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ÁGUA EM ESTADO VIVO1: conflito socioambiental e r-existência em torno do rio Dendê, Barcarena, Pará
Revista de Políticas Públicas, vol. 24, núm. 1, pp. 28-48, 2020
Universidade Federal do Maranhão

Artigos - Dôssie Temático



Recepção: 11 Dezembro 2019

Aprovação: 23 Abril 2020

Resumo: A Amazônia é um hidroterritório e um bioma que comporta milhares de pessoas, espécies da fauna e flora. O Rio Dendê, em Barcarena-Pará, faz parte deste cenário. Este rio é palco de conflitos de interesses entre empresas transnacionais, o estado e comunidades ribeirinhas. O estudo analisa, a partir de estudo documental e observação participante, estes conflitos, situando-os em um panorama histórico-interpretativo, com foco no papel do Estado e na r-existência das comunidades ribeirinhas. O aparato estatal se apresenta através da ação da Companhia de Desenvolvimento Econômico, da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade e do Ministério Público A voz das comunidades serve como contrapartida. Conclui, ainda, que o apoio do estado é fundamental para o avanço do capital sobre o hidroterritório Dendê, empobrecendo-o e transformando o modo de vida dos ribeirinhos que mesmo assim r-existem.

Palavras-chave: Conflito Socioambiental, Hidroterritório, Estado, R-existência, Amazônia.

Abstract: The Amazon is a hydroterritory and a biome that holds thousands of people, species of fauna and flora. The Dendê River in Barcarena-Pará is part of this scenario. This river is the scene of conflicts of interest between transnational corporations, the state and riverside communities. From documentary study and participant observation, we analyze these conflicts, situating them in a historical-interpretative panorama, focusing on the role of the state and the r-existence of riverside communities. The state apparatus is presented through the action of the Company of Economic Development, the State Secretariat of Environment and Sustainability and the Public Prosecutor. The voice of the communities serves as a counterpart. It can be concluded that state support is fundamental for the advancement of capital over the Dendê hydroterritory, impoverishing it and transforming the way of life of the riverside communities.

Keywords: Socioenvironmental Conflict, Hydroterritory, State, R-existence, Amazon.

1 INTRODUÇÃO

A região Amazônica é palco do avanço da acumulação capitalista por espoliação e campo de violação de direitos humanos, na qual os conflitos socioambientais e as suas implicações reais para a vida dos e das habitantes da Amazônia são expressões particulares. O artigo objetiva analisar a atuação do Estado e a r-existência local, em torno do uso e significado da água num território com forte presença do capital internacional - através de indústrias e portos para exportação - e de comunidades tradicionais. A água, como bem comum e fundamental para a vida, reconhecida pela ONU1 como um direito humano (2018), está na mira da acumulação por espoliação, foco de apropriação e uso pelo capital que utiliza várias estratégias para mercantilizar e impedir o acesso e uso livre da água, como denunciado no Fórum contra a exploração da água em Bern (2018) e no Fórum Alternativo Mundial da água em Brasília (2018). Chesnais e Serfati (2003, p.42) não deixam dúvidas de que esta lógica está baseada na “capacidade do capital em transferir a seu meio ‘externo’, geopolítico e ambiental (a biosfera) as consequências de contradições que são, exclusivamente, suas, no sentido que surgiram das relações de produção e propriedade que o fundam”.

O contexto concreto se chama “rio Dendê”, águas que percorrem pelo território do Conde2, em Barcarena – município paraense, na periferia da periferia do sistema mundial (PORTO-GONÇALVES, 2018), e que serve tanto como fonte de vida das comunidades da Ilha de São João, da Vila do Conde e do Maricá, quanto como escapo dos rejeitos e poluição das empresas de beneficiamento de Caulim (Imerys), de estoque, mistura e distribuição de fertilizantes (Tocantins Fertilizantes), de produção de coque de petróleo (TECOP) ou como contexto para futuros portos (Buritirama, Cesari)3.

No artigo foram analisadas teses e dissertações sobre o território do Conde e Barcarena disponíveis nos sites do CAPES e UFPA, publicações sobre poluição do rio Dendê, em revistas cientificas on line, atas da Companhia de Desenvolvimento Econômico do Pará (CODEC) no site do Diário Oficial do Estado do Pará, relatórios de impacto ambiental (RIMA) e autorizações de outorgas de uso da água (ambos no site da SEMAS) das empresas que impactam no rio Dendê e processos (extra)judiciais (termos de ajustamento de conduta, requeridos diretamente com o MPF) que incidem no hidroterritório do Dendê, além de observações participativas de campo na área em conflito, como forma de apreensão de narrativas de moradores e moradoras de duas comunidades, Maricá e Ilha de São João, em torno do Rio Dendê, os quais foram utilizados nomes fictícios.

A importância de abordar o conflito em torno da água está na representatividade dos conflitos como forma de denunciar e entender a violência e resistência à acumulação capitalista, especificamente no Brasil, uma vez que “[...] a manifestação de conflitos na sociedade capitalista reflete desigualdades estruturais e [...], a mudança social depende de conflitos sociais” (BARBANTI .JR., 2002, p. 15). Compreende-se com Zhouri e Laschefski (2010) que por meio dos conflitos ambientais são expressas:

[...] contradições do agenciamento espacial de atividades e formas sociais de uso e de apropriação dos recursos territorializados. São conflitos desencadeados pela denúncia da ocorrência de efeitos cruzados entre distintas práticas sociais espacializadas tidas como responsáveis pelo comprometimento da sua reprodutibilidade no tempo (ZHOURI; LASCHEFSKI, 2010, p.5).

