Resumo: O artigo analisa, do ponto de vista legal e constitucional, os desígnios do movimento “Escola Sem Partido” por meio de uma pesquisa doutrinária profunda sobre a finalidade constitucional da educação no Brasil e também sob a perspectiva de julgados do Supremo Tribunal Federal (STF) e dos Tratados Internacionais. Este estudo é feito através de pesquisa bibliográfica profunda e exame de julgados e visa a ressaltar a inconstitucionalidade dos instrumentos normativos que derivam do movimento “Escola Sem Partido”, em relação ao propósito do movimento e nos termos já analisados pelo STF, com destaque para os princípios e garantias constitucionais violados, especialmente aqueles que devem alcançar o exercício de cátedra e a garantia plena de acesso à educação.O artigo, ademais, justifica a conclusão pela inconstitucionalidade dos instrumentos derivados do movimento, com a devida indicação das violações, que se mostram incompatíveis com a garantia de uma sociedade democrática.
Palavras-chave:EducaçãoEducação,EscolaEscola,PolíticaPolítica,InconstitucionalidadeInconstitucionalidade,IdeologiaIdeologia.
Abstract: The article analyzes, from a legal and constitutional point of view, the aims of the “School Without Party” movement through a profound doctrinal research on the constitutional purpose of education in Brazil and also from the perspective of the Federal Supreme Court (STF) and International Treaties. This study is done through deep bibliographic research and judging and aims to highlight the unconstitutionality of the normative instruments that derive from the movement “School Without Party”, in relation to the purpose of the movement and under the terms already analyzed by the STF, with emphasis on the violated constitutional principles and guarantees, especially those that should achieve the exercise of the chair and the full guarantee of access to education. The article, moreover, justifies the conclusion by the unconstitutionality of the instruments derived from the movement, with the due indication of violations, which are incompatible with the guarantee of a democratic society.
Keywords: Education, School, Politic, Unconstitucionality, Ideology.
Artigos - Dôssie Temático
A INCONSTITUCIONALIDADE DO MOVIMENTO “ESCOLA SEM PARTIDO”
Recepção: 06 Maio 2019
Aprovação: 15 Outubro 2019
O movimento “Escola Sem Partido”, no Brasil, nasceu em 2004, sob a plataforma de combater o que se denominava “contaminação político-ideológica” das escolas, de forma a garantir uma postura “mais isenta” do ensino. Porém, o movimento, conforme se mostrou no decorrer dos anos (de 2004 para cá), consiste verdadeiramente num movimento conservador-religioso, de evidente viés político de extrema direita.
Uma simples busca na internet conduz ao site oficial do “Programa Escola Sem Partido” (www.programaescolasempartido.org).
Na sua primeira página leem-se diretrizes para a afixação de cartazes em escolas (em salas de aulas) que ditam deveres aos professores de forma a controlar os supostos “abusos na liberdade de ensinar”.
Ademais, o texto que consta da homepage do movimento expõe que tais deveres já existem, pois decorreriam da Constituição Federal e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. E alerta: “Isto significa que os professores já são obrigados a respeitá-los ‒ embora muitos não o façam”, o que, segundo o movimento, ofenderia: a liberdade de consciência e de crença e a liberdade de aprender dos alunos (art. 5º, VI e VIII; e art. 206, II, da CF);o princípio constitucional da neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado (arts. 1º, V; 5º, caput; 14, caput; 17, caput; 19, 34, VII, ‘a’, e 37, caput, da CF);o pluralismo de ideias (art. 206, III, da CF); e o direito dos pais dos alunos sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 12, IV).
Não se limitando apenas a isso, a página traz vários modelos de projeto de lei, tanto para as esferas municipal, estadual e federal, quanto modelos para decretos municipais e estaduais, todos destinados a incentivar as iniciativas parlamentares e do executivo.
Ainda, há que se dizer que a página do movimento convoca o leitor em um dos seus links (denominado “Eleições 2018”) ao seguinte: “não vote em candidato que seja contra o escola sem partido”.
Já em ascensão, os partidos de direita, que visavam à disputa presidencial em 2018, embandeiraram o tema como forma de atingimento da opinião popular – com o crescimento verificado dos movimentos mais conservadores da igreja católica – desdobrados nos evangélicos – que aos poucos ocuparam boa parte das cadeiras no Congresso Nacional, especialmente na Câmara dos Deputados.
Com isso é que, em 2014, o tema da “Escola Sem Partido”voltou a ser discutido quando o então Deputado Estadual do Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro, encomendou ao procurador paulista Miguel Nagib um texto de um projeto de lei (que se tornou o PL n. 2974/2014) para ser levado à Assembleia Legislativa do Rio. Também em 2014, Carlos Bolsonaro, irmão do deputado Flávio Bolsonaro, e vereador na cidade do Rio de Janeiro, lançou o Projeto de Lei n. 864/2014 para votação na Câmara Municipal.Com base nessas propostas, outras tantas surgiram pelos Estados e Municípios, como Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Espírito Santo, Goiás, Alagoas, Ceará, Amazonas, Distrito Federal e Paraíba, tanto em âmbito estadual, quanto municipal.
Na esfera federal, chama a atenção o Projeto de Lei n. 7180/2014, de autoria do Deputado Erivelton Santana, do PEM/BA, que inclusive altera a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), e que ainda poderá ser objeto de criação de nova Comissão Especial na Câmara dos Deputados. Junto com esta medida encontram-se apensadas mais 10 medidas que visam à implantação do programa “Escola Sem Partido”.
O movimento não se restringe a uma questão político-partidária; existe, também, nesse debate, a questão da identidade de gênero.
