Resumo: Sob a luz do materialismo histórico e dialético, o texto tem por objetivo apresentar elementos conjunturais da política educacional brasileira contemporânea e expor evidências de que o direito à educação está em risco. Para tanto apresenta alguns elementos relativos à realidade social e política brasileira, as principais previsões constitucionais e infraconstitucionais que (ainda) asseguram o direito à educação no Brasil e, por fim, algumas propostas de alteração legislativa, em especial as Proposta denominadas de “Escola sem partido”e “Educação Domiciliar”, as quais podem colaborar para um retrocesso na oferta educacional, principalmente quando destinada à classe trabalhadora.
Palavras-chave:Direito à EducaçãoDireito à Educação,Política EducacionalPolítica Educacional,Escola sem PartidoEscola sem Partido,Educação DomiciliarEducação Domiciliar.
Abstract: Under the light of historical and dialectical materialism, the text aims to present conjunctural elements of contemporary Brazilian educational policy and to present evidence that the right to education is at risk. Therefore, it presents some elements related to Brazilian social and political reality, the main constitutional and infraconstitutional forecasts that (still) guarantee the right to education in Brazil, and finally some proposals for legislative amendment, especially the "School without party" and "Homeschooling", which can collaborate for a regression in the educational offer, mainly when destined to the working class. Keyworks: Right to Education. Educational politics. School without Party. Homeschooling. Artigo recebido em: 20/06/2019 Aprovado em: 15/10/2019 DOI: http://dx.doi.org/10.18764/2178-2865.v23n2p605-620. 1 INTRODUÇÃO
Keywords: Right to Education , Educational politics, School without Party , Homeschooling.
Artigos - Dôssie Temático
O DIREITO À EDUCAÇÃO EM RISCO: a influência dos “sem partido” e dos “sem escola” na legislação educacional brasileira
Recepção: 20 Junho 2019
Aprovação: 15 Outubro 2019
Onde a vida depende das trevas, trazer a luz é um perigo mortal. (IHERING, 1979, p. 239).
O Brasil apresenta, enquanto país de origem colonial e escravocrata, resquícios de uma formação pautada na subserviência ao poder econômico e no desprezo pela igualdade entre as pessoas, fatos que interferem no exercício da liberdade e na luta coletiva por direitos. Além disso, a influência cristã de sua formação religiosa corrobora e/ou naturaliza as desigualdades econômicas e sociais que se fazem presentes na realidade material.
Tais fatos colaboram para que a sociedade brasileira se torne solo fértil para propostas que tenham por objetivo manter a ordem social pautada na desigualdade e na exploração de uma classe sobre a outra, sem que a maioria da população possa alçar patamares mais elevados de formação educacional e de participação na vida pública.
Nesse sentido, a epígrafe que dá início ao presente texto elucida que, para determinados grupos sociais, não há interesse em oferecer os meios necessários para um processo de emancipação política1, no qual a maioria dos indivíduos possa participar das decisões coletivas e reivindicar direitos. Entendemos que um dos meios necessários para que isso ocorra é a oportunidade de vivenciar processos educativos emancipatórios. A história já evidenciou, em diferentes pontos do globo terrestre, inúmeras situações a esse respeito, tal como exposto por Ihering (1979, p. 238-239);
Em alguns estados escravagistas da América do Norte, era, até a guerra civil, proibido, sob pena de morte, ensinar negros a ler e escrever. [...]. Aplicando nosso ponto de vista das condições vitais, a última consideração da questão, sob o enfoque daqueles estados americanos escravagistas, significa: nosso estado escravagista não se compatibiliza com a instrução de escravos – se o escravo pode ler e escrever, então deixa de ser cabeça para o trabalho: torna-se homem e faz valer seus direitos de homem, ameaçando, com isso, toda a ordem da nossa ordem social, que se assenta no instituto da escravidão.
A educação pode, conforme apontado pelo autor, ameaçar todo o edifício social alicerçado tanto na necessidade de mera sobrevivência quanto na ignorância de indivíduos que se curvam aos interesses de uma minoria que detém o poder econômico e, consequentemente, também o poder político. Para impedir que ocorra o desequilíbrio na organização social capitalista, assim como ocorreu em sociedades pautadas em outros modos de produção, propostas político-educacionais conservadoras ganham forma e força na atual conjuntura social e política brasileira, uma vez que a educação é vista como uma “ameaça”, principalmente quando oferecida a partir de pressupostos emancipatórios.