O Atlas Global de Justiça Ambiental (ICTA, 2018) indicava o Brasil, em 2018, como o terceiro país com maior número de conflitos ambientais e socioambientais do mundo (96 conflitos), depois da Colômbia (126) e Índia (268). Em 2019, o país alavancou para a 2° posição com 131 conflitos registrados (ICTA, 2019). Nesses países, as tipologias de conflitos são diversas, das quais se destacam, em maiores proporções, os conflitos por aquisição de terras, exploração de minérios e direito de acesso à água. Os conflitos em torno do direito à água, embora não estejam liderando o ranking de incidências de conflitos, merecem uma emergente atenção, por ser alvo de exponencial exploração mercadológica, apropriação capitalista e ser um bem comum essencial para a reprodução dos modos de vida.

O relatório da CPT (2018) sobre os “Conflitos no Campo - Brasil” entre 2017 e 2018, mostra que na Amazônia “os conflitos no campo [...] aumentaram em 4% em relação a 2017, passando de 1.431 para 1.489 [...], 51,6% na região Norte” (p. 11). O mesmo relatório destaca que os conflitos em torno da água tiveram um crescimento entre 2017 e 2018: de 197 conflitos, envolvendo 35,4 mil pessoas, para 276, com 73,6 mil pessoas envolvidas– um aumento de 40,1%. Ribeirinhos e pescadores foram as vítimas preferenciais: 80,5% e metade destes conflitos foram causados por mineradoras (CPT, 2018, p. 12).

No contexto de intensos conflitos se insere Barcarena, um município localizado no nordeste do estado do Pará, na microrregião do Baixo-Tocantins (a 30 quilômetros de barco distante da capital Belém) com extensão territorial 1.310,588 km² e uma população estimada em 124.680 pessoas (IBGE, 2019). É constituído pelas terras em torno dos rios Pará, rio Moju, rio Arienga, Rio São Francisco, Rio Barcarena, Furo do Arrozal e dezenas de rios e igarapés menores. Até os anos 1980 era uma típica cidade ribeirinha, no sentido apresentado por Trindade Jr. (2013, p. 16) pelas:

[...] intensas relações para com o rio; este que é visto em sua multidimensionalidade, como fonte de recursos e de representações simbólicas, como via de circulação, como espaço de uso doméstico e de prática de atividades lúdicas, e, ainda, como elemento de lazer e de contemplação. [...] Com grande presença da população nativa, são aquelas com elementos culturais mais enraizados aos valores e saberes da floresta e do rio.

Nos anos 1970 e 1980 o Governo autoritário, atendendo a demandas do grande capital, definiu que no município predominantemente agrário, ribeirinho e extrativista de Barcarena seriam implantados grandes indústrias de transformação mineral (Albrás, Alunorte), portos para exportação (Porto Da Vila Do Conde) e uma cidade-empresa (Vila Dos Cabanos) devido sua boa localização às margens do rio Pará e baia do Marajó que possibilita a chegada e atraque de navios de grande porte. Uma área específica, banhada pelo mesmo rio Pará, com dezenas nascentes de igarapés e rios, entre eles o igarapé Curuperé e rio Dendê, foi destinada a ser um distrito industrial. As comunidades tradicionais ali habitando deveriam sair com o decorrer do tempo, sendo substituídas por empresas, portos e indústrias. Parte das comunidades foi (parcialmente) desapropriada e expulsa, mas outras comunidades tradicionais e novos moradores que ali construíram sua moradia continuam no território.

O processo de implantação do complexo portuário-industrial e a posterior expansão demandaram uma forte intervenção do Estado com uma política “modernizadora” do espaço e transformou Barcarena em um complexo portuário–urbanístico-industrial. O Estado pode, segundo Harvey (2014, p.91-92): “usar seus poderes para orquestrar a diferenciação e dinâmica regionais não só por meio do seu domínio de investimentos infraestruturais [...] mas também mediante sua própria imposição de leis de planejamento e aparato administrativos”. Este Estado, que “utiliza os meios mais adequados e diferenciados para atender aos interesses expansionistas do capital e cada momento específico de seu desenvolvimento (ARAUJO, 2016, p. 187), tem no conjunto de instituições, corpo de funcionários e leis, normas e regulamentos seu aparato (OSORIO, 2019 p. 19). Há uma clássica divisão de poderes, de executivo, legislativo, judiciário e Ministério Público (além das forças armadas, nem sempre subordinadas a uma destas esferas).

No texto a seguir, contextualizam-se os conflitos socioambientais na região Amazônica e a centralidade da água, discutindo os modos de vida e produção tradicional e capitalista que ali se enfrentam. Em seguida se apresentam as especificidades do conflito em torno do Rio Dendê, um hidroterritório, território demarcado:

[...] por questões de poder político e/ou cultural oriundas da gestão da água, assumindo assim, o papel determinante em sua ocupação. A princípio este território é demarcado pela disputa dos estoques de água, não se restringindo limites aos aqüíferos onde estão localizados, podendo inclusive gerar conflito pela posse e controle da água, por exemplo, pela implantação de um canal, barragem ou açude entre outras obras hídricas (TORRES, 2007, p. 14).

Discutem-se principalmente as ações e estratégias do Estado através da análise de operações e intervenções de duas instituições do poder executivo e do ministério público. Na terceira seção, trazemos vozes de alguns moradores sobre a realidade conflituosa como expressões das resistências das comunidades locais.

