Resumo: Estudo etnográfico, com revisão de literatura sobre a construção social do conceito juventude, tem como objetivo relatar e analisar narrativas juvenis em torno do direito à educação. A análise empírica seleciona duas ondas de mobilizações protagonizadas por jovens estudantes: Atos em defesa das Universidades e Institutos Federais ocorridos na cidade de Florianópolis-SC; Na capital da Argentina, Buenos Aires, a narrativa etnográfica se debruça na análise de mobilizações protagonizadas por jovens portenhos que tomaram as ruas exigindo a manutenção da Ley Nacional de Educación, além de se posicionarem radicalmente contra as medidas de austeridade anunciadas pelo Governo Maurício Macri. A análise dos dados etnográficos aponta que a pauta em defesa da educação é capaz de unir coletivos e organizações dos mais variados espectros ideológicos.
Palavras-chave:JuventudeJuventude,NeoliberalismoNeoliberalismo,Participação socialParticipação social,EtnografiaEtnografia,América LatinaAmérica Latina.
Abstract: Ethnographic study, with a review of the literature on the social construction of the concept of youth, in order to report and analyze youth narratives around the right to education.The empirical analysis selected two waves of mobilizations carried out by young students: Acts in defense of public educational institutions occurred in the city of Florianópolis-SC, Brazil;In the capital of Argentina, Buenos Aires, the ethnographic narrative focused on the analysis of mobilizations carried out by young people who went to the streets demanding the maintenance of the “National Education Law”, as well as to stand radically against the austerity measures announced by the MaurícioMacri Government. The analysis of the ethnographic data indicates that the agenda in defense of education is capable of uniting collectives and organizations affiliated to the most diverse ideological currents.
Keywords: Youth, Neoliberalism, Social participation, Ethnography, Latin America.
Artigos - Dôssie Temático
NARRATIVAS SOBRE O DIREITO À EDUCAÇÃO EM DISPUTA: luzes antropológicas para compreender as mobilizações juvenis
Recepção: 05 Junho 2019
Aprovação: 21 Outubro 2019
Esta pesquisa em nível de doutorado em educação1 se filia ao campo dos estudos etnográficos em educação (GUEDES; CIPINIUK, 2014; DAUSTER, 2015; ROSISTOLATO; PRADO, 2019). Enquanto perspectiva metodológica, a etnografia nasceu na antropologia, na tentativa de compreender as especificidades de um determinado grupo social em relação a um acontecimento, comportamento ou fenômeno social e cultural.
Como muito bem observa Oliveira (2013a), atualmente há um intenso debate nas áreas de educação e antropologia quanto ao equívoco que alguns pesquisadores cometem ao reduzir a etnografia a uma simples técnica de coleta de dados. Para o autor, os estudos etnográficos em educação evoluíram para um processo de produção de conhecimento com questões epistemológicas profundamente discutidas e, inclusive, com polêmicas e dissensos entre diferentes grupos de pesquisa que se filiam a essa vertente metodológica. Diante de tal perspectiva, a prática etnográfica “pressupõe não uma coleta, mas sim uma construção dos dados, que se dá em meio ao processo intersubjetivo que se estabelece entre pesquisador e pesquisado” (OLIVEIRA, 2013a, p. 71). Assim, observador e observados são sujeitos ativos, assumindo uma postura interativa no processo de investigação.
Rosistolato (2018) identifica na produção acadêmica da área de educação a existência de uma bifurcação entre os pesquisadores que seguem uma linha metodológica liderada pela pesquisadora Marli André (2012) – de acordo com essa vertente não seria possível produzir pesquisas etnográficas em educação, mas, sim, reflexões adotando fontes de ‘inspirações etnográficas’. Em outra ponta, existe uma vasta produção argumentando a possibilidade/necessidade de se fazer etnografias intensivas nos espaços educativos2.
É fato que a publicação da obra Os argonautas do Pacífico Ocidental3 é considerada um clássico nos estudos etnográficos. Todavia, etnógrafos contemporâneos como Clifford (2014), Geertz (2009) e Lévi-Strauss (1996) promoveram verdadeiras viradas epistemológicas no debate da prática etnográfica. Em nível de Brasil, é possível fazer referência a Peirano (2014): ao analisar a trajetória evolutiva do campo antropológico, ressalta que as concepções de etnografias sempre variaram, todavia, um consenso que ganha força nas etnografias contemporâneas é que as sistematizações produzidas a partir do que o pesquisador vivenciou no campo de pesquisa são formulações teórico-etnográficas. Nessa perspectiva, a autora advoga que:
Etnografia não é método; toda etnografia é também teoria. Aos alunos sempre alerto para que desconfiem da afirmação de que um trabalho usou (ou usará) o ‘método etnográfico’, porque essa afirmação só é válida para os não iniciados. Se é boa etnografia, será também contribuição teórica; mas se for uma descrição jornalística, ou uma curiosidade a mais no mundo de hoje, não trará nenhum aporte teórico (PEIRANO, 2014, p. 386).
