Resumo: Desde 1994 a África do Sul pôs fim à sua estrutura oficial de segregação, baseada na ultra exploração da força de trabalho negra e na total segregação racial: o Apartheid. Embora esse sistema tenha acabado e o país seja governado pelo antigo movimento de libertação nacional, o African National Congress (ANC), as desigualdades sociais se aprofundaram. O objetivo deste artigo é analisar os processos políticos que condicionaram a transição Sul-africana do Apartheid à democracia. A pesquisa tem natureza qualitativa e foi realizada por meio de revisão bibliográfica da sociologia crítica sul-africana, da análise de documentos oficiais e na análise crítica de discurso. O estudo identificou que a transição à democracia foi tutelada pela mais rica fração da burguesia sul-africana e viabilizada pelo ANC, que aderiu às ideologias neoliberais.
Palavras-chave:ApartheidApartheid,África do SulÁfrica do Sul,TransiçãoTransição,NeoliberalismoNeoliberalismo.
Abstract: Since 1994 South Africa has put an end to its official segregation structure, based on the overexploitation of the black workforce and total racial segregation: The Apartheid. Although this system is over and the country is ruled by the former national liberation movement, the African National Congress (ANC), social inequalities have deepened. This paper aims to analyze the political processes that conditioned the South African transition from Apartheid to democracy. The research has a qualitative approach and It was conducted through a bibliographical review of South African critical sociology, analysis of official documents and critical discourse analysis. The study found that the transition to democracy was led by the wealthiest fraction of the South African bourgeoisie and made possible by the ANC, which adopted the neoliberal ideologies.
Keywords: Apartheid, South Africa, Transition, Neoliberalism.
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ANALISANDO A TRANSIÇÃO DA ÁFRICA DO SUL À DEMOCRACIA: neoliberalismo, transformismo e restauração capitalista
Recepção: 27 Outubro 2019
Aprovação: 29 Abril 2020
Passados 25 anos desde o fim do Apartheid, regime que segregava e normatizava racialmente todos os aspectos da vida na África do Sul, o país se tornou o mais desigual do mundo. O mais rico país da África Austral ainda tem a maior taxa de desemprego entre o grupo de nações de renda média, que também é uma das maiores do mundo: desde 1994, entre 25% e 30% dos sul-africanos estão desempregados. Esta porcentagem aumenta significativamente entre a população negra, rural e entre mulheres, assim como, nas províncias mais pobres (PATEL, 2013; GUMEDE, 2015). Desde a redemocratização, poucas vezes o país não despontou como o mais desigual do mundo, quando considerado o Coeficiente de Gini. Este era de 0.59 em 1993, último ano do Apartheid, de 0.61 em 1996, chegou a 0.66 em 2006 e retrocedeu para 0.64 em 2018 (THE WORLD BANK, 2019). As assimetrias de renda são ainda mais gritantes: em 2015, os 10% mais ricos da população, dos quais mais de 73% são brancos, que são apenas 9,6% da população, concentravam sozinhos 71% da riqueza do país. Na base da pirâmide, os 60% mais pobres da população retêm apenas 7% da riqueza, esta parcela mais pobre é formada quase que integralmente por negros, 96% (GUMEDE, 2015). Em 1993, 25% da população detinha 80% da riqueza nacional, em 2008, 80% da riqueza estava concentrada em 12% da população (PATEL, 2013).
Desde o fim do Apartheid, crescentes parcelas da população enfrentam o desemprego de longa duração e novas modalidades de ultra exploração da força de trabalho, como a terceirização, o trabalho intermitente e a generalização de contratos de trabalho sem nenhum tipo de proteção previdenciária pública ou privada, além da abolição do salário mínimo nacional (TERREBLANCHE, 2012). Mais de 16 milhões de sul-africanos são pobres e outros 10 milhões vivem em condição de miséria, sem trabalho e sem acesso a nenhum tipo de proteção social pública ou fonte de renda. Além dos já impactados pelo empobrecimento da classe trabalhadora sul-africana, outros 5,5 milhões, que compõem o precariado nacional, correm o risco de se tornarem pobres nos próximos anos (BARBOSA FILHO; VIEIRA, 2019). A principal resposta do Governo Nacional ao crescente empobrecimento, desde 1994, são os programas de transferência de renda, as social grants. Essas bolsas, insuficientes para financiar as necessidades sociais básicas, são a única ou principal fonte de renda de cerca de 17 milhões de sul-africanos e passaram a ser a principal estratégia governamental de combate à pobreza extrema, especialmente a partir da Lei Nacional de Assistência Social, The Social Assistance Act Número 13, de 2004.
Além da criação de uma Política e de um Sistema Nacional de Assistência Social, a África do Sul Pós-apartheid, desde 1994, baniu toda a legislação racista que impedia o acesso dos negros, mestiços (coloureds) e asiáticos à administração pública e à representação política. Nos primeiros anos da democracia, em que os sul-africanos de cor puderam votar pela primeira vez, foi lançado em 2000, o Programa de Empoderamento Econômico Negro ou Black Economic Empowerment (BEE), o maior programa público de empoderamento econômico do mundo, que por meio da reserva de postos de trabalho e de incentivos financeiros e legislativos racialmente orientados, objetiva garantir que trabalhadores não-brancos ocupem cargos de chefia em empresas públicas e privadas e fomentar o surgimento de um empresariado entre os grupos raciais que foram subalternizados pelo Apartheid .
Contudo, o mais emblemático indicador de enfrentamento das disparidades sociais do Apartheidparecia ser a Nova Constituição Nacional, lançada em 1996. Esta comprometeu o Estado Sul-africano com a garantia de direitos de cidadania para todos os , foi uma das primeiras a reconhecer o casamento igualitário entre pessoas do mesmo sexo, e o direito ao aborto como um direito sexual e reprodutivo das mulheres. A Seção Número 27 da Constituição Nacional também determina que o Governo Nacional, das províncias e das municipalidades criem políticas e serviços sociais que combatam as desigualdades sociais herdadas do Apartheid e que garantam as necessidades básicas dos sul-africanos.