2 O CONFLITO SOCIOAMBIENTAL E A CENTRALIDADE DA ÁGUA NA AMAZÔNIA

A atuação estatal na Amazônia conta com orientação e apoio de organismos multilaterais nacionais e internacionais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (COSIPLAN) que desenham o mapa como e onde investir em ações de desenvolvimento e integrar as regiões que apresentam maior potencial logístico e econômico, através de planos e projetos de integração. Este:

[...] poder de comando da economia capitalista, articulada à esfera política [...] é produzido e veiculado pelos organismos internacionais (como o FMI, Banco Mundial e o BID), sendo absolutamente ligado à necessidade de produção, distribuição e consumo de mercadorias e ao mundo das finanças capitalistas (VALENTE, 2012, p. 27)

Os grandes projetos existentes na Amazônia, assim como em outras regiões, são pensados e executados pelo governo brasileiro, de forma a atender os interesses capitalistas e geopolíticos internacionais. São formas de aparelhar a região em condições adequadas para corresponder às estruturas físicas e geopolíticas que demandam ao capital (CARVALHO, 2004).

A Amazônia, como região de planejamento e dinâmica do capital, também é caracterizada pelas três regiões hidrográficas que contempla: A Amazônica,; Tocantins-Araguaia, da qual o rio Dendê, foco deste artigo, faz parte, e Atlântico Nordeste Ocidental (ANA, 2018). Neste contexto, a relação rio-várzea-floresta é um elemento intrínseco que influencia o seu metabolismo (Porto-Gonçalves, 2017). O ciclo hidrológico da floresta amazônica incide no regime das chuvas em todo o território nacional, devido a massa de ar úmido que se produz no seu âmago. Mas para além dessa dimensão física do ecossistema amazônico, especificamente em relação às regiões hidrográficas que nela se confluenciam, é importante atentar que existem dimensões humanas (sociais, econômicas e culturais) desenvolvidas em estreita relação com estes corpos hídricos. Muitos modos de vida e de produção estabelecidos na Amazônia são regidos pelos rios, como é o caso das comunidades ribeirinhas:

Não se deve confundir modo de produção com modo de vida. O primeiro responde pela dinâmica produtiva da vida material de um determinado grupo de indivíduos (O que produzem? Como produzem?). O segundo expressa totalidade, em que se faz presente o sistema produtivo da vida material, além dos sistemas explicativos da vida, muitas vezes povoados por crenças e mitos. Dessa forma, a existência de um grupo de indivíduos se expressa por um determinado modo de vida (CANTO; LÍRIO; FERRÃO, 2009, p. 216).

Na perspectiva dos autores acima mencionados, “não é possível a existência de ribeirinho sem uma relação orgânica com o rio e/ou lago”, ou seja, os modos de vida, que compreendem as crenças, as técnicas e conhecimentos tradicionais também se correlacionam com os modos de produção, com o que produzem, como produzem e como se reproduzem. É no lugar, na não-separação entre natureza e cultura, onde as comunidades tradicionais geram o conhecimento local, identidades (hidro)territoriais e os próprios ecossistemas (ESCOBAR, 2005). O sistema de transporte hidroviário por pequenos barcos marca a dinâmica de locomoção dessas populações e as configurações socioespaciais são pensadas e construídas a partir das singularidades do meio físico que se dispõe. A vida é regida pelos rios, expressando uma unidade sociometabólica: homem-natureza.

Para Granemann (2009, p. 4), os processos de manipulação da natureza, especificamente aqueles que são peculiares ao modo capitalista de produção, não apresentam preocupação com a vida humana, ao contrário, tornam mercadejáveis as esferas da sociabilidade humana. Uma dinâmica que marca esse processo é a acumulação por espoliação a qual apresenta, com efeito, a separação violenta entre o homem e a sua terra e aos bens e recursos naturais, configurando um rompimento com a interação sociometabólica (FOSTER, 2014). As práticas do Estado neste processo de desconfiguração e rompimento desta relação são fundamentais através de mecanismos legais, pois todo território inserido na lógica do desenvolvimento capitalista requer “amplas mudanças legais, institucionais e estruturais” (HARVEY, 2003, p. 127).

No contexto de Barcarena o conflito entre os dois modos de vida e produção e a atuação do Estado pode ser estudado no denominado Distrito Industrial. Nos anos 1990, e posteriormente, a empresa francesa Imerys Rio Capim Caulim instalou nas terras tradicionalmente ocupadas uma grande indústria de beneficiamento de Caulim e portos para sua exportação. Empresas de logística portuária, produção de cimento, estoque, mistura e distribuição de fertilizantes, de coque de petróleo, de assistência técnica industrial e um porto para exportação de grãos seguiram este exemplo. As comunidades tradicionais do lugar precisaram reorganizar o espaço que usaram e novas comunidades nasceram e cresceram no meio das empresas, abrigando moradores expulsos de outras áreas ou migrantes de municípios próximos e até de outros estados. O que o Estado planejou para ser um território de uso exclusivo (e devastador) do capital (uma zona de sacrifício) se tornou o território do Conde, caracterizado pela convivência conflituosa entre as empresas poluidoras voltadas para o mercado mundial e as comunidades tradicionais e de ocupação lutando pela natureza que garante seu viver.

O Rio Dendê se situa neste hidroterritório do Conde e é um afluente localizado à margem esquerda do Rio Pará – sendo este último um dos principais rios de Barcarena. Ele nasce nas proximidades da indústria de alumínio ALBRÁS, nele finda o igarapé Curuperé, que nasce numa área ocupada por uma das bacias de rejeitos da empresa de Caulim Imerys e o igarapé Maricá, usado para despejar efluentes da empresa Tocantins Fertilizantes. Seus cursos d’água deságuam no Rio Pará, próximo ao porto da Imerys e nas praias da Vila do Conde. (FERREIRA, 2015; RODRIGUES, 2006, LIMA et. al, 2011).

Partindo do pequeno rio Dendê, subindo até seus nascentes e explorando suas beiras, encontram-se comunidades tradicionais, cuja vida é definida pela relação com a água deste rio, desde o banho, lazer, preparo de alimentos, pesca, transporte até o consumo. Eles se identificam como ribeirinhos (pessoas que moram e vivem - na beira - dos rios) e pescadores (referindo-se à atividade laboral que gera sua identidade de ser social).