Em face disso, o presente texto pretende apresentar elementos conjunturais que sustentam a política educacional brasileira contemporânea e expor evidências de que o direito à educação encontra-se ameaçado. Para tanto, apresentamos reflexão acerca do aparato normativo legal brasileiro que, atualmente, assegura o direito à educação no Brasil e analisamos os efeitos de propostas de alteração legislativa em curso no país, principalmente propostas relacionadas ao Projeto “Escola sem Partido” e a proposta de “Educação Domiciliar” - a qual pretende oferecer formação educacional “sem escola”, às crianças e jovens brasileiros.
Consideramos que as propostas aqui denominadas de “Escola sem Partido” e de “Educação sem Escola” colocam em risco as conquistas históricas relativas à garantia do direito à educação no Brasil, visto que estão alinhadas com um pensamento conservador que tem como características fundamentais o autoritarismo, o preconceito, a negação das desigualdades e, consequentemente, o desprezo em relação à divisão de classes que dá sustentação à lógica capitalista.
A cultura é um privilégio. A escola é um privilégio. E não queremos que seja assim. (GRAMSCI, 2004. p. 74)
A sociedade organizada sob os pressupostos capitalistas tem como expressão fundamental a desigualdade entre as classes sociais. Nesse tipo de organização societária, supostamente pautada na liberdade, por meio da compra e venda da força de trabalho pelo capitalista e pelo trabalhador, respectivamente, o Estado exerce toda a sua força para garantir a manutenção de tal ordem social. Essa força estatal é expressa principalmente pelo aparato jurídico-normativo sob o qual se assentam as relações de compra e venda da força de trabalho. A esse respeito, Gramsci alerta que,
Se todo Estado tende a criar e a manter um certo tipo de civilização e de cidadão (e, portanto, de conivência e de relações individuais), tende a fazer desaparecer certos costumes e atitudes e a difundir outros, o direito será o instrumento para esta finalidade (ao lado da escola e de outras instituições e atividades) [...] (GRAMSCI, 2007, p. 28).
Na perspectiva apontada por Gramsci (2007), as leis são fundantes tanto para a garantia quanto para o usufruto de direitos pelos indivíduos de determinada sociedade. No entanto, na sociedade capitalista toda a legislação é contraditória, visto que expressa o resultado da correlação de forças entre diferentes classes sociais e, por isso, representa a hegemonia de uma classe sobre outra. Por isso, “o direito não exprime toda a sociedade [..], mas a classe dirigente, que ‘impõe’ a toda a sociedade aquelas normas de conduta que estão mais ligadas à sua razão de ser e aos seu desenvolvimento” (GRAMSCI, 2007, p. 249).
A análise de como a Constituição de um país expressa o direito à educação pressupõe considerar que suas previsões representam o resultado da correlação de forças em determinado momento histórico. Nessa perspectiva, há limites intransponíveis no interior da sociedade capitalista, visto que as previsões constitucionais, embora importantes instrumentos para assegurar a vida, não garantem a superação da desigualdade entre as classes sociais. No limite, as previsões constitucionais e legais de um país colaboram para a crença na utopia democrática de que todos os indivíduos são livres e iguais.
Em relação à atual Constituição do Brasil, Neves (1999, p. 99) argumenta que a referida Carta Magna, gestada no período pós-ditadura civil militar, procurou dar conta das profundas mudanças que o país passava naquele momento histórico “[...] introduzindo temas, redefinindo papéis, incorporando às instituições sociais segmentos historicamente marginalizados”. Todavia, as alterações constitucionais não foram capazes de transformar as relações sociais desiguais, mas, possibilitaram alguns avanços na seara dos direitos sociais, dentre os quais se destaca o direito à educação.
Sendo o ordenamento jurídico primeiro, a partir do qual se fundamentam todas as demais leis e normatizações, a Constituição assume papel de destaque no ordenamento legal no país. Em relação à educação, essa é prevista como direito social no art. 6º, juntamente com a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, e, a assistência aos desamparados. É importante destacar que o direito à educação é o primeiro na ordem de citação dos direitos sociais, caracterizando-se como “um direito fundante da cidadania” (CURY, 2002, p. 19), visto que não há possibilidades efetivas de exercício e de reivindicação dos demais direitos, sem que o direito à educação esteja plenamente assegurado, ou seja, para se constituir em cidadão, mesmo que nos limites da sociedade capitalista, o indivíduo precisa ter acesso à formação que se dá por meio da educação.