Desde 1994 o Governo Nacional e de oito das nove províncias está nas mãos doAfrican National Congress (ANC), o maior movimento de luta contra os sistemas racistas que surgiram na África do Sul ao longo do Século XX, fundado em 1912, e que se tornou partido político em 1990. Desde a sua criação estava orientado à criação de um Estado de bem-estar social para todos os sul-africanos de cobertura universal e desmercantilizada, como está previsto no principal manifesto do ANC, a Carta da Liberdade, Freedom Charter, publicada em 1955, e em vários programas políticos produzidos pelo partido de libertação antes de chegar ao poder, evidenciando o compromisso do partido com o chamado socialismo democrático.
Mas por que as expressões da questão social se aprofundaram mesmo com o fim do regime do Apartheid, com a democratização e com a chegada do ANC ao poder? Que sujeitos modelaram o processo de transição política à democracia para que ela tivesse tão pouco impacto na diminuição das desigualdades sociais?
Nesse sentido, o objetivo deste artigo é caracterizar os processos políticos que condicionaram a transição Sul-africana do Apartheid à democracia. A pesquisa tem natureza qualitativa e buscou os esclarecimentos, enlightenments, viabilizados por esse tipo de estudo. Para tal, foram utilizadas as seguintes metodologias qualitativas de pesquisa: revisão bibliográfica, análise documental e análise crítica de discurso.
Na revisão bibliográfica da sociologia crítica sul-africana, foram selecionados e analisados, artigos e ensaios de autores que analisam a disputa de projetos e os sujeitos da transição da África do Sul à democracia. Estes são pensadores críticos que dão centralidade às relações de poder e de produção e à historicidade dos processos sociais em suas análises sobre a África do Sul Pós-apartheid. Para este trabalho, foram analisados trabalhos (livros, capítulos de livros, artigos e ensaios) de intelectuais como: Vusi Gumede (2015), Sampie Terreblanche (2005, 2012), Charles Feinstein (2005), Grace Davie (2015), Leila Patel (2013), Saul Dubow (2014), Ari Sitas (2010) entre outros. Essa aproximação à sociologia crítica sul-africana se deu durante pesquisa de campo no país. Nessa mesma ocasião, foram realizados levantamento e análise documental sobre leis nacionais, os National Acts, que cristalizavam os diversos discursos e perspectivas sobre os caminhos da democracia no país. Também foram analisados programas nacionais de reformas e a documentação de domínio público produzida pelos sujeitos coletivos envolvidos na transição.
O corpus foi analisado a partir de uma estrutura de análise crítica de discurso. Sendo assim, após identificação, classificação e categorização minuciosa do corpus, foi realizada análise das fórmulas discursivas, estratégia de análise crítica de discurso, elaborada por Alice Krieg-Planque (2011). Com esse recurso, foi possível construir duas fórmulas discursivas que orientam o desenvolvimento do trabalho: “o começo do fim: entendendo a crise do Apartheid” e “o fim do novo começo: neoliberalismo, transformismo e o poder do MEC”. Estas fórmulas discursivas também foram utilizadas como subtítulos para os tópicos de desenvolvimento deste artigo. Este estudo foi financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Os quase três séculos e meio de história Sul-africana de sistemas de exploração baseados em ideologias fundadas no racismo religioso, científico e cultural, a saber: os regimes coloniais holandês e inglês (1652-1910), o período da União Africana (1910-1948) e o do Apartheid (1948-1994) determinaram o surgimento de um capitalismo racial sustentado pela ultra exploração da força de trabalho negra (BOND, 2014; DAVIE, 2015). A particularidade racial dessa modalidade de capitalismo era sustentada por acordos entre a classe detentora dos meios de produção e a classe trabalhadora branca, os partidos políticos, totalmente dominados pela minoria de origem europeia e pelos investidores internacionais. Além dos interesses econômicos, por possuir uma enorme reserva de força de trabalho barata e subalternizada nos setores minerador, industrial e agrícola, os países capitalistas centrais viram ao longo do Século XX nos regimes racistas da África do Sul uma forma de impedir o avanço dos movimentos de descolonização e de orientação marxista no sul do continente africano (FEINSTEIN, 2005).
As frações da burguesia e a classe política supremacista branca ainda contavam com ampla legitimação da classe trabalhadora branca, já que além de altas taxas de mais-valia, o sistema oficial de exploração dos negros e negras, garantia os privilégios dos/das trabalhadores/as brancos/as e suas famílias (DAVIE, 2015). Estes, em decorrência das políticas pigmentocráticas voltadas à ascensão social dos que se enquadravam no padrão de branquitude, definido pelo Partido Nacional, National Party (NP), recebiam altos salários e contavam com um sistema de bem-estar social universal e desmercantilizado (PATEL, 2013).
Durante o período 1948 a 1973, a economia da África do Sul esteve entre as de maior e mais rápido crescimento do ocidente capitalista (FEINSTEIN, 2005). O papel do país de maior fornecedor de minérios para países capitalistas centrais e suas profundas relações econômicas com os EUA, com a Inglaterra e com a Alemanha Ocidental, sustentadas pela exploração dos/as trabalhadores/as negros/as, coloured (mestiços) e asiáticos fez com que se tornasse um dos países mais industrializados do mundo.
Menos de uma década após o NP chegar ao poder, implantando o Apartheid e radicalizando as leis de segregação racial, iniciadas no período colonial, a totalidade dos negros e negras já estava destituída do direito à terra, de propriedade, sendo transformados em trabalhadores assalariados, perdendo a cidadania sul-africana. No começo da década de 1950, enquanto os/as mestiços e asiáticos/as, que correspondiam a 23% da população, foram confinados em áreas segregadas, pouco valorizadas das cidades, as negras e negros, que eram 60% da população, passaram a ter sua cidadania ligada a uma das dez homelands ou banstustões, criados com base na Lei Nacional de Terras Nativas, Native Land Act Nº 27 de 1913 (UNION OF SOUTH AFRICA, 1913), e que equivaliam a cerca de 13% do território. Segundo o ideário do NP a África do Sul deveria ter apenas cidadãos brancos, e assim, os negros passaram a ser considerados trabalhadores imigrantes dentro do país. O território das homelands equivalia aos fragmentos de terra mais pobres e inférteis do país. O propósito dos idealizadores do Apartheid era deixar o máximo possível de negros e negras tendo como única opção a venda da sua força de trabalho na África do Sul do Apartheid. As enormes reservas de força de trabalho serviam para manter os salários acentuadamente baixos e a destituição da cidadania sul-africana desresponsabilizava o país com os custos da reprodução social dos trabalhadores e das suas famílias, mantidas nos bantustões.
