que a surdez seja identificada até ao sexto mês de vida, através de um Rastreio Auditivo Neonatal (RAN), a partir do qual, caso se confirme a perda auditiva, poderão ser providenciadas as respostas mais adequadas a cada caso e maximizar as competências linguísticas precedentes ao processo de alfabetização (JOINT COMMITTEE ON INFANT HEARING, 2007). Em Portugal, o Rastreio Auditivo Neonatal Universal (RANU) não é obrigatório, não existindo regulamentação legislativa sobre esta matéria. Contudo, a maioria das maternidades públicas possui os recursos materiais e humanos necessários à sua realização, embora não exista um tratamento a nível nacional dos dados obtidos, acarretando grandes dificuldades para uma implementação articulada do processo de habilitação auditiva (MONTEIRO, 2010).
Assim, o presente estudo pretende (1) caraterizar uma amostra de alunos surdos do ensino fundamental em termos de grau de surdez, idade de diagnóstico, tempo de utilização de próteses ou implantes e idade de ingresso numa escola especializada para a educação bilingue e (2) avaliar a competência de alunos surdos portugueses relativamente ao domínio (compreensão da leitura e produção escrita) da sua segunda língua.
Participaram neste estudo 7 alunos de uma escola de referência para o ensino bilingue a alunos surdos do sul de Portugal, sendo 3 meninos e 4 meninas, com idades compreendidas entre os 11 e os 12 anos. Os preceitos éticos foram respeitados durante o estudo, os objetivos e os instrumentos explicados aos alunos e respetivos pais/encarregados de educação, tendo estes autorizado a participação de seus educandos mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Para avaliar a proficiência linguística, foi utilizado o Teste de diagnóstico de Português Língua Não Materna, desenvolvido pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional e que se encontra disponível para consulta e download no site da Direção-Geral de Educação do Ministério da Educação (http://www.dge.mec.pt/portugues-lingua-nao-materna). A sua aplicação destina-se a alunos nascidos em países cuja língua oficial não seja o português e que residam em território nacional; ou a alunos que, apesar de nascidos e residentes em Portugal, são filhos de pais provenientes de países cuja língua oficial não seja o português. No caso dos alunos surdos que optam pelo ensino bilingue, embora não seja um teste especificamente concebido para esta população, a sua aplicação justifica-se pelo facto de a sua primeira língua ser a Língua Gestual Portuguesa (LGP) e o português a sua segunda língua (L2).
O teste apresenta duas versões: uma para ser aplicada a alunos do 1.º e 2.º ano de escolaridade e outra que pode ser aplicada a alunos do 3.º ao 6.º ano. Ambas as versões são constituídas por duas partes distintas: a Parte I avalia as competências do aluno ao nível da compreensão e da interação oral, enquanto a Parte II avalia as competências ao nível da compreensão e da produção escrita. Atendendo às características da amostra em estudo, optamos apenas pela aplicação da Parte II, devido a reduzida necessidade de adaptação da versão original. No caso dos alunos do 3.º e do 4.º ano, o teste é constituído por seis tarefas: I – Reconhecimento de palavras escritas e sua associação a imagens ilustrativas das mesmas; II - Escrita de palavras a partir de imagens ilustrativas das mesmas; III - Compreensão de instruções escritas; IV - Legendagem de imagens; V - Compreensão de um texto narrativo; e VI - Elaboração de uma narrativa escrita. Foram ainda recolhidos outros dados individuais, a partir dos registos escolares, como o grau de surdez, o relatório clínico onde é recomendada ou não a utilização de meios auxiliares de audição com base nos resultados obtidos no Rastreio Auditivo Neonatal Universal (RANU), que consiste numa medição fisiológica realizada até trinta dias após o nascimento para um nível de surdez superior a 35 decibéis no melhor ouvido.
Foi utilizado um modelo estatístico descritivo para caracterizar a amostra em termos de faixa etária, de grau de surdez, de contexto familiar (pais surdos ou ouvintes), do uso ou não de equipamento auxiliar de audição e para apresentar os resultados dos testes aplicados. Foi utilizada a versão 25 do SPSS.