O que se pretende com esse artigo, portanto, a par do relato da origem e do viés do movimento “Escola Sem Partido” - que entendemos como necessário para situar o leitor quanto ao tema -, é verificar, ao contrário da exposição no site do programa, a inconstitucionalidade dos princípios que regem o movimento e dos instrumentos normativos que dele derivam, e que tentam instituir em municípios, estados e mesmo com abrangência federal, os seus desígnios,e como esse tema tem sido tratado no contexto dos debates sobre os princípios constitucionais que circundam a “educação”.
Para tanto, essas questões serão desenvolvidas nos tópicos seguintes que tratarão das garantias constitucionais que versam sobre a educação e o Estado Democrático de Direito, tendo como corolários a liberdade de expressão e o pluralismo de ideias, bem como a posição atual do STF sobre o tema e, por fim, a demonstração de que há, por trás dessa instrumentalização do movimento, afronta direta às convenções e aos tratados internacionais.
A Constituição Federal de 1988, desde seu preâmbulo, optou por um Estado democrático e uma sociedade pluralista, propondo-se a assegurar o exercício de direitos individuais e sociais e assentando-se nos princípios fundamentais da cidadania e do pluralismo jurídico, artigo 1º, II e V (SILVA, 2010, p. 802).
A educação está prevista na Carta Magna como um direito social regido pelo princípio da universalidade, já que esta, ao menos no âmbito formal, é tratada como um direito de todos e dever do Estado, exigindo uma prestação positiva (artigos 6º e 205 da CF/88), além de respeito aos princípios previstos no artigo 206 quanto à ministração do ensino.
Dentro do tema que este artigo propõe, devemos destacar a liberdade de ensino e aprendizado, direitos fundamentais às práticas pedagógicas (artigo 206, II, da CF/88). Neste ponto, a previsão constitucional de liberdade de ensinar e aprender reconhece a autonomia do professor no exercício de sua função, cabendo a ele dar as aulas com liberdade de crítica e de conteúdo e, como forma de aquisição de conhecimento, garantir ao aluno o direito de aprender (SILVA, 2010, p. 802), assistir as aulas, ter contato com novas ideias e poder pesquisar, ou seja, independência intelectual, tolerância para o convívio com as diferenças e senso crítico para refletir diante das ideias recebidas na escola.
Assim, podemos inferir que há, no mínimo, dois pontos de liberdade dentro do trato da educação pela CF/88 que ilustram diretamente a inconstitucionalidade dos projetos de lei propostos com base no movimento “Escola Sem Partido”, são eles: a liberdade de cátedra e de escolha.
A liberdade de cátedra permite que o professor selecione a forma de comunicação de ideias, enquanto a liberdade de escolha implica em obstáculos à intervenção estatal nas orientações educacionais, tendo em vista a pluralidade de pensamentos e conteúdos, sem a proibição a autores ou material didático que não violem a dignidade humana (limite à liberdade de expressão), com base em julgamentos estritamente ideológicos e políticos (SILVA, 2010, p. 802).
Ainda, é oportuno lembrar as observações do professor André Ramos Tavares quanto à força do direito à liberdade de ensinar e aprender e ao reconhecimento de que o ensino religioso é de matrícula facultativa. Quanto à questão, ele destaca que o Estado brasileiro é laico (art.19, § 1º, da CF/88) e, portanto, não deve obrigar o ensino de religião aos alunos, devendo oferecê-lo somente aos que se interessarem (TAVARES, 2010, 777).
Nesse aspecto, as considerações do professor Tavares só reforçam os argumentos de inconstitucionalidade dos instrumentos normativos refutados por este artigo, já que, inspirados por questões religiosas e reacionárias, estes tentam eliminar qualquer tipo de divergência de pensamento nas salas de aula e, consequentemente, o pleno desenvolvimento crítico dos educandos no Brasil.
A Constituição optou pelo estabelecimento de uma sociedade pluralista, tratando da questão educacional a partir da determinação de que o ensino deve ser ministrado com base no pluralismo de ideias e concepções pedagógicas (art. 206, III, da CF/88). Portanto, a pluralidade é imprescindível para a construção da sociedade democrática almejada pelo instrumento constitucional, sendo indispensável a existência de múltiplos meios de vida, opiniões e crenças.
Ao falar sobre esse tópico, é interessante fornecer a definição de termos centrais como liberdade e democracia. Um dos significados de liberdade é “grau de independência legítimo que um cidadão, um povo, ou uma nação elege como valor supremo, como ideal” (HOUAISS, 2019).Já quanto à palavra democracia, temos que se trata de “governo que acata a vontade da maioria da população, embora respeitando os direitos e a livre expressão” (HOUAISS, 2019).
A CF/88 tem como base a dignidade da pessoa humana, constituída fundamentalmente por liberdade e igualdade. A liberdade, reconhecida como um direito fundamental, proporciona o desenvolvimento humano através do reconhecimento de suas potencialidades, sendo que o Estado democrático de direito deve ser o seu garantidor.
Quanto à liberdade de expressão, o texto constitucional trata, no artigo 5º,IV, da livre manifestação do pensamento, e o artigo 220 aborda a manifestação de pensamento, criação, expressão e informação e, em seu parágrafo 2º, dispõe sobre a vedação a toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. Funciona, portanto, como instrumento para a preservação do sistema democrático, uma vez que o pluralismo de ideias e opiniões é fundamental para a atividade política na crítica e avaliação de governos, além de servir como um instrumento que coíbe as opressões em respeito à diversidade (MENDES, 2007, p. 350).
Ainda, o Estado deve se abster de intervir na liberdade de expressão, direito que exige uma maior prestação negativa do Poder Público e certa prestação positiva no sentido de que este deve protegê-la de qualquer censura e fornecer meios para que seja exercida.