O crescente uso da violência e o aumento dos níveis de exploração que acompanharam os governos do NP ocasionaram transformações nas táticas de ativismo do ANC. Até 1960, a luta pelo fim do Apartheid se dava por vias pacíficas, mas a partir de 1961 foi criado um braço armado do movimento de libertação, o Umkhonto we Sizwe. Sediado em Angola e com células na África do Sul, o movimento recebia treinamento e apoio financeiro da União Soviética. A ação do Umkhonto e de outros movimentos paramilitares de resistência ao terrorismo de Estado ganhou visibilidade e legitimidade para além do bloco comunista. Por meio de suas ações de guerrilha e da intensificação de protestos pacíficos realizados por sujeitos políticos contrários ao Apartheid, a luta foi internacionalizada, sendo realizadas várias campanhas de desinvestimento e de boicote aos produtos e marcas sul-africanos e empresas que operavam no país. Esse foi o início da instabilidade política, que seria radicalizada com a crise capitalista de 1973 (DAVIE, 2015; FEINSTEIN, 2005; TERREBLANCHE, 2012).
A desaceleração das economias capitalistas centrais observada no início da crise estrutural de 1973, decorrente da saturação do pacto keynesiano-fordista, fez a demanda pelos commodities minerais cair drasticamente. Além disso, a pressão internacional anti-apartheid, resultou na retirada de várias empresas do país, ocasionando desemprego generalizado e de longa duração (FEINSTEIN, 2005). A intensificação das lutas dos trabalhadores não-brancos contra o regime do Apartheid começou com uma onda de greves de trabalhadores negros em 1973, em Durban, Província de KwaZulu-Natal, período em que a classe trabalhadora negra surge como “classe para si”. O sindicalismo negro, criminalizado pelo Apartheid, consegue incorporar e organizar milhões de trabalhadores e trabalhadoras, agregando lideranças e membros das comunidades coloured, asiáticas e brancas em uma agenda de transformação radical das relações raciais e de classe (TERREBLANCHE, 2005). Essas greves e protestos não eram apenas organizados por sindicatos clandestinos de trabalhadores negros, coloureds e asiáticos que não tinham direito à associação ou mesmo a realizar reuniões e encontros, desde a Lei Nacional de Supressão ao Comunismo, o Suppression of Communism Act Nº 44 (UNION OF SOUTH AFRICA, 1950), lançado em 1950. Eram realizados também por igrejas, associações de moradores, movimentos sociais e parte dos intelectuais que se envolveram na luta anti-apartheid. Essas ações coletivas de confronto se intensificaram na década seguinte e tomaram maiores proporções depois da Revolta Estudantil de Soweto, em 1976, que resultou em um massacre contra a população civil negra.
Em 20 de Agosto de 1983, a United Democratic Front (UDF), Frente Democrática Unida, que se tornaria uma das mais importantes organizações da luta anti-apartheid, foi criada por uma coalizão de 565 lideranças e membros de organizações populares, movimentos sociais e importantes lideranças religiosas. A principal proposta da organização, que chegou a contar com 3 milhões de membros, era tornar o país ingovernável, desestabilizando a política e a economia, tensionando o sistema de capitalismo racial. Rapidamente, a UDF se tornou o mais efetivo movimento nacional de contestação ao regime de supremacia branca. Além da UDF, em dezembro de 1985, foi formado o Congresso dos Sindicatos Sul-africanos, Congress of South African Trade Unions (COSATU), como parte da tríplice aliança, junto ao ANC e ao Partido Comunista, The South African Communist Party (SACP), todos empenhados na luta pelo fim do Apartheid e orientados pelo projeto de construção de um país sem exploração de classe ou raça (DUBOW, 2014; HABIB, 2013; TERREBLANCHE, 2012).
Em resposta à organização dos movimentos e organizações anti-apartheid entre 1973 e 1985, o Governo Nacional, na época liderado por Pieter Willem Botha, conhecido pela extrema violência, decretou, em 1986, amplo Estado de Emergência. A partir dessa data, o país passou a ser governado por generais das forças militares e da polícia com reconhecida inserção nos setores mais conservadores do NP e da burocracia do Estado, que ficaram conhecidos como os securocratas, the securocratics. A implantação do Governo militarizado foi uma ação extrema para prolongar o tempo de vida do Apartheid. Afinal, não só Botha, mas lideranças da ala mais conservadora do NP, sabiam que não poderiam manter o sistema de privilégios políticos e econômicos da classe trabalhadora branca e as altas taxas de expansão do capital da burguesia sem garantir a continuidade da ultraexploração dos trabalhadores não-brancos.
Porém, mesmo com essa crescente pressão econômica e a deslegitimação política, oriundas de embargos e retirada de investimentos e capitais estrangeiros, até a primeira metade da década de 1980, o regime ainda contava com amplo suporte político e econômico de países capitalistas centrais, especialmente dos governos líderes da aliança de direita neoliberal. O discurso dos líderes neoliberais era de que as sanções econômicas e políticas, contra o Governo do NP, causariam mais danos aos sul-africanos negros, aumentando a pobreza entre estes (TERREBLANCHE, 2012).
Por causa do histórico apoio ao regime racista por parte das potências capitalistas, poucos ficaram surpresos quando o Ato Nacional Anti-apartheid, aprovado pelo Congresso Nacional dos Estados Unidos da América, no começo de 1986, foi vetado pelo presidente Ronald Reagan, que temia que o mesmo se tornasse lei. No entanto, quatro meses depois, o Congresso Estadunidense decidiu, por ampla maioria, ignorar o veto presidencial. Essa foi a única vez em todo o século XX que o veto de um presidente estadunidense sobre a política externa foi recusado. Com essa medida, a campanha internacional de indução aos boicotes, sanções e políticas de desinvestimento contra o regime de Pretória alcançou o seu ápice. Agora as sanções partiam do mais poderoso aliado do Apartheid, sendo um golpe na economia e nas relações internacionais para o regime supremacista racial. A mudança do discurso de Washington para uma posição contrária ao regime racista Sul-africano também teve impacto significativo e fomentou campanhas nacionais de desinvestimento. Estas campanhas se deslocaram das elites políticas e setores empresariais e tomaram proporções globais, gerando uma crítica de massa ao Apartheid, sendo a retirada de capitais rapidamente intensificada desde a segunda metade da década de 1980 (FEINSTEIN, 2005).