Nas margens deste rio Dendê se situam as comunidades ribeirinhas Ilha São João e Maricá e os portos e quintais de uma parte das residências da Vila do Conde. Em 2012, a Ilha São João era constituída por 22 famílias e Maricá por 59 famílias (UFRA, 2012); em 2014 o número de famílias na Ilha de São João diminui para 20 famílias (FERREIRA, 2105, p. 75) e depois de remoções realizadas em 2019, sobraram 15 famílias.

A configuração socioespacial das comunidades é caracterizada por moradias suspensas em pontes e assoalhos de madeira no rio, aspectos típicos de comunidades ribeirinhas. Eles vivem às margens, ao lado, dentro e sobre o rio, sobrevivendo da pesca, da colheita de açaí (que cresce na várzea atrás das casas), de comércio entre si, algumas roças em outras áreas do território do Conde, trabalhos e serviços temporários nas empresas terceirizadas e de programas sociais.

As empresas nas proximidades do rio têm poluído as águas e o Estado pressionado moradores a sair, planejado a expansão das empresas em detrimento do direito de permanência e existência das populações. Em diálogos estabelecidos com três moradores da Ilha São João e Maricá, é possível apreender a importância do rio para a sobrevivência das famílias, o qual representa significados materiais e imateriais como a identidade de ser pescador, ribeirinho; e materiais no sentido de sua importância como fonte de renda e consumo. A principal fonte de renda e subsistência dessa família era a pesca que foi restrita pela poluição.

Quando nós cheguemos aqui, era muito bom esse lugar aqui, muito mesmo, tinha como fazer uma roça, tinha peixe aqui nesse igarapé, muito peixe, camarão. A gente colocava vinte matapi, tinha que tirar logo o camarão pra botar e a gente saia pra vender de manhã aí, né, no Conde (Rosângela)

Era muito diferente, muito mesmo, era.. como é que se diz?, era um lugar muito bom para viver. Eu nunca trabalhei empregado, criei esses seis filhos e nunca dependi de empresas e nunca trabalhei empregado. Meu negócio era .vivia do mar, pesquei desde moleque, [...] Antigamente dava muito peixe nesse igarapé, camarão, vinha tomar banho a vontade, [...]. (Carlos)

As narrativas dos moradores expressam, notoriamente, a vida tradicional que era desenvolvida por meio de práticas de agricultura familiar e pesca artesanal, traduzindo em possibilidades de subsistência econômica (venda) e consumo próprio, características que convergem com o que elenca Cañete e Cañete (2010, s/n) sobre o modo de vida tradicional:

[...] marcado pela intensa simbiose e relativa harmonia com o meio ambiente em que vivem, desenvolvendo técnicas de baixo impacto ambiental, fraca articulação com o mercado, intenso conhecimento da biodiversidade que os cerca, modo de produção baseado na mão de obra familiar.

Os relatos dão conta da fartura de peixe e camarão, como também da combinação com outras atividades como roça e colheita de frutas. E também se percebe em seus relatos que o tempo é o tempo necessário para garantir a alimentação e até para ter o que vender se restringia a poucas horas por dia, autossuficiente, sem, como disse o terceiro morador, ser necessário se empregar e se submeter ao trabalho assalariado. A identificação com as atividades que desenvolviam (e ainda desenvolvem, porém, sem a mesma fartura e por exaustivos tempos de trabalho) e a alegria que se expressa na frase “vinha tomar banho a vontade”, contrasta com a realidade observada depois da instalação das empresas.

Esse modo de vida, a forma de existir, entrou em conflito com as empresas capitalistas vinculadas a beneficiamento de minério, agronegócio e logística para exportação que disputam a água do rio Dendê. Desde os anos 1990 grandes transformações ocorreram com o hidroterritório do Dendê Identificaram-se, a partir das visitas de campo, outorgas de uso da água disponibilizadas pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará - SEMAS (2018), atas do Codec e denúncias ao MPF algumas empresas que possuem localização próxima ao rio e seu tipo de uso da água, conforme Quadro 1.


Quadro 1

Empresas com influência direta sobre o Rio Dendê

SEMAS (2018), Codec (2018), MPF (2019) Elaboração: Cruz e Hazeu (2018)

Embora haja uma definição e permissão legal dos usos da água, estas servem como permissão de espoliação: o uso da água subterrânea e superficial dos rios é gratuito para a produção industrial e para gerar lucro, enquanto a população local fica sem água para seu consumo e as margens dos rios entregues a portos privados, impossibilita aos pescadores acessar os rios e atracar seus barcos. Além das autorizações formais, as empresas ainda utilizam a agua para outros fins, como para o lançamento de efluentes no rio Dendê, nos igarapés Curuperé e Maricá, que desaguam no Rio Dendê, e no rio Pará, que devido o movimento das marés “invade” o rio Dendê, em períodos de maré cheia. Este despacho de efluentes tem provocado poluição grave, conforme moradores e pesquisas (citadas mais adiante) evidenciam.

Fora do lançamento constante de efluentes, o hidroterritório do Dendê tem sofrido a ocorrência de vários desastres4 socioambientais, a maioria ocasionada pela empresa multinacional francesa Imerys, listados no quadro 2:


Quadro 2

Desastres provocados pela Imerys RCC que impactaram no hidroterritório do Dendê desde 2004

Barcarena Livre Informa nº1 (2016); Saraf (2019), ALEPA, (2018); Florenzano (2019); G1 (2019) Ver-O-Fato. 2018 / Elaboração: Cruz e Hazeu (2018)

A empresa Tocantins Fertilizantes, presente desde 2014 no território, é muito citada pelas comunidades no que tange à mortandade de peixes. A empresa apresenta apenas a outorga de captação de água subterrânea no processo da SEMAS, mas, segundo a comunidade e as denúncias realizadas para o ministério público, essa empresa tem utilizado a água para o lançamento de efluentes no igarapé Maricá e prejudicado as águas do Rio Dendê.