Em um livro clássico publicado no final do século XX, ao discorrer sobre as especificidades do trabalho do pesquisador em campo, a Antropóloga Mariza Peirano ressalta a impossibilidade de fornecer receitas de como o pesquisador deve conduzir o percurso etnográfico.
Hoje sabemos que a pesquisa de campo depende, entre outras coisas, da biografia do pesquisador, das opções teóricas presentes na disciplina, do contexto sócio-histórico mais amplo e, não menos, das imprevisíveis situações que se configuram entre pesquisador e pesquisados no dia-a-dia da pesquisa. (PEIRANO, 1995, p. 125).
Para a autora, o fazer etnográfico é o meio pelo qual as teorias se desenvolvem e evoluem quando desafiam as verdades estabelecidas pelo senso comum no confronto entre a teoria que o etnógrafo leva para o campo de pesquisa e a observação entre os sujeitos que estuda. Reconhece que uma etnografia nos espaços urbanos (ou educativos) é muito diferente das etnografias clássicas que Malinowski desenvolveu com os indígenas nas primeiras décadas do século XX.
No campo da sociologia brasileira contemporânea, também é possível mencionar o hercúleo trabalho liderado pelo sociólogo Jessé Souza (2018), que analisou os brasileiros desprovidos de qualquer capital cultural e econômico, uma classe abandonada pelos governantes, com o consentimento da elite brasileira. Empregadas domésticas, prostitutas, dependentes químicos, pessoas em situação de rua. A escola e o posto de saúde da favela, a igreja e o baile funk, passando pela ‘boca de fumo’. Esses são os cenários de observação que os etnógrafos privilegiam para tentar compreender quem é e como vive a ‘ralé brasileira’. Um protocolo que se destaca na etnografia de Souza é a entrevista em profundidade. Nas nove pesquisas orientadas pelo sociólogo, o etnógrafo acompanha os sujeitos da pesquisa por meses; em alguns casos, anos.
Tanto tempo de convívio permitiu aos pesquisadores compreenderem como o sujeito constrói sua visão de mundo, a influência da mídia na incorporação do discurso da meritocracia, além de autoculpabilização por não ter conseguido ‘ser alguém na vida’ e estar à margem da sociedade.
O aspecto mais central e mais importante, por isso mesmo o mais reprimido e obscurecido pela visão superficial e enganosa dominante, é a ‘invisibilidade’ social, analítica e política do que chamamos provocativamente de ‘ralé’ estrutural brasileira. Essa é a classe que compõe cerca de 1/3 da população brasileira, que está abaixo dos princípios de dignidade e expressivismo, condenada a ser, portanto, apenas “corpo” mal pago e explorado, e por conta disso é objetivamente desprezada e não reconhecida por todas as outras classes que compõem a nossa sociedade. Essa é também a razão da dificuldade de seus membros construírem qualquer fonte efetiva de autoconfiança e de estima social, que é, por sua vez, o fundamento de qualquer ação política autônoma (SOUZA, 2018, p. 137).
A pesquisa empírica de quatro anos que sustenta o livro faz um imenso esforço para acompanhar as estratégias de sobrevivência do traficante de drogas, do trabalhador braçal sem qualificação, do catador de lixo. As entrevistas em profundidade aplicadas e analisadas à luz de Bourdieu nos mostram o drama existencial dos fracassados da periferia do Capitalismo Mundial Integrado, vítimas do esquecimento do Estado brasileiro e da indiferença da população abastada.
A partir da difusão dessas vertentes contemporâneas do fazer etnográfico em diversos grupos de pesquisas nas áreas de educação, antropologia e sociologia, consolida-se, no Brasil, um grupo de pesquisadores que tem privilegiado a escola e as sociabilidades juvenis como lócus para investigações etnográficas (GALENO, 2011; MAGGIE; PRADO, 2014; ROSISTOLATO, 2013). Tal vertente refuta a ideia de pesquisas com inspirações etnográficas, assumindo no sentido estrito a ‘etnografia em educação’.
Com fundamento nessa perspectiva, este estudo se propõe a analisar as narrativas juvenis em torno do direito à educação. Para tanto, seleciona duas ondas de mobilizações em que jovens estudantes entraram em cena, para debater este direito constitucional. Na capital de Santa Catarina, Florianópolis, é analisada uma série de atos em defesa das Universidades e Institutos Federais, mobilização colocada em curso por secundaristas e universitários no primeiro semestre de 2019, logo após o Ministério da Educação anunciar um contingenciamento de 7,9 bilhões de Reais.