Assim, por meio das sanções, as grandes transnacionais sul-africanas estavam impedidas de operar seus projetos de internacionalização e de acessar novos “bancos de força de trabalho” e mercados consumidores, menos conflituosos e organizados que os negros, coloureds e indianos e menos cara do a que a força de trabalho branca, fortemente protegida pelo Apartheid. Diante disso, uma grave crise nas taxas de lucro se tornou realidade para diversas frações capitalistas sul-africanas e um problema aos países capitalistas centrais com capitais ativos nos setores minerador e industrial (DAVIE, 2015; DUBOW, 2014; FEINSTEIN, 2005). As taxas de lucro dos setores empresariais declinaram significativamente na década de 1980, não só por causa da pressão econômica internacional, mas pela ação coletiva de confronto da classe trabalhadora negra, que paralisava a produção nacional.
Em resposta à ação coletiva e/ou organizada das classes trabalhadoras não-brancas, o Governo implementou várias estratégias para recuperar a lucratividade. Estas medidas logo se mostraram desastrosas, como o investimento em tecnologias poupadoras de mão de obra e a mecanização da agricultura, que tornou a produção muito mais cara do que a baseada na força de trabalho viva, reduzindo ainda mais o investimento internacional e nacional em setores produtivos. Embora o aumento do desemprego tenha atingido, sobretudo, as classes trabalhadoras não-brancas, a erosão da estrutura salarial sul-africana, representava também uma crise do welfare state, já que era o extenso sistema tributário sobre os salários e a tributação de consumo de bens básicos e moradia dos negros na África do Sul e nas homelands que financiava o amplo sistema universal de bem-estar social pigmentocrático usufruído pelos sul-africanos brancos (DAVIE, 2015; PATEL, 2013).
Como afirmam Grace Davie (2015), Adam Habib (2013) e Saul Dubow (2014), o Governo do NP estava desesperado em suas tentativas de recuperar a rentabilidade do setor corporativo. Mas nenhuma dessas estratégias logrou recuperar as taxas de lucro ou conter a crise de acumulação, e o próprio setor corporativo se tornou ciente de que a combinação entre exploração racial e de classe, sustentada pelo Apartheid tinha chegado ao fim e que este precisava ser abolido em nome da manutenção da estrutura capitalista do país. Em meados da década de 1980, grandes frações do empresariado branco se tornaram grupos de pressão, fortemente ativos pela transformação do sistema político sul-africano, mas não, obviamente, na direção da emancipação política como almejava o ANC ou uma revolução socialista como desejava o pequeno, mas expressivo SACP. Essa pressão oriunda do setor corporativo era coordenada pela mais poderosa fração do capital na África do Sul: o Mineral Energetic Complex (MEC), Complexo Mineral Energético.
O MEC representa a parcela da burguesia que dominou o sistema político e econômico do país desde o fim do período colonial. Ele não corresponde a uma instituição ou uma organização formal, sendo formado por frações da burguesia sul-africana e internacional, comprometidas com a acumulação de capital, por meio da lucrativa indústria de mineração da África do Sul, combinada à intensa exploração da força de trabalho negra, reduzindo a níveis pífios os custos capitalistas com a reprodução da força de trabalho na produção mineral (BOND, 2014; DAVIE, 2015; FEINSTEIN, 2005; HART, 2013; TERREBLANCHE, 2012). Desde o fim do Apartheid, as taxas de lucro do MEC, crescentes e contínuas, só foram abaladas pelo contexto de crise estrutural capitalista, iniciada entre 1973 e 1974, e pela crise interna do período 1973 – 1993. Durante o Século XX, o MEC, sozinho, concentrou mais de 40% da riqueza do país (DAVIE, 2015; HART, 2013; TERREBLANCHE, 2012). Diante das relações estruturais de exploração de classe e raça que sustentavam as altas taxas de crescimento do MEC, desde o final do século XIX, não surpreende o fato de ser um dos sujeitos interessados em superar a crise política e econômica que colocava em risco os seus projetos de acumulação. O objetivo do MEC era manter intacta a reprodução das relações capitalistas e o sistema de exploração dos trabalhadores negros, mesmo com o fim do Apartheid e conseguir, finalmente, participar dos projetos globais de acumulação aprofundados com a reestruturação produtiva e com a globalização financeira, ambas respostas do capital em escala global à sua crise estrutural (DAVIE, 2015; HART, 2013).
Segundo Terreblanche (2012), não foi somente a pressão capitalista que levou o ANC e o National Party a dialogarem sobre o fim do Apartheid. Para o economista e sociólogo sul-africano, o encontro entre Ronald Reagan e Mikhail Gorbachev, realizado entre 11 e 12 de outubro de 1986, em Reykjavik, na Islândia, foi o início da transformação na forma como os dois países que mais davam suporte tanto ao ANC como ao NP tratavam a questão do Apartheid. O encontro tinha como principal tema a redução de armas nucleares de médio alcance dentro do espaço territorial europeu. Enquanto discutiam a Strategic Defence Initiative (SDI), Iniciativa de Defesa Estratégica dos Estados Unidos da Améric, que ficou conhecida como “Programa Guerra nas Estrelas”, a capacidade dos EUA. de desenvolver supercomputadores militares foi revelada a Gorbachev, que imediatamente percebeu o imenso subdesenvolvimento tecnológico e bélico da União Soviética em comparação aos EUA. Gorbachev já enfrentava a crise econômica, social e tecnológica oriunda do período Brezhnev, que culminou com a explosão em Chernobyl e, em Reykjavic, o líder das repúblicas soviéticas percebeu que a URSS também não tinha como competir com a indústria bélica estadunidense.
O líder soviético decidiu pôr fim à prática da política externa da doutrina Brezhnev, lançada em 1968, segundo a qual a URSS deveria manter os países do Leste Europeu e parte da periferia capitalista como sua zona de influência. Ao abandonar as aspirações de ser uma superpotência, Gorbachev também decidiu cessar o suporte militar e financeiro soviético às guerrilhas e grupos revolucionários nos países da periferia capitalista. Gorbachev também deixou claro a Ronald Reagan que desejava diminuir o envolvimento soviético em conflitos regionais. Após o encontro, foi comunicado aos membros do ANC, em exílio na União Soviética, que a URSS não teria mais como dar suporte financeiro à luta contra o Apartheid. É notável que a pressão sobre o ANC para buscar por negociações tenha vindo de Moscou em 1986, ao mesmo tempo em que o Governo do NP era pressionado por Washington a fazer o mesmo (DUBOW, 2014; TERREBLANCHE, 2012).
Depois dessa dupla onda de pressões externas sobre o regime do Apartheid e sobre o principal movimento social de luta anti-apartheid, muitos grupos vinculados ao setor de negócios e organizações políticas se reuniram com o ANC em discussões sobre uma possível solução negociada. Em julho de 1987, uma delegação sul-africana sob a liderança dos Professores Frederick van Zyl Slabbert e Alex Boraine, manteve discussões com representantes do ANC em Dakar, no Senegal. Na ocasião desta Conferência, que reuniu acadêmicos, empresários brancos e membros do alto escalão do NP e do ANC foi defendida uma agenda de superação do Apartheid em direção à democracia. Porém, não havia consenso sobre qual modelo social e econômico deveria suceder a autocracia racista. Os setores de negócios defendiam que estas transformações políticas não deveriam ser direcionadas a uma democracia substancial, com amplo compartilhamento do poder econômico e político, mas apenas aos aspectos político-jurídicos de uma democracia liberal. Mesmo sem um consenso final sobre o futuro do país, a conferência de Dakar criou um canal de diálogo permanente entre o grande empresariado e as lideranças do ANC, que na época ainda era uma organização ilegal. A participação da burguesia e de intelectuais brancos nos diálogos com o ANC enfureceu o Governo do NP, evidenciando que os termos da transição democrática não seriam definidos no Parlamento.
Ainda no intuito de fomentar o diálogo entre o ANC e representantes das classes dominantes, de outubro de 1987 a fevereiro de 1990 um grupo de acadêmicos pertencentes à maior e mais conservadora comunidade branca do país, a africânder (formada por descendentes dos colonos holandeses, alemães e franceses), esteve envolvido em sete encontros clandestinos com lideranças do ANC: Thabo Mbeki e Jacob Zuma (que viriam a ser o segundo e o terceiro presidentes eleitos no período pós-apartheid ) e Aziz Pahad, futuro ministro de relações exteriores, e muitos outros líderes do ANC que chegariam a compor as cúpulas de poder dos Governos democráticos sul-africanos. Quase todos esses encontros aconteceram em Mells Park Estate, perto de Bath, na Inglaterra. Entre 1986 e 1988, muitos encontros entre outros grupos sul-africanos brancos e o ANC foram realizados, sobretudo em Lusaka, na Zâmbia, com o setor de negócios, de esportes e grupos de mulheres (SPARKS, 1995; TERREBLANCHE, 2012).
Essas reuniões e conferências continuaram a ser duramente criticadas pelo Governo Botha. Essa resistência do líder do Partido Nacional em negociar o fim do Apartheid e os termos da democracia, continuou a ser uma preocupação internacional. Durante encontros que se seguiram ao de Reykjavik, realizados em 1987 e 1988, Reagan e Gorbachev estabeleceram uma relação de cooperação. Eles elaboraram um acordo de que todas as grandes potências deveriam se esforçar para encontrar uma solução diplomática para todos os conflitos do mundo. Dentre os vários conflitos, que os líderes julgavam de urgente solução diplomática e política, estava o Apartheid. Durante esses encontros, Gorbachev e Reagan decidiram que a Primeira Ministra Britânica, Margareth Thatcher, era a representante de uma potência mais adequada a impulsionar as negociações entre o Governo do Partido Nacional e o ANC. Mesmo não sendo mais tão poderosa como na época em que a África do Sul era uma de suas inúmeras colônias, a Grã-Bretanha ainda era um dos países mais ricos e politicamente influentes do mundo. Além disso, nesse período, era o mais importante e antigo parceiro comercial, sendo a única potência capitalista que não havia aplicado sanções à África do Sul. Em abril de 1987, a primeira ministra britânica tomou a iniciativa e enviou um grupo de representantes do Governo, cujo objetivo era convencer o Governo do NP a começar as negociações oficiais com o ANC. Mas, em 15 de maio, Botha implantou o Estado de sítio e aprofundou a repressão, rejeitando as propostas dos representantes britânicos, o que levou Thatcher a encerrar os esforços de negociação, enquanto Botha comandasse o país.
Em 1989, o sucessor de Botha, Frederik Willer de Klerk, foi eleito líder do NP recebendo o país em sua mais séria crise política e com um Estado extremamente endividado pelos gastos bélicos realizados pelos securocratas. Logo ao chegar ao poder, Margaret Thatcher o convidou para um encontro bilateral de líderes de Estado, em Londres. Durante o encontro, em 23 de junho de 1989, ela deixou claro que o Presidente de Klerk deveria obedecer às determinações do grupo de potências, elaboradas por Reagan e Gorbachev e procurar uma saída negociada para a questão do Apartheid. Thatcher enfatizou que caso o posicionamento do Governo de Pretoria continuasse o mesmo, também iria aderir aos boicotes e políticas de desinvestimento. No mesmo encontro Margaret Thatcher demandou a libertação de Nelson Mandela antes do fim de 1989 e exigiu que as negociações entre o Governo de Klerk e o ANC começassem o mais rápido possível (TERREBLANCHE, 2005, 2012).
O sucessor de Botha manifestou seu compromisso em iniciar o desmonte do Apartheid e as medidas jurídico-institucionais para transitar da autocracia pigmentocrática para uma democracia moderna. Porém, os sujeitos sociais que conduziram a transição não desejavam apenas determinar qual sistema político deveria suceder o Apartheid. Esses, contrariando a agenda de reformas sociais e democratização, historicamente presente na agenda de luta do ANC, do SACP, do COSATU, do UDF e de outros movimentos anti-apartheid, buscavam antes de tudo restaurar o poder de classe burguês no país, abalado por quase duas décadas de instabilidade social, política e econômica.