Tudo o que foi exposto nos parágrafos anteriores deste tópico se relaciona diretamente com a delimitação da liberdade de pensamento, prevista no texto constitucional sob a análise da dimensão substantiva, abrangendo a atividade de pensamento, a formação de opinião e sua exteriorização. E, também, sob a dimensão instrumental, através da utilização de vários meios para a divulgação do pensamento, comunicação social, traduzindo-se como um sentido de vida, já que faz parte da formação da autonomia do ser humano, ao mesmo tempo que possibilita a este captar ideias de outros indivíduos (TAVARES, 2017, p. 481).
Nesse ponto, mais uma vez, a conexão entre educação e liberdade de expressão deve ser destacada através do fato de que ambas dependem do conhecimento, além de não haver sentido em não o compartilhar, pois é importante que opiniões e conhecimentos sejam exteriorizados.
Quanto à democracia, duas condições institucionais para sua implementação devem ser colocadas (FERREIRA, 2004, p. 134-136.), são elas: o Estado de Direito (baseado nos princípios de legalidade, isonomia e justiciabilidade); e limitação do poder (prevenção de abusos e arbítrio por parte do Estado com a separação dos poderes e o respeito às garantias individuais). Já como uma das condições para o bom funcionamento da democracia, temos a formação de uma opinião pública esclarecida, formada pelas reações dos indivíduos às informações recebidas pelos meios de comunicação em massa, formados por grupos livres e diversos (FERREIRA, 2004, p. 138).
Aqui está a importância da formação do pensamento crítico dos indivíduos já na escola, do contato com opiniões contrastantes, pensamentos diversos, identificação dos direitos e deveres do cidadão e discussões em sala de aula, já que uma criança que teve acesso a uma formação escolar como esta dificilmente será enganada pelos meios de comunicação em massa ou raramente aceitará com facilidade qualquer tipo de informação, gerando impactos positivos na democracia à medida em que serão conciliados senso crítico e informações advindas de meios de comunicação em massa livres e diversos.
Assim, é importante frisar que, quanto à liberdade de expressão, os projetos de lei baseados no movimento “Escola Sem Partido” são inconstitucionais, visto que, além de violarem manifestamente o direito dos educadores à liberdade de ensinar e de se comunicar, objetivam uma massificação do ensino com grande interferência Estatal e dos pais, no que deve ser ou não ensinado, o que impede que o educando exerça o direito de desenvolvimento de sua própria personalidade.
O direito à educação foi previsto já em nossa primeira Constituição, a Constituição do Império do Brasil de 1824, que previa a instrução primária gratuita para todos os “cidadãos”. Na Constituição de 1934, a educação foi apresentada como um direito social, que, no entanto, continha forte caráter de discriminação racial (FERREIRA, 2018), já que o movimento de eugenia no país influenciou fortemente a elaboração do artigo 138, b, determinando o estímulo à educação eugênica, sendo este direito um instrumento de acumulação de poder e manutenção das desigualdades no país.
Na Constituição Federal de 1988, temos a previsão da educação como um direito fundamental, “visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 205 da CF/88), baseada em princípios como igualdade e não-discriminação. O acesso à educação é um direito social e, portanto, deve ser garantido pelo Estado através de ações positivas, sendo orientado pelo princípio da isonomia, e devendo ser oferecido a todos os interessados, principalmente “àqueles que não possam custear uma educação particular” (TAVARES, 2010, p. 776.).
A partir dessa Constituição também se fortificou a perspectiva da autonomia universitária. O Constituinte entendeu que não era possível praticar o ensino nas universidades sem uma autonomia didática, administrativa e financeira/patrimonial. O Estado deve, portanto, abster-se de interferir na pesquisa e extensão das universidades, agindo apenas para garantir que estas sejam desenvolvidas e respeitadas, sendo autônomo o desempenho das tarefas universitárias, livres de ingerência estatal no campo de suas finalidades (TAVARES, 2010, p. 779-780).
Nesse sentido, o artigo 206 da CF visa a proibir a promoção de orientações restritas a uma ideologia e a vedação a autores por questões políticas. A CF/88 determina, assim, o respeito à pluralidade de pensamento na educação, tendo em vista o desenvolvimento de cidadãos tolerantes, cientes de seus direitos e deveres, e o estabelecimento de uma base psicossocial (FERREIRA, 2004, p. 132), que possibilite a implementação da democracia e a diversidade de pensamento e respeito às minorias.
Ademais, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 traz, em seu artigo 2º, que a educação tem como objetivo capacitar o ser humano para o exercício da cidadania e, em seu artigo 3º, apresenta os princípios da educação no país como: liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber (art.3º, II); pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art.3º, III); e respeito à liberdade e apreço à tolerância (art. 3º, IV).
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seus artigos 3º e 53, dispõe sobre as garantias para que crianças e adolescentes possam usufruir de “desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade” e direito à educação para o exercício da cidadania, respectivamente. Tendo em vista a íntima conexão entre liberdade, desenvolvimento da pessoa humana e educação, essa lei só reforçou a proteção constitucional do acesso à educação inclusiva e plural e liberdade de aprender.
Outra determinação do ECA, que é contrariada pelos projetos de lei do programa “Escola Sem Partido”, é a abordagem da educação sexual nas escolas. O art. 8º-A, do ECA, institui a “Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência” para disseminar informações sobre medidas preventivas e educativas objetivando a redução da incidência da gravidez na adolescência.