O status dado pela Constituição de 1988 à educação é tão importante que o ensino gratuito e obrigatório tornou-se direito público subjetivo nos termos do art. 208 (BRASIL, 1988), previsão que se configura como “um instrumento jurídico de controle da atuação do poder estatal, pois permite ao seu titular constranger judicialmente o Estado a executar o que deve” (DUARTE, 2004, p. 113). Atualmente, o ensino obrigatório e gratuito é assegurado aos brasileiros com idade entre 4 e 17 anos, conforme Emenda Constitucional nº 59/2009. Ao garantir a educação como direito obrigatório e gratuito, a Constituição brasileira impõe a prestação do serviço ao poder público, obrigação da qual não pode se furtar.
A garantia do direito à educação ainda precisa atentar para o cumprimento dos princípios constitucionais, sob os quais a oferta da educação se sustenta. Esses princípios estão previstos no art. 206, quais sejam:
I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;
IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
V - valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas;
VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
VII - garantia de padrão de qualidade;
VIII - piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal (BRASIL, 1988).
Os princípios constitucionais sob os quais deveria estar assentada a oferta educacional são impositivos e, como tal, não podem ser desconsiderados ou burlados. No entanto, em uma sociedade dividida, como a brasileira, há um distanciamento entre as previsões legais e a realidade, visto que esta é permeada por interesses antagônicos e as ações político-educacionais se vinculam com os compromissos sociais, econômicos e políticos dos gestores públicos “de plantão” em dado momento histórico. Todavia, enquanto instrumento jurídico-normativo, as previsões indicam intencionalidades que precisam ser perseguidas e asseguradas para que o direito à educação ultrapasse a mera previsão e se materialize de forma coletiva a todos os indivíduos de determinada sociedade. A garantia do direito à educação assentado sob determinados princípios é de responsabilidade do poder público, o qual precisa permitir que as instituições de ensino cumpram sua função social. Além disso, mesmo que seja ofertado pela iniciativa privada, esta deve cumprir as normas gerais da educação (entenda-se aquelas estabelecidas pela Lei nº 9394/96) e ser autorizada e avaliada pelo Poder Público, conforme artigo 209 da Constituição Federal.
Na esteira dos preceitos constitucionais, a legislação infraconstitucional da educação, especificamente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9394/96, reafirma os princípios constitucionais em seu art. 3º e acrescenta outros: respeito e apreço à tolerância; valorização da experiência extraescolar; vinculação entre educação escolar, o trabalho e as práticas sociais; consideração com a diversidade étnico-racial; e, garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida, conforme incisos IV, X, XI, XII e XII, respectivamente (BRASIL, 1996).
Tanto a Constituição quanto a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional são claras em relação ao direito à educação assegurado a todos os brasileiros, inclusive para aqueles que não tiveram acesso em idade própria, que é obrigação do Estado não só oferecer educação, mas assegurar os meios necessários para o acesso e permanência dos alunos no processo formativo, e que deve este ser oferecido assentado em determinados princípios. A isso equivale dizer que não há qualquer possibilidade ou brecha legal para que tais princípios sejam vilipendiados.
Outra questão importante a ser destacada é que a Lei 9394/96 reconhece a educação em processos formativos que se desenvolvem em diferentes espaços, não apenas no contexto escolar. No entanto a referida lei disciplina a “educação escolar”, a qual ocorre “por meio de ensino, em instituições próprias”, ou seja, em escolas criadas e autorizadas para oferecer ensino, conforme os preceitos educacionais brasileiros. (BRASIL, 1996). É na escola que o profissional habilitado para o ensino se faz presente, por isso “[...] o nexo instrução-educação somente pode ser representado pelo trabalho vivo do professor [...]” (GRAMSCI, 2006, p. 44).
Ao estabelecer que a educação é “direito de todos e dever do Estado e da família” (BRASIL, 1988), a Constituição estabelece responsabilidade solidária e não excludente em relação à obrigatoriedade de garantir o direito à educação. Portanto, o direito à educação precisa ser garantido pelo Estado e pela família, solidariamente, não podendo um excluir o outro dessa responsabilidade. São os dois entes, o poder público e a família, responsáveis pela garantia do direito à educação, conforme estabelecido em lei, devendo aquele realizar o recenseamento e a chamada escolar e esta efetuar a matrícula das crianças e zelar pela frequência na escola. (BRASIL, 1988; BRASIL, 1990; BRASIL, 1996).