O Complexo Mineral Energético conseguiu convencer o Partido Nacional, por meio da adesão de Frederik de Klerk, a aceitar as políticas de privatização e os dogmas da globalização neoliberal. Não surpreende que os termos da transição à democracia, apresentada por Thatcher, envolvessem a abertura econômica da África do Sul, segundo a ordem neoliberal. Essa mobilização para que a democracia fosse acompanhada pela adesão a diretrizes neoliberais também era realizada por forças internas. Nesse sentido, em 1990, a South African Chamber of Business (SACOB), Câmara de Negócios da África do Sul, atual South African Chamber of Commerce and Industry (SACCI) publicou o Documento Economic Options for South Africa: a South African Chamber of Business View (1990), Opções Econômicas para a África do Sul: uma visão da Câmera de Negócios, um manifesto da comunidade empresarial de defesa aos supostos benefícios de uma economia de livre mercado de orientação neoliberal. A publicação alegou que onde os sistemas corporativos capitalistas estão livres, eles florescem, tornando-se - o remédio para a pobreza - e para garantia do crescimento econômico (DAVIE, 2015; TERREBLANCHE, 2005, 2012).
Nesse cenário, ainda de incertezas sobre as diretrizes econômicas que seriam efetivadas na África do Sul Pós-apartheid, o MEC decidiu que tinha de desempenhar um papel político mais ativo e aberto para concretizar as transformações econômicas e políticas necessárias que julgava necessárias. O MEC decidiu convidar Zach de Beer, diretor-executivo da Anglo-American Corporation, conglomerado britânico do ramo da mineração, com sede em Londres, com operações na África do Sul desde 1917, a desempenhar um papel político em seu nome. Em 1987, após uma análise sobre a orientação política do ANC, o executivo expressou sua preocupação com a orientação socialista do mesmo e advertiu que o movimento de libertação nacional "poderia jogar fora o bebê da livre iniciativa com a água do banho do Apartheid " (TERREBLANCHE, 2005, p. 139). Zach de Beer também declarou que era parte da tarefa política do setor empresarial "trazer os benefícios do sistema de livre mercado cada vez mais ao alcance de nossos cidadãos negros" (The Citizen, 17 de setembro de 1987 apud TERREBLANCHE, 2012, p. 27). Em agosto de 1988, o Consultative Business Movement (CBM), o Movimento Consultivo de Negócios, foi lançado, tendo Zach de Beer como um dos fundadores. O objetivo expresso do CBM era desafiar empresários Sul-africanos para definir a verdadeira natureza do seu próprio poder para fazer avançar a sociedade para nenhuma democracia além da racial.
Segundo Sampie Terreblanche (2005, 2012), Patrick Bond (2014) e Alister Sparks (1995), o ANC era o único sujeito envolvido na transição à democracia que assumia uma posição explicitamente socialista-democrática, contando com legitimidade nacional e internacional para liderar a África do Sul pós-apartheid. Entretanto, sofreu uma radical transformação, assumindo as ideologias americanas de globalização neoliberal e o fundamentalismo de livre mercado. Durante esse período, 1990 a 1993, Nelson Mandela, libertado em fevereiro de 1990, e Harry Oppenheimer, o capitalista mais rico da África do Sul, se encontraram regularmente, e representantes do MEC também se reuniram com Mandela e com outros líderes do ANC. Quando outros líderes empresariais se juntaram às negociações da transição sobre o futuro da política econômica da África do Sul, intensificadas a partir da libertação de Nelson Mandela, as reuniões foram transferidas para o Banco de Desenvolvimento da África Austral. A partir dessas reuniões, uma coalizão da elite capitalista foi gradualmente estabelecida entre o MEC, lideranças do ANC, e os grupos de pressão estadunidenses e britânicos (DAVIE, 2015; SPARKS, 1995).
Essas negociações atingiram seu clímax em novembro de 1993. Naquele momento, a África do Sul estava sendo governada pelo Transitional Executive Council (TEC), o Conselho Executivo de Transição, composto por oito membros do NP e oito membros da liderança do ANC. O TEC decidiu que a África do Sul precisava de um empréstimo de 850 milhões de dólares do Fundo Monetário Internacional (FMI), para auxiliar nas dificuldades da balança de pagamentos do país. Antes de o FMI conceder o empréstimo, o organismo financeiro solicitou que o TEC assinasse um documento sobre a política econômica do futuro governo. Se o conteúdo do documento Economic Options for South Africa, Opções Econômicas para a África do Sul (SOUTH AFRICAN CHAMBER OF BUSINESS, 1990) for lido e analisado com cuidado, torna-se claro que era a forma embrionária do Growth, Employment and Redistribution (GEAR) (REPUBLIC OF SOUTH AFRICA, 1996), o Programa de Reforma Neoliberal do Estado, lançado em 1996, no governo de Nelson Mandela, que o primeiro presidente eleito pelo ANC considerava inegociável.
O documento comprometia o TEC, transformando em diretrizes para a economia, as orientações neoliberais acentuadamente ortodoxas. Ele ocasionou um grande acordo entre sujeitos sociais que muitos considerariam improvável: o MEC, as multinacionais anglo-americanas e as principais lideranças do ANC. Ainda em 1993, o NP publicou o Documento intitulado Normative Economic Model (NEM), a Normativa de Modelo Econômico. Este também estava fortemente influenciado pelo Complexo Mineral Energético, colocando-o como seu plano econômico oficial para uma África do Sul democrática. Este fato demonstra como a NEM era fortemente influenciada pelas ideologias neoliberais adotadas pelo Complexo Mineral-Energético e pelo projeto americano de globalização neoliberal.
No entanto, além da influência do MEC, também havia pressão dos governos de potências capitalistas ocidentais, e de instituições internacionais, como as instituições de Bretton Woods, o Banco Mundial, FMI e multinacionais que operavam no país (HABIB, 2013; HART, 2013). Nesse processo de transformismo político e ideológico, grande parte das principais lideranças do ANC recebeu treinamento em universidades estadunidenses e bancos internacionais sobre os supostos méritos da ideologia e das práticas políticas neoliberais. Na verdade, nesse momento, todos os outros participantes nas negociações – os setores empresariais nacionais e estrangeiros, o NP, os grupos de pressão americanos e britânicos – já estavam comprometidos com a ortodoxia neoliberal. Só faltava garantir sua legitimação entre as lideranças do ANC (BOND, 2014; DAVIE, 2015; HABIB, 2013).
A mais forte pressão externa sobre o ANC veio de grupos econômicos estadunidenses. Nos anos após o fim da União Soviética, um clima de “triunfalismo” predominou nos círculos políticos e econômicos da única superpotência restante (HABIB, 2013; TERREBLANCHE, 2012). Isto lhes deu poder para exercer pressão e fomentar crises nos governos dos países que não se submetiam ao ideário neoliberal (HARVEY, 2008). Afinal, os apologetas do neoliberalismo invalidavam todo e qualquer contradiscurso orientado à contenção de uma economia predatória, especulativa e liberalizada. Além disso, estavam intensamente comprometidos em transformar o discurso neoliberal em ideologia oficial em todo o mundo capitalista (TERREBLANCHE, 2012).
Nesse sentido, promessas foram feitas aos líderes do ANC de que, logo que o novo governo transformasse a ideologia neoliberal em diretrizes econômicas e políticas, as condições propícias seriam criadas para atrair um grande fluxo de investimento estrangeiro direto, maiores taxas de crescimento econômico, mais emprego e efeito trickle-down, de gotejamento das grandes riquezas para aliviar a pobreza. Considerava-se que, segundo a teoria neoliberal do gotejamento, em um ambiente favorável ao empresariado, o dinheiro das elites seria transformado em capital, gerando novos empregos. O papel dos representantes de Washington na elaboração das diretrizes para o ajuste neoliberal na África do Sul pós-apartheid não se restringia às promessas exageradas e suporte à formação de quadros de políticos e tecnocratas do futuro governo do ANC. A participação desses sujeitos no processo de transformação ideológica das lideranças do ANC incluiu ameaças de que os EUA teriam a capacidade e o interesse de desestruturar a economia sul-africana, caso não cooperassem com as reformas neoliberais (DAVIE, 2015; HABIB, 2013).
A abertura do antes regulado mercado sul-africano por meio do ajuste neoliberal, uma exigência do MEC e do FMI para a concessão de empréstimos teve dois efeitos expressivos: a entrada em massa de produtos manufaturado estrangeiros, o que causou uma desindustrialização generalizada e fez parcelas crescentes da classe trabalhadora conhecerem o desemprego de longa duração, novas formas de trabalho flexível e novas modalidades de ultra precarização, agora determinadas sobretudo pela ortodoxia neoliberal, e não mais pela ideologia de supremacia racial branca, embora os principais atingidos continuassem a ser os trabalhadores negros (BOND, 2014; SITAS, 2010). O desemprego estrutural, embora concentrado entre os negros, e em menor proporção entre os coloureds e asiáticos, logo se tornou uma realidade também entre os trabalhadores brancos menos qualificados, erodindo uma característica central do desenvolvimento capitalista na África do Sul, a proteção da classe trabalhadora branca em relação às implicações da lei geral de acumulação de capital.
Outro importante efeito da integração da África do Sul no mundo da globalização neoliberal foi a plena inserção das grandes empresas mineradoras do MEC na economia global e em novos nichos de acumulação em outras regiões do mundo. Segundo Sitas (2010), livres das sanções internacionais do período da crise do Apartheid, os “patinhos feios” do capital minerador-energético da África do Sul tornaram-se “cisnes”, prontos para navegar no mercado global liberalizado, recuperando suas taxas de lucros e crescimento. Além disso, agora plenamente integradas ao capitalismo financeiro mundializado as empresas do MEC utilizaram a mais valia oriunda dos setores produtivos em investimentos especulativos, gerando dinheiro a partir de juros e diminuindo os postos de trabalho existentes.
Corroborando com a tese de David Harvey (2008) de que o neoliberalismo é um projeto de restauração do poder de classe burguês, é possível afirmar que essa ideologia foi fundamental às frações da burguesia sul-africana envolvidas na transição à democracia. Para Patrick Bond (2014), em decorrência da adesão ao pensamento neoliberal no processo de transição à democracia, os capitalistas acessaram novos mercados, novas massas de força de trabalho sobrante na África e em outros continentes, e não foram obrigados a reparar os anos de exploração da força de trabalho negra (FEINSTEIN, 2005; HART, 2013). Quanto às lideranças do ANC, as classes dominantes exigiram garantias políticas e constitucionais de que a permanência das profundas iniquidades sociais herdadas do Apartheid, não resultaria em reformas econômicas e sociais orientadas às necessidades da ampla maioria do eleitorado do ANC, a classe trabalhadora negra.
Segundo Grace Davie (2015), os think tanks neoliberais, presentes no processo de transição e que ofereceram formação às lideranças do ANC, avaliaram que a lealdade das classes e grupos subalternizados pelo Apartheid ao ANC era tão intensa que resistiria às medidas neoliberais de austeridade social e de criação de um sistema de bem-estar residual.
O lançamento do GEAR, dois anos depois do fim do Apartheid e das eleições que levaram Nelson Mandela à Presidência, foi a resposta do ANC aos pleitos por segurança econômica e política dos sujeitos envolvidos na transição tutelada, promovendo a restauração do poder de classe no país, garantindo que muito pouco mudasse na estrutura econômica para beneficiar as classes e grupos étnicos subalternizados. Este parece ser o momento de consolidação do transformismo ideológico das principais lideranças do partido. O GEAR foi criticado pela Left Alliance, a Aliança de Esquerda, formada pelo Partido Comunista Sul-Africano, o SACP, e pela central sindical, o COSATU; por intelectuais de esquerda e progressistas, e pelas lideranças dos movimentos sociais anti-apartheid, que acreditavam que a democracia para ser substantiva, também deveria desracializar a concentração da riqueza e desmercantilizar o sistema de bem-estar social, e não somente os aspectos formais da cidadania. Mandela, então, impeliu seus aliados SACP e COSATU a apoiá-lo, lembrando-lhes que eram parceiros pequenos e com pouco poder (TERREBLANCHE, 2005). As relações dentro da aliança de esquerda ficaram tão abaladas que Thabo Mbeki, ministro de Nelson Mandela, chegou a acusar o SACP de “falsos revolucionários”, que lhe faziam lembrar os “brancos da direita”. Mandela também manteve a posição de que o GEAR era fundamental para o desenvolvimento nacional e que não mudaria de opinião (PEREIRA, 2012).