A multinacional estadunidense OXBOW Brasil Energia, Indústria e Comércio LTDA, que começou a operar em 2012 no território do Conde com o beneficiamento de carvão mineral na produção de petcoke e coque metalúrgico, usa o Rio Dendê para o lançamento de efluentes. O Porto de Vila do Conde utiliza a água através de captação subterrânea, mas de acordo com os moradores, o naufrágio do navio Haidar e derramamento de óleo no rio Pará afetaram expressivamente as comunidades em torno do Rio Dendê, pelo mau cheiro e flutuação de carcaças e corpos de bois ao longo do rio.

A empresa Cesari adquiriu um grande terreno na beira do rio Dendê e desmatou toda área onde fez um trabalho de terraplenagem, gerando desde 2018 grandes quantidades de lama escorrendo para dentro do rio, deixando o mesmo vermelho e sem possibilidade de uso.

Hazeu e Rodrigues (2019) apresentaram uma análise dos estudos feitos em relação à poluição do rio Dendê pelo Instituto Evandro Chagas e o Laboratório de Química Analítica e Ambiental (Laquanam) da UFPA nos rios de Curuperé, Dendê e Pará. Estes evidenciam a poluição provocada pela Imerys e o descaso com o meio ambiente e saúde da população (CARNEIRO; VALE; LIMA, 2007, 2018; PEREIRA, OLIVEIRA, 2010; LIMA, et al. 2011). As conclusões dessas pesquisas mostram claramente a correlação entre a poluição da água e a atividade da empresa Imerys, como escreve Pereira (2007, p. 84) “[...] que devido ao constante vazamento de efluentes sem tratamento no rio Curuperé e Dendê estes já não comportam mais vida aquática”.

Em 2019, um estudo baseado em exames de sangue da população do território do Conde apresentara alarmantes dados em relação à presença do elemento extremamente tóxico para seres humanos, o Cádmio. Conforme as conclusões, os níveis de Cádmio foram significativamente maiores nos residentes bairro Industrial em comparação com os da área de controle sem atividade industrial (NAKA et. al. 2019).

As novas empresas (Buritirama, Cesari, Barcarena importação e exportação de minérios) principalmente relacionado à instalação de novos portos usando o hidroterritório do Dendê, têm comprado áreas da CODEC para a futura instalação de seus empreendimentos, algumas áreas ainda habitadas pelas comunidades, que estão sendo pressionadas a sair e vender suas casas.

3 ESPOLIAÇÃO ESTATAL NO CONFLITO HIDROTERRITORIAL

No que tange às políticas espoliativas implementadas no intitulado Distrito Industrial, é possível identificar um caráter regulamentador e legislativo que é funcional tanto para a ampliação das condições de implantação de empresas, quanto para a redução da garantia de permanência das comunidades tradicionais no território. O Estado, representado por instituições e agentes diversos - às vezes contraditórias entre si - atua em torno do acesso e uso da água, legislando, (des)apropriando, distribuindo, julgando e intermediando. Três instituições do Estado foram identificadas na maioria dos conflitos estudados: 1) A Companhia do Desenvolvimento Econômico do Pará (CODEC); 2) A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) e o 3) Ministério Público.

A CODEC foi criada em janeiro de 2015 e possui a competência de implementar e fomentar políticas de industrialização, desenvolvimento econômico para o Estado. No fomento e implementação de políticas ela atua com a regularização fundiária para a implantação de empresas nos Distritos Industriais do Estado, incluindo o Distrito Industrial de Barcarena. As áreas relativas ao Distrito Industrial foram (des)apropriadas pela Companhia e, no âmbito desta, são realizadas negociações de áreas com as empresas que ensejam se instalar nesses distritos. Nas atas da CODEC é possível identificar negociações de áreas do Distrito Industrial em relação a empreendimentos em Barcarena e que pressupõem o uso da água para lançamento de efluentes e deslocamentos compulsórios de famílias que estão em áreas de interesse industrial. No extrato da ata de reunião de 01 de julho de 2016 pode se ler:

[...] a empresa BARCARENA IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO DE MINÉRIOS S/A, em agosto de 2014, demonstrou interesse na aquisição de dois lotes industriais localizados no Distrito Industrial de Barcarena e a Companhia, em resposta a intenção formulada, apresentou a proposta de venda dos seguintes lotes: a) lote 01, localizado na via de acesso ao porto da Imerys Rio Capim Caulim, Comunidade “Maricá”, [...]; b) lote 02, localizado na via de acesso ao porto da Imerys Rio Capim Caulim, Comunidade “Bairro Industrial” [...] Na ocasião da proposta reformulada, a Companhia, considerando que às áreas em aquisição eram ocupadas por superficiários, propôs à empresa interessada o abatimento no preço a ser pago, caso a mesma aceitasse a responsabilizar-se pela elaboração de 436 (quatrocentos e trinta e seis) laudos de avaliação de imóveis e relatórios antropológicos das Comunidades Maricá, Acuí, Arienga e Ilha de São João. (DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO, 2016)

A empresa SERVIPORTO SERVIÇOS GERAIS E APOIO PORTUÁRIO LTDA, em vias de regularização de área localizada na Rodovia PA 483, km 20, s/n, Vila do Conde, Distrito Industrial de Barcarena, uma vez que foi ocupada sem o devido cumprimento das Normas da Companhia, requer que neste processo de regularização seja considerada a possibilidade de desconto, considerando presença de superficiários na área. Posta a matéria em discussão, os Conselheiros presentes, por unanimidade, decidiram por aprovar o desconto [...] sendo de inteira responsabilidade da empresa compradora, indenizá-los e retirá-los, (Diário publicado em: 04/04/2018, grifo nosso)5

Os extratos das atas mencionadas referem-se a negociações de áreas relativas ao Distrito Industrial de Barcarena. As empresas citadas atuam no ramo portuário e de exportação e importação de minérios e demonstraram interesse especificamente em áreas pertencentes às comunidades do Bairro Industrial, Acuí, Arienga, Ilha São João e Maricá. As condições e valores estabelecidos são de competência da CODEC, sendo solicitada para a empresa interessada a elaboração de laudos antropológicos dessas comunidades e a negociação (pressão direta) com as comunidades compartilhada.