Essa trama legal se estende até os umbrais do direito penal brasileiro, quando este tipifica como abandono intelectual a situação em que os pais não proveem a instrução primária de seu filho, podendo a autoridade judiciária impor o cumprimento de pena de detenção ou multa, conforme estabelecido no artigo 246 do Código Penal Brasileiro (BRASIL, 1940).
O direito à educação no Brasil é, portanto, assegurado em diferentes documentos legais, o que equivaleria à preocupação e ao compromisso do poder público e da sociedade em ensinar a todos, sem qualquer forma de distinção, seja por motivos ideológicos ou políticos, prevalecendo o preceito de isonomia dos cidadãos brasileiros, o qual pressupõe que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]” (BRASIL, 1988). No entanto, enquanto expressão de determinado momento histórico e do resultado da correlação de forças que se trava no interior do Estado, mesmo sob a aura de imparcialidade, o direito “[...] não exprime toda a sociedade [...], mas a classe dirigente, que ‘impõe’ a toda a sociedade aquelas normas de conduta que estão mais ligadas à sua razão e ao seu desenvolvimento.” (GRAMSCI, 2007, p. 249). Por isso, o direito e, sentido amplo, e o direito à educação em sentido estrito, tende a criar a utopia de que todos podem ser iguais e atingir os mesmos patamares de formação e, consequentemente, tornarem-se dirigentes. Essa utopia democrática impede a compreensão sobre a parcialidade das previsões legais e, também, das ações que deveriam garantir os preceitos indicados.
Todavia, não é possível negar a importância dos documentos legais e de suas indicações quanto ao direito à educação, mesmo sob o óbice da sociedade dividida em classes, visto que o ordenamento jurídico-normativo assegura a todos o acesso a uma educação nos limites da equidade fundamentada na lógica capitalista. Por isso, a defesa do direito à educação precisa estar acompanhada da compreensão de que na sociedade dividida em classes este será sempre limitado e comprometido com a manutenção do status quo.
Em razão das questões apontadas é preciso defender uma educação que possibilite o desenvolvimento pleno de crianças e jovens brasileiros, ou seja, uma escola “[...] que conduza o jovem até os umbrais da escolha profissional, formando-o, durante este meio tempo, como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige” (GRAMSCI, 2006, p. 49). Só desse modo o preceito constitucional de que a educação precisa estar pautada no “[...] pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988), previsto no artigo 205, seria atingido.
É preciso considerar a distância existente entre as previsões legais já instituídas (mas, muitas vezes, não consolidadas), as ações (e omissões) do poder executivo para a sua garantia e, ainda, as ações do poder legislativo para a manutenção ou alteração legal conforme interesses hegemônicos. Isso quer dizer que o movimento em prol de avanços e de retrocessos se mostra constante na realidade social e política, evidenciando interesses antagônicos e diferentes concepções acerca dos fins educacionais e sociais. Sobre essa questão é importante ressaltar que não há neutralidade possível sobre a discussão do direito à educação. Este será sempre contraditório e representará os interesses dos grupos que se fazem presentes nos debates político-educacionais, especialmente dos grupos dominantes que fazem parte da classe dominante e ou defendem a ideologia dominante, mesmo não pertencendo à burguesia, pois as conquistas dos dominados são sempre parciais e limitadas em razão da opressão que impera na atual forma de sociabilidade.
Por isso, na próxima seção, apresentamos algumas propostas, em curso na realidade brasileira, que se mostram como ameaça ao limitado direito à educação já assegurado nas previsões constitucionais e infraconstitucionais brasileiras.
Quem vive verdadeiramente não pode deixar de ser cidadão, e de tomar partido. Indiferença é abulia, é parasitismo, é covardia, não é vida (GRAMSCI, 2004, p. 84).
Tendo em vista as questões abordadas sobre o direito à educação e a realidade social e política brasileira, é preciso tecer algumas considerações sobre a força do pensamento conservador e alguns de seus impactos nas propostas de alteração legislativa em curso no país.