Inesperadamente, as maiores limitações à democracia foram cristalizadas na Constituição Nacional Pós-apartheid, promulgada por meio do National Act Nº108 em 1996. Cientes de que as propostas de criar um Estado de bem-estar social poderiam pôr em risco a preservação das grandes fortunas, resultando em uma estrutura tributária progressiva, os sujeitos políticos do MEC atuaram para que mesmo as diretrizes constitucionais voltadas ao enfrentamento das refrações da questão social não interferissem nos projetos de acumulação e na privatização das políticas e serviços sociais.
Para criar compromissos constitucionais com um sistema de bem-estar social residual, abandonando sua agenda de reformas sociais welfaristas, durante o período em que as lideranças do ANC estavam recebendo treinamento para liderar o país no futuro pós-apartheid, economistas neoliberais apresentaram o chamado “Cenário do Flamingo”. Esta foi uma das projeções de cenários econômicos realizadas por intelectuais neoliberais estadunidenses e britânicos às lideranças do ANC, entre 1992 e 1993, como resultante da adesão ao neoliberalismo e às políticas fiscais restritivas, que fariam, segundo eles, a África do Sul ser resistente a cenários hostis, assim como o flamingo. Para os neoliberais envolvidos na formação dos quadros do ANC, os sacrifícios impostos aos mais pobres, decorrentes da política de austeridade, seriam posteriormente compensados pelo crescimento sustentável e contínuo da economia. Junto com o cenário do flamingo, eles apresentaram uma projeção que deslegitimava as medidas redistributivas, tradicionalmente defendidas pelo ANC, o “Cenário de Ícaro”.
Baseado no mito grego sobre o voo de Ícaro, que de tão alto fez com o que o Sol derretesse suas asas, os think tanks neoliberais defenderam que os altos investimentos em bem-estar social, a taxação das grandes fortunas e as estruturas de tributação progressiva poderiam elevar rapidamente a qualidade de vida dos sul-africanos mais pobres, mas, logo, levariam à retirada de investimentos e capitais no país, ocasionando inflação e aumento das taxas de juros. Seria, portanto, um “voo” arriscado demais. Como se vê, os dois cenários são formas de legitimação discursiva do neoliberalismo como ideologia oficial de Estado. Enquanto o primeiro cenário exalta o livre mercado neoliberal, o segundo enumera, de forma profundamente vaga, os supostos riscos na criação de um Estado providência.
Esses princípios, que abertamente revelam uma perspectiva neoliberal/residual de bem-estar social, foram quase integralmente apresentados pelo ANC no momento da constituinte, e incorporados na Constituição Nacional de 1996. Diante disso, o conjunto de funções sociais do Estado, presentes na Seção Número 27, não conta com recursos financeiros previstos constitucionalmente, sendo assim, a execução das políticas sociais é totalmente dependente da decisão governamental e das flutuações de volume de recursos disponíveis no fundo público. Além disso, outro agravante é que a determinação sobre a extensão do orçamento para as políticas sociais vem do Ministério da Finança que, desde a transição à democracia, é liderado por membros do ANC com estreita relação com o MEC e com o capital financeiro global (BOND, 2014; DAVIE, 2015; HABIB, 2013; HART, 2013).
Essa configuração política e constitucional, decorrente da natureza conservadora e restauradora do processo de transição tutelada por sujeitos das classes dominantes e viabilizada pelo transformismo ideológico de lideranças do ANC, oferece elementos fundamentais para compreender a dimensão e a complexidade da questão social na África do Sul Pós-apartheid.
As transformações políticas, econômicas e ideológicas que se seguiram à crise capitalista de 1973 foram determinantes na transição sul-africana do Apartheidpara a democracia. Sendo assim, as mais de duas décadas de crise do capitalismo racial e as transformações nos sistemas políticos e econômicos que se seguiram não correspondem apenas a eventos isolados da história nacional, mas também são determinados por uma reconfiguração do sistema capitalista em escala global, orientada pelo ideário neoliberal.
Com o processual desmantelamento do regime do Apartheid, no fim da década de 1980, e a conquista da presidência pelo ANC, em 1994, além do fim de séculos de segregação racial, também se materializava uma transição conduzida pelo poder corporativo das multinacionais e pelo poderoso e influente MEC. Nesse cenário, os negros, coloureds e asiáticos, testemunharam o transformismo político-ideológico das lideranças ANC, que passaram a se mostrar mais comprometidas com a restauração do poder burguês do que com agenda de reformas orientadas ao socialismo democrático. Pouco depois de chegar ao poder, o movimento de libertação passou a negar muitos dos elementos da sua agenda de transformação social, defendidos por quase um século: a socialização do poder econômico passou a ocupar um “não lugar” no discurso político do ANC e, consequentemente, nas políticas sociais e econômicas do Estado Pós-apartheid, reduzindo as amplas promessas de emancipação política ao desmonte da estrutura institucional e legislativa do Apartheid.
As diretrizes econômicas afirmadas no GEAR e as restrições orçamentárias ao sistema de bem-estar social,presentes na Constituição Nacional de 1996, evidenciaram para as frações das classes dominantes envolvidas na transição, o compromisso do ANC em seguir as orientações neoliberais, preservando a profunda desigualdade social entre os grupos raciais que corporificam as relações de classe na África do Sul. Como se vê, as condicionalidades neoliberais impostas pela maior parte dos sujeitos da transição preservaram as estruturas de propriedade, classe e privilégios oriundos dos regimes anteriores, obstaculizando estruturalmente as possibilidades de a nova democracia ao menos controlar o aprofundamento, complexificação e o aprofundamento das refrações da questão social.