Artigos - Temas livres
Recepção: 18 Agosto 2019
Aprovação: 27 Janeiro 2020
Resumo: O artigo analisa a aprovação da redução da maioridade penal na Câmara dos Deputados em 2015. Proposta pela primeira vez em 1993, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº. 171 visa reduzir a idade de imputabilidade penal para 16 anos. Aplicando o modelo teórico dos Múltiplos Fluxos, de John Kingdon, propõe-se a discutir quais os fatores que mobilizam a agenda-setting e a correlação de forças estabelecida na Câmara Federal que explicam a aprovação da matéria, a despeito do posicionamento contrário do Poder Executivo. A análise da votação foi realizada por meio da associação entre variáveis políticas e da construção de um modelo de regressão logística. Os resultados mostram que a fragilidade da base governista e a composição mais conservadora no legislativo teriam possibilitado a aprovação da PEC 171/1993 no primeiro ano da 55ª Legislatura.
Palavras-chave: Formação de Agenda, Teoria dos Múltiplos Fluxos, Redução da Maioridade Penal, Legislativo.
Abstract: This article aims to analyze the approval of the reduction of the legally punishable age case in Chamber of Deputies in 2015. Received for the first time in 1993, the Proposal of Constitutional Amendment nº. 171 aims to reduce the legally punishable age to 16 years old. Applying the Multiple Streams Model, by John Kingdon, this research aspires to discuss which are the factors that mobilizes agenda-setting and the strength correlation established in 55th parliamentary term in Chamber of Deputies that explains it’s approval, despite of Executive’s opposition. The voting analyses was realized through political variables associations and construction of a logistic regression model. The results show that the fragility of executive basis and the strengthened conservative composition in Congress would have enabled this approval in the first year of the 55th parliamentary term.
Keywords: Agenda-setting, Multiple Streams Theory, Legally Punishable Age, Legislative.
1 INTRODUÇÃO
Há vinte e cinco anos foi apresentada no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional - PEC 171/1993, que visa reduzir a maioridade penal de 18 para 16 anos de idade. No entanto, foi apenas em 2015, no primeiro ano da 55ª legislatura, com uma tramitação controversa na Câmara dos Deputados, que este texto foi aprovado e encaminhado ao Senado Federal. Aplicando a teoria dos Múltiplos Fluxos, de John Kingdon (2003), o artigo analisa a correlação de forças que permitiu a introdução desse tema na agenda legislativa e sua aprovação na Câmara Federal.
Após a eleição do deputado Eduardo Cunha para a presidência da Casa em 1º de Fevereiro de 2015, a PEC foi desarquivada cinco dias depois, quando o prazo para que a proposição seja desarquivada é de 180 dias contados da primeira sessão legislativa (RICD, 2016, art. 105). Todo o processo desta proposta foi muito célere e com votações conturbadas.
Em primeiro turno, no dia 1º de julho de 2015, a PEC 171/93 foi rejeitada, pois obteve 303 votos a favor (184 contra e 3 abstenções), diante do número mínimo exigido de 308 votos para aprovação de Emenda Constitucional. Cerca de 24 horas depois, por meio da emenda aglutinativa nº161, o então presidente da Câmara, ex-deputado Eduardo Cunha, colocou novamente o texto em votação em primeiro turno que foi, então, aprovado com 323 votos favoráveis e 155 contrários. Da primeira para a segunda votação do primeiro turno, houve um aumento de 20 votos favoráveis.
Sem dar publicidade ao ato, movimentos sociais não desempenharam a mesma pressão que na primeira votação e os poucos estudantes que estavam presentes foram proibidos de entrar para assistir a sessão que aprovou a matéria. A ação realizada pelo presidente da casa foi criticada pela Ordem dos Advogados do Brasil e pela Associação dos Magistrados Brasileiros, tendo em vista que consiste em atribuição do presidente, assegurada pelo RICD, art. 17, V, a publicação e divulgação das decisões do Plenário e das reuniões da Mesa. O debate para suspender a votação foi levado ao Supremo Tribunal Federal (STF) por 100 deputados de 14 partidos2, mas a liminar foi negada pela corte.
Em segundo turno, no dia 19 de Agosto de 2015, o texto é novamente aprovado na Câmara, obtendo 320 votos favoráveis, 152 contrários e uma abstenção. Na mesma linha dos votos do segundo dia do primeiro turno, os posicionamentos basicamente se mantiveram e não houve alarde midiático sobre esta segunda votação. Sendo assim, a proposta seguiu para o Senado Federal, onde ainda tramita e aguarda deliberação.
A celeridade que esta proposta foi aprovada não é o único ponto que a destaca. Com base em dados empíricos de Limongi e Figueiredo (2004), historicamente, o Executivo é detentor do poder de influenciar da agenda do Legislativo. Por serem os únicos a serem eleitos por um eleitorado nacional, os chefes do Executivo teriam mais incentivos para liderar políticas de cunho mais amplo, tal como afirma Santos (2002). Concomitantemente, os deputados da oposição governista detêm motivos para levarem adiante propostas em âmbito nacional, já que almejam maior relação com o eleitorado nacional (AMORIM NETO; SANTOS, 2003). Significa, portanto, que o Legislativo aprova muito menos os seus próprios projetos, com maior tempo de tramitação, em comparação com projetos de iniciativa do Poder Executivo, os quais possuem alta taxa de aprovação.
A PEC 171/1993 é um caso oposto que se destacou por ter sido aprovada contra a orientação do Poder Executivo e da bancada do governo, no primeiro ano do segundo mandato da ex-presidenta Dilma Roussef. O que justifica a prioridade na agenda conferida à redução da maioridade penal? Quais fatores políticos explicam a aprovação dessa matéria na Câmara Federal após 22 anos?
Para responder, o artigo propõe uma análise por meio da aplicação da teoria dos Múltiplos Fluxos de John Kingdon (2003), criada para compreender o processo de formação de agenda de políticas públicas, a partir do interesse em conceber os problemas que são priorizados e que estão no centro das atenções dos formuladores de políticas e dos grupos de interesse na matéria. Segundo este modelo, a confluência dos três fluxos - problemas, alternativas e político - abrem a janela de oportunidade para a mudança na agenda.
O artigo está dividido em duas partes, além dessa introdução. Na primeira, serão apresentados os dois primeiros fluxos do modelo de Kingdon (de problemas e as alternativas), com o intuito de compreender a emergência e encaminhamento da temática da redução da maioridade penal - PEC 171/1993. Na segunda parte, será analisada a importância do fluxo político, a partir da avaliação das votações e da construção de um modelo de regressão logística, que permite compreender a correlação de forças que se estabeleceu na Câmara dos Deputados, considerando as composições e orientações dos partidos para a votação, a atuação das bancadas do governo, da oposição e das frentes parlamentares, tendo como pano de fundo o perfil da 55ª Legislatura, avaliada até então como a mais conservadora desde 1985, segundo DIAP (2015).
2 O MODELO DOS MÚLTIPLOS FLUXOS APLICADO À REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL
Desenvolvidas nos anos 1990, as teorias propostas por Kingdon (2003), Baumgartner e Jones (1999) e Sabatier e Jenkins (1993) estão no campo das idéias e focalizam a interpretação e o discurso (CAPELLA, 2006). Kingdon (2003) argumenta que resolver um problema não é o único motivo pelo qual o governo gera uma solução, o intuito também pode ser deixar uma marca, responder a novas pressões ou até mesmo atender novas definições de problemas. Mas o que é e como se constitui um problema?
Em relação ao fluxo de problemas, Kingdon (2003) destaca a diferença entre uma condição e um problema. As condições se tornam questões quando os formuladores de políticas interpretam e acreditam que deveriam tomar alguma atitude em relação a determinado assunto. Enquanto não há essa interpretação, a temática não é visualizada como um problema e permanece como uma situação (condition).
Para que haja esta transição de uma condição a um problema, três frentes devem ser levadas em consideração: indicadores, feedbacks de problemas já existentes e crises, símbolos ou focusing events. Seus caminhos são independentes, no entanto, aumentam-se as chances de um problema ser visto se estes elementos confluírem, atingindo a percepção dos tomadores de decisão.
Segundo Kingdon (2003), é bastante frequente que indicadores chamem a atenção dos tomadores de decisão por ser algo sistemático e indicar que realmente existe uma questão que demanda alguma ação. Capella (2004) expõe, no entanto, que os indicadores per si não são um problema.
No caso do debate sobre a redução da maioridade penal, os indicadores do Mapa da Violência 2015, que abrangeu o período de 1980 a 2012, indicaram que a população teve um crescimento em torno de 61% e, que nesse intervalo, as mortes por arma de fogo cresceram 387% (WAISELFISZ, 2015). No Mapa da Violência de 2016, que abrangeu de 1980 a 2014, houve um aumento da população em torno de 65%, enquanto que o crescimento das vítimas foi de 415,1% (WAISELFISZ, 2016).
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2015) faz um comparativo das taxas de crimes violentos letais intencionais no Brasil. Em 2009, a taxa era 23,2 mortos para 100 mil habitantes, em 2013, de 26,6 e em 2014, de 28,8. Os dados são alarmantes e reafirmam a força da violência em âmbito nacional e, ainda que não seja o auge desta escalada, reiteram que a insegurança não é recente. O Relatório do PNUD (2014) indica que a América Latina é a única região do mundo onde a violência letal aumentou entre 2000 e 2010, mas que nos últimos quatro anos esses valores estão estagnados.
Esses três relatórios citados utilizaram diferentes metodologias, com abrangências diversas, tendo como escopo mapear a violência no Brasil. No entanto, o que se verifica em comum é a unanimidade em indicar que nos últimos anos os índices de violência se mantiveram praticamente estáveis. Segundo Waiselfisz (2016), essa estabilidade deve ser atribuída ao Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003), assim como a queda do Brasil em quatro posições no ranking da violência.
