Resumo: O presente artigo visa trazer uma análise a respeito do trabalho doméstico durante a pandemia, exercido por mulheres, em especial, mulheres negras, analisando a construção social desse tipo de trabalho e as diversas formas de opressões que colocam o trabalho doméstico como um lugar natural de servidão. Para isso, o artigo se pautará em uma pesquisa documental que traz, como contribuição, dados mencionados recentemente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), sobre a vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas no contexto da pandemia da covid-19.
Palavras-chave: s: Pandemia, Trabalho doméstico, Racismo, Mulheres negras.
Abstract: This article aims to provide an analysis of domestic work during the pandemic, performed by women, especially black women, analyzing the social construction of this type of work and how various forms of oppression that place domestic work as a natural place of bondage. For this, the article will be based on a documentary research that brings, as a contribution, data recently notified by the Institute for Applied Economic Research (IPEA), on the vulnerability of domestic workers in the context of the covid-19 pandemic.
Keywords: Pandemic, Housework, Racism, Black women.
Artigos - Dossiê Temático
O NÓ DESSA FERIDA COLONIAL: o trabalho doméstico em tempos de pandemia
Recepción: 07 Julio 2021
Aprobación: 20 Noviembre 2021
O presente artigo visa trazer uma análise a respeito do trabalho doméstico exercidopor mulheres,em especial por mulheres negras,no cenário da pandemia da COVID-19 durante o período de 2020a 2021, analisando a construção social desse tipo de trabalho e as diversas formas de opressões que colocam o trabalho doméstico como um lugar natural de servidão.A escolha desta temática está relacionada à urgência de debater e aprofundar estudos relacionados ao trabalho doméstico dentro da divisão sexual e racial do trabalho.Para tanto, o artigo se pautará em uma pesquisa de revisão bibliográfica trazendo como contribuição dados levantados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA sobre a vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas no contexto da pandemia da COVID-19.
A pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2)[1] foi decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS)em 11 março de 2020 como novo tipo de pandemia de caráter mundial. Apesar dos primeiros casos de covid-19 datarem do final de 2019 na China, foi no ano de 2020 que o vírus passou a se propagar para além do Oriente, trazendo, como consequência, impactos de ordem social, econômica, política em todo o planeta. No Brasil, segundo os dados levantados no dia 21 de junho de 2021 pelo Ministério da Saúde no Painel do Coronavírus[2], o número de casos confirmados no Brasil chega a ser de 17,9 milhões, tendo o número de óbitos confirmados até a data presente de 551,8 mil mortos, superando a marca desde o primeiro caso confirmado em 2020.
Antes da chegada do vírus, o país já vivenciava uma crise econômica nas últimas três décadas, em especial, logo após o golpe de 2016, que proporcionou a expansão de um projeto de austeridade fiscal conservadora por meio dos cortes dos gastos sociais nas políticas públicas e na redução dos recursos públicos para o orçamento das políticas de Seguridade Social (Saúde, Previdência e Assistência Social), retirando de maneira brutal os direitos conquistados pela classe trabalhadora lançando em mãos o percurso de aceleração dos desmontes e de precarização de todo o sistema protetivo do trabalho.
Para Cal e Brito (2020), “a crise sanitária vivenciada nos últimos anos coincidiu com uma aguda crise política, graças à ascensão, em 2018, de um governo ultraliberal e ultraconservador que, tal como acontece atualmente em várias partes do mundo”. Nesse contexto, o expansionismo protofascista liderado pelo Presidente da República Jair Bolsonaro, agudiza ainda mais a destruição dos direitos conquistados pela classe trabalhadora, colocando um abismo entre as relações de desigualdades sociossexuais e um processo cada vez maior de subalternização apoiado num conjunto de forças reacionárias.
Nesse sentido, a intensificação das condições de trabalho tem levado um aprofundamento da divisão racial, sexual e internacional do trabalho[3], o aumento da terceirização e do desemprego em massa, a desproteção social com os desmontes das políticas de Seguridade Social que, por sua vez, acabou produzindo uma intensa vulnerabilidade, tendo seu impacto profundo sobre as trabalhadoras no contexto de pandemia. Assim, os efeitos da pandemia trouxeram à tona não somente as fragilidades dos vínculos de trabalho exercido por mulheres, mas também revelou a precarização das políticas públicas.