O conservadorismo é uma expressão cultural complexa, que se vincula a diferentes perspectivas teóricas (ESCORSIM NETTO, 2011). Em linhas gerais, o conservadorismo2 clássico surgiu como resposta ao processo revolucionário burguês na França, com o objetivo de defesa dos interesses da nobreza e do clero que pretendiam manter certos privilégios rechaçados pela Revolução Burguesa. No entanto, o processo de produção capitalista impulsionado pela Revolução Industrial e pela já mencionada Revolução Burguesa evidenciou toda a crueldade da exploração e alavancou a insurreição da classe trabalhadora, contribuindo para que o pensamento conservador se tornasse antiproletário. A aliança entre a nobreza e a burguesia para contrapor a ação revolucionária na Comuna de Paris (1870 – 1871) não apenas consolidou a burguesia no poder como também consolidou o pensamento conservador para o combate das reivindicações proletárias. A classe, antes revolucionária, torna-se conservadora, ou seja, arma-se (ideologicamente) para a manutenção das instituições que criou e que garantem sua manutenção no domínio econômico, político, cultural e social da sociedade. Sobre esse fato histórico, Gramsci (2007) reflete que,
De fato, só em 1870- 1871, com a tentativa da Comuna, esgotam-se historicamente todos os germes nascidos em 1789, ou seja, não só a nova classe que luta pelo poder derrota os representantes da velha sociedade que não quer confessar-se definitivamente superada, mas derrota também os novíssimos grupos que consideram já ultrapassada a nova estrutura surgida da transformação iniciada em 1789 e demonstra assim sua vitalidade tanto em relação ao velho como em relação ao novíssimo (GRAMSCI, 2007, p. 39).
A Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), que empobreceu profundamente a população, e a Revolução Bolchevique em 1917, que evidenciou a força proletária, colaboraram para que o pensamento conservador se aproximasse e se fundisse com o pensamento fascista italiano e com o nazismo alemão. Tais fatos históricos fizeram emergir ideais nacionalistas da pequena burguesia e corroboraram o crescimento do receio em relação a uma possível revolução proletária, contribuindo para a perseguição de todos aqueles que representavam algum possível enfrentamento em relação àqueles que se intitulavam “a legítima proprietária do mito de nação” e que ambicionavam “estar acima das classes fundamentais em luta” (KONDER, 2009, p. 17).
Sem a pretensão de esgotar o assunto é possível inferir que a fusão do pensamento conservador clássico com os pressupostos fascistas e nazistas culminou no pensamento conservador contemporâneo, o qual esteve em dormência e no início do século XX mostra toda a sua força. No contexto brasileiro esse pensamento se mostrou e se fortaleceu no seio da sociedade quando houve um intenso processo social, político e econômico para desqualificar governos próximos às perspectivas progressistas, evidenciadas na proposição e implementação de políticas sociais de amplo alcance, culminando com o processo de impeachment, em 2016, da então presidente da república, Dilma Roussef, do PT. A consolidação desse pensamento em solo tupiniquim ocorreu com a eleição de um candidato alinhado à extrema direita, Jair Messias Bolsonaro, do PSL, em 2018. Essas questões são importantes para situar o leitor a respeito de que o pensamento conservador se faz presente no interior do Estado, sendo este entendido na acepção gramsciana de fusão entre sociedade civil e sociedade política, evidenciando a hegemonia cultural, moral e econômica de determinados grupos que exercem o poder em determinado momento histórico.
A partir dos fatos históricos apresentados é possível inferir algumas características que fundamentam o pensamento conservador em curso na atualidade: a) defesa da pátria, evidenciada no nacionalismo; b) busca de soluções rápidas e parciais, ou seja, o imediatismo; c) autoritarismo evidenciado no desprezo por processos democráticos; d) defesa da família patriarcal, o que conduz à misoginia, à homofobia e ao moralismo, este visto como “bons costumes”; e) racismo, fundamentado na defesa da superioridade de determinadas raças em detrimento de outras; e, por fim, f) o apego à religião, especialmente se vinculada à doutrina cristã, sendo esta considerada como única vertente aceitável, visto representar um ser onipresente. Tais características se mostram importantes porque de forma direta ou indireta se fazem presentes nas propostas educacionais em curso no país.
