Resumo: Em 2008, o Brasil adotou a política de erradicação do sub-registro civil de nascimento e de promoção do acesso à documentação básica. Passados 10 anos de atividades, diz-se que o país erradicou o sub-registro civil de nascimento, embora os dados mostrem que cerca de 1% das crianças nascidas no país permanecem sem registro. Considerando que o registro civil de nascimento é um direito humano que garante o exercício dos demais direitos e, sabendo que os esforços brasileiros para erradicação do sub-registro têm sido considerados exitosos, este artigo analisa os 10 anos da política nacional sob a perspectiva das políticas públicas em direitos humanos, identificando, ainda, os impactos da descentralização da política nos órgãos públicos no alcance das metas estabelecidas no decênio 2008-2018. Conclui que as ações coletivas, a padronização documental e dos sistemas de informação contribuíram para o sucesso dessa política pública; no entanto, permanecem os desafios de registro civil de nascimento dos chamados grupos prioritários. A metodologia de pesquisa consiste em revisão bibliográfica e análise de dados estatísticos oficiais do governo brasileiro.
Palavras-chave:Registro civil de nascimentoRegistro civil de nascimento,BrasilBrasil,Políticas públicasPolíticas públicas.
Abstract: In 2008 Brazil adopted a policy to eradicate civil under-registration of birth and to promote access to basic documentation. After 10 years of activities, the country is considered to have eradicated birth under-registration, although data shows that about 1% of children born in the country remain unregistered. Considering that birth registration is a human right that guarantees the exercise of other rights, and knowing that Brazilian efforts to eradicate under-registration have been considered successful, this article analyzes the 10 years of the national policy from the perspective of human rights policies, also identifying the impacts of policy decentralization on public agencies in achieving the goals established for the 2008-2018 decade. In conclusion, collective actions, document standardization and information systems contributed to the success of such policy. However, the challenges of birth registration of the so-called priority groups still remain. The research methodology consists of literature review and the analysis of official statistical data of the Brazilian government.
Keywords: Civil Registry, Brazil, Public policies.
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POLÍTICAS PÚBLICAS PARA ERRADICAÇÃO DO SUB-REGISTRO CIVIL DE NASCIMENTO NO BRASIL (2008-2018)1
Recepção: 15 Novembro 2019
Aprovação: 23 Abril 2020
O registro civil de nascimento, considerado como o “ato jurídico que dá publicidade ao nascimento com vida de determinado indivíduo, atribuindo-lhe existência legítima, conferindo-lhe aptidão para adquirir obrigações e contrair direitos” (EVANGELISTA, 2015, p. 111), é fundamental para o pleno exercício de direitos, uma vez que a partir dele decorre a obtenção de documentos que permitirão ao portador provar sua identidade e exercer direitos e obrigações.
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) estima que cerca de 73% das crianças nascidas anualmente no mundo possuem registro de nascimento, reconhecidas grandes disparidades entre regiões: na Europa Ocidental e na América do Norte, 100% das crianças com menos de 5 anos de idade são registradas; na Europa do Leste e na Ásia Central, 99% possuem registro; enquanto na América Latina e Caribe esse número corresponde a 94%. No continente africano, as estimativas são de 40% de registro de nascimento até os 5 anos de idade na África oriental e austral, 54% na África ocidental e central, enquanto que apenas 46% dos nascimentos são registrados na África Subsaariana, que possui o menor índice de registro civil naquele continente. No Oriente Médio e no norte africano, 92% dos nascimentos são registrados antes dos 5 anos de idade e 65% delas são registradas no sul asiático3.
Até 2003 no Brasil, quase 750 milhões de crianças nascidas por ano não possuíam registro civil de nascimento, sendo que o sub-registro4 começou a ser reduzido a partir de políticas públicas especificamente voltadas para o tema, a exemplo de campanha de registro civil promovida pelo Ministério da Saúde (1999) e do Plano Presidente Amigo da Criança e do Adolescente (2004-2007) (UNICEF, 2005). O sub-registro, no entanto, só passou a ter níveis constantes de erradicação após a promulgação do Decreto nº 6.289, de 6 de dezembro de 2007, que instituiu uma política nacional com objetivos a serem alcançados em 10 anos, entre 2008 e 2018.