Estes dados, portanto, não demonstravam um aumento significativo da violência no país nos anos que antecederam a votação da PEC 171 que justificasse a inserção da agenda naquele momento especificamente, apesar do patamar historicamente elevado de criminalidade no país. Ademais, o quantitativo de crimes hediondos praticados por menores também não se sustenta, já que os atos infracionais mais cometidos por menores infratores, segundo dados da Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SDH, 2013; 2015), são nesta ordem: roubo, tráfico e homicídio.
O argumento da impunidade também está bastante presente no debate público, embora o número de adolescentes cumprindo medidas socioeducativas tenha crescido 443% de 1996 a 2013 e sendo o Brasil o 4º país que mais encarcera no mundo, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2015).
Ainda no curso normal dos eventos, sem que tenha mudança na trajetória dos indicadores, os congressistas recebem retornos, oficiais ou informais, sobre os programas já existentes e isso frequentemente traz alguns problemas à vista. No caso do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), um feedback frequente é que essa legislação teria falhado em oferecer condições mínimas de infraestrutura e em ressocializar o menor infrator. De fato, havia superlotação em 17 Unidades da Federação, enquanto que a separação dos adolescentes por idade ocorria em apenas 23,7% das unidades (CNMP, 2015) e somente 16,1% realizavam a separação por tipo de infração cometida (SDH, 2013). Diante das avaliações negativas do ECA, pode-se argumentar que seus princípios não foram nem mesmo implantados.
Seguindo o fluxo de problemas, de acordo com Kingdon (2003), alguns itens potenciais necessitam de uma crise, símbolo ou evento que propulsione a questão para a atenção dos tomadores de decisão para adentrar na agenda. Nesse aspecto, identificamos dois eventos que possibilitaram a proposição e o avanço da proposta de redução da maioridade penal3. Primeiramente, em 2014, o linchamento de um menor de 15 anos no Flamengo (RJ), que estava nu, preso por uma tranca de bicicleta a um poste no Rio de Janeiro. Ele foi acusado de realizar roubos na Zona Sul do Rio, no bairro do Flamengo e, como não havia sido capturado ou preso pelas autoridades, três jovens atuaram como ‘justiceiros’. Em seguida, em 2015, ocorreu um estupro coletivo no Piauí, praticado por quatro menores de 18 anos e por um maior de idade, identificado como Adão José da Silva. Após o estupro, as quatro meninas foram jogadas de um penhasco no município de Castelo do Piauí.
A repercussão na mídia desses casos agiu de duas maneiras: primeiramente, foi responsável por moldar a imagem política da impunidade associada a menores infratores e, em segundo lugar, os meios de comunicação participaram ativamente no recorte da redução da maioridade penal apenas para os crimes hediondos e, com isso, alimentaram a opinião pública. Então, os tomadores de decisão, utilizando como argumento o apoio da sociedade brasileira, apropriaram-se desse debate e redirecionaram os diálogos4.
O papel da mídia estaria, destarte, mais relacionado com a opinião pública do que com a agenda governamental diretamente. A Pesquisa Datafolha de Abril/2015 mostrou que 87% dos brasileiros são favoráveis à redução da maioridade penal5. Esse dado revela a influência, ainda que indireta, que os meios de comunicação podem desenvolver fora dos limites das comunidades políticas.
Em suma, a análise do fluxo de problemas revelou que, apesar do histórico elevado, os indicadores não mostraram crescimento significativo da violência ou incidência maior de crimes hediondos praticados por menores no período recente. Entretanto, os dois eventos (focusing events) atuaram como símbolos para que os tomadores de decisão buscassem dados quantitativos e falhas nos programas implementados para justificarem a aprovação da maioridade penal.
Quanto ao segundo fluxo, de alternativas e soluções, o foco está na discussão em torno das ideias, envolvendo um processo gradual de acúmulo de conhecimento e perspectivas, constituindo o que Kingdon (2003) denomina policy primeval soup. No caso da redução da maioridade penal, esse “caldo” surge devido aos arranjos políticos que reorganizaram as bancadas da segurança pública, evangélica e ruralista e propiciaram a eleição de Cunha como presidente da casa.
Nesse contexto político, a proposta seguiu mais adiante que nas legislaturas anteriores, devido à receptividade pelos tomadores de decisão e pela opinião pública, elementos que se retroalimentaram no fluxo político (que será analisado na seção 3 desse artigo). Via pesquisa documental nos anais das sessões legislativas no âmbito das comissões, identificamos os principais atores da comunidade política, por considerarmos sua centralidade na formação de agenda que culminou na aprovação da PEC 171/1993.
Na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), colegiado mais importante da Câmara, presidida pelo deputado Arthur Lira (PP/AL), a relatoria da PEC 171 foi concedida a Luiz Couto (PT)6. Em quatro sessões da CCJ, o parecer de Couto pela inadmissibilidade foi rejeitado e o de Marcos Rogério (PDT), aprovado. Aliás, este congressista foi o que mais se destacou nas falas, fazendo quatro pronunciamentos.