Já o projeto de lei federal baseado no programa “Escola Sem Partido” traz, em seu artigo 2º, a seguinte prescrição: “o Poder Público não se imiscuirá no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permitirá qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero”.Ou seja, o Poder Público não mais poderia se envolver com a questão da educação sexual dos alunos, contrariando, consequentemente, as disposições do ECA quanto ao tema e até mesmo implicando gravemente em questões de saúde pública e desenvolvimento da criança e do adolescente.
Portanto, além de afrontarem o direito constitucional à liberdade de expressão, os projetos de lei baseados no movimento “Escola Sem Partido” violam a Constituição, tratados internacionais (conforme veremos no item 3 infra), o ECA e a LDB por tentarem suprimir direitos fundamentais como o próprio acesso à educação que vise ao desenvolvimento da pessoa e possibilite o exercício da cidadania.
A educação deve ser voltada para a contradição, resistência, dirigida a uma autorreflexão crítica, despertando a consciência para que os educandos tenham suas próprias ideias e não reproduzam conteúdos falaciosos ou sejam facilmente manipulados (ADORNO, 2010, p. 129). O ser humano, como “ser inacabado” (FREIRE, 2016, p. 33), necessita da educação para a compreensão do alcance de suas liberdades, do exercício de seus direitos e da importância dos seus deveres, para que tenha acesso a uma democracia efetivamente participativa (GARCIA, 2004, p. 149).
No processo educativo, um sujeito não pode ser mero depositário de ideias de outro, devendo haver uma troca de reflexões. Logo, posicionamentos totalitários, que têm como objetivo a manutenção do status quo e a opressão dos sujeitos, dentro desse processo devem ser combatidos através da expressão e da reflexão (FREIRE, 2016, p. 108-109).
Os projetos de lei e decretos ora questionados contrariam de forma violenta as diretrizes pedagógicas para o ensino, uma vez que a ausência das diferenças e a pré-aprovação dos conteúdos que devem ser ministrados em aula, além de configurarem uma violação constitucional às liberdades, afetam o desenvolvimento da atividade de ensino.
A falta de diálogo nas escolas e a proibição da abordagem de certos assuntos dentro da sala de aula configuram, portanto,violação ao processo educativo, porque o ensino não é a pura transferência de conhecimento, mas a criação de possibilidade da sua construção (FREIRE, 2007, p. 47).
Na esteira das posições acima expostas, colacionamos aqui as principais decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), desde 2014 (não encontramos decisões anteriores a este ano que tratem deste tema em específico), que reportam claramente qual posição a Corte Constitucional Brasileira vem formando sobre os desígnios do movimento “Escola Sem Partido”.
Deixando de lado as decisões que trataram do tema tão apenas do ponto de vista formal, do procedimento, do cabimento das medidas que lhe foram apresentadas e das competências e legitimidades, fizemos um recorte para tão apenas analisarmos, e aqui reportarmos, a posição da Corte sobre o mérito destas demandas.
Com isso, buscamos os seguintes julgados do STF, que tratam especificamente do tema sobre a “Escola sem Partido”: (i) Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 5537-MC/AL – julgada em 21/03/2017; (ii) Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 457/GO – julgada em 30/05/2017; (iii) Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental(ADPF) n. 461/PR – julgada em 16/06/2017; (iv) Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 4439/DF – julgada em 27/09/2017; (v) Reclamação (Rcl.) n. 33137/SC –julgada em 08/02/2019; (vi) Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental(ADPF) n. 548/DF –julgada em 19/03/2019.
Vale dizer que embora pareça que a discussão a nível constitucional ainda seja tímida, a verdade é que, embora sejam poucos os casos apreciados pelo STF sobre o movimento “Escola Sem Partido”, está bem e robustamente apreciada por esta Corte.
Um dos primeiros temas enfrentados pelo STF sobre o programa “Escola Sem Partido” foi aquele veiculado pela ADI n. 5537-MC/AL, que teve seu pedido liminar apreciado em 21/03/2017, e que levou à Corte a alegação de inconstitucionalidade da Lei n. 7.800/2016, do Estado de Alagoas, que fundou, no sistema educacional de âmbito do citado Estado, o programa “Escola Livre” (leia-se , “Escola Sem Partido”), prevendo, em suma que se instituiriam para o ensino as seguintes diretrizes (a pretexto de se criar uma neutralidade política, ideológica e religiosa do ensino no Estado): (i) vedação da prática de doutrinação política e ideológica pelo corpo docente, que, supostamente induziriam aos alunos opiniões político-partidárias, religiosa ou filosófica; (ii) prévia autorização dos pais, mediante a apresentação de material informativo sobre os temas ministrados em sala de aula, e; (iii) contratualização obrigatória com os pais para a permissão do ensino confessional.
Fora isso, referida Lei traz conteúdo genérico que impõe sanções aos professores que supostamente transgridam tais disposições - e aí com evidente reporte aos desígnios extraídos do movimento, ou seja, de forma a se impor ao docente (cf. art. 3o. da Lei):
I – não abusar da inexperiência, da falta de conhecimento ou da imaturidade dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para qualquer tipo de corrente específica de religião, ideologia ou político-partidária; II – não favorecer nem prejudicar os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas; III – não fazer propaganda religiosa, ideológica ou político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos ou passeatas; IV – ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, apresentará aos alunos, de forma justa, com a mesma profundidade e seriedade, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas das várias concorrentes a respeito, concordando ou não com elas; V – salvo nas escolas confessionais, abster-se de introduzir, em disciplina ou atividade obrigatória, conteúdos que possam estar em conflito com os princípios desta lei.
O STF, então, especialmente por meio de decisão do Ministro Roberto Barroso, que concedeu medida cautelar de forma a suspender os efeitos da referida Lei n. 7.800/2016, consignou que esta afronta não apenas a competência privativa da União para legislar sobre o tema tratado, mas também, e principalmente, a LDB, porque fere a liberdade, tanto de ensinar quanto de aprender, o que usurpa o pleno desenvolvimento do educando, bem como seu preparo para o pleno exercício da cidadania. Não apenas isso, o STF, neste caso, privilegia o disposto nos artigos 2oe 3o, II, III e IV, da LDB, no que toca à acepção de que o ensino deve ser ministrado com respeito ao “pluralismo de ideias e concepções pedagógicas” e com “apreço à tolerância”, princípios estes que seriam diametralmente opostos à determinação da lei alagoana de que os professores se atentassem ao “princípio da neutralidade política e ideológica” – termo de todo impreciso e desconhecido para nossa teoria jurídica.
Ademais, no entender do Ministro Roberto Barroso, há afronta direta ao disposto nos artigos 205e 214da Constituição Federal, pois a educação assegurada por esta, segundo seu texto expresso, é aquela capaz de promover o pleno desenvolvimento da pessoa, a sua capacitação para a cidadania, a sua qualificação para o trabalho, bem como o desenvolvimento humanístico do país, que assegure, assim, nas palavras do Ministro “uma educação emancipadora, que habilite a pessoa para os mais diversos âmbitos da vida, como ser humano, como cidadão, como profissional”, o que, evidentemente, não se pode fazer sem a atenção obrigatória dos princípios constitucionais da liberdade de aprender e de ensinar, do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, conforme acima já apontados, bem como da valorização dos profissionais da educação escolar. Dessa forma, entende o ministro que restariam violadas as disposições acima citadas e aquelas constantes do art. 206, incisos II, III e V, da CF/88.
De se destacar a imposição comum a todos estes projetos de lei (ou decretos, ou leis), que versam sobre a “Escola Sem Partido”, sobre a pretensão dos pais em limitar o universo informacional de seus filhos ou impor à escola que não veicule qualquer conteúdo com o qual não estejam de acordo.
Lembra-se (conforme exposto na Introdução deste artigo) que um dos “deveres” dos professores, listado na homepage do movimento é “o Professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções”. Com efeito, tal limitação, é tratada pelo STF como violação expressa ao acesso incondicional à educação, pois, na lavra do Ministro Barroso:
A educação é, justamente, o acúmulo e o processamento de informações, conhecimentos e ideias que promovem de pontos de vista distintos, experimentados em casa, no contato com amigos, com eventuais grupos religiosos, com movimentos sociais e, igualmente, na escola.
Sobre o acesso incondicional ao pluralismo de ideias, lembra a decisão que a exposição dos alunos em sala de aula com os mais diversos assuntos, promove, evidentemente, seu desenvolvimento mais pleno; aproxima-o das mais diversas experiências o que o auxilia a compreender e tolerar as diferenças. Por isso é que impedir o pluralismo ideológico e a promoção dos valores da liberdade consiste em afronta à Constituição, bem como às normas internacionais, conforme abaixo será abordado, ressaltando, que nem a CF/88, nem as normas internacionais destacam a “neutralidade como princípio diretivo”, como garantia dos princípios constitucionais flamulados pelo movimento.
Por isso, é inegável que a pretensa “neutralidade”, trazida como fundamento para o espraiamento do movimento “Escola Sem Partido”, é ilusória; não representa na verdade o que de fato alega ser. Muito ao contrário, visa a impor às escolas a pregação política com um viés (dada a própria natureza do movimento) político-religioso, para obrigar os professores a exporem em sala de aula tão somente ideias avessas àquelas que condizem com as teorias históricas chamadas “de esquerda”.
O movimento tem como propósito, na verdade, vedar aos professores que exponham aos seus alunos conteúdo do que “entende” (na acepção mais genérica que este termo pode adotar) ser “doutrinação de esquerda”, o que faz significar que “de direita” está permitida. E esta vedação, em alguns casos, como abaixo veremos, se dá da pior maneira possível: pela ameaça aos professores, via controle de suas aulas e de seus discursos.
Por isso, a decisão do STF ora analisada, que trata da Lei n. 7.800/2016, do Estado de Alagoas, diz que:
As previsões de evidente inspiração cerceadora da liberdade de ensinar, assegurada aos professores, têm por nítido propósito constranger e perseguir aqueles que eventualmente sustentem visões que se afastam do padrão dominante, estabelecendo vedações – extremamente vagas.
Nesse sentido, a decisão anota que o professor tem papel fundamental para o avanço da educação e a disseminação dos valores tutelados pela Constituição. Com isso, aponta de forma direta que a educação adequada não floresce em um ambiente acadêmico hostil, em que o docente se sente ameaçado e em risco por toda e qualquer opinião emitida em sala de aula. Há evidente afronta ao disposto no art. 206, inciso V, da CF/88, visto que a ameaça à liberdade do professor de ensinar colide com o mandamento constitucional de valorização do profissional da educação escolar.
Adverte, porém, o Ministro Barroso, que há de se observarem as diferenças entre a liberdade de ensinar e a liberdade de expressão. Princípios distintos, que segundo ele, baseiam-se em limites e alcances distintos. Por isso a liberdade de ensinar deve observar os standards profissionais aplicáveis à disciplina ministrada pelo professor. E os professores devem estar preparados para observar os standards mínimos da sua disciplina, para preservar o pluralismo quando pertinente, para não impor sua visão de mundo, para trabalhar com os questionamentos e as divergências dos estudantes. Preparar o professor, portanto, deve envolver políticas públicas adequadas e aprofundadas – e não seu cerceamento e punição.