Podemos observar, através da Tabela 2, que a faixa etária da amostra se situa nos 11 anos, não havendo uma dispersão substancial. No entanto, constatamos a existência de diferenças acentuadas ao nível das demais variáveis, nomeadamente na idade de diagnóstico da surdez, tendo num dos casos ocorrido perto dos três meses de idade. Do mesmo modo, ao nível dos equipamentos de apoio à audição, observamos notórias discrepâncias na idade com que foi iniciada a sua utilização, tendo chegado a perto dos oito anos de idade num dos casos. Relativamente ao acesso a um ensino especializado, verificamos que a maioria iniciou o seu percurso educativo numa escola de referência, em média, a partir dos cinco anos de idade, havendo, no entanto, quem o tenha feito apenas por volta dos nove.
Destacamos, ainda, o hiato temporal existente entre a idade de diagnóstico, a idade de início do uso de próteses/implantes e a idade de ingresso numa escola de referência para alunos surdos, havendo apenas um aluno que passou a utilizar próteses muito tempo depois de ter entrado para uma EREBAS. No que se refere ao grau de surdez, observamos, através da Tabela 2, que a esmagadora maioria da amostra apresenta surdez profunda. Relativamente ao uso de meios auxiliares de audição, pouco mais de metade da amostra utiliza próteses ou implantes. Constatamos ainda que apenas um elemento não realizou o rastreio para o despiste de problemas ao nível da audição e que todos os participantes no estudo possuem pais ouvintes.
Em relação às tarefas que foram realizadas, podemos observar, através de Tabela 3, um distanciamento crescente entre o valor médio alcançado pela amostra em cada tarefa e a respetiva pontuação máxima, concomitante a um aumento na variação da performance em cada tarefa ao longo da bateria. Realçamos o facto de, nas tarefas de compreensão e de elaboração de uma narrativa escrita, os valores máximos conseguidos pela amostra terem estado muito aquém da pontuação máxima que as mesmas permitiam.
O presente estudo teve como um dos objetivos caracterizar uma amostra de alunos surdos em termos de idade diagnóstico da surdez, tempo de utilização de próteses ou implantes e a idade em que iniciou o seu percurso escolar numa escola de referência para a educação bilingue. Relativamente ao diagnóstico, observamos que a maioria da amostra realizou o RANU, apresentando uma idade média de identificação da surdez inferior ao observado em outros países europeus, nomeadamente Itália (CANALE et al., 2006) e Turquia (OZCEBE; SEVIN; BELGIN, 2005), e nos Estados Unidos (SININGER et al., 2009). No entanto, no panorama nacional, os dados do presente estudo são superiores aos observados recentemente no norte do país, onde a confirmação do diagnóstico dos casos de perda auditiva foi efetuada em média aos 4 meses de idade (VAZ et al., 2010). A não identificação precoce de uma perda auditiva pode afetar adversamente o desenvolvimento ideal da fala e da linguagem, a aquisição de competências ligadas à literacia e o desenvolvimento acadêmico, social e emocional de um indivíduo, havendo evidências robustas de que uma intervenção realizada antes dos 6 meses de idade pode permitir que estas crianças tenham um desenvolvimento significativamente melhor no vocabulário, na comunicação, na inteligência, em habilidades sociais e nos comportamentos necessários para alcançarem sucesso na vida (ERENBERG et al., 1999; CARNEY; MOELLER, 1998; YOSHINAGA-ITANO, 1995;). O único caso observado, na amostra em estudo, de não realização do RANU pode encontrar justificação no facto de se tratar de uma criança de etnia cigana, cujo nomadismo que a caracteriza dificulta um acompanhamento sistemático, tanto em termos de saúde como de educação (SANTOS, 2015).
No que se refere a utilização de aparelhos auditivos, verificou-se que a idade média com que as crianças da nossa amostra começaram a usar aparelhos auditivos era de, aproximadamente, sete anos, contrastando substancialmente com o observado nos Estados Unidos (SININGER et al., 2009) e na Turquia (OZCEBE; SEVIN; BELGIN, 2005), onde as crianças surdas dispunham destes aparelhos entre os dois e os três anos de idade. A sua prescrição às crianças com perdas auditivas baseia-se em descobertas que apontam para um aumento da consciência relativamente aos sons do ambiente que as rodeiam, podendo auxiliar no desenvolvimento da fala (NIPARKO, 2009) e na promoção de uma melhoria na qualidade das suas interações sociais no seio das comunidades predominantemente ouvintes/falantes onde vivem (COOPER; CRADOCK, 2006). Contudo, um usufruto pleno dos benefícios potenciados pela utilização de implantes cocleares depende de um conjunto de fatores, como a idade com quem foram implantados (CONNOR; ZWOLAN, 2004; CONNOR et al, 2006; GEERS et al, 2008; HAYES et al, 2009), o tempo decorrido entre o diagnóstico de surdez e o início da sua utilização (YOON, 2011), a existência de audição residual no período pré-operatório (GEERS et al., 2008; CONNOR; ZWOLAN, 2004), a utilização de implantes simples ou bilaterais (YOON, 2011), o tempo de utilização de implantes (CONNOR et al., 2006), variáveis educacionais e sociais (GEERS; NICHOLAS; SEDEY, 2003) e uma possível existência de comorbidades (WILEY et al., 2005). No caso da amostra em estudo, a idade média com que foi iniciada a utilização do implante coclear é substancialmente superior aos dois anos e meio de idade, descritos na literatura como sendo o limiar para que sejam observados efeitos positivos consideráveis em diferentes domínios do desenvolvimento da linguagem, como a percepção da fala (MANRIQUE et al., 2004; ROBBINS et al., 2004; ZWOLAN et al., 2004), a produção de fala (TYE-MURRAY; SPENCER; WOODWORTH, 1995), o vocabulário (CONNOR et al., 2000), a gramática (NIKOLOPOULOS et al., 2004) e a compreensão de leitura (CONNOR; ZWOLAN, 2004).
Em termos de acesso a um ensino especializado, que atenda às especificidades que caracterizam o processo de ensino-aprendizagem de uma criança surda, verificamos que, no caso da amostra em estudo, ocorreu por volta dos cinco anos de idade. A criação das escolas de referências em Portugal para pessoas com deficiência auditiva teve por objetivo proporcionar à comunidade surda o acesso ao ensino bilíngue baseado no modelo de interdependência linguística de Cummings (1989), que postula a existência de uma proficiência transversal a todas as línguas e que permitiria que as competências linguísticas adquiridas em um primeiro idioma (L1) pudessem ser transferidas para a aprendizagem de um segundo idioma (L2), desde que "(...) exista exposição adequada a L2 (na escola ou noutros contextos) e motivação adequada para a aprender "(CUMMINS, 1981, p.29). No entanto, alguns consideram que esse argumento se baseia em uma falsa analogia, pois a educação de surdos não cumpre com as condições assumidas por aquele modelo (MAYER; WELLS, 1996). Supondo que uma pessoa ouvinte cresça em uma cultura alfabetizada e seja inevitavelmente exposta, ela aprenderá a forma escrita e falada de sua primeira língua (L1), podendo essa proficiência adquirida ser então transferida para uma segunda língua (L2), caso estejam reunidas as condições adequadas para a sua aprendizadagem, ou seja, que a pessoa esteja integrada em uma comunidade que usa essa língua (L2) nas suas vertentes falada e escrita. No entanto, para os autores, essas condições não se aplicam ao caso do aluno surdo, pois, tendo acesso mínimo ao canal de comunicação auditivo-oral, a maioria destas pessoas não chega a desenvolver uma fala inteligível, aprendendo antes uma língua visuo-espacial. A língua gestual é, portanto, a sua primeira língua (L1) para a comunicação face a face, sendo, por isso, equivalente a qualquer outro idioma. No entanto, essa equivalência não se estende à escrita, pois, apesar dos esforços para criar uma ortografia para as línguas gestuais (SPERLING, 1978), nenhuma possui ainda uma forma escrita amplamente aceita. Assim, quando se trata de comunicar através da escrita, os surdos devem, necessariamente, recorrer à forma escrita de alguma outra língua falada, sendo aqui que a aplicabilidade do modelo de interdependência linguística é posto em causa. Como a sua língua materna (gestual) não tem forma escrita, os alunos surdos não podem adquirir habilidades de alfabetização na primeira língua, levando consequentemente a que eles não possuam competências linguísticas para transferir para a forma escrita de um segundo idioma falado.
A segunda parte do presente estudo teve como objetivo avaliar a proficiência linguística de alunos surdos relativamente à compreensão e à produção escrita na sua segunda língua. Em relação a primeira tarefa, a proximidade da média alcançada pela amostra à pontuação máxima possível é reveladora da capacidade dos alunos surdos estudados em reconhecer palavras apresentadas isoladamente, podendo ser explicado primeiramente pela extensão do vocabulário que conhecem e que estudos revelam contribuir para a decodificação/reconhecimento de palavras (FAGAN, 2016). Sobre esta competência, Pijfers (1989) constatou, no seu estudo com crianças surdas holandesas, que estas são capazes de reconhecer/decodificar palavras escritas com maior facilidade quando conhecem o gesto correspondente na sua língua de sinais. Nesse sentido, no caso da amostra em estudo, podemos atribuir o sucesso alcançado ao facto de os alunos dominarem os sinais correspondentes às palavras que constituem o teste (bola, sapato, garfo, cadeira, saia, cão, calças, pássaro e bicicleta), visto tratar-se de um léxico frequentemente utilizado no seu quotidiano. Essa mesma linha de pensamento pode ser usada para perceber o resultado obtido no segundo teste, que solicitava ao aluno a escrita de uma palavra com base na imagem que a representa. Em um estudo com crianças surdas brasileiras, Capovilla et al. (2006) verificou que, ao escolher palavras para nomear figuras, os surdos primeiramente lembram o gesto correspondente à figura e, depois, a palavra correspondente ao gesto, corroborando a hipótese de que o léxico gestual serve de apoio ao ortográfico.
A compreensão da leitura foi, entretanto, o domínio onde a amostra revelou maiores dificuldades, sobretudo no caso de textos narrativos, onde um elemento da amostra não conseguiu obter qualquer pontuação nesta tarefa. A compreensão de um texto envolve estabelecer conexões entre as ideias nele expressas e conhecimentos relevantes previamente adquiridos, dentre os quais destacam-se o conhecimento linguístico, a perceção textual e o conhecimento do mundo (TRENCHE; BALIEIRO, 2006). A comparação entre os fracos resultados obtidos nesta tarefa e os referentes ao reconhecimento de palavras, onde os alunos revelaram uma competência satisfatória, confirmam as evidências de que as crianças com deficiência auditiva podem aprender com relativa facilidade a decodificação de símbolos gráficos, embora possam, no entanto, apresentar dificuldades em compreender um texto no seu sentido mais profundo (LICHTIG; COUTO; LEME, 2008). A compreensão de um texto depende não apenas do reconhecimento das palavras que o compõem, mas sim da compreensão das frases que da junção destas resultam e, sobretudo, da sua integração, com o propósito de elaborar uma representação coerente da mensagem que pretendem transmitir na sua globlalidade (SULLIVAN; OAKHILL, 2015). Esse processo de integração apela à realização de inferências, que em leitores experientes são concretizadas com base nas suas experiências pessoais, no conhecimento prévio das estruturas narrativas e na sua cultura geral, para além de uma monitorização constante da sua compreensão relativamente ao texto lido e de ações corretivas empreendidas, como a releitura de um trecho, sempre que um problema é detetado. O processo de integração pode ser dividido em dois níveis, sendo o "nível básico" o que agrega domínios como o vocabulário, o reconhecimento de palavras e o conhecimento da estrutura sintática, enquanto o "nível avançado" incorpora a capacidade do leitor para integrar informações de diferentes partes de um texto, generalizar inferências e monitorizar a sua compreensão ao longo da leitura. No caso do aluno surdo, não obstante as limitações que lhe são reconhecidas ao nível do processamento fonológico, estudos têm constatado a sua competência no processamento de palavras escritas (KARGIN et al., 2012; KOO et al.,2008; MILLER, 2001, 2002; MILLER; CLARK, 2011), pondo assim em dúvida a teoria de que um déficit fonológico poderia explicar