Aprovada na CCJC, a matéria foi encaminhada para a Comissão Especial da maioridade penal, sendo realizadas 34 das 40 sessões previstas7. Eleito presidente desta Comissão, André Moura (PSC) indicou Laerte Bessa (PR) para a relatoria, sendo ambos membros do Centrão e aliados do ex-presidente da casa. Diferentemente da CCJC, houve mais apoio pela aprovação da PEC 171/1993 na Comissão Especial. Antes de iniciarem as discussões, 21 dos 27 membros já manifestavam apoio à redução da maioridade. Dentre os deputados favoráveis, 51,8% defendiam apenas para crimes hediondos8. Esses quantitativos indicam que a possibilidade de produção de alternativas para os problemas considerados já estava bastante limitada nessa comissão. Ao avaliar esse fluxo, identificamos que a atuação dos atores políticos (advocacy policy entrepreneurs) dentro da própria Câmara impediu que as ideias flutuassem livremente no “caldo” definido por Kingdon (2003)9.
Dentre esses atores políticos, identificamos Eduardo Cunha, que estava exercendo o quarto mandato consecutivo como Deputado Federal pelo PMDB e que teve o apoio declarado de 13 partidos na sua eleição para presidência da Câmara, com destaque para o Centrão (PR, PSD, Pros, PSL, e PTdoB), grupo que nasceu e cresceu sob a liderança de Cunha. O cargo de presidente possibilita que Cunha seja um empreendedor de políticas, pois, nesta posição, conjuntamente com o colégio de líderes, é responsável por organizar a pauta e conferir celeridade ao processo. Portanto, mais do que impor uma derrota política frente ao Executivo, havia interesse específico de Cunha na matéria, não necessariamente no seu conteúdo isoladamente, mas principalmente para fortalecer as bancadas que o sustentaram. Tal fato pode ser comprovado pela entrevista de Cunha à revista Veja, logo no início do seu mandato como presidente, quando ele declarou seu apoio à redução da maioridade penal10.
Além de Cunha e do Centrão, destacam-se como empreendedores as bancadas ruralista, da segurança pública e evangélica, popularmente conhecidas como ‘BBB’ (Boi, Bala e Bíblia)11, com muitos parlamentares também pertencentes ao Centrão, mas organizados de maneira temática nessas bancadas. Dentre elas, a Frente Parlamentar de Segurança se destacou por conseguir mobilizar pessoas em defesa da redução da maioridade que estiveram presentes nas galerias da Câmara no primeiro dia da votação, o que significa que conseguiu encaminhar a temática além do próprio parlamento.
Destacamos, por fim, a fragilidade da base do governo que, apesar de ter apresentado questões de ordem, solicitações de audiências públicas e votação nominais, principalmente com Erika Kokay e Maria do Rosário, ambas do PT, não lograram conter o avanço da temática. Além disso, a base governista não conseguiu sustentar a inadmissibilidade do projeto com Luiz Couto, nem mesmo a presidência ou relatoria na Comissão Especial.
Em resumo, a PEC 171/1993, presente no caldo das ideias há anos, entrou na agenda fortemente da Câmara em 2015 em função das ações de Cunha como empreendedor desta política, da forte atuação do Centrão como bloco político, dos interesses das bancadas temáticas de perfil conservador e da fragilidade da base governista. Essa correlação de forças na Câmara e sua influência sobre a votação da PEC 171 serão analisadas na seção seguinte.
3 FLUXO POLÍTICO DE KINGDON E A ANÁLISE DA CORRELAÇÃO DE FORÇAS NA VOTAÇÃO DA PEC 171 NA CÂMARA DOS DEPUTADOS
Nesta seção, pretende-se demonstrar que a abertura da janela para a aprovação da PEC 171 pela Câmara dos Deputados, após 22 anos da sua proposição, é explicada pelo lado político, que corresponde ao terceiro fluxo do modelo de Kingdon (2003). Sua aplicação visa compreender a inserção da redução da maioridade penal no Brasil como prioridade na agenda legislativa em 2015, a despeito da posição contrária do Executivo à época.
Destacamos que a janela de oportunidades responsável por conduzir esse tema para a agenda está baseada na combinação de quatro fatores principais: 1) a baixa popularidade do Executivo, já que 69% da população considerava o governo de Dilma Rousseff ruim ou péssimo, conforme pesquisa Ibope divulgada em setembro/201512; 2) a fragmentação parlamentar após a reeleição, uma vez que a coligação de partidos que elegeu a presidenta Dilma contabilizou 304 deputados eleitos, configurando maioria na Câmara, mas abaixo dos 308 votos para a aprovação de PECs, além do aumento do número de partidos com representação na Câmara que passou de 22 para 28 na 55ª legislatura13; 3) a perda gradativa de apoio parlamentar que culminou no processo de impeachment em 2016; 4) a formação dos blocos informais “Blocão14” e depois do “Centrão”15, o reforço das bancadas ruralista e da segurança pública, além do fortalecimento da Frente Parlamentar Evangélica, fatores que levaram à eleição de Eduardo Cunha para presidência da Câmara dos Deputados e à ascensão de pautas conservadoras, sendo o avanço e aprovação da PEC 171/1993 um caso bastante exemplar desta conjuntura.