Por tais razões, entende o STF, que políticas públicas sobre o ensino devem passar por definição de standards claros. Disposições genéricas como direito à “educação moral livre de doutrinação política, religiosa e ideológica” e vedação a “condutas que imponham ou induzam nos alunos opiniões político-partidárias, religiosas ou filosóficas” são disposições tão genéricas que podem levar a processos de punição de professores sem qualquer fundamento. Até porque, como citado pelo próprio Ministro Barroso, Elie Wiesel colocou de forma apropriada quando da sua premiação com o Nobel da Paz em 1986 que: “A neutralidade favorece o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o assédio, nunca o assediado”.1
Diante disso, em resumo, o STF, por meio de decisão monocrática do Ministro Roberto Barroso, nos autos da ADI n. 5537-MC/AL, ao apreciar o tema da “Escola Sem Partido”, que passa basicamente por todos os temas trazidos pelas diversas proposta de leis, projetos e decretos, entende, em suma que o programa afronta os artigos art. 22, XXIV, art. 24, IX, artigos205, 214, 206, II, III, V, todos estes da CF/88, bem como os artigos 2o e 3o, II, III e IV, da LDB.
Interessante notar que no ano de 2017 mais três temas ligados a esse processo de controle religioso, político e reducional do acesso amplo à educação, voltaram ao STF sob outros dois prismas: dois deles atinentes ao tema do ensino sexual e gênero e o outro sobre a imposição do ensino religioso católico. Isso demonstra absolutamente o quanto afirmamos acima, que se trata de um movimento bem articulado, que se espraia de forma muito organizada, à direita, conservador e de cunho político-religioso, que pretende junto às escolas, como meio de divulgação de ideias, não apenas tolher o ensino crítico, sem preconceito, aberto às discussões sobre identidades de gênero, sexualidade e etc., para impor uma doutrina de direita – da direita mais conservadora.
A ADPF n.457/GO – decidida em30/05/2017, pelo Ministro Alexandre de Moraes -, trata de arguição de descumprimento de preceito fundamental proposta pela Procuradoria-Geral da República, com pedido de medida cautelar, na qual se questionou a constitucionalidade da Lei Municipal n. 1.516, de 30 de junho de 2015, editada pelo Município de Novo Gama/GO, que proibia a utilização em escolas públicas municipais de material didático que contivesse “ideologia de gênero”. Infelizmente o julgamento foi pelo não conhecimento da ação.
Já, na decisão datada de 16/06/2017, havida no bojo da ADPFn. 461/PR, com pedido de medida cautelar, proposta pela Procuradoria-Geral da República, em face do artigo 3o, X, parte final, da Lei n. 3.468, de 23 de junho de 2015, do Município de Paranaguá, Estado do Paraná, que dispõe sobre a aprovação do Plano Municipal de Educação de Paranaguá, vedando, no dispositivo atacado, política de ensino com informações sobre gênero ou orientação sexual, o Ministro Roberto Barroso, para além do disposto na ADI n. 5537-MC/AL, sustentou que com a citada Lei há (i) um evidente comprometimento do papel transformador da educação; (ii) que há absurda utilização do aparato estatal para manter grupos minoritários em condição de invisibilidade e inferioridade; (iii) há violação do direito de todos os indivíduos à igual consideração e respeito e perpetuação de estigmas (CF/88, art. 1o, III, e art. 5o); (iv) e violação ao princípio da proteção integral.
Ressalta o Ministro, na referida decisão, a importância da educação sobre diversidade sexual para crianças, adolescentes e jovens, especialmente para aqueles indivíduos em situação de vulnerabilidade, que podem desenvolver identidades de gênero e orientação sexual divergentes do padrão culturalmente “naturalizado”. Por fim, ressalva o dever do estado de mantê-los a salvo de toda forma de discriminação e opressão, de acordo com o disposto na CF/88, no art. 227.
A defesa do STF sobre a garantia, no âmbito escolar, do pluralismo de ideias e pensamentos políticos, filosóficos e religiosos, como forma de alcance da tolerância de opiniões e do espírito critico e aberto ao diálogo, ou seja, de forma a garantir aos alunos o alcance de suas próprias escolhas, construindo dentro destes a amplitude do conhecimento para que exerçam plenamente sua cidadania, também vem expressa nos brilhantes votos (embora vencidos) da lavra dos ministros Roberto Barroso e Celso de Mello, no bojo da ADI n. 4439/DF, de Relatoria do Ministro Roberto Barroso.
De se destacar que no âmbito desta demanda julgava-se a inconstitucionalidade dos art. 33, caput e §§ 1o e 2o, da Lei Federal 9.394/1996, e do art. 11, § 1o, do Acordo havido entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé, relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, firmado no Pontificado de Bento XVI (a ala mais à Direita e conservadora da Igreja Católica), que foi objeto de aprovação congressional (Decreto Legislativo n. 698/2009), de ratificação presidencial e, posteriormente, de promulgação mediante edição do Decreto n. 7.107/2010 -, regras estas que estabeleceram o ensino religioso confessional como disciplina facultativa dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.
Não obstante vencidos sobre o entendimento pela inconstitucionalidade das disposições legais que permitiam o ensino confessional das escolas públicas brasileiras, remetemos o leitor deste artigo aos votos dos ministros vencidos citados, pois são verdadeiros tratados sobre a garantia da liberdade de expressão no ensino, no espaço público como garantia do exercício da democracia e consagração do princípio da laicidade estatal.