Nesse momento, o atual Presidente da República, Jair Bolsonaro e os seus “sucessivos” ministros da saúde, têm ignorado desde o início os impactos da pandemia em relação à letalidade e às medidas de isolamento social, utilizando de instrumentos midiáticos para intensificação da contaminação e uso de medicamentos sem comprovação científica para o enfrentamento do vírus. Nesse sentido, as estratégias utilizadas pelo presidente da república desqualificam a gravidade da pandemia tendo como estratégia central o negacionismo, desconsiderando argumentos científicos em diversos âmbitos, que vão desde uso de cloroquina e ivermectina até o uso não obrigatório de máscara.
No meio dessa pandemia, uma das ocupações mais atingidas pela COVID-19encontra-se o trabalho doméstico, exercido em sua maioria por mulheres negras, pobres, com baixa escolaridade e com os altos índices de informalidade. Além dessas particularidades, a pandemia implicou mudanças na forma como as pessoas realizam as atividades voltadas aos trabalhos reprodutivos. (DIEESE, 2020). Desse modo, nota-se que mesmo após a aprovação da PEC das Domésticas[4], os níveis de informalidade continuam presentes na reprodução desse tipo de trabalho. Assim, entre as categorias atingidas encontra-se o trabalho doméstico que passou a se intensificar a partir da,
[...] suspensão das aulas presenciais, o fechamento de espaços de socialização para jovens, adultos e idosos, a adoção do trabalho remoto para uma parcela privilegiada de profissionais assalariados entre outras medidas, que tiveram como resultado o deslocamento de quase todas as atividades necessárias à reprodução da vida para o espaço doméstico (ARAUJO; OLIVEIRA, 2021, p.128).
Apesar do trabalho doméstico ser de responsabilidade de todos os moradores do lar, é necessário ressaltar que no Brasil essas atividades historicamente são desempenhadas majoritariamente por mulheres – [...] o que implica uma extrema desresponsabilização do Estado sobre a garantia desses serviços. Desse modo, a pandemia é experimentada de forma genderizada, impondo e naturalizando uma maior carga de trabalho sobre as mulheres no Brasil e no mundo (ARAUJO; OLIVEIRA, 2021 apud REIS et al., 2020).
Assim, a pandemia vai evidenciar ainda mais o processo de superexploração e subalternização das trabalhadoras domésticas na divisão racial e sexual do trabalho, em que sua maioria é composta por mulheres negras e pobres inseridas no mercado informal, segmentos esses pertencentes aos grupos sociais marginalizados que ocupam condições de trabalho subalternizados.
Frente a esse cenário, essas mulheres organizaram suas lutas para garantir a manutenção de direitos trabalhistas durante a pandemia de COVID-19 e a ampliação de direitos para que possam enfrentar esse período, observando as recomendações de Saúde Pública. Essas lutas se conectam historicamente às lutas de outras mulheres negras que vieram antes, a exemplo de Laudelinade Campos Melo[5](1904-1991), percursora do primeiro movimento organizado de trabalhadoras domésticas no Brasil (ARAUJO; OLIVEIRA, 2021, p.129, grifos nossos).
Essas relações demonstram que apesar das conquistas realizadas tardiamente por uma das categorias de trabalho mais antigas do Brasil, o racismo estrutural e o sexismo prevalecem dentro das relações sociais, econômicas e culturais que configuram o trabalho doméstico, tendo um papel ideológico de dominação e subordinação de mulheres negras na divisão sexual racial do trabalho. Neste sentido, o sistema capitalista patriarcal impôs à mulher negra uma violência brutal de exploração em uma posição de maior desvantagem em relação às mulheres brancas.
Feitas essas considerações, será apresentada uma análise a partir dos dados mencionados pelo IPEA a respeito da vulnerabilidade em que se encontra essa categoria e as dificuldades enfrentadas por essas trabalhadoras nesse contexto de pandemia, fazendo uma análise a partir de gênero e raça dentro das configurações do trabalho doméstico.
Ainda que o emprego doméstico seja desvalorizado socialmente no que se refere à remuneração e às garantias dos direitos trabalhistas marcado por relações de assédio moral e sexual, essa é uma das principais formas de ocupação das mulheres no Brasil. O país conta com o maior contingente de “empregadas” domésticas do mundo, sendo composto em sua maioria por mulheres negras (DIEESE, 2020, p.4).