totalmente as dificuldades de compreensão observada nestes leitores (HANSON; FOWLER, 1987; HANSON; MCGARR, 1989; KYLE; HARRIS, 2006; MCQUARRIE; PARRILA, 2009; MILLER, 2007). Relativamente ao vocabulário, são igualmente reconhecidas limitações em indivíduos surdos nesta área (MITCHELL; KARCHMER, 2003), o que pode representar um fator limitativo para o desenvolvimento de competências ao nível da compreensão da leitura (PAUL, 1996; WAUTERS et al., 2001). No caso da amostra em estudo, atendendo aos resultados satisfatórios obtidos na tarefa concernente à avaliação da sua capacidade para reconhecer palavras e expressar o seu significado conceitual (tarefas I e II), podemos concluir que as dificuldades observadas nas tarefas destinadas a avaliação da capacidade de compreensão de instruções escritas (tarefa III) e de compreensão de um texto narrativo (tarefa IV), e sobretudo nesta, fundamentam-se nas limitações associadas a indivíduos surdos ao nível do conhecimento da estrutura sintática própria da língua oral na sua vertente escrita e que podem contribuir para a grande variância observada na sua competência leitora (MILLER et al., 2012). Existem nas sequências linguísticas da linguagem gestual processos de organização sintática diferentes dos da linguagem verbal, nomeadamente ao nível do complemento direto, onde não é exigido, por exemplo, no caso específico da LGP, um posicionamento obrigatório do verbo em função do sujeito ser animado ou não, contariamente ao que acontece na Língua Portuguesa, em que determinados verbos transitivos não podem ser precedidos por sujeito inaminados (AMARAL; COUTINHO; MARTINS, 1994).
Entretanto, foi na elaboração de uma narrativa escrita a partir de uma sequência de seis imagens que os alunos obtiveram os piores resultados. As dificuldades reveladas estenderam-se aos quatro domínios definidos como critérios para a análise das produções textuais, nomeadamente (1) a localização temporal/espacial dos eventos, (2) a coesão textual, (3) a construção de frases e (4) o vocabulário. Praticamente todos os elementos da amostra limitaram-se a descrever numa frase simples, na maioria dos casos com agramaticalidades, cada uma das seis imagens que compunham a sequência apresentada, não se observando qualquer tentativa de encadeamento entre elas que permitisse no seu conjunto a compreensão de uma história narrativa. Estas características coincidem com os resultados observados por Almeida (2009) em alunos surdos do mesmo nível de ensino na região de Lisboa, assim como com outros estudos sobre a qualidade da escrita narrativa produzida por alunos surdos (ALBERTINI; SCHLEY, 2011; ANTIA; REED; KREIMEYER, 2005), que verificaram que os textos produzidos tendem a ser compostos por frases curtas, em que ocorrem a repetição de palavras na mesma frase, a ausência de pontuação, o uso excessivo de artigos e nomes, em contraponto à escassez de advérbios e conjunções, não impedindo contudo que os seus textos sejam relativamente compreensíveis, embora caracterizados como tendo uma organização deficitária, carência de detalhes e um discurso imaturo. Destacamos, no entanto, o facto de nesta prova apenas duas alunas terem conseguido pontuar, sendo uma delas utilizadora de um implante coclear (6 pontos) e outra que não utiliza qualquer dispositivo auxiliar de audição (15 pontos). Pesquisas mostram que crianças surdas que recebem implante coclear até o segundo ano de vida podem desenvolver competências lexicais na produção oral, assim como no domínio da gramática recetiva e expressiva, equivalentes às de seus pares ouvintes (NICHOLAS; GEERS, 2007; CASELLI et al., 2012). No entanto, a colocação de um implante coclear entre os 1 e os 2 anos de idade não garante que tais habilidades linguísticas estejam dentro dos limites normais, mesmo após 6 anos de uso (DUCHESNE; SUTTON; BERGERON, 2009), o que pode explicar o atraso desta aluna, visto que começou a utilizar o implante coclear e iniciou o seu percurso numa escola especializada apenas a partir dos oito anos de idade.
Por outro lado, relativamente a aluna surda que obteve melhor pontuação na tarefa de elaboração de uma narrativa escrita, o seu bom desempenho estendeu-se igualmente às demais tarefas realizadas. A competência demonstrada ao nível da sua segunda língua (L2) corrobora as evidências relatadas em outros estudos que apontam a idade de aquisição de uma primeira língua (L1) como um fator determinante para o sucesso numa segunda, tendo uma exposição precoce à L1 um impacto positivo na aprendizagem da leitura, na consciência fonológica1 e na competência linguística global em ambas as línguas (MAYBERRY, 2007; KOVELMAN; BAKER; PETITTO, 2008). Para tal, as características dos contextos em que esta criança surda vive, nomeadamente em casa, onde os pais e irmãos apesar de ouvintes revelam alguma fluência em LGP, assim como na escola especializada que frequenta desde os quatro meses de vida e onde convive com adultos surdos (Professores de LGP) e ouvintes proficientes em LGP (Professores de Educação Especial, Terapeutas da Fala e Intérpretes) e outras crianças surdas, contribuem para o seu desenvolvimento linguístico (LEDERBERG; SPENCER; SCHICK, 2013).
O presente estudo apresenta algumas limitações, sobretudo ao nível do tamanho reduzido da amostra, o que condicionou a realização de uma análise inferencial acerca do impacto das variáveis independentes (e. idade de diagnóstico, tempo de utilização de próteses/implantes e idade de ingresso numa EREBAS) sobre os resultados alcançados nos testes de língua L2 aplicados (variáveis dependentes). Contudo, dada a escassez de conhecimentos sobre as competências linguísticas de alunos surdos oriundos de países cuja língua oficial seja o português, as questões tratadas neste trabalho de investigação representam um contributo para que possam ser delineadas prioridades e estratégias pedagógicas que permitam à estas crianças ultrapassarem as suas dificuldades.
O presente estudo aborda um conjunto de questões acerca da problemática da surdez, que vão desde do diagnóstico e da idade em que ocorre até a importância do contato precoce com a língua de sinais para a criança surda, bem como os benefícios decorrentes do acesso a um ensino especializado. Ao nível das competências linguísticas, a compreensão da leitura, assim como a produção de uma narrativa escrita, foram as áreas em que os alunos estudados revelaram maiores dificuldades, o que parece estar em linha com a literatura sobre esta temática. Assim, as estratégias de intervenção devem ter como objetivo melhorar a compreensão da leitura, concentrando-se não apenas nas habilidades de nível básico, garantindo um conhecimento adequado do vocabulário usado em uma história específica, mas também em habilidades mais complexas, escalpelizando a sua estrutura e treinando habilidades de inferência a um nível global. Os dados revelados podem constituir um importante contributo para pais de crianças surdas e, sobretudo, para os professores que com elas trabalhem diariamente, na medida em que a identificação de áreas fortes e fracas pode permitir um ajustamento de objetivos, métodos e/ou estratégias que, efetivamente, atendam às suas reais necessidades.