Durante a passagem pela Argentina, também no primeiro de semestre de 2019, este pesquisador se deparou com uma série de manifestações que ocorriam diariamente pelas ruas de Buenos Aires. Em diálogo com os jovens, foi possível constatar que, dois fatores foram o estopim para a onda de protestos generalizados: a Ley Nacional de Educación que o governo tentava alterar no parlamento, além das medidas de austeridade que Maurício Macri tentava colocar em curso desde que chegou à ‘Presidencia de la Nación’.
No âmbito da antropologia contemporânea, os estudos sobre juventude têm se destacado, especialmente nas últimas três décadas, contribuindo para que a produção acadêmica sobre o tema evoluísse significativamente a partir da década de 90 do século XX. Todavia, como bem adverte a antropóloga mexicana Rossana Reguillo (2013), a juventude, como conhecemos hoje, trata-se de uma invenção social, cujo prelúdio nos remete à segunda guerra mundial (1939-1945).
Para a pesquisadora, cessado o conflito armado, novos acordos políticos, econômicos e sociais foram celebrados entre governos, organismos multilaterais e sociedade civil organizada. Se, por uma via, setores da sociedade passaram a reivindicar a necessidade de os jovens serem reconhecidos como sujeitos de direitos no âmbito das políticas públicas, em contraposição, alguns agentes sociais vislumbraram nesse eixo populacional uma nova categoria suscetível para alavancar o consumo mercadológico.
À medida que essa parcela da população passa a ingressar cada vez mais tarde no mundo do trabalho, mecanismos regulatórios para monitorar esses indivíduos foram criados pelos Estados-Nações. A antropóloga mexicana Elena Azaola (1990) destaca que, para além do marco legislativo que estabeleceu a obrigatoriedade de os jovens frequentarem as instituições de ensino, houve, por parte dos países, uma profissionalização institucional para criar dispositivos que atendessem, vigiassem e controlassem tal público. Além dos espaços de sociabilização nas áreas da educação, cultura e desporto, regulados pelo aparato estatal, o poder público também criou tribunais e leis específicas para julgar eventuais condutas que estariam em desacordo com o contrato social estabelecido.
Na América Latina, os primeiros estudos em que se tentou analisar as sociabilidades juvenis, indo além do recorte da faixa etária, ou seja, levando em consideração também os aspectos sociais, culturais, históricos e políticos, foram desenvolvidos no México. A obra de José Manuel Valenzuela (1987;1988) é considerada um marco importante por contextualizar a categoria juvenil por meio de uma abordagem teórica multidisciplinar.
A partir das últimas décadas do século XX, a perspectiva sociológica latino-americana produziu inúmeros debates em torno do público juvenil. Inserção no mundo do trabalho, sociabilidade e interação nos mais variados territórios da cidade, sexualidade, índices alarmantes de homicídios, consumo de álcool e drogas ilícitas, acesso à informação e ao conhecimento, uso e apropriação das tecnologias digitais foram algumas das questões que moveram as investigações acadêmicas.
Na Colômbia, é digna de registro a pesquisa empírica de Alonso Salazar (1990) realizada nas comunidades periféricas da cidade de Medelín, em que foi analisado o complexo mundo do narcotráfico e a estreita relação com os jovens em situação de vulnerabilidade social e risco. O trabalho do pesquisador tornou-se relevante ao evidenciar que a ausência de políticas públicas mínimas para a juventude transformava esse público em potencial ‘mão de obra barata’ para o crime organizado.
As complexas redes de interação e sociabilização juvenil também são retratadas no trabalho realizado pelos pesquisadores Roberto Duque e Boris Muñoz (1995) em pesquisa empírica desenvolvida nos bairros periféricos de Caracas – Venezuela. Além de evidenciar a dramática condição social do público juvenil, os autores analisaram a atuação das igrejas e organizações não governamentais que atuavam para supostamente ‘proteger’ o jovem do tráfico de drogas e do crime organizado.
Proteger o jovem dos perigos que ameaçam a sociedade! Este foi o mote das poucas iniciativas isoladas que os governos latino-americanos tentaram colocar em curso na década de 90 do século XX. No Brasil, esse período é demarcado na literatura sociológica como os primeiros esforços da nação, que tentava implantar algumas poucas iniciativas destinadas ao atendimento dos jovens.
No âmbito das ciências sociais muito tem se debatido acerca da forma como o conceito juventude tem sido caracterizado nas diferentes regiões do globo. Pesquisadores, que partem de uma análise tendo por base o materialismo histórico e dialético (FRIGOTTO, 2009; SPOSITO, 2008; CORROCHANO, 2010; ANTUNES, 2018), enfatizam que, diante da perspectiva capitalista rentista pós-industrial, vários fatores impõem a necessidade de prolongar a fase juvenil. Redução de postos de trabalhos e a precarização das relações trabalhistas são algumas das novas dinâmicas impostas pelo capitalismo global que contribuem para que os jovens tenham dificuldades de entrar efetivamente na vida adulta.