De acordo com Kingdon (2003), o fluxo político compreende três frentes: o national mood, as forças políticas organizadas e o governo em si. Identificar o humor nacional é compreender que um grande número de pessoas no país está pensando e seguindo linhas comuns, que mudam de tempos em tempos, sendo suficientes para criar rótulos e dissipá-los para a política. Para promover uma questão, o solo deve estar fértil para o desenvolvimento, devendo haver uma receptividade inicial para suas ideias.
Sendo o Congresso mais conservador desde 1985 - ou seja, desde a redemocratização - diversas pautas relacionadas à família e de restrição do Estado de bem-estar social avançaram (DIAP, 2015). Consideramos que a eleição de Cunha é consequência deste conservadorismo, o que possibilitou essa dissipação para a sociedade e o avanço de medidas congeladas até então (spillover), que ganharam fôlego já no primeiro ano da 55ª legislatura.
De acordo com Mainwaring e Perez Liñan (1998), há dois caminhos utilizados para medir a disciplina partidária, sendo utilizadas a lealdade relativa ou a absoluta. A primeira consiste em identificar as votações nas quais o parlamentar está presente. A segunda inclui as ausências e, desta forma, reduz os níveis de lealdade, dificultando a análise. Optamos em seguir o primeiro caminho, analisando com base na lealdade relativa, uma vez que se trata de uma votação controversa, na qual a abstenção tem um peso diferente da ausência, já que há necessidade de 308 votos a favor, por se tratar de Emenda Constitucional, diferente da exigência de maioria simples dos presentes.
Para a análise da votação e construção do banco de dados, computamos como variável dependente a votação da PEC no segundo dia de votação, quando houve a aprovação. Como variáveis independentes, consideramos os parlamentares que compõem o Centrão, Blocão, bancadas evangélica e ruralista, Frente Parlamentar de Segurança Pública e bancada do governo. Optamos pelo Centrão e Blocão por serem grupos bastante identificados com a pauta conservadora e haver forte correlação entre os dois blocos, que estavam sob a liderança do presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha. Em função da pauta em análise, identificamos as bancadas evangélica, ruralista e a frente parlamentar de Segurança Pública como grupos de interesse que poderiam, no limite, atuar de forma suprapartidária em favor da matéria. Dessa forma, pretende-se verificar se a atuação temática é capaz de se sobrepor ou não à clivagem político-partidária ou de apoio / oposição ao governo em defesa de uma proposta específica.
As bancadas foram construídas com base na análise do DIAP (2015) que considera como integrante da bancada ruralista o parlamentar que, “mesmo não sendo proprietário rural ou atuando na área de agronegócio, assume sem constrangimento a defesa dos pleitos da bancada, não apenas em plenários e nas comissões, mas em entrevistas à imprensa e em outras manifestações públicas” (p. 9), computando 109 deputados na 55ª legislatura. Com 75 deputados, a bancada evangélica é composta por parlamentares que ocupam cargos nas estruturas das instituições religiosas (bispos, pastores, missionários e sacerdotes), cantores de música gospel e por aqueles deputados e deputadas que professam a fé segundo a doutrina evangélica ou que se alinha ao grupo em votações de temas específicos.
Diferentemente das bancadas, as frentes parlamentares16 são criadas, a cada legislatura e dependem de signatários e de composições suprapartidárias. No caso da Segurança Pública, coordenada por Alberto Fraga, há 299 signatários17. A utilização desta frente parlamentar foi a solução encontrada pelo fato de o DIAP não ter definido precisamente o quantitativo de parlamentares que compõem a bancada da segurança pública, a exemplo do que já existia para os casos das bancadas evangélica e ruralista.
Por último, o papel central da bancada governista será analisado pela sua composição formal composta pelos parlamentares pertencentes aos partidos que apoiaram a reeleição da ex-presidenta Dilma Roussef. Busca-se compreender a atuação da base governista que, mesmo tendo número de parlamentares suficiente, não foi capaz de evitar a aprovação da matéria, tendo em vista o posicionamento contrário do governo.
Ao todo, foram coletados 478 casos que correspondem ao total de deputados(as)18 que estiveram presentes em algum dos dois dias de votação, da proposta original e da emenda aglutinativa, do primeiro turno da PEC 171/1993.
De acordo com Kingdon (2003), quando uma temática parece estar se movimentando, todos com algum interesse no assunto, entram no jogo frente ao receio de serem deixados de lado. Comparando as duas votações da PEC 171 em 1º turno, identificamos 28 mudanças de voto de um dia para o outro, de parlamentares pertencentes a 13 partidos diferentes19. Foram 21 mudanças de Não no 1º dia para Sim no 2º, outras duas mudanças no sentido oposto (de Sim para Não), três parlamentares que deixaram de se abster e passaram a apoiar a PEC 171 no 2º dia, além de duas novas abstenções no 2º dia, advindas uma de cada lado.
Verificamos que 13 deputados mudaram seu voto em direção à orientação partidária e os outros 15 foram mudanças que passaram a contrariar a orientação de voto da sua liderança20. Portanto, esta mudança de voto que permitiu a aprovação da emenda aglutinativa no segundo dia de votação foi mais de desalinhamento político, o que indica um interesse mais particular na mudança de voto desses parlamentares.
Considerando apenas a mudança de voto do Não para Sim, identificamos que 11 dos 21 parlamentares o fizeram para se alinharem com seus partidos. No sentido contrário, destaca-se o PSB, que sustentou 3 mudanças do Não para o Sim, indo contra a indicação da liderança do partido e também da base governista.
Na análise da votação da PEC 171/1993, identificamos que 88,1% dos parlamentares seguiram a orientação do partido e votaram pelo Sim, enquanto que 77,2%, que tinham como orientação o Não, votaram de acordo com a orientação no 2º dia da votação21. Ao desagregar a análise, chama a atenção que os partidos considerados de direita e centro, tenham sido muito mais coesos do que os partidos de esquerda, o que possibilitou a aprovação da PEC22. Para Santos (2002), existe uma relação direta entre a homogeneidade das posições sobre as diversas questões políticas e o poder de barganha de cada membro individualmente.
PRB, PSDC, PRTB, PMN, PRP, PEN e PT do B foram extremamente coesos e seus parlamentares votaram em bloco pela redução da maioridade penal. Por sua vez, dentre os partidos de esquerda, apenas o PCdoB, como um todo, votou pelo Não. Em seguida, o que mais se aproximou foi o PT com 98,3% dos parlamentares votando contrários à PEC, com apenas um deputado votando favoravelmente.
Dentre os pertencentes à base do governo, apenas 39% seguiram a orientação da liderança e votaram Não. Esse comportamento reafirma a importância dessa votação para que essa agenda do Legislativo se sustentasse a despeito do interesse contrário do Poder Executivo, considerando que, via de regra, a “coalizão governamental vota unida nas votações verdadeiramente importantes para o governo” (LIMONGI; FIGUEIREDO, 1999, p.120).
A votação pela redução da maioridade mostrou um interesse muito maior pelos blocos políticos da Câmara do que pela própria base governista, que teve apenas força com o PT (98,3%), PCdoB (100%) e PDT (73,7%). Os outros seis partidos da base governista revelaram forte rompimento com a orientação da liderança do governo, com os seguintes percentuais de votos contrários à PEC: PROS (45,5%), PMDB (24,6%), PR (6,7%), PSD (6,5%), PP (5,10%) e o PRB revela o ápice com 0% de votos pelo Não.
As análises destes quantitativos na aprovação da matéria são significativos não apenas pelos números isoladamente, mas também por serem valores que permitem o monitoramento dos parceiros dentro da coalizão, seja governista ou não. Isto significa, portanto, a importância da análise das votações para compreensão no quadro macro da política (MARTIN; VANBERG, 2004).
Por último, buscou-se identificar os partidos que compõem os seguintes blocos: Blocão, Centrão, bancada do governo, evangélica ruralista e Frente Parlamentar da Segurança Pública. Neste ponto, também adentramos o segundo elemento do fluxo político que é composto pelas forças políticas organizadas, exercidas principalmente pelos grupos de pressão que, segundo Kingdon (2003), atuam mais bloqueando o avanço de certa temática. No caso da PEC 171/1993, não identificamos o papel destes grupos como de ação positiva, com interesse na promoção da temática.
Na tabela 1 abaixo, estão colocados os percentuais de votos favoráveis e contrários à PEC 171, bem como a associação bivariada entre a variável dependente [votação no 2º dia] e cada uma das covariáveis selecionadas, mensurada pelo teste do qui-quadrado, que mede associação entre duas variáveis qualitativas, a partir da distância entre as frequências observadas e as frequências que esperaríamos encontrar em cada célula, caso as variáveis fossem independentes entre si (BUSSAB; MORETIN, 2003).
Observando as porcentagens de parlamentares que votaram por bancada temática (ruralista, evangélica e segurança pública) ou por grupo político (Centrão, Blocão e Governista), chamam a atenção os 85,9% de parlamentares que são da Bancada Evangélica, os 87,7% de parlamentares que compõem o Centrão e os 77,9% dos parlamentares da Segurança Pública que aprovaram a PEC 171/1993. A Bancada Governista, que era contra a redução, revelou-se fragilizada com apenas 39,1% dos seus parlamentares seguindo sua orientação.
Ao observar os resultados do teste do qui-quadrado, destaca-se a forte associação entre a votação da PEC 171 e o pertencimento ao Centrão (q = 60,8) e, com menos preponderância, ao Blocão (q = 21,4), confirmando a maior coesão do primeiro grupo. Em seguida, a votação da frente da Segurança Pública também demonstrou uma associação forte (q = 30,96), porém bastante inferior às variáveis políticas. Por fim, aparecem as demais variáveis, com patamares de associação bem inferiores e semelhantes entre si (valor de q entre 11 e 14), embora todas elas ainda significantes estatisticamente (p < 0,001), com destaque para o comportamento pouco coeso da bancada governista.
É importante notar que os dados não confirmaram a proeminência das bancadas temáticas na votação da PEC 171/1993, pois mesmo com um apoio maior entre os pertencentes a estas bancadas do que aos não-pertencentes, as orientações político-partidárias revelaram-se mais relevantes para a aprovação da matéria.
Para confirmar este quadro, faremos uma análise multivariada a partir da construção de um modelo de regressão logística, que permite predizer como um elemento se comportará, tendo como base outras variáveis, com atuação concomitante. Neste tipo de análise, os efeitos das variáveis independentes ocorrem simultaneamente no modelo e suas capacidades explicativas são diferentes quando tomadas em análises bivariadas, em função da possibilidade das associações existentes entre as variáveis.
Nosso objetivo ao aplicar este modelo não foi no sentido de predizer algo, até porque todas as votações já aconteceram e todos os grupos analisados também foram consolidados. Com esta técnica, visamos demonstrar a influência das variáveis independentes como determinantes da aprovação da redução da maioridade penal na Câmara dos Deputados (variável dependente), a fim de revelar melhor a correlação de forças na Câmara que levou à aprovação da PEC 171/1993 e a razão de chance do voto pela aprovação em função do pertencimento dos grupos temáticos e políticos.
Esta análise multivariada permite verificar os fatores determinantes (variáveis independentes) do voto parlamentar na PEC 171, considerando o 2º dia de votação como variável dependente. Para a análise do modelo23, selecionamos três aspectos: a razão de chance (exp B), a média que esse valor pode atingir e a significância estatística24.
Os números explicitam que a maior razão de chance está relacionada à nova correlação de forças na Câmara dos Deputados, a qual foi mensurada pela interação entre os grupos acima. O Centrão aparece com maior razão de chance para a aprovação da PEC 171, isto é, o fato de o parlamentar pertencer a este grupo aumenta em 6,3 vezes, na média, as chances dele aprovar a redução da maioridade penal. Considerando 95% a confiabilidade desse resultado, a variação está entre 3,731 e 10,651, ou seja, há uma fortíssima tendência de alinhamento nas votações em análise. Trata-se, portanto, de um grupo bastante coeso, o qual possibilitou a aprovação da PEC 171/1993.
Por outro lado, o pertencimento à bancada do governo reduziu em 65% a chance de o parlamentar ter votado pela aprovação da PEC 171 em comparação com um deputado da oposição, ainda assim isso foi insuficiente para barrar a matéria, uma vez que prevaleceu o posicionamento do Centrão, considerando que houve a intersecção entre essas duas forças políticas na Câmara, já que alguns partidos do Centrão compunham a base do governo.
Outro resultado interessante é a maior influência das variáveis políticas,que se mostraram(-se) muito mais fortes e importantes do que os eixos temáticos na votação da redução da PEC 171. Prova disso é que a bancada evangélica perde a significância estatística quando passa a ser controlada pelas demais variáveis políticas presentes no modelo. Apesar dos posicionamentos dos parlamentares dessa frente serem predominantemente favoráveis à aprovação da redução da maioridade penal, tal como demonstrado nas análises bivariadas (qui-quadrado), o voto é, na realidade, explicado pelo posicionamento político-partidário predominante entre os parlamentares membros desta frente. No limite, por exemplo, um deputado evangélico do DEM ou do PT votou, com maior predominância, conforme a orientação dos seus partidos.
Em relação à bancada ruralista e à frente parlamentar de segurança pública, os parlamentares pertencentes possuem, respectivamente, 2,4 e 2,5 vezes mais chances, em média, de terem votado a favor da redução da maioridade. Ainda assim, a influência desses grupos é bastante inferior à força do Centrão para aprovação da matéria, diante da fragilidade da base governista, contrariando a tendência de predominância do executivo na definição da pauta e na aprovação das matérias de seu interesse no Legislativo.
Em suma, o modelo de regressão logística permitiu confirmarmos que as variáveis políticas, mais que as temáticas, são as que realmente determinaram a aprovação da redução da maioridade penal na Câmara dos Deputados. Além disso, os dados deixam claro o terceiro e maior componente do fluxo político: os eventos do próprio governo. Quando envolve atores do governo, a mudança na agenda pode ocorrer em uma das duas formas: mudança de pessoal ou mudança nas leis. Esses elementos compõem o que Kingdon (2003) denominou turnover, mostrando que o fluxo político atua segundo suas próprias regras e dinâmicas. Dessa maneira, identificamos que o humor nacional conservador, a eleição de Cunha como elemento de mudança na administração, a atuação do Centrão como força política organizada e a fragilidade da base governista à época foram os pilares para a aprovação da PEC 171/1993 no ano de 2015.
4 CONCLUSÃO
O objetivo deste artigo consistiu em compreender os elementos que possibilitaram a aprovação pela Câmara dos Deputados da PEC 171/1993, que trata da redução da maioridade penal, a partir da aplicação da teoria dos Múltiplos Fluxos de John Kingdon. As janelas se abrem quando há um problema convincente ou por questões políticas, ou seja, o fluxo de soluções tem reduzida importância na agenda governamental. Segundo Kingdon (2003), a mudança ocorre quando uma questão surge, fruto de indicadores, feedbacks e/ou eventos focais ou quando há alterações na dinâmica política, destacando-se as mudanças dentro do governo e no humor nacional.
A confluência dos três fluxos culmina no que Kingdon denominou coupling, que ocorre quando a janela está aberta e que atinge a agenda decisória. O autor argumenta que a conexão entre problemas e alternativas aumenta as chances de mudanças. No entanto, exalta que a proposta cresce na agenda quando o fluxo político abre a janela e cria o tempo exato para as mudanças.
Neste contexto, a figura dos empreendedores de políticas é essencial para mudança na agenda, pois eles são responsáveis por reunirem os fluxos quando a janela se abre. Dispostos a defender uma ideia, eles podem estar dentro ou fora do governo, podendo ser acadêmicos, membros do Congresso, burocratas de carreiras, entre outros.
Seu papel, todavia, não reside em apenas conduzir uma questão, mas também consiste em esperar o momento certo de abertura da janela para direcioná-la. Eles devem estar prontos, com ideias desenvolvidas e propostas articuladas. Qualquer sinal de crise pode ser visto como oportunidade. Visando seus interesses pessoais, os empreendedores atuam no sentido de reunir os fluxos que antes estavam dispersos.
A janela se abre devido a algum fator além do domínio do empreendedor, não obstante, esse ator tome vantagem dessa oportunidade. Isso significa que eles atuam advogando pela proposta no campo de alternativas, além de desempenharem a negociação em outros círculos, conduzindo para a união dos fluxos. Nesse processo, é recorrente que eles façam associações antes das janelas se abrirem para que, quando isso aconteça, eles tenham o pacote de problemas, soluções e momento político reunidos.
Identificamos o Centrão e Cunha como empreendedores desta política. O Centrão, como bloco político coeso e com forte destaque no fluxo político, e Cunha reforçando a teoria de Kingdon, demonstrou que uma mudança na administração é provavelmente a janela mais óbvia a ser aberta. No posto de presidente da Câmara dos Deputados, agiu no sentido de reunir os três fluxos, dar celeridade para aprovação desta proposta em uma brecha na abertura da janela, além de ter dado formato ao Blocão e ao Centrão, sendo que este último permaneceu em atuação no Congresso, mesmo após sua cassação e prisão.
Esta pesquisa tinha como hipótese inicial que as bancadas evangélica, ruralista e da segurança pública, juntamente com Cunha, tivessem sido os basilares para a aprovação da PEC 171/1993. Considerávamos alguma força do Centrão e do Blocão também em conduzir a temática, mas esperávamos que o aumento constante da bancada evangélica , juntamente com a eleição de Cunha, fossem elementos mais determinantes. No entanto, a análise empírica demonstrou menos força do que se supunha, mesmo reconhecendo que as três bancadas temáticas aqui analisadas – evangélica, ruralista e de segurança pública - foram importantes para a aprovação da PEC 171.
Por outro lado, os grupos políticos analisados, Centrão e Blocão, mostraram-se muito mais coesos e direcionados, com maior proeminência do primeiro grupo. A grande mudança de votos – sendo 11 do Não para o Sim, de um dia para o outro – está relacionada com o Centrão. Além disso, os 13 partidos que o compõem estão distribuídos em todas as posições na Câmara, o que reitera sua força em movimentar diferentes orientações.
Na análise da votação da PEC 171/1993, identificamos que 88,1% dos parlamentares seguiram a orientação de seus partidos pelo Sim, enquanto que 77,2% seguiram a orientação direcionada para o não. Outro fator importante nesta votação e que também causa estranhamento diante da análise histórica, é o fato de a direita ter sido muito mais coesa que a esquerda e, concomitantemente, os interesses do governo também terem sido contrariados, revelando a fragmentação da base governista.
Com constantes quedas de popularidade, a ex-presidenta Dilma não teve força para enfrentar o novo arranjo político formado na Câmara dos Deputados, o que culminou no seu impeachment. Esse quadro ficou evidente com 171 parlamentares da base governista votando pelo Sim contra 110 pelo Não, resultado que contrariou a posição da liderança do governo. Houve, portanto, rompimento da disciplina em relação ao posicionamento do Poder Executivo, contrariando outra tendência histórica (LIMONGI, 1998).
A PEC 171/1993, destarte, destacou-se por ter revelado uma diminuição da proeminência do Executivo no segundo mandato de Dilma Roussef, rompendo com a capacidade histórica do Executivo de impor prioridade de agenda e trâmites mais acelerados no Legislativo, além da alta taxa de aprovação para as matérias de interesse do governo. A abertura da janela política ocorreu com um novo arranjo político, queda de popularidade do Executivo e forte fragmentação parlamentar. Com humor nacional conservador, a caixa de propostas de spillover seguiu as coordenadas do Congresso Nacional com perfil bastante conservador, principalmente desenhado pelo Centrão como empreendedor político, liderado por Cunha, que conduziu, como um dos seus primeiros atos à frente da presidência da casa, a proposta de redução da maioridade penal para aprovação, após 22 anos de sua primeira proposição.
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Notas