Uma dessas propostas é aquela que tem sido denominada de “Projeto Escola sem Partido”, o qual teve origem no Movimento de mesma denominação. O Movimento Escola sem Partido, criado em 2004, pelo procurador paulista Miguel Nagib, caracteriza-se como uma associação que se preocupa com aquilo que eles chamam de“contaminação política ideológica” das escolas brasileiras e que, portanto, empreende ações para inibir tais práticas. As ações desse movimento evidenciam de forma explícita algumas características conservadoras, em especial aquelas vinculadas à defesa da família patriarcal e o apego à religião, além do imediatismo e autoritarismo. Uma das ações mais significativas desse movimento é a disponibilização, para qualquer agente político, de um Projeto de Lei a ser proposto em âmbito municipal, estadual e nacional, com o objetivo de alterar a oferta educacional e instituir uma “Escola sem Partido”.
As características do pensamento conservador se fazem presentes no Projeto de Lei Escola sem Partido quando este procura cercear e vigiar a ação docente, de modo a instituir uma educação sob o limite dos interesses e crença religiosa da família. Nesse sentido, a escola perde sua função de educar as novas gerações a partir dos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade e se restringe apenas à função de instrução para o trabalho. Além disso, há previsão da instauração de uma onda de denuncismo, na qual, os alunos são instigados a denunciar a ação dos professores caso estes pautem as ações pedagógicas fora dos limites impostos pela família e pela religião. Segundo Penna (2018, p. 111), não é por acaso que “essa cultura de denuncismo foi uma característica dos regimes nazifascistas”. Sob a insígnia de proteger crianças e adolescentes da possível militância de esquerda (diga-se comunista) dos professores, a proposta de Lei Escola sem Partido condena as novas gerações a uma educação medíocre, visto que desconsidera todo o desenvolvimento científico e o coloca sob os interesses familiares e religiosos, representando um retrocesso educacional sem precedentes. Além disso, há proibição de envolvimento pedagógico com as questões de sexualidade e de gênero, desconsiderando os conteúdos curriculares sob os quais se assentam o ensino brasileiro. Essa proibição evidencia o preconceito e fomenta a homofobia sob o lema de defesa de “bons costumes” fundamentado em um moralismo parvo.
Tanto o Movimento Escola sem Partido3, quanto o Projeto de Lei proposto com a mesma denominação desconsideram os preceitos constitucionais e infraconstitucionais de liberdade de cátedra, pluralismo de concepções pedagógicas, valorização dos profissionais da educação, gestão democrática do ensino público, além do respeito e apreço à tolerância e consideração da diversidade étnico-racial.
Outra proposta em curso no Brasil é a defesa da Educação Domiciliar (ED), a qual tem ganhado relevo, principalmente depois da ascensão de grupos da direita no comando político do país. No balanço dos cem (100) dias do governo federal, uma das pautas de destaque foi a defesa de um projeto para a Educação Domiciliar. A ministra da Família, Mulher e dos Direitos Humanos, Damares Alves, tem concedido entrevistas à imprensa, afirmando que o governo federal colocará a educação domiciliar como uma pauta de urgência para aprovação4. É importante destacar que a defesa de uma educação domiciliar, ou seja, de uma educação que ocorra fora do limite escolar e se dê, prioritariamente, no contexto familiar, é pauta de grupos conservadores, dentre os quais se inserem diversos agentes do primeiro escalão do governo federal, como a ministra acima mencionada. Segundo o Chefe da Casa Civil, ministro OnyxLorenzoni, o referido projeto de lei “trará mais segurança para a família que quiser adotar essa modalidade de ensino” (pronunciamento em entrevista coletiva, publicada por vários canais de comunicação, dentre eles “Correio do Povo”).
A Constituição Federal de 1988 não deixa dúvidas que a educação não é dever apenas da família, mas também do Estado. Em que pese a própria Constituição, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDB 9394/1996 e o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, de 1990, assegurarem, na forma de lei, o direito à educação da criança e do adolescente, que deve ser garantido pelo Estado (seja a educação escolar em instituição pública ou privada), no Brasil, desde 2010, há um movimento organizado de defesa para que as famílias possam educar seus filhos fora da escola.
Em 2010, foi fundada no país uma associação, com a finalidade de defender a autonomia da família no que tange à educação e ao ensino de seus filhos. Trata-se da Associação Nacional de Educação Domiciliar – ANED. Essa entidade, sem fins lucrativos, é constituída tanto por famílias que já educam seus filhos em casa como por simpatizantes dessa ideia. Conforme a ANED, na sua página oficial na internet:
Nossos associados estão espalhados por todo o território nacional e fizeram a opção pelo ensino domiciliar por diversos motivos (ideológicos, geográficos, religiosos, profissionais, etc.). Mas o que todos temos em comum é a convicção de que cada pai e mãe possui a responsabilidade de garantir a formação plena de seus filhos enquanto seres humanos, e que essa responsabilidade natural garante o direito de escolher qual tipo de instrução será dada a essas crianças.
A defesa da ANED, baseada nos princípios da HomeSchool Legal DefenseAssociation – HSLDA, entidade estadunidense, sem fins lucrativos, que vem atuando nos Estados Unidos desde 1983, centra a questão dos direitos na família, defendendo que é a família e não o Estado que deve se responsabilizar pela educação/ensino das crianças e dos jovens. Ao levantar essa bandeira, retira-se o direito das crianças e dos jovens ao ensino, uma vez que são seus pais – e não eles próprios – que definem sua formação, a partir dos seus valores restritos, ou seja, a educação, nesses casos, deixa de ser entendida como valor público e limita-se à esfera privada (cada um decide, ao seu modo, o que é “melhor”, mais “adequado” ao seu/sua filho/filha – no sentido mais privado).
É importante destacar que a tentativa de instaurar a legalidade da Educação Domiciliar no Brasil não é nova. Desde 2002 existem projetos de lei tramitando na Câmara dos Deputados para instituir essa modalidade de ensino no país, sendo que, além da Proposta do Executivo, há outras 8 propostas em tramitação naquela casa legislativa5.
Na sua obra intitulada Política, o filósofo Aristóteles (384 a.C. – 322 a. C.) defende que o cidadão – o homem da pólis, o ser político – deve ser formado tendo em vista o bem público, ou seja, a coletividade. Para Aristóteles,
[...] é óbvio que a educação deve ser necessariamente uma só e a mesma para todos, e que sua supervisão deve ser um encargo público, e não privado à maneira de hoje (atualmente, cada homem supervisiona a educação de seus próprios filhos, ensinando-lhes em caráter privado qualquer ramo especial de /conhecimento que lhe pareça conveniente). Ora: o que é comum a todos deve ser aprendido em comum. (ARISTÓTELES, 1988, p. 267)
A crítica de Aristóteles à educação privada, no sentido de que cada família decide a educação de seu filho conforme o que lhe for conveniente, embora feita há milênios, parece-nos muito atual, ainda mais se levarmos em conta que, na sociedade capitalista, a escola se torna a instituição por excelência para ensinar às crianças e aos jovens os conhecimentos historicamente sistematizados pela humanidade e que lhe possibilitem se tornar parte da humanidade (SAVIANI, 2003) .
Em países como o Brasil, em que a desigualdade social é alarmante, a escola pode ser o principal espaço, quando não o único, para que crianças e jovens da classe trabalhadora tenham acesso ao conhecimento científico, filosófico e artístico. Sendo assim, o que justifica a defesa de uma educação domiciliar, que atenda exclusivamente aos interesses das famílias? Quais famílias poderão ensinar conhecimento científico, filosófico e artístico aos seus filhos no âmbito privado do lar? Essas perguntas são necessárias para que problematizemos o que fundamenta a defesa de uma educação privada, conforme valores particulares de determinada família e ou grupo (religioso, político, dentre outros).
Esse tipo de educação, antes de qualquer coisa, só poderia ser custeado por famílias com condições econômicas para investir na educação das crianças, adolescentes e jovens, ou seja, no Brasil, só poderia interessar a uma pequena casta, excluindo-se dessa possibilidade a grande maioria das famílias do país. Nessa dimensão, o que justificaria a preocupação do atual governo brasileiro em garantir a um número ínfimo de famílias o direito a oferecer a seus filhos a educação que entenderem ser a “melhor” para eles em vez de se preocupar com a oferta da educação para a maior parte das crianças, adolescentes e jovens brasileiros?
Outro aspecto importante a ser considerado é a defesa de uma educação ou de uma escola “sem partido”, como se fosse possível existir uma educação neutra, entendendo-se aqui que a educação sempre está interessada na formação de homens e mulheres para determinado tipo de sociedade. A defesa de uma escola “sem partido” converge com a proposta de educação domiciliar (ainda que o Projeto da Escola sem partido não desconsidere a permanência da instituição escola), na medida em que ambas defendem que a educação deve ser centrada nos interesses familiares e religiosos e não nos interesses coletivos, públicos.