Outro caso emblemático trata da Rcl.n. 33.137/MC, de Relatoria do Min. EDSON FACHIN, julgado em 08/02/2019, publicado em processo eletrônico DJE-028 divulg. 11/02/2019, public. 12/02/2019 (ou seja, tema recente), em que o STF suspendeu decisão monocrática de Desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, proferida nos autos do Agravo de Instrumento n. 4032450-55.2018.8.24.0000 (correlato à Ação Civil Pública n. 0917862- 27.2018.8.24.0023), que havia garantido a uma deputada catarinense incitar os estudantes,também catarinenses, pelas suas redes sociais, à gravação e à filmagem para fins de “denúncia” de “professores doutrinadores” que emitissem manifestações político-partidárias ou ideológicas [...], com o seguinte conteúdo:
‘ATENÇÃO, ESTUDANTE CATARINENSE! Segunda-feira, 29 de outubro, é o dia em que os professores doutrinadores estarão inconformados e revoltados. Muitas deles não conterão sua ira e farão da sala de aula um auditório cativo para suas queixas político-partidárias em virtude da vitória de Bolsonaro. Filme ou grave todas as manifestações político-partidárias ou ideológica. DENUNCIE! Envie o vídeo e as informações para (49) 98853 3588, descreva o nome do professor, o nome da escola e a cidade. Garantimos o anonimato dos denunciantes. POR UMA ESCOLA SEM PARTIDO / DEPUTADA ESTADUAL ELEITA EM SANTA CATARINA ANA CAROLINE CAMPAGNOLO / EDUCAÇÃO DE QUALIDADE DE VERDADE.
Pois bem, o Tribunal de Justiça Catarinense, contrariando decisão de primeira instância proferida em medida proposta pelo Ministério Público, autorizou a divulgação da referida incitação – própria do movimento do qual falamos neste artigo.
Por meio, então, de decisão monocrática do Ministro Edson Fachin, o STF, neste caso, entendeu que, a teor do disposto no procedimento ADPF n. 548 (que abaixo será tratada), rechaça a possibilidade de se investir aos alunos poderes tipicamente estatais: o exercício de fiscalização, poder de polícia, portanto.
Ou seja, já agora em 2019, pós eleições presidenciais que se deram, como se sabe num cenário acirrado, polarizado entre extrema direita e esquerda, com o uso abusivo das redes sociais como forma de se perpetuar um pensamento massificado de profundo tema político-religioso moralista, o STF sustenta o respeito pelas garantias constitucionais, e reforça o princípio da liberdade de ensinar e de aprender, do respeito à pluralidade de ideias e pelo evidente desprezo com relação às atitudes que desrespeitem o exercício pleno do aprendizado crítico e democrático, conforme já apontado pelos julgados de 2017.
Por fim, vale citar decisão do STF, proferida no bojo da ADPF n. 548, de relatoria da Ministra Carmen Lucia, com deferimento de medida liminar em 27/10/2018:
[...] para, ad referendum do Plenário deste Supremo Tribunal Federal, suspender os efeitos de atos judiciais ou administrativos, emanado de autoridade pública que possibilite, determine ou promova o ingresso de agentes públicos em universidades públicas e privadas, o recolhimento de documentos, a interrupção de aulas, debates ou manifestações de docentes e discentes universitários, a atividade disciplinar docente e discente e a coleta irregular de depoimentos desses cidadãos pela prática de manifestação livre de ideias e divulgação do pensamento nos ambientes universitários ou em equipamentos sob a administração de universidades públicas e privadas e serventes a seus fins e desempenhos [...]
Na referida ADPF relatam-se decisões proferidas por juízes eleitorais pelas quais determinam a busca e apreensão do que seriam “panfletos” e materiais de campanha eleitoral em universidades e nas dependências das sedes de associações de docentes, proíbem aulas com temática eleitoral e reuniões e assembleias de natureza política, impondo-se a interrupção de manifestações públicas de apreço ou reprovação a candidatos nas eleições gerais de 2018, em ambiente virtual ou físico de universidades federais e estaduais. Relata a PGR episódios de ação policial presumidamente sem respaldo da Justiça e outras ações em cumprimento a decisões judiciais, mas sem fundamento válido como na Universidade Federal de Uberlândia – UFU, onde ocorreu a retirada de faixa com propaganda eleitoral colocada do lado externo de uma das portarias do campus Santa Mônica, pela Polícia Militar. Na Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, onde policiais promoveram a retirada de faixas em homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada em março, e com as inscrições ‘Direito Uerj Antifascismo’.
E, como nos demais casos acima, embora ainda sem decisão definitiva, este conta com liminar que entende que tais atos seguem a ordem de restrição às garantias constitucionais da liberdade de manifestação do pensamento, de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação e de reunião (art. 5º, CF/88), do ensino pautado na liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento e o pluralismo de ideias (art. 206, II e III, da CF/88) e da autonomia didático-científica e administrativa das universidades (art. 207, CF/88).
Importante, após a análise dos julgados supracitados, verificar que: (i) o entendimento especificamente manifestado pelo STF sobre o tema “Escola Sem Partido” é bem concentrado e diminuto. Ou seja, há poucas decisões diretamente relacionadas aos projetos de lei e decretos estaduais e municipais que versem sobre o chamado “ensino neutro” e à vedação do ensino com o que se chama “ideologia de gênero”; também tais temas são tratados de forma bem concentrada em poucos Ministros (ainda a maioria em decisões monocráticas, deferidoras de medidas cautelares, sem a apreciação de mérito); (ii) que, não obstante isso, de há muito o STF tem construído, sobre pilares sólidos e consistentes, a garantia de verificação, no que toca ao direito à plena educação, aos princípios constitucionais da liberdade de ensinar e aprender; ao direito do educando de ser preparado para o pleno exercício da cidadania; ao princípio de que o ensino deve ser ministrado com respeito ao pluralismo de ideias e concepções pedagógicas; à plena garantia da valorização dos profissionais da educação escolar; enfim, o acesso incondicional à educação como meio de construção do indivíduo como cidadão e para uma vida digna.