Parte-se da premissa de que o registro civil é um direito humano que deve ser respeitado em todas as etapas da vida, desde o nascimento. Com o registro, obtém-se identidade, prova de nacionalidade, idade, filiação e naturalidade, o que permite não apenas provar a própria existência, mas também fazer uso de serviços públicos e privados que requeiram identificação civil. A ausência de registro civil de nascimento implicará na falta de documentação básica que, consequentemente, deixará essas pessoas às margens da sociedade, uma vez que não poderão exercer seus direitos de nacionalidade e cidadania de forma ampla (UNICEF, 2005).
Na prática, as pessoas sem documentação – quer nacionais, estrangeiras ou apátridas – não podem provar sua própria existência e não podem realizar nenhum ato da vida civil nem se beneficiarem de acesso aos serviços públicos e privados. Por isso, o desenho, o desenvolvimento e os objetivos alcançados nesses 10 anos da política brasileira são tão positivos individual e coletivamente, bem como se inserem de forma direta nas políticas públicas em direitos humanos.
Enquanto “conjunto das decisões e ações relativas à alocação imperativa de valores envolvendo bens públicos” que “requer diversas ações estrategicamente selecionadas para implementar as decisões tomadas” (RUA, 2012, p. 17), as políticas públicas devem ser analisadas de acordo com seus objetivos, alcance e eficácia. Por esse motivo, o presente artigo tem por objetivo analisar a efetividade da política brasileira para erradicação do sub-registro civil de nascimento durante sua vigência, ocorrida entre os anos de 2008 e 2018.
A avaliação dessa política considerará as estatísticas oficiais sobre nascimento e registro civil, assim como o impacto dessa política na estruturação de órgãos públicos atuantes no registro civil e na documentação básica por meio da análise de dados oficiais e literatura pertinente.
O registro civil de eventos vitais – a exemplo do nascimento, adoção, casamento, divórcio e óbito – é necessário para estabelecer a identidade das pessoas e seus relacionamentos (POWELL, 1980). O registro se dá por órgãos oficiais do governo e os documentos dele decorrentes constituem prova de identidade, filiação, idade, nacionalidade, naturalidade, estado civil, entre outros. Com relação ao registro civil de nascimento, ele é considerado o “primeiro direito” a partir do qual é possível acessar os demais direitos (UNICEF, 2013).
Embora a mera existência de uma pessoa, como fato natural, independa de formalização, o registro garante “um primeiro ato de reconhecimento social” a partir do momento em que os órgãos públicos declaram sua existência de direito. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ainda afirma que “o registro de nascimento realizado em Cartório é a oficialização da existência do indivíduo, de sua identificação e da sua relação com o Estado, condições fundamentais ao exercício da cidadania” (IBGE, 2010, p. 17).
No Brasil, o registro civil é regido pela Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos) e suas alterações. É, ainda, por meio do registro civil de nascimento que se tem acesso à documentação básica estabelecida internamente por cada país3; no caso do Brasil, compõem a documentação básica a carteira de identidade ou registro geral (RG), o cadastro de pessoa física (CPF) e a carteira de trabalho e previdência social (CTPS). Além desses documentos, servem como meio de prova de identidade, nos termos da legislação vigente, o passaporte, a carteira de identificação funcional, a carteira de identidade profissional, a carteira de identidade de militar das Forças Armadas, a carteira nacional de habilitação (CNH) e a carteira de registro nacional migratório (RNM).
Com o intuito de facilitar a prova e a portabilidade dos documentos de identidade, a Lei nº 13.444, de 11 de maio de 2017, prevê, em seu artigo 8º, a criação do documento nacional de identidade (DNI) em substituição aos títulos nele incluídos, a exemplo da certidão de nascimento, certidão de casamento, RG, CPF e CNH. Esse documento será digital e gerido pela Justiça Eleitoral, com a expectativa de unificar as bases de dados dos diversos órgãos públicos que emitem documento oficial de identificação civil e simplificar a prova de identidade no país.
O registro civil de nascimento é fundamental para o “acesso adequado às políticas públicas de saúde, educação e assistência social” e sua ausência é considerada “a primeira violação de direitos sofrida por uma criança depois de seu nascimento” (UNICEF, 2015, p. 20), uma vez que não apenas ela ficará impedida de acessar os serviços públicos, como também estará mais vulnerável para se tornar vítima de adoção ilegal e de tráfico de pessoas.
Perante o direito internacional, o direito humano ao registro civil inicia-se com o artigo 6º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), segundo o qual “todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento, em todos os lugares, da sua personalidade jurídica”. Para chancelar a aplicabilidade da Declaração, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966) trouxe no seu artigo 24(2) o reconhecimento de que “toda criança deverá ser registrada imediatamente após seu nascimento e deverá receber um nome”, assim como a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), que menciona no seu artigo 7º que “a criança será registrada imediatamente após seu nascimento e terá direito, desde o momento em que nasce, a um nome, a uma nacionalidade e, na medida do possível, a conhecer seus pais e a ser cuidada por eles”.
Além da normativa internacional, vigoram também no Brasil a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), que promove a regularização do registro civil da criança ou adolescente sem prévio registro público, e a Lei nº 9.534, de 10 de dezembro de 1997, que garante a gratuidade do registro civil de nascimento e de óbito, assim como da primeira via da certidão de nascimento de todas as pessoas nascidas ou falecidas em território brasileiro.
Pode-se afirmar que há relação direta entre o registro civil de nascimento e a dignidade humana, uma vez que a ausência de registro implica na violação do princípio fundamental de dignidade do ser humano (EVANGELISTA, 2015), entendido como um dos pilares do Estado Democrático de Direito e alçado a fundamento da Constituição Federal de 1988. Por isso, o governo brasileiro entende que “o registro civil de nascimento é um direito humano em si e também o primeiro instrumento de exercício da cidadania e de garantia dos direitos fundamentais” (MDH, 2018, p. 6).
Na jurisprudência internacional, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já se referiu ao registro civil de nascimento como um direito humano no caso Yean e Bosico (2005). Segundo a Corte, “a falta de reconhecimento da personalidade jurídica lesiona a dignidade humana, já que nega de forma absoluta sua condição de sujeito de direitos e faz o indivíduo vulnerável frente a não observância de seus direitos pelo Estado ou por particulares” (CORTE IDH, 2005, par. 179).
A importância do tema também está refletida na Agenda 2030 das Nações Unidas4, que indica na meta 16.9 o fornecimento de identidade legal para todas as pessoas, incluindo o registro de nascimento (UNGA, 2015). O registro civil de nascimento é, portanto, um direito humano derivado da dignidade da pessoa humana, uma vez que ele gera documentação e prova da existência, permitindo a busca por direitos sociais, individuais e coletivos. Por esse motivo, a erradicação do sub-registro de nascimento e os esforços – por meio de políticas públicas – para registrar todas as pessoas são vitais para o pleno exercício dos direitos humanos.
As políticas públicas com enfoque em direitos têm origem no reconhecimento, pelo Sistema ONU, dos direitos específicos das mulheres, crianças, idosos, indígenas e da proteção das minorias, o que conferiu “[...] legitimidade política a essas discussões e também permitiu esforços orientados para operacionalizar as concepções éticas que fundamentam a doutrina dos direitos humanos em políticas públicas e a institucionalizar os movimentos sociais derivados dessas demandas” (GONZÁLEZ, 2002, p. 107).
Essa perspectiva dos direitos humanos, aqui identificada como o acesso ao registro civil e à documentação básica como forma de alcançar os demais direitos garantidos pelo Estado, se apresenta como “uma concepção da vida social que procura reconciliar a moral, a política e o direito num horizonte ético, mas ao mesmo tempo operacional, que tem avançado numa visão de política pública” (GONZÁLEZ, 2002, p. 108).
Em 6 de dezembro de 2007, foi promulgado o Decreto nº 6.289, que instituiu o Compromisso Nacional para a Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à Documentação Básica no Brasil. Essa norma jurídica determinou o estabelecimento de políticas públicas nos âmbitos federal, estaduais, distrital e municipais de promoção ao registro e de obtenção da documentação básica por toda população brasileira com o objetivo de erradicar o sub-registro civil de nascimento.
O Compromisso Nacional contou com a criação de comitês gestores, em caráter de adesão voluntária, nos demais entes federativos que se comprometessem a atuar de acordo com as diretrizes do Decreto. Foi instituído, ainda, um Comitê Gestor Nacional do Plano Social Registro Civil de Nascimento e Documentação Básica (Comitê Gestor Nacional), constituído por representantes de órgãos públicos, sociedade civil e organismos internacionais5, com a finalidade de “promover a articulação dos órgãos e entidades envolvidos na implementação das ações relacionadas à erradicação do sub-registro civil de nascimento e ampliação do acesso à documentação civil básica, resultantes do Compromisso [...], assim como de realizar o monitoramento e avaliação dessas ações” (artigo 5º do Decreto).
Nos planos estadual, distrital e municipais, foram estabelecidos comitês gestores em 19 estados da federação6 e em municípios do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Amazonas, Mato Grosso do Sul, Ceará, Maranhão, Goiás, Bahia, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraná e Alagoas. Os comitês foram peça-chave no sucesso da campanha nacional, uma vez que eles “imprimiram volume ao som do chamamento de entidades sociais ao movimento, arregimentaram organismos internacionais e convocaram os poderes da república a contribuir com a rede nacional de mobilização para garantir o direito ao reconhecimento da personalidade jurídica ao nascer e a qualquer tempo quando violado” (GARRIDO; LEONARDOS, 2017, p. 24).
Em dezembro de 2007, o Comitê Gestor Nacional e os comitês gestores estaduais, distrital e municipais se reuniram para criar a Agenda Social do Registro Civil de Nascimento e Documentação Básica. A Agenda Social, que estabelecia as metas do Compromisso Nacional, foi subdividida em 3 comitês (mobilização, documentação básica e condições estruturantes) e organizada em 3 eixos: (i) mobilização registro civil e documentação básica – atendimento à população; (ii) ampliação da rede – mobilidade e aumento da cobertura da rede de serviços; e (iii) manutenção do índice de erradicação (SDH, s/d). Entre as estratégias a serem alcançadas para facilitar o acesso universal aos registros civis de nascimento até o ano de 2010, destacavam-se:
A aproximação do registro civil de nascimento ao local de nascimento, por meio de emissão da certidão de nascimento nas maternidades;
Mobilização nacional através de mutirões e campanhas (mínimo de um evento por ano);
Estabelecimento de um cadastro único de serventias de registro civil;
Padronização da certidão de nascimento, com matrícula única, e estabelecimento ou aprimoramento dos sistemas nacional e estaduais de registro civil, entre outros (SDH, s/d).
A política nacional facilitou o acesso ao registro civil por meio de convênios com maternidades, onde foram instalados postos avançados de registro interligado com cartórios municipais. A possibilidade de obtenção de registro de nascimento em maternidades permitiu a facilitação e agilidade na obtenção da certidão de nascimento de crianças e contribuiu diretamente para a diminuição do sub-registro no país. Com relação aos mutirões para registro civil em áreas de difícil acesso, foram priorizadas ações com comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas, sobretudo na região Norte do país.
E, considerando que o acesso à informação pública é essencial para o alcance dos direitos econômicos e sociais e que “o acesso oportuno à informação clara, completa e veraz é, para as pessoas, um pré-requisito para o exercício de outros direitos e, para a sociedade civil organizada, é uma ferramenta chave para a ação” (ACIJ et. al., 2017, p. 2), a campanha publicitária brasileira para erradicação do sub-registro civil de nascimento e acesso à documentação básica foi bastante ampla e aparenta ter contribuído para alcançar os objetivos do Compromisso Nacional.