Carrano (2011) afirma que, nos países da América Latina, se consolidou o entendimento por parte dos governantes de que a categoria juventude deve ser considerada a faixa etária populacional entre 15 a 29 anos. Adverte que, na Europa, diversos fatores econômicos e culturais levaram países como Itália, Espanha e Grécia a estender a juventude até os 34 anos. O autor ressalta, todavia, que a categoria juventude não pode ser definida apenas pelo corte de idade, tendo em vista que, em cada sociedade, o conceito de juventude “envolve elementos relacionados ao simbólico, ao cultural e aos condicionantes econômicos e sociais que estruturam as sociedades” (CARRANO, 2011, p. 10).
Tal perspectiva é corroborada pelos historiadores Giovanni Levi e Jean-Claude Schmitt (1996; 1997) ao contextualizarem a historicidade da juventude no ocidente. Para os autores, reduzir o conceito de juventude a uma determinada faixa etária trata-se de uma ação política precária que acarreta a incapacidade de compreender as especificidades das diversas ‘culturas juvenis’.
Além das polêmicas e dissensos sobre a construção histórica e social do conceito juventude, problematizada epistemologicamente nos diversos grupos de pesquisa das universidades latino-americanas, na última década do século XX ganha força uma corrente de estudos que irá problematizar a estética juvenil. Os sociólogos argentinos Mário Margulis e Marcelo Urresti (1996) se destacarão por inaugurar duas categorias de análise formidáveis.
A primeira delas trata-se da moratória social, composta especialmente pela ociosidade juvenil – tempo para estudar, para praticar esportes, para visitar os aparelhos culturais. São alguns privilégios que, sobretudo os jovens inseridos nas famílias mais abastadas irão desfrutar, por consequência, terão a entrada na vida adulta cada vez mais postergada.
A moratória vital, segunda categoria de análise desenvolvida pelos autores, trata-se do capital energético e corporal comum a todos os jovens, independente da classe social. Os pesquisadores ressaltam, todavia, que as condições sociais e culturais da juventude não se apresentam com as mesmas especificidades a todos os indivíduos que integram uma determinada faixa etária.
Em consequência, pode-se reconhecer a existência de jovens não juvenis – como é, por exemplo, o caso de muitos jovens dos setores populares que não gozam da moratória social e não portam os signos que caracterizam hegemonicamente a juventude –, e não jovens juvenis – como é o caso de certos setores médios e altos que vêm diminuindo seu crédito vital excedente, mas são capazes de incorporar tais signos. (MARGULIS; URRESTI, 1996, p. 180).
Se, por um lado, temos indivíduos dentro de uma faixa etária reconhecida socialmente como juvenil, e sua condição social de juventude é interrompida em função da gravidez precoce, casamento ou responsabilidade na chefia da família, o que leva esse jovem a assumir as responsabilidades do universo adulto, em outra ponta, indivíduos com idade mais avançada desejam continuar sendo ‘jovem’, acabam incorporando ‘signos’ que demonstram a vitalidade juvenil, estimulados em especial pela indústria cultural e de fármacos.
Desde a proclamação do resultado das eleições presidenciais de 2018, a comunidade educacional tem assistido perplexa, as declarações do novo mandatário brasileiro no que se refere ao futuro das políticas públicas relacionadas à educação. Propostas como ‘Escola Sem Partido’, ensino domiciliar, combate a um suposto marxismo cultural, bem como uma suposta ditadura intelectual de esquerda predominante nas universidades federais, têm sido propagadas pelo agora Presidente da República – Jair Messias Bolsonaro – e seus assessores nas redes sociais digitais e alguns veículos da mídia tradicional.
O estopim da tensão gestada nos primeiros meses do novo Governo ocorre dia 29 de abril, quando Abraham Weintraub – segundo Ministro da Educação do governo Bolsonaro – afirmou em entrevista ao Jornal O Estado de São Paulo4 que cortaria 30% das dotações orçamentárias anuais de três universidades – UnB, UFF e UFBA – por estarem promovendo balbúrdia em ambientes educacionais. Como exemplo de situações inapropriadas para uma instituição universitária, o Ministro apontou Sem Terras e ‘pessoas peladas’ correndo pelo campus universitário.