O tema, portanto, embora requentado para as eleições de 2018 - pois o movimento vem de 2004, conforme já expusemos -, comporta acompanhamento para os próximos anos junto ao STF. Especialmente quando o novo governo (conservador e eleito com a bandeira do “Movimento Escola sem Partido”) poderá indicar para a Suprema Corte (em 2020 e 2021) dois Ministros – que substituirão justamente o Ministro Celso de Mello (um dos ministros que mais se aprofundou no tema da inconstitucionalidade do controle da práticas nas salas de aula) e o Ministro Marco Aurélio.
Por fim, e para reforçar as decisões internas (referenciadas no tópico anterior), é de se dizer que o escopo do movimento “Escola sem Partido”, materializado nos projetos de lei, decretos federais, estaduais e municipais fere as disposições dos tratados e convenções internacionais, que garantem não apenas a plena liberdade de expressão, como o acesso pleno à educação como preceito fundamental de garantia dos cidadãos aos direitos econômicos, sociais e culturais – os famosos DESCs.
O Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional de São Salvador à Convenção Americana sobre Direitos Humanos reconhecem que a educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, à capacitação para a vida em sociedade e à tolerância e, portanto, fortalecer o pluralismo ideológico e as liberdades fundamentais.
O Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (promulgado pelo Decreto n. 591/1992) dispõe em seu artigo 13, § 1o, que:
Os Estados-partes no presente pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e a fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz2.
Já o Protocolo Adicional de São Salvador (promulgado pelo Decreto no 3.321/1999) dispõe em seu art. 13 o seguinte:
Direito à Educação [...]. 2. Os Estados-Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade, e deverá fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz. Convêm também em que a educação deve tornar todas as pessoas capazes de participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista e de conseguir uma subsistência digna; bem como favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos, e promover as atividades em prol da manutenção da paz. 3. Os Estados-Partes neste Protocolo reconhecem que, a fim de conseguir o pleno exercício do direito à educação: [...]. De acordo com a legislação interna dos Estados-Partes, os pais terão direito a escolher o tipo de educação que deverá ser ministrada aos seus filhos, desde que esteja de acordo com os princípios enunciados acima.
Observa-se que o próprio Protocolo Adicional de São Salvador, ao reconhecer o direito dos pais de escolher o tipo de educação que deverá ser ministrada a seus filhos (artigo 12, §4o, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos) condiciona tal direito à opção por uma educação que esteja de acordo com os demais princípios contemplados no Protocolo e que, por consequência, seja apta ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, à participação em uma sociedade democrática, à promoção do pluralismo ideológico e das liberdades fundamentais.
Tais disposições, ratificadas pelo Brasil, estão, portanto, absolutamente de acordo com as decisões do STF, que enfrentam o tema da tentativa do movimento “Escola Sem Partido” de imposição pelo Brasil afora de uma educação que não seja abrangente, que se controle o conteúdo das disciplinas mais comezinhas à manifestação ideológica pelos professores (especialmente aquelas na área das humanidades) e que visem a assegurar uma educação que discuta as questões de gênero e diversidade.
É evidente, portanto, que ao contrário do pregado pelo movimento “Escola Sem Partido” – de que o conteúdo dos decretos e projetos de lei visava a assegurar o atendimento ao disposto nos Pactos Internacionais subscritos pelo Brasil -, os desígnios deste violam o art. 13, §1o do Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (promulgado pelo Decreto n. 591/1992), também o art. 13 do Protocolo Adicional de São Salvador (promulgado pelo Decreto no 3.321/1999), e o próprio artigo 12, §4o, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
O movimento “Escola Sem Partido”, de acordo com o que vimos acima e que com o conteúdo que hoje se apresenta, cuida de um programa ideológico, político-religioso, com viés nitidamente de direita, que tem por objetivo eliminar no âmbito escolar a manifestação livre dos professores, suprimindo a liberdade de ensinar e aprender, tolhendo dos estudantes o acesso à ampla educação e à possibilidade de que esta se desenvolva num ambiente com multiplicidade de opiniões, deixando, por este motivo, de desenvolver a tolerância e de formar os indivíduos para a cidadania.
O ensino deve fornecer ao ser humano a necessária compreensão do alcance de suas liberdades, do exercício de seus direitos e da importância dos seus deveres. O Estado tem que se abster de intervir na liberdade de ensinar e aprender, os professores não podem ter seu direito de cátedra limitado pelo controle dos pais sob a justificativa de uma neutralidade ideológica e política inexistente. O ambiente democrático necessita de uma educação inclusiva e igualitária, possibilitando a formação de indivíduos autônomos, livres e críticos. Tal entendimento é corroborado pelos julgados do STF e pelo posicionamento das entidades Internacionais.
O STF já firmou entendimento de que o conteúdo materializado pelos instrumentos normativos, que veiculam as ideias do movimento “Escola Sem Partido”, esbarram na afronta aos artigos art. 1o, III, 5o, 22, XXIV, 24, IX, 205, 206, II, III, V, 214, e 227, todos estes da CF/88, bem como os artigos 2oe 3o, II, III e IV, da LDB.
Também se verificou que os desígnios traçados pelo movimento afrontam o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Protocolo Adicional de São Salvador à Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
Espera-se que a Corte Constitucional Brasileira, no julgamento da inconstitucionalidade de tais projetos de lei,proteja os princípios constitucionais que levam um tema tão importante como a educação a um patamar de vértice da democracia, formando indivíduos críticos e livres para o exercício de sua cidadania, independentemente de religião, partido político ou gênero.