Tendo em vista as considerações apontadas neste texto, compreendemos que propostas como a da “Educação Domiciliar” e da “Escola sem partido” reforçam os interesses econômicos e políticos de grupos sociais conservadores, os quais ganham contorno com discursos religiosos que buscam colocar a escola e o professor, em especial, como inimigos a serem derrotados. A defesa desse conservadorismo serve aos interesses burgueses, uma vez que, ao privar os filhos da classe trabalhadora do acesso à ciência, filosofia e arte, não só se fere um direito constitucional, mas, acima de tudo, revela que esses conhecimentos podem ameaçar os projetos da classe dominante, na medida em que podem contribuir para despertar a consciência sobre a realidade.
As questões pontuadas a respeito do avanço conservador no encaminhamento de políticas educacionais indicam o quão tênue está o direito à educação no Brasil, especialmente quando oferecido à classe trabalhadora.
Sob o pretexto e justificativa de proteção de valores familiares, proteção das crianças e adolescentes em relação ao suposto ensino ideológico de esquerda que ocorre nas escolas, grupos vinculados a movimentos conservadores como o “Escola sem Partido” e a Associação Nacional de Educação Domiciliar (“Educação sem Escola”) ganham força e notoriedade para proporem alterações na legislação e assegurar seus interesses particulares.
A Proposta de uma “Escola sem Partido” hipoteca o futuro de crianças e jovens, oferecendo uma educação limitada, sem iniciativa, sem liberdade, ou seja, uma educação baseada na mediocridade, a qual visa a formação de trabalhadores subservientes tanto aos dogmas religiosos quanto aos interesses burgueses. Com possibilidade de formar pessoas que não desenvolvam a capacidade de analisar e entender a realidade, e a partir de profunda reflexão poder interferir em seu processo histórico, a escola contribuirá para a manutenção do status quo e, consequentemente, para o fortalecimento e ampliação dos objetivos capitalistas. Isso quer dizer que a lógica da exploração do homem pelo homem se mantém e coloca sua superação como impossível. Por isso, mais do que nunca é preciso buscar uma “[...]escola que não hipoteque o futuro da criança e não constrinja sua vontade, sua inteligência, sua consciência em formação [...]”, ou seja, “[...] uma escola de liberdade e de livre iniciativa, não uma escola de escravidão e de orientação mecânica” (GRAMSCI, 2004, p. 75).
A Proposta de “Educação sem Escola”, materializada na Educação Domiciliar, além de desconsiderar a função histórica e pedagógica da escola, poderá limitar a formação de crianças de jovens, os quais estarão condenados a receber uma educação fundamentada nos interesses mais imediatos dos pais, sem o desenvolvimento crítico que se dá na vida em coletividade. Além disso, a brecha legal a ser criada poderá interferir na responsabilidade pública pela oferta educacional, visto que a possibilidade de escolha entre a educação escolar e a domiciliar poderá acarretar redução de investimentos públicos no setor.
Ainda, as duas propostas em discussão expõem o descaso e o desrespeito pelo trabalho dos professores, visto que estes são apontados como negligentes, como doutrinadores de ideologia de esquerda, sem capacidade moral e pedagógica de formar adequadamente as novas gerações. Por essas questões as duas propostas vilipendiam a formação e o trabalho docente colocando-os em suspeição.
Em caso de aprovação das propostas haverá retrocesso na oferta educacional e no acesso ao ensino e o consequente fortalecimento do pensamento conservador, evidenciando ações pautadas no imediatismo; na ausência de processos democráticos para o planejamento educacional;no dogmatismo religioso que conduz principalmente à homofobia, ao moralismo de uma família patriarcal já em vias de extinção; à exclusão de determinados grupos do convívio social e, de quebra, ao nacionalismo, visto que essas características são utilizadas para justificar a necessidade de reconstrução de uma nação.
Não restam dúvidas de que o pensamento conservador se faz presente nessas propostas e que essas podem contribuir para a formação de “[..] pequenos monstros aridamente instruídos para um ofício, sem ideias gerais, sem cultura geral, sem alma, mas só com o olho certeiro e a mão firme” (GRAMSCI, 2004, p. 74).
Por todas essas questões, o direito à educação no Brasil encontra-se em risco, pois podemos estar vivenciando a aurora de uma sociedade ainda mais dividida, excludente, violenta, intolerante e, consequentemente, desumana.