A campanha utilizou personalidades conhecidas do público brasileiro (Figuras 1, 2, 3 e 4), foi divulgada nos principais meios de comunicação e foi considerada como um “movimento que está sacudindo o Brasil para promover o registro civil de nascimento” (GARRIDO; LEONARDOS, 2017, p. 21).
Para que a campanha tivesse proximidade e aparentasse familiaridade com seu público-alvo, foram também utilizadas outras imagens e expressões artísticas durante a campanha nacional (Figuras 5 e 6):
Entre os maiores desafios identificados nas ações promovidas pela Agenda Social, destacaram-se: (i) o relacionamento com os cartórios privados, fiscalizados pelo Poder Judiciário; (ii) identificação e atendimento à população sem registro e sem documentos; (iii) atendimento em todo território nacional, considerando a grande extensão territorial do Brasil e a diversidade do público atendido; (iv) padronização segura da certidão de nascimento; (v) estabelecimento de sistema informatizado de pessoas não registradas; (vi) manutenção da gratuidade do registro, estabelecido por lei em 1997; (vii) previsão orçamentária para realizar as ações da Agenda; e (viii) articulação dos compromissos pactuados entre órgãos do Executivo, Judiciário e cartórios (SDH, s/d).
No que diz respeito ao tema de análise das políticas públicas, a medida utilizada por gestores públicos para avaliarem o êxito do Compromisso Nacional foi o número de registros de nascimento obtidos junto aos cartórios em todos os municípios e unidades da federação; foram utilizados também os dados obtidos no último CENSO demográfico brasileiro, realizado em 2010, e as pesquisas de amostra por domicílio (PNADs), ambas geridas e analisadas pelo IBGE.
Nos anos seguintes, cujos dados foram analisados a partir dos registros oficiais dos cartórios e das PNADs, houve diminuição considerável no sub-registro de nascimento no país. A título de exemplo, o ano de 2013 indicava queda significativa do sub-registro civil de nascimento no país. Segundo os dados do governo, o sub-registro total em 2003 era de 18,8% e 10 anos depois, em 2013, o sub-registro permanecia em 5,1% em território brasileiro (Gráfico 1).
Em 2014, o percentual de sub-registro de nascimento caiu para 1% e se manteve nesse patamar desde então7, o que significa que apenas 1% das crianças nascidas a cada ano não são registradas logo após o nascimento. No ano de 2017, “a cobertura dos registros de nascimentos no Brasil chegou a 94,9%” (IBGE, 2017, p. 3), com destaque para a região sul, com o maior percentual de registros (98,2%), e para a região norte, que possui os menores números de registro civil de nascimento do país (87,5%).
Para o UNICEF, o resultado positivo da Campanha brasileira
[...] se deve a campanhas de conscientização e à implantação de políticas públicas que garantiram a instalação de postos dos cartórios nas maternidades e a execução de ações para alcançar as crianças que vivem em áreas remotas, bem como a aprovação da Lei Federal nº 9.534 que, a partir de 1997, tornou gratuitos o registro civil e a emissão da primeira via da certidão de nascimento (UNICEF, 2019, p. 27).
Além da diminuição significativa do sub-registro de nascimento, o Compromisso Nacional: (i) fortaleceu as capacidades locais por meio da atuação dos comitês gestores nos estados, distrito federal e municípios; (ii) promoveu o registro civil de nascimento nas maternidades do país (CNJ, 2010), que passaram a firmar convênios com os cartórios locais, garantindo que a criança recém-nascida sairá do hospital com registro e certidão de nascimento; (iii) o registro civil passou a ser informatizado e integrado no Sistema Nacional de Informações de Registro Civil (SIRC)8, passando ter acesso remoto facilitado e armazenamento mais seguro de informações.
Embora o saldo da política nacional de erradicação do sub-registro civil de nascimento tenha sido positivo, os desafios de combate ao sub-registro permanecem tanto para manter o alto percentual de registros de nascimento como também para registrar as pessoas que permanecem sem identificação no país. De acordo com dados do CENSO de 2010, cerca de 600 mil crianças brasileiras permaneciam sem registro civil de nascimento, principalmente entre crianças indígenas, ciganas, quilombolas e ribeirinhas (IBGE, 2010). Um dos motivos para a ocorrência de sub-registro nessas comunidades é a distância entre o lugar onde vivem e os cartórios de registros públicos, além do desconhecimento ou da pouca importância dada ao registro e à documentação básica que ainda podem persistir no país (UNICEF, 2015).
Os grupos populacionais inseridos no percentual de 1% de sub-registro são “histórica e tradicionalmente vulnerabilizados: povos indígenas, comunidades quilombolas, povos ciganos, povos e comunidades tradicionais de matriz africana e de terreiros, ribeirinhos e outros povos e comunidades tradicionais, população em situação de rua, população em situação de privação de liberdade, trabalhadoras rurais e grupos LGBT”9.
Para combater o sub-registro e erradica-lo por completo no Brasil, esses grupos são “destacados como prioritários na mobilização nacional para o registro civil de nascimento e documentação básica”10. Mesmo com o encerramento do Compromisso Nacional em 2018, as boas práticas desenvolvidas, bem como a mobilização e os esforços dos comitês locais deverão permanecer para garantir que toda e qualquer pessoa nascida no país seja devidamente registrada e obtenha documentação básica como exercício dos seus direitos humanos fundamentais.
Diante de um cenário em que parte considerável da população brasileira não possuía registro civil de nascimento e, por isso, não tinha acesso à documentação básica e ao pleno exercício dos seus direitos humanos, os esforços empreendidos por meio do Compromisso Nacional para Erradicação do Sub-registro de Nascimento e Acesso à Documentação Básica levaram, tecnicamente, à erradicação do sub-registro de nascimento no país.
Enquanto política pública, o viés de direitos humanos está presente uma vez que o registro civil e o reconhecimento da personalidade jurídica são considerados direitos humanos em tratados internacionais, na legislação doméstica brasileira e na jurisprudência internacional. A erradicação do sub-registro civil de nascimento promove, ademais, inclusão social e preserva a dignidade da pessoa humana na medida em que a inclui no rol de direitos e obrigações, ao mesmo tempo em que prova sua existência e identidade.
O Compromisso Nacional, levado a cabo entre os anos de 2008 e 2018, teve papel central no estabelecimento de comitês gestores nacional, estaduais, distrital e municipais com a participação de atores governamentais e não governamentais. Por meio da gestão pública descentralizada e cooperativa, esses comitês se fortaleceram, e contribuíram diretamente para o êxito dos resultados alcançados nos 10 anos dessa política.
Numa perspectiva de direitos humanos, destacam-se a importância das ações coletivas, da padronização documental e dos sistemas de informação para o desenho e a manutenção de registros públicos e de produção e análise de dados das políticas públicas (IPPDH, 2014). Com relação ao tema aqui abordado, cabe mencionar a importância do SIRC na captação, processamento, arquivamento e disponibilização dos registros civis produzidos pelos cartórios brasileiros, bem como a extensa atuação do IBGE na coleta, análise e disseminação de dados que permitem analisar a amplitude e o alcance dos compromissos assumidos na política nacional de erradicação do sub-registro civil de nascimento.
Embora o Compromisso Nacional tenha oficialmente se encerrado em dezembro de 2018, a continuação e o aprimoramento dessa política pública são imprescindíveis para que a erradicação do sub-registro civil de nascimento alcance o patamar de 100% no Brasil, a exemplo do que ocorre nos países da América do Norte e Europa Ocidental. A continuidade dessa política depende que as ações adotadas no Compromisso Nacional e na Agenda Social sejam incorporadas em caráter definitivo na prática dos órgãos públicos e dos cartórios, bem como se mantenham a descentralização e a cooperação entre os atores públicos e privados que levaram ao êxito dessa política.