A crise global e a pandemia da COVID-19 levaram o setor do trabalho doméstico a ocupar um lugar crucial dentro do processo de superexploração da força de trabalho, levando a categoria à precarização e a um grau acentuado de vulnerabilidade. Para Brites (2013), o trabalho doméstico é um exemplo de conjugação dadiscriminação interseccional, onde mulheres das camadas mais pobres e com índices menores de escolaridade são recrutadas como força de trabalho, deixando uma forte marca de racialização.
Segundo os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - IPEA por meio da Nota Técnica nº75 (2020), “as trabalhadoras domésticas representam hoje no Brasil, cerca de 6 milhões, o que corresponde a quase 15% das trabalhadoras ocupadas (10% são trabalhadoras brancas e 18,6% são trabalhadoras negras)”, revelando que o trabalho doméstico é majoritariamente ocupado por mulheres negras.
No caso do Brasil, historicamente o trabalho doméstico é predominantemente realizado por mulheres negras e de baixa renda, manifestando-se como um fenômeno mundial que perpetua dentro das dinâmicas de discriminação de raça, etnia, origem social e nacionalidade (PINHEIRO et al., 2020). Por realizarem atividades diversas, negligenciando a própria casa e filhos para fazer as tarefas domésticas de outras mulheres, as trabalhadoras domésticas remuneradas ainda apresentam a condição mais miserável do que a de qualquer outro grupo profissional no capitalismo (MENEZES et al., 2020, p. 193 apud DAVIS, 2016, p.244).
Esse fenômeno compõe o quadro de desigualdades raciais, de gênero e classe deixados desde período da escravidão, que permanecem até os dias de hoje na estrutura social brasileira. Deste modo, “a persistência do trabalho doméstico como uma das principais atividades profissionais destinadas às mulheres negras reforçam a construção histórica de um imaginário servil sustentado pela interseccionalidade[6] de raça, classe e gênero” (ARAÚJO; OLIVEIRA, 2021, p.131). Desse modo,
[...] o racismo criou ainda uma espécie de ´terceirização do trabalho doméstico, fazendo com que mulheres negras, além do cuidado com suas próprias casas e famílias, trabalhem como esposas e mães substitutas em casas de famílias brancas” (MENEZES et al., 2020, p. 193 apud DAVIS, 2016, p. 243).´
Por ser um trabalho ocupado majoritariamente por mulheres negras, principalmente em consequência do processo de colonização e de escravização, esse tipo de atividade torna-se um dos meios de sobrevivência para essas mulheres que não tiveram a oportunidade, em sua grande maioria, de frequentar boas escolas ou ingressar em uma universidade para trilharem caminhos profissionais diferentes daqueles que são impostos pela sociedade. Esses dados demonstram que:
[...] a socialização sexista inicial ensina as negras que o trabalho intelectual tem que ser secundário aos afazeres domésticos e aos cuidadoscom os filhos ou um monte de outras atividades servis. Com isso, torna-se uma tarefa difícil para as mulheres negras, o trabalho intelectual como prioridade essencial (HOOKS, 1995, p.471).
Essa consequência se perpetua até os dias de hoje nas relações sociais patriarcais racistas, relegando às mulheres negras o seu papel dentro da estrutura social e as colocando na zona de inferioridade. Assim, mesmo após a abolição da escravatura, muitas mulheres negras continuaram a permanecer no trabalho doméstico, herdando ainda hoje as configurações servis do emprego doméstico no país.Desse modo, mulheres negras ocupam a base da pirâmide social, ocupando profissões degradantes de menor prestígio profissional e intelectual demarcando, ainda hoje, as relações sexistas e racistas. Assim:
A persistência de desigualdades raciais, de gênero e de classe, bem como a falta de oportunidade no mercado de trabalho para as mulheres pouco escolarizadas, em especial as mulheres negras, são fatores determinantes para explicar o grande contingente de pessoas inseridas nessa ocupação no país (DIEESE,2020, p.6).
Nesse sentido, podemos concordar com Barbosa (2013), ao descrever que “os caminhos em que se inserem o emprego doméstico não foram escolhidos por essas mulheres e sim, percorridos pela ausência de alternativas melhores de trabalho”. Essa configuração reflete uma base estrutural colonialista que atua na divisão sexual e racial do trabalho doméstico que continua marcado pelas relações de “servidão e de favor”. Assim, as mulheres negras recebem salários menores em relação às mulheres brancas, permanecendo em cargos de trabalho precários e menos valorizado.