A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade é responsável por implementar, no Estado, ações de gestão e fiscalização no que tange aos recursos naturais e ambientais, incluindo a função de regular e pela Resolução CONAMA nº 001/86. Em relação aos recursos hídricos, a SEMAS conta com a Diretoria de Recursos Hídricos - DIREH, à qual compete coordenar e executar a Política Estadual de Recursos Hídricos (SEMAS, 2018). A DIREH possui uma gerência de outorga para o uso dos recursos hídricos.

A outorga é um instrumento de amplo amparo legal, regulamentada pela Política Nacional e Política Estadual de Recursos Hídricos, por meio da qual o poder público autoriza o usuário, sob condições preestabelecidas, o uso da água para intervenções hidráulicas (SEMA, 2010). No processo de outorga o usuário informa qual a modalidade de uso da água será requerida, sendo estas: Captação de água subterrânea, Captação de água superficial, Obra Hídrica, Lançamento de Efluentes [...] (SEMAS, 2010).

Segundo o site da SEMAS (2019), em relação aos processos de outorga., 159 outorgas foram emitidas a empresas em Barcarena de 2007 a 2018, e somente 27 indeferidas. Especificamente as empresas TECOP/OXBOW, Imerys e Fertilizantes Tocantins, as mais citadas no “hidroconflito” do Dendê, têm, conforme quadro 3, seu direito de uso (gratuito) da água garantido e legalizado.


Quadro 3

Processos de outorga de uso da água em vigor segundo SEMAS das três principais empresas envolvidos no hidroconflito do Dendê em Barcarena

SEMAS, 2018, elaboração: autores

A outorga para o uso gratuito de recursos hídricos é uma expressão da acumulação por espoliação, como argumentou o representante da comissão de Meio Ambiente da OAB, exigindo cobrança da água usada, alegando “que o Pará já deixou de arrecadar entre R$ 80 bi a R$100 bi em mais de dez anos de uso da água nas indústrias das mineradoras paraenses” e que:

[...] os insumos produzidos com a utilização da água são exportados com a desoneração de ICMS da Lei Kandir, não atendem o mercado interno - muito menos o local - e não são usados para a fabricação de componentes ou manufaturados aqui mesmo. Ou seja: a valoração agregada se dá no exterior. “Inexiste qualquer motivo para que as empresas que utilizam as águas paraenses sejam isentadas de pagamento, como está ocorrendo há mais de uma década”, argumenta (DIÁRIO DO PARÁ, 2012).

O papel da SEMAS possui similitudes com o papel da CODEC no sentido de funções reguladoras, mas com um caráter de fiscalização mais rígido em relação ao cumprimento das condições preestabelecidas. Ainda assim, esse rigor não tem funcionado no que tange aos usos além dos previstos nas outorgas, pois as condições dos rios e igarapés do município, e, particularmente, do Rio Dendê, oferecem riscos à reprodução material e imaterial. Mesmo com todos os desastres e evidências de poluição, a empresa Imerys, por exemplo, tem conseguido manter a aprovação de licenças ambientais ano após ano, como foi levantado no site da Semas até 2018.. Dos 57 processos registrados no site em relação à Imerys, desde 2005, 31 se referem a licenciamentos e destes só três foram indeferidos.

O Ministério Público (MP) é outra instituição do Estado presente no conflito. Sua função oficial está na defesa dos interesses sociais, na fiscalização das leis, da ordem jurídica e do regime democrático. O Ministério Público “também defende o patrimônio cultural, o meio ambiente, os direitos e interesses da coletividade, como os das comunidades indígenas, da família, da criança, do adolescente e do idoso” (MPPA, 2018). O MP dispõe de ferramentas judiciais (inquérito civil, ação civil pública) e extrajudiciais (como o Termo de Ajustamento de Conduta) como mecanismos de defesa e proteção dos direitos coletivos. O quadro 4 apresenta várias ações do Ministério Público Estadual e Federal em Barcarena em relação aos processos identificados no território do Conde, do qual o rio Dendê faz parte.


Quadro 4

Ações do ministério público estadual e federal no território do Conde

Ministério Público do Estado do Pará (2019) e Ministério Público Federal (2019)/ elaborado pelos autores

As ações dos Ministérios Públicos tratam de processos de danos ambientais, desapropriação e povos tradicionais, mas tem gerado efeitos contraditórios. As empresas têm continuado suas atividades (poluentes), mesmo com algumas adaptações, respaldadas pelas negociações permanentes em torno dos acordos, porém, sem implementar as ações acordadas e permitindo a continuidade da acumulação por espoliação, conforme uma breve análise mostrada por dois TACs.

O TAC de 2007 (MP, 2007), assinado por Imerys, foi negociado depois do grande desastre de vazamento de Caulim em 2007, que atingiu os igarapés Curuperé e Dendê e área de preservação destes, conferindo às aguas uma coloração branca que chegou até as praias de Caripi, Conde e Ituanema [...] e. o número de famílias remanejadas para creches e colégio público chegou a 52 (196 pessoas). O objeto deste TAC era:

[...] a reparação integral do dano ambiental decorrente do acidente acima descrito, compreendidas aqui a acepção ecológica, moral e social, com a cumulação de obrigações negativas, medidas de recuperação do meio lesado, compensação financeira pelos danos, indenização pelos danos ocasionados e ainda medidas de ordem técnica, com objetivo de prevenir e reduzir riscos e danos futuros (TAC, 2007)

Porém, a empresa não mudou sua condição de poluidora e destruidora do meio ambiente, conforme Quadro 2.

Outro TAC firmado em 2016 visou ajustar um procedimento de monitoramento ambiental da atividade desenvolvida na área da CODEC, que inclui o hidroterritório de Dendê. Conforme a legislação de licenciamento ambiental, um distrito industrial só poderia funcionar depois da realização de um estudo de impacto ambiental e o licenciamento do Distrito Industrial. Como isto nunca foi feito, o Distrito Industrial opera na ilegalidade, com inúmeros desastres ambientais, a poluição acumulativa e sinérgica e a permanente expansão das indústrias, portos e empresas na área. Este TAC permitiu, porém, a continuidade dos processos industriais e funcionamento das empresas (numa situação irregular), sem que o sistema de controle, monitoramento e tratamento ambiental efetivamente tenha sido implementado até 2019.

Os TACs não foram negociados com a participação de moradores, mesmo sendo eles os principais atingidos, e seus interesses (coletivos) não parecem estar no centro dos mesmos. Os TACs são: “usualmente simbolizados enquanto formas de se obter o ‘consenso’, à maneira de ‘Termos de acordo’, e não de instrumento de garantia da legislação e de concepções de justiça social”, conforma afirmam Viegas (2014, p. 204), ou seja, “acordos entre poucos para poucos”.

4 R-EXISTÊNCIA DAS COMUNIDADES

Uma das moradoras da Ilha São João relatou as antigas e atuais condições de vida, as transformações ocorridas em torno do rio Dendê. Em uma das residências havia galões de água que eram utilizados para beber, dar banho na criança recém-nascida, cozinhar, mesmo com um rio cercando a casa:

Ai daí e pronto, depois que começou a chegar essas empresas, aí pronto, foi acabando, foi acabando que hoje em dia se a senhora bota 30 matapi, a senhora não pega uma mão de camarão no igarapé. Aí prejudicou nós agora né, nós não temos saída agora, o que nós temos é nosso pé de açaí, que quando chega mês de junho, julho, tem como vender o açaí, né. E o peixe é aí pra fora, a gente vai pra fora e pega o peixe, mas aqui dentro do rio mesmo acabou. Não tem mais o peixe, tem que ir pra lá pra fora. Antigamente era muito bonito, muito bom mesmo. (REGINA)

Embora haja um rio cercando a comunidade, existe um cerceamento do uso e das práticas desenvolvidas em torno do rio, a partir deste padrão sociogeográfico dominante, destruindo as bases de outro padrão sociogeográfico (Porto-Gonçalves, 2017). Falas de moradores evidenciam aspectos da vida da comunidade que têm sido afetados pelos conflitos em torno do uso da água.


Quadro 5

Efeitos da poluição da água para as comunidades

Pesquisa de Campo (2018)

Os efeitos socioambientais apresentados são produtos de uma lógica de mercado que junto à ação estatal comprometem aspectos da produção e reprodução da vida humana. Nessa direção, afetam também todo um conjunto de elementos que compõem as necessidades humanas básicas. Na realidade do Rio Dendê, o direito básico ao acesso à água potável para consumo, lazer e trabalho é violado e cada vez mais restrito, bem como a autonomia e autodeterminação das comunidades na efetivação de seus modos de vida.

Devido à poluição e ao corte do abastecimento de água encanada na Vila do Conde, fornecido apenas mediante o pagamento, as comunidades estão utilizando a água de um caminhão pipa contratado por uma das empresas poluidoras. No entanto, os moradores afirmam que a água fornecida tem procedência duvidosa, afirmando que não é água potável. Chama-se atenção para a questão da privatização da água, em que as comunidades vivenciam duplamente: o impedimento do uso do rio devido à poluição e o corte de fornecimento da água encanada, que representava a única possibilidade de consumo.

No que tange ao trabalho que foi impedido também pela mortandade da vida aquática, os moradores denunciam que isto não veio acompanhado, como alegado pelas empresas, por oportunidades em empregos dentro das empresas, ou mesmo projetos e programas que gerem emprego e renda, “[...] essas não querem ajudar as pessoas (Maria), [...] os pais, as mulher que tudo desempregada aqui, (Rosângela).

Mesmo assim, os moradores querem permanecer na comunidade, mas expressam indignação e sentimento de abandono e falta de expectativas de sobrevivência com o rio.

E assim, olha, a situação aqui nossa é muito ruim, muito mesmo, tem dia que tem pai de família que tem o que comer na sua casa, tem dia que não tem [...] comida, só tem água na geladeira. Não tem nada. Porque aqui mesmo eles abandonaram nós, foi a prefeitura e as empresas. (Rosângela)

Isso não era pra tá acontecendo. [...] tá abandonado aqui, eles tão pra lá, pro outro lado de lá das bacias da Alunorte [...], tá abandonado aqui, só que eles esqueceram que tá poluído há muito tempo isso aqui. E a gente aqui ficou.. [...] não tem a quem recorrer. A gente tá aí desse jeito, senhora. Em uma situação desesperadora, sinceramente (Carlos).

Os moradores, em tom de denúncia e insatisfação, afirmaram que quando procuram serviços sociais públicos para atender as demandas emergentes geradas pelos efeitos socioambientais, percebem que não funcionam efetivamente: serviços de assistência social nos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS), postos de saúde, monitoramento ambiental através da SEMAS e Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Econômico (SEMADE).

Há falas sobre morosidade nos atendimentos no CRAS e da indisponibilidade de recursos, como galões de água mineral; o Posto de Saúde não funciona à noite, além de que, as visitas dos agentes de saúde não compreendem a poluição do Rio Dendê e os efeitos para as comunidades. Em relação às secretarias de meio ambiente, os moradores afirmam que quando ocorrem acidentes, a secretarias multam as empresas como forma de compensação, mas não monitoram efetivamente as suas atividades. Essa informação se confirma com o disposto no inquérito civil público:

Frise-se, ainda, que os dados, que integram o incompleto e precário monitoramento ambiental das atividades industriais executados em Barcarena, são coletados pelas próprias empresas monitoradas (trata-se, portanto, de um automonitoramento) e repassados em relatórios trimestrais à Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade, que sequer conta com estrutura suficiente para fiscalizar se sua obtenção se procedeu de maneira adequada e se seus resultados são corretos (MPPA, MPF, 2015).

As comunidades, diante da pequena atuação desses órgãos públicos, recorrem ao MPPA através de denúncias, audiências públicas, e mobilizações contra as empresas.

Um dia desses nós fechemos aí atrás, [...] joguemos pau e fechemos, que não queriam dar emprego e jogaram a caulim deles no igarapé todo aí morreu os peixes aí.. aí nós fechemos, coloquemos o matapi aí na rua todinha.. que, não tem como. Aí chamaram polícia e nós saímos da rua. Não porque dá ódio né, porque o que é da gente [...] tá acabando e eles tão se dando bem, tão ficando ricos (Rosângela).

5 CONSIDERAÇÕES

Em um dos lugares mais “industrializados” da Amazônia, a resistência de comunidades tradicionais e a afirmação da sua existência no (hidro)território evidenciam o incerto do desfecho da ocupação capitalista e estado desenvolvimentismo na região. A disputa pelo hidroterritório do Dendê é mediada, gerenciada, estimulada e provocada por um Estado e seu aparato que se estruturam historicamente para ser o braço facilitador e protetor dos interesses do capital e dos países centrais no sistema mundial capitalista.

Enquanto as empresas capitalistas são autorizadas a usar a água subterrânea para seus processos de transporte (minerodutos), produção e limpeza que são poluidores; e autorizadas para enviar seus efluentes poluídos para rios e igarapés cheios de vida (flora, fauna), as comunidades usam a água para todos os aspectos de sua vida e, portanto, a preservam. São lógicas distintas: a do insumo e da poluição na produção de rejeitos industriais, e a da manutenção da vida, da satisfação de necessidades humanas e sociais.

Analisando ações do Estado e das empresas capitalistas em relação ao hidroterritório do Dendê, a intenção parece ser criar uma zona de sacrifício, eliminando (expulsando) a população local para a ocupação e operação das indústrias e portos voltados para a exportação de commodities, usando e espoliando a natureza, a terra, o território e principalmente a água. Porém, as comunidades tradicionais, partes integrais da natureza, terra, território e água, continuam presentes, mesmo cada vez com menos acesso a estes elementos.

No conflito pesquisado, a CODEC, respaldada por um decreto da época da ditadura que criou um distrito industrial, tem oferecido e vendido áreas a empresas, mesmo sendo habitadas historicamente. Nesta operação se organiza a expulsão dos moradores, primeiro no papel e em seguida, justificando com o decreto e os documentos de compra e venda, fisicamente, por pressão, força, constrangimento, convencimento.

A SEMAS, através de uma conduta técnica e instrumental, tem aplicado a legislação ambiental para regular a implantação dos portos e indústrias, burocratizar e descontextualizar a espoliação (outorgas, zoneamento), poluição, devastação e desastres, autorizando a continuidade das operações industriais e portuárias em detrimento dos interesses das populações que fazem parte dos ecossistemas locais, o direito de viver.

A intervenção do Ministério Público foi, principalmente, através de ações extrajudiciais, entre partes com poderes e interesses desiguais, sem participação da população na elaboração dos termos. A impressão que fica é que se tem negociado a continuidade das operações das empresas, facilitando a expulsão da população do território, compensações mínimas e evitando processos judiciais de responsabilização. Isto tem enfraquecido a posição das comunidades locais e o caráter democrático do Estado brasileiro.

O conflito em torno do rio Dendê ocasionou o empobrecimento das comunidades, comprometeu a saúde e restringiu a atividade pesqueira, principalmente. Pode se dizer que a política voltada para o hidroterritório do Dendê é uma necropolítica, que define quem pode viver e quem deve morrer? Uma política de matar o rio para acabar com a população ribeirinha? Despovoar as beiras do rio e impedir o acesso aos rios para a população, deixando a água sem proteção como elemento de vida e com vida, para se tornar insumo e esgoto do capital?

A atuação e permanência das comunidades do Rio Dendê expressam r-existência e luta pela defesa dos seus territórios de água, fundantes para as necessidades humanas e também para as representações simbólicas, como a identidade de ribeirinhos (as) e pescadores (as) e um caminho de pensar outra base societária.

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Notas

[1] Termo usado por Porto-Gonçalves (2018).
[1] Reconhecido pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas através da Resolução n° 64/292 de 2010.
2 Território do Conde é uma autodeterminação apresentada pelos moradores que participaram da construção da cartografia social, em contraposição à denominação de “Distrito Industrial” (GAYOSO, HAZEU, 2019, p. 2)
3 https://www.buritirama.com/
4 Desastre: “o fenômeno de constatação pública de uma vulnerabilidade na relação do Estado com a sociedade diante o impacto de um fator de ameaça que não se conseguiu, a contento, impedir ou minorar os danos e prejuízos”. (VALENCIO, 2009, p. 5).
5 http://www.ioepa.com.br/diarios/2018/04/04/2018.04.04.DOE_60.pdf


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