As universidades ficaram sabendo do bloqueio dos recursos pela imprensa, quando alguns parlamentares ameaçaram denunciar o Ministro por improbidade administrativa, visto que este estendeu o contingenciamento a todas as instituições federais de ensino. Em Santa Catarina, a medida colocou em risco o funcionamento da Universidade Federal de Santa Catarina, que teve 35 % das despesas discricionárias – utilizadas para pagar água e luz – bloqueadas. No Instituto Federal de Santa Catarina, o corte atingiu R$ 23 milhões dos 78 milhões previstos no orçamento anual. Já no Instituto Federal Catarinense o orçamento sofreu um contingenciamento de 30%.
Na cidade de Florianópolis, o anúncio do bloqueio orçamentário nas três instituições de ensino federal – UFSC, IFSC e IFC – ocorre concomitante ao envio de um Projeto de Lei de autoria do Governo Estadual à Assembleia Legislativa, que pretende reduzir em 10% o repasse de recursos via duodécimo à Universidade do Estado de Santa Catarina5. Tais fatos colocaram em curso uma série de atos protagonizados por jovens, na tentativa de mostrar à sociedade a ‘verdadeira balbúrdia’ que era produzida nestas instituições – produção científica e tecnológica de vanguarda, ações extensionistas em comunidades vulneráveis, além das atividades de ensino reconhecidas internacionalmente por sua qualidade.
No Instituto Federal de Santa Catarina (REGISTRO 01), os estudantes reunidos em assembleia, consideraram essencial estabelecer um diálogo claro e objetivo com a sociedade. Se em 2016, parte daqueles estudantes haviam deliberado por ocupar a instituição de ensino em protesto às medidas autoritárias do poder executivo federal6, a conjuntura atual exigia colocar a escola na rua: “enquanto o bloqueio orçamentário não for resolvido, uma vez por semana, vamos caminhar até a escadaria da Catedral Metropolitana de Florianópolis e vamos oferecer a população, uma aula pública”.Este foi o principal consenso estabelecido entre os estudantes que lotavam o Ginásio de Esportes.
Além de traçar estratégias em longo prazo para tentar reverter os ataques ao orçamento anunciados pelo Governo Federal, estudantes consideraram essencial aderir ao dia nacional de luta em defesa da educação – 15/05/2019 – que aconteceria na semana seguinte:
Ao invés de fechar a instituição, vamos colocá-la a disposição da sociedade, vamos receber a comunidade externa com eventos culturais, vamos organizar uma amostra dos projetos de extensão e pesquisas que são desenvolvidos aqui. Neste momento, torna-se urgente mostrar a relevância desta escola para a cidade[sic](DIÁRIO DE CAMPO, ESTUDANTE DE ENSINO MÉDIO, 17 ANOS).
Precisamos trazer professores e técnicos para essa luta, que é a manutenção do direito à educação. Acho essencial que uma vez por semana, ocorra uma grande aula pública na praça. O Professor bate o ponto, mas vai ministrar a aula lá na frente da escola [sic](DIÁRIO DE CAMPO, ESTUDANTE DE ESPECIALIZAÇÃO TECNOLÓGICA, 23 ANOS).
Gente, a mídia vive dizendo que, o que foi contingenciado é uma verba que o Reitor pode gastar como ele bem entender. Mas na verdade trata-se de coisas básicas como pagamento de água, luz e terceirizados que garante a limpeza da escola. Pergunto a vocês: É possível uma escola deste tamanho, com mais de 14.000 alunos funcionar sem água e luz? A sociedade precisa ser esclarecida do que está acontecendo [sic](DIÁRIO DE CAMPO, LÍDER DO GRÊMIO ESTUDANTIL, 18 ANOS).
Estamos em uma instituição de educação profissional, as aulas práticas sempre foram o diferencial. É isso que faz os IFs serem reconhecido na sociedade. Esse bloqueio está inviabilizando os insumos necessários para as aulas práticas. A rede vai voltar a ter apenas aulas teóricas? Em uma escola de ensino profissionalizante? [sic] (DIÁRIO DE CAMPO, ESTUDANTE DE CURSO SUPERIOR DE TECNOLOGIA EM GASTRONOMIA, 25 ANOS).
Na UDESC, além do polêmico projeto de lei enviado ao legislativo estadual para reduzir os recursos que o Governo repassava à universidade, juntava-se o fato de que a FAPESC7, desde janeiro, vinha atrasando o pagamento das bolsas de Mestrado e Doutorado. Junto a essa tensão, a CAPES8 anuncia o bloqueio de bolsas ociosas – quando um estudante defende a tese ou dissertação e o programa espera outro candidato ser aprovado em processo seletivo – nos programas de Pós-Graduação. Com o fato inédito, pós-graduandos recém-aprovados nas primeiras colocações, e que haviam largado o emprego para se dedicar integralmente ao doutorado, ficaram sem bolsa.
Defesa da autonomia universitária, pelo fortalecimento da pós-graduação e do desenvolvimento científico e tecnológico foram as principais bandeiras que os estudantes levaram para a rua no dia nacional de luta em defesa à educação (Figura 2). Nesse dia, de acordo com as estatísticas oficiais9, ao menos 30.000 pessoas saíram às ruas de Florianópolis para protestar contra os cortes anunciados no Ministério da Educação. Nas três principais instituições de ensino da cidade – IFSC, UFSC e UDESC – o dia iniciou com palestras e oficinas (Figura 3) sobre políticas públicas, bem como a finalidade do orçamento público. A partir das 13:00 os estudantes seguiram em passeata até a Catedral Metropolitana de Florianópolis, onde estava programada uma aula pública sobre o direito à educação.
A educação pública é uma garantia constitucional prevista no capítulo III da Carta Magna de 1988, que destinou nove artigos para tratar do assunto – Art. 205: direito à educação; Art. 206: os princípios do ensino; Art. 207: autonomia universitária; Art. 208: a responsabilidade do Estado em prover a educação; Art. 210: os conteúdos mínimos do currículo de cada etapa do percurso educacional; Art. 211: a corresponsabilidade da gestão do ensino entre União, Estados e Municípios; Art. 212: percentuais orçamentários mínimos a serem investidos na educação; Art. 213: gestão dos recursos públicos; Art. 214: diretrizes gerais a serem observadas nas elaborações dos Planos Nacionais de Educação – esses foram os temas tratados na aula pública realizada na principal praça de Florianópolis, assistida respectivamente por uma multidão (Figura 4).
As mais de 30.000 pessoas presentes na aula pública tiveram a oportunidade de refletir sobre os ataques obscuros que estão sendo orquestrados contra a universidade pública por governos neoliberais e organismos multilaterais como o Banco Mundial, que vislumbram na educação, uma oportunidade para expansão do rentismo e do capital financeiro.
Os participantes puderam compreender que é a Universidade pública e os Institutos Federais que impulsionam a ciência brasileira nas suas diversas áreas de conhecimento, levando desenvolvimento científico e tecnológico em todas as regiões do Brasil. Essas instituições, que passaram por um grande processo de expansão na última década, permitem, atualmente, que milhões de jovens possam acessar a graduação e o ensino profissionalizante, incluindo cada vez mais, populações historicamente marginalizadas pela sociedade brasileira.
Por tudo isso, os jovens que tomaram as ruas de Florianópolis, naquela tarde, tinham clareza que era o momento de juntar forças com a população e sociedade civil organizada em defesa da universidade pública brasileira. Era preciso se posicionar contra a mercantilização e a privatização do ensino, bem como defender uma educação gratuita, laica, inclusiva e transformadora, com a devida autonomia prevista no artigo 207 da constituição federal.
Dois dias após a qualificação do projeto de tese, viajei para a capital da Argentina. Muito mais do que um período para refletir sobre as indagações dos avaliadores da banca, a viagem se transformou em uma oportunidade de análise da produção bibliográfica portenha sobre a construção social do conceito juventude. Cafés, livrarias e museus consumiram parte do tempo em que passei na cidade autônoma de Buenos Aires, mas houve também espaço para produção etnográfica. Afinal, poucos municípios da América Latina oferecem cenários tão convidativos à reflexão como a capital portenha.
Logo no primeiro dia, ao sair de uma livraria na Rua de Maio, fui abordado por um argentino que me oferecia ingressos para um show de Tango. Ao perceber que eu não estava muito interessado no espetáculo, disparou: você é brasileiro, né? É de São Paulo? Olha, se precisar de ‘faso’10, posso te arrumar. Eu não compreendia parte do que o jovem falava, pois este não falava o espanhol tradicional da Argentina e sim um dialeto próximo ao que os portenhos chamam de “lunfardo”, um conjunto de gírias típicas do interior do país.
Enquanto eu tentava raciocinar para que lado estaria localizada uma loja especializada em livros universitários, o indivíduo continuava a oferecer seus produtos: mas você não precisa de “mina”? Ao constatar que eu não havia compreendido a gíria, disparou: mulher! Sexo! Ao perceber a minha cara de perplexidade, continuou: veja, é que os brasileiros, quando aparecem por aqui, ou estão procurando maconha ou precisam de mulher.
Ouvir o relato daquele jovem, uma semana após o então Ministro da Educação ter afirmado em entrevista à revista Veja que brasileiros, quando viajam para o exterior, agem como verdadeiros “canibais”11, foi um verdadeiro ‘soco no estômago’. Resolvi me livrar daquele indivíduo entrando no primeiro bar que encontrei.
As horas passaram. Já era noite quando resolvi voltar à Rua de Maio, em Buenos Aires, onde anoitece mais tarde em relação ao Brasil, depois das 20:30. Andando por aquelas vias com seus imponentes prédios históricos de arquitetura europeia, constatei algo estranho: várias avenidas que davam acesso à Casa Rosada estavam bloqueadas, um aparato policial – daqueles que aparecem em filme de ficção científica – das mais diversas instâncias – municipal, estadual e federal – percorria a área central. Tentando chegar à sede do governo argentino pelas poucas ruas que estavam livres, fui arrastado por multidão. Tratava-se de um protesto contra o governo de Maurício Macri.
Durante o período em que estive em Buenos Aires, as manifestações foram quase que diárias e protagonizadas principalmente por jovens. O ano letivo, que deveria iniciar após o carnaval, não iniciou. Professores se juntaram às mais diversas categorias – juventude, motoristas, agricultores, industriais, ferroviários, pilotos – contra as medidas de austeridade que o mandatário da nação tentava impor tutelado pelo Fundo Monetário Internacional.
O panelaço seguiu de forma enérgica embalado pela batida do Rap portenho contestatório. Enquanto tentava entender o jogo de gírias em torno das estrofes, fiquei a refletir que, em 2015, período em que acontecia a eleição presidencial na Argentina, a mídia tradicional brasileira apresentava o então candidato de direita como o único que tinha propostas objetivas para tirar o ‘país do buraco’. Desde que assumiu a presidência, em dezembro de 2015, a nação mergulhou na mais profunda crise econômica da história recente.
Explicavam-me alguns jovens manifestantes, moradores da periferia de Buenos Aires, que a inflação em 2018 fechou em 55%, o ‘tarifaço’ em serviços administrados pelo Estado – água, luz, transporte e gás – superara a cifra de 40%. Um jovem manifestante que carregava uma caricatura do Prefeito de Buenos com os dizeres “Adoquin careta vos transastes com Larreta”12 me explicava a dificuldade de inserção no mercado de trabalho formal. Mais da metade da população argentina está há mais de um ano sobrevivendo a massas; não é possível comprar verduras, frutas ou carnes. Embora a inflação tenha disparado nos últimos anos, o salário de quem ainda está empregado diminuiu: Macri nos ofreció el paraíso y nos dejó en el infierno. Si Evita lo supiera! [sic]. A princípio não entendi o significado da expressão “E Se Evita soubesse!”, mas ao longo da minha estadia na capital portenha, tal frase era repetida quase que diariamente.
No dia seguinte, logo após o café da manhã, resolvi caminhar em um dos inúmeros parques que existem na cidade. Em Palermo, enquanto refletia se entrava no Museu de Evita (Eva Duarte de Perón), um jovem me abordou. Perguntou se estava precisando de táxi, disse que não. Ele continuou: El faso? Tengo unos especiales aquí.Afirmei não ter interesse e adentrei o museu. Fiquei a refletir sobre as insistentes ofertas de ‘maconha’ na capital portenha: teria eu cara de maconheiro? Seria a camiseta de Havana que eu vestia? Talvez considerassem que eu fosse um brasileiro ‘maluco beleza’ percorrendo a América Latina com interesse em experimentar coisas exóticas locais. Ou seria a crise? Se a primeira pergunta que sempre me faziam era: brasileño? A segunda era referente à localidade: San Pablo? Brasileiros são logo associados a paulistas endinheirados que estão na cidade para exorcizar suas fantasias e gastar muito dinheiro.
No bairro San Telmo mais protestos, desta vez sob a organização da classe artística. Uma grande faixa azul com a frase Si Evita lo supiera! (E se Evita soubesse!) aglutinava a multidão. O peronismo ainda é uma força política consistente, permanece efervescente na consciência de parte significativa da sociedade argentina. Os doze anos dos governos kirchneristas de alguma forma contribuíram para reativar esse mito. Ao analisar como os aparelhos hegemônicos do Estado Argentino contam a história de Evita, percebe-se que as narrativas historiográficas se esforçam para caracterizar a ex-primeira dama como a única voz retumbante que realmente sensibilizou o coração dos pobres e dos trabalhadores argentinos. A história, todavia, relativiza, talvez de forma intencional, que o governo do General Juan Domingo Perón foi extremamente autoritário, cercado de contradições.
Para um estrangeiro, a frase “E se Evita soubesse!” pode soar nostálgica, porém, diante da instabilidade política e econômica que se encontra a Argentina, o bordão encontra adeptos, é um combustível para arrastar multidões às ruas de Buenos Aires. Tudo que Perón e Eva fizeram por essa nação, para acabarmos assim, de joelhos para o FMI.
A multidão que diariamente ocupava ruas, praças e as mediações do parlamento era movida por dois fatores centrais: 1) a tentativa do Presidente Maurício Macri em alterar a Ley Nacional de Educación sancionada pelo então Presidente Néstor Kirchnerno ano de 2006, considerada um grande avanço no que se refere aos direitos dos jovens argentinos acessar a educação pública13; 2) o empobrecimento da população argentina diante das medidas de austeridade que o governo vem colocando em curso nos últimos quatro anos.
A chamada Ley Nacional de Educación Argentina trata-se de um conjunto de leis sancionadas na década passada, após um amplo debate com educadores, jovens, sociedade civil organizada, bem como o parlamento argentino. O arcabouço jurídico compreende quatro grandes leis, que atualmente o Governo Macri tenta extinguir ou alterar radicalmente:
ü Ley Nacional de Educación, 26206, define a educação como um direito que o Estado deve garantir. Estabelece a obrigatoriedade da escola de Ensino Médio e a universalização da educação infantil;
ü Ley para la protección Integral de los Derechos de La Niñez y Adolescencia, 26061, reconhece o direito à educação pública e gratuita, atendimento ao desenvolvimento integral das crianças, sua preparação para o exercício da cidadania, a educação para a vida democrática e ao trabalho, respeitando sua identidade cultural e seu idioma nativo (indígena);
ü Ley de Financiamento Educativo, 26075, aumentou o gasto da educação básica para 6% do Produto Interno Bruto do país, regulamentou como o orçamento deve ser formulado e executado;
ü Ley de Educación Técnico Profissional, 26058, permitiu a expansão das escolas técnicas secundaristas e terciárias, bem como implementou nessas instituições a pesquisa aplicada e a extensão tecnológica.
Nos dias que seguiram a minha estadia na capital, o ritual etnográfico foi o mesmo: caminhada em um dos inúmeros parques da cidade, livraria, café, museu, observações nas manifestações contra o Governo Macri, na tentativa de compreender o que impulsionava aquela fúria às ruas, e escrita. Ainda não consegui me despir da condição de professor – como sugeria o avaliador da banca de qualificação –, mas deixo a Argentina com vários diários etnográficos sistematizados: sobre os movimentos juvenis contemporâneos – e muitos livros. Na alfândega, um profissional me questiona a razão de tantos volumes. Informo que é para uma pesquisa. Ele brinca: é sobre a história da Argentina? Digo que não, mas que talvez um dia volte para pesquisar alguns fatos históricos que considero inusitados como, por exemplo, peronismo e a capacidade de articulação política de Eva Perón.
É digno de registro que, como brasileiro, me impressionou muito encontrar a obra de Paulo Freire em estandes de destaque em todas as livrarias de Buenos Aires. Mesmo nos shoppings, onde não se prioriza livros acadêmicos, a obra de Paulo Freire estava lá. Talvez a capital latino-americana com os melhores índices de educação, segundo os organismos multilaterais, tenha algo a nos ensinar.
O estudo etnográfico realizado nas cidades de Florianópolis e Buenos Aires, demonstra que a pauta em defesa da educação é capaz de unir coletivos e organizações dos mais variados espectros ideológicos. Ao sair das escolas e universidades e ocuparem ruas e praças, jovens catarinenses e portenhos demonstram que a reivindicação política é a única forma de enfrentar o autoritarismo dos Governos Neoliberais.
No contexto obscurantista que se encontra a América Latia, paradoxalmente se faz necessário não apenas lutar pelos direitos, mas principalmente, enfatizar que na democracia, temos o direito à livre manifestação do pensamento. No dia em que esse artigo é fechado – 31/05/2019 – a comunidade acadêmica brasileira foi surpreendida diante de uma nota divulgada pelo Ministro da Educação14. O texto afirma que “professores, servidores, funcionários, alunos, pais e responsáveis não são autorizados a divulgar e estimular protestos durante o horário escolar”.
Não sabemos qual o fundamento jurídico que ampara a redação da nota que proíbe pais e estudantes de se manifestarem em defesa da educação. Certamente o Ministro não observou o artigo 16 do ECA15, que estabelece o direito à liberdade dos jovens, inclusive de opinião e expressão, tampouco o artigo 5 da constituição federal, que trata do direito à liberdade e a livre manifestação do pensamento, artístico e intelectual.
Diante da antipolítica apresentada pelo atual governo no Brasil, devemos observar, com atenção, as estratégias que os jovens de Buenos Aires colocaram em curso. Estabelecendo uma ampla articulação com movimentos sociais organizados – professores, camponeses, ferroviários, caminhoneiros – conseguiram barrar no parlamento, a proposta do Presidente Macri, que, se aprovada, colocava em risco a execução da Ley Nacional de Educación. A juventude continua mobilizada nas ruas, reivindicando que o parlamento derrube as medidas de austeridade que o FMI tenta impor no país. Será preciso acompanhar e verificar se as mobilizações juvenis terão êxito para sensibilizar mais uma vez o parlamento argentino.