Essa desigualdade de raça/cor foi verificada a partir de dados levantados pela Organização Internacional do Trabalho - OIT da PNAD (2016), onde cerca de 6,158 milhões de trabalhadoras(es) domésticas(os) no Brasil, 92% eram ocupados por mulheres, sendo que apenas 42% destas trabalhadoras contribuíram para a previdência social e 32% possuem carteira assinada.Esses dados evidenciam que apesar da aprovação da Emenda Constitucional nº 72/2013, resultante da PEC nº 66 de 2012 (popularmente conhecida como a PEC das Domésticas) e a Lei Complementar nº 150/2015[7], os níveis de informalidade continuam presentes.
Para Pinheiros et al (2019), por não estarem vinculadas ao sistema de previdência social, a não ser que contribuam de maneira individual, essas trabalhadoras detêm menos direitos trabalhistas, não podendo contar com licenças remuneradas em caso de acidente de trabalho, maternidade, problemas de saúde, entre outros. Tampouco têm direito ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), às férias remuneradas e ao recebimento de décimo terceiro salário, por exemplo. Nesse sentido,
[...] a garantia de qualquer nível de proteção social acaba recaindo sobre a própria trabalhadora, que pode, quando possível, aderir como contribuinte individual ao sistema da Previdência Social ou ao Programa de Microempreendor Individual – MEI (PINHEIRO et al, 2020, p.13).
Para Barbosa (2013, p.114), mesmo em casos em que a contribuição da previdência seja de forma autônoma, torna-se quase impossível esse tipo de contribuição devido aos baixos salários que recebem”. Mesmo após nove anos da aprovação da PEC das Domésticas, as relações de trabalho exercidas por essa categoria continuam de forma majoritária na esfera da informalidade. Isso ocorre devido à “naturalização” do trabalho doméstico na divisão sexual do trabalho e sua desvalorização enquanto “trabalho”, afirmando que esse tipo de atividade não tem valor para o sistema, e que, portanto, não merece um respaldo jurídico e político enquanto garantia de proteção trabalhista.Para Araújo e Oliveira (2021), “essa terceirização do trabalho doméstico para uma mulher racializada, em posição socioeconômica subalternizada, mantém invisível esse trabalho e essas trabalhadoras, aprofundando a sua desvalorização”.
Essa essencialização da mulher negra como um corpo de extração de um tipo de trabalho desvalorizado e a serviço, majoritariamente, da reprodução da vida de um outro grupo racializado – os brancos – aponta para a colonialidade do poder [...] constitutiva da formação social brasileira (QUIJANO, 2005 apud ARAUJO; OLIVEIRA, 2021, p.131).
Essa visão estigmatizada leva ao entendimento que o trabalho doméstico [8]se insere apenas na esfera do “cuidado” – haja vista que, sob a ótica do capital, por ser pago a partir da renda dos empregadores, não gera mais valia. Portanto, não gera lucro do ponto de vista do capital, inferiorizando o trabalho doméstico em relação às demais categorias de trabalho.Dessa forma, “o trabalho doméstico é percebido como uma atividade “sem importância e que não gera lucro” (BARBOSA, 2013). A situação das mulheres negras exemplifica que:
[...] recebem os mais baixos salários, são empurradas para os “trabalhos improdutivos” – aqueles que não produzem mais valia, mas que são “essenciais”, a exemplo das babás e trabalhadoras domésticas, em geral negras que, vestidas de branco, criam os herdeiros do capital – são diariamente vítimas de assédio moral, da violência doméstica e do abandono, recebem o pior tratamento nos sistemas “universais” de saúde e suportam, proporcionalmente a mais pesada tributação (ALMEIDA, 2018, p.145).
Nesse sentido, a legislação que rege os direitos das trabalhadoras domésticas encontra barreiras para a efetivação enquanto direito, pois ainda carece de respaldo político e jurídico que o reafirme como parte da classe trabalhadora.A ausência da carteira assinada reforça o quadro de precarização e desproteção social que as trabalhadoras domésticas enfrentam em seu cotidiano de trabalho, reforçando a condição de “servidão” e não como direito por parte dessa categoria. Assim:
O sexismo e o racismo perpetuam uma iconografia de representação da mulher negra a ideia de que ela só estar nesse planeta principalmente para servir aos outros. Desde a escravidão até hoje o corpo da negra tem sido visto pelos ocidentais como símbolo quintessencial de uma presença feminina natural orgânica mais próxima da natureza primitiva (HOOKS, 1995, p.468, grifos nossos).
No contexto de pandemia da COVID-19, a intensificação da exploração e da vulnerabilidade do trabalho doméstico se tencionam com o cenário atual de desmontes dos direitos trabalhistas e sociais, onde a maior parte destas trabalhadoras se encontram inseridas no nível de informalidade – ou seja, “sem acesso a benefícios como seguro-desemprego e auxílio-doença” (PINHEIRO et al, 2020). Assim, conforme a tabela abaixo, demonstra que a maior parte das trabalhadoras(es) domésticas(es) que exercem o trabalho sem carteira assinada são mulheres negras: o dobro em relação a homens negros e mulheres brancas.
Os dados apresentados revelam que mesmo após 132 anos do que se chamou de abolição da escravatura, diversas trabalhadoras negras permaneceram/permanecem excluídas do mercado de trabalho, sofrendo discriminação e segregação - em especial, no campo do trabalho doméstico. Portanto, não se trata aqui de negar as conquistas recentes (PEC nº 66/2012 e a Lei nº 150/2015), mas sim, de reconhecer que a maior parte das trabalhadoras domésticas brasileiras vive à margem de qualquer direito, sob a condição de uma servidão reinventada, que se estende até os dias atuais (FURTADO et al., 2020, p.359).
Para Pinheiro et al., (2019), no ano de 2018, 14,6% das mulheres brasileiras ocupadas concentravam-se em atividades remuneradas no trabalho doméstico. Estamos falando de um contingente de mais de 5,7 milhões de mulheres que compõem a maior categoria ocupacional ainda aberta para as trabalhadoras. Ainda segundo as autoras, as regiões Sul e Norte estão abaixo da média nacional – com 12% e 13%, respectivamente, de mulheres ocupadas no trabalho doméstico –, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste mantêm-se acima da média, chegando a uma proporção de quase 16% das mulheres neste último caso. O trabalho doméstico remunerado para os homens, por sua vez, não responde nem por 1% dos ocupados, como é mostrado no gráfico abaixo (IBIDEM, 2019, p.11).
Em tempos de crise, a pandemia expõe o processo de adoecimento e a tensão a que são submetidas essas trabalhadoras, que muitas vezes se encontram inseridas no mercado informal, como dito anteriormente, com salários baixos e longas jornadas de trabalho, sendo obrigadas a continuar trabalhando para manterem suas rendas e seus processos de sobrevivência.
Dentro desse contexto, segundo os dados levantados durante a pandemia pela Nota Técnica nº75 (2020), “observa-se um aumento na sobrecarga de trabalho relacionado aos cuidados nos lares domésticos devido a suspensão de uma série de serviços”. Assim, as atividades escolares e recreativas voltadas para crianças e idosos(as) são suspensas, aumentando a presença deles em seus lares” (PINHEIROS et al., 2020, p.7).
Nesse momento de pandemia, a “casa grande” que está de quarentena se recusa a realizar o seu próprio serviço doméstico, batendo de frente contra a liberação das trabalhadoras domésticas durante a pandemia. Cabe destacar que o trabalho doméstico tem os mesmos direitos à quarentena como as demais categoriais profissionais, mas por ser tratar de trabalho invisibilizado e marcado pela discriminação de gênero e raça, acaba denegando sua condição como trabalho. Com isso,
É direito da trabalhadora doméstica manter-se também em isolamento, garantindo sua proteção e de sua família. No entanto, muitas trabalhadoras continuam exercendo suas atividades normalmente no curso da pandemia – sem acesso a equipamentos de proteção individual –, em função das necessidades das famílias nas quais trabalham ou mesmo diante da incompreensão e do elitismo e racismo de parcela da sociedade brasileira, que não abre mão, mesmo quando poderia, de ter uma outra pessoa em sua casa para cuidar do seu próprio trabalho doméstico (PINHEIRO et al, 2020, p.12).
Essa negação da casa grande na liberação das trabalhadoras domésticas durante o contexto de pandemia se aproxima com os dados levantados da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas – Fenatrad durante a pandemia de 2020, onde 30% do total das trabalhadoras domésticas no Brasil –, 17% delas haviam sido afastadas do trabalho durante os primeiros meses da pandemia em 2020, tendo a minoria liberada por seus empregadores(as) para cumprir a quarentena remunerada (CAL et al., 2020, p.227).
O descaso é ainda maior nesse contexto, onde maior parte dessas mulheres se veem intensamente expostas à circulação do vírus para cuidar de pessoas e tarefas domésticas alheias, expondo-se ao risco de contágio e adoecimento sem nenhuma forma de proteção trabalhista. Esse contexto acaba gerando uma exposição maior ao vírus devido a longas jornadas diárias dentro dos transportes públicos lotados, à falta de equipamentos de proteção individual e ao contato direto com diversas pessoas dentro do ambiente, sendo, portanto, as mais vulneráveis em relação à Covid-19. Com isso, podemos considerar que:
[...] a pandemia se iniciou pelas camadas de mais alta renda, as trabalhadoras domésticas podem, ainda, se constituir em “pontes de transmissão do vírus para as periferias”, tal como aponta pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva no contexto da pandemia. Ou seja, a continuidade do trabalho doméstico durante a pandemia constitui-se em um risco de transmissão cruzada, colocando tanto trabalhadoras quanto empregadoras em potencial exposição ao vírus, assim como as pessoas que por elas são cuidadas. Outra importante questão a se considerar é que a categoria de trabalhadoras domésticas é uma categoria que tem envelhecido, evidenciando que seguem trabalhando mesmo sendo grupo de risco para a infecção (PINHEIRO, 2020 apud PINHEIRO et al., 2019).
Tal situação coloca em risco a saúde dessas trabalhadoras que se tornam pontes de transmissão do vírus para as grandes periferias e favelas, territórios esses marcados pelas desigualdades econômicas e sociais com ausência de direitos essenciais relacionados às políticas públicas que acabam colocando em risco tanto sua saúde, como a de seus familiares e das pessoas com quem trabalha. Outro fator culminante “é a própria natureza das atividades, que implica na grande exposição das trabalhadoras ao vírus, uma vez que lidam com contato físico e emocional direto com idosos, crianças e acamados” (MENEZES, et al., 2020). Desse modo,
[...] essas trabalhadoras atuam no interior de domicílios que não são os seus, lidando com corpos e com movimentos que estão fora de seu controle. Se a maior fonte de transmissão do vírus é por meio do contato social e das partículas expelidas pelos corpos humanos, o trabalho dessas mulheres, que demanda obrigatoriamente contato intenso entre as pessoas que habitam no domicílio e também com seus objetos, as expõe diariamente ao contágio, ainda mais porque não existe a possibilidade de controlarem os movimentos, as saídas e a qualidade do isolamento social de seus empregadores. Na verdade, ao serem mantidas em suas funções rotineiras no contexto da pandemia, rompe-se o isolamento social tanto da família contratante do trabalho doméstico quanto da família da própria trabalhadora” (PINHEIROS, et al, 2020, p.10).
Por ser tratar de um perfil majoritariamente ocupado por mulheres negras e pobres não podemos deixar de destacar que, nessas populações, há um quadro de prevalência de comorbidades em saúde como: hipertensão, diabetes, doenças crônicas e infectocontagiosas, entre outras que agravam ainda mais o quadro de infecção pela COVID-19.Assim, segundo levantamento da Vigitel Brasil da população negra (2018), o diagnóstico médico de hipertensão arterial nessa população foi de 24,9%, sendo maior entre mulheres negras (27,4%) em relação a homens negros (22,2%). Em ambos os sexos, esta frequência aumentou conforme a idade, alcançando na faixa etária de 65 anos e mais, o valor de 61,5% em homens e 68,0% em mulheres. Com relação a diabetes, foi de 7,6%, sendo maior entre as mulheres negras (8,3%) do que em homens negros (6,8%), ou seja, as mulheres negras adoecem mais do que homens negros.
A soma desses resultados demonstra que a população negra, em especial as mulheres negras, são as que mais adoecem de doenças crônicas como diabetes e hipertensão, dependendo exclusivamente do Sistema Único de Saúde – SUS e de seus equipamentos que se encontram precarizados, com a perda significativa de recursos públicos de maior proporção a partir da Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016 revelando uma crise sanitária desenfreada. Diante das incertezas, o medo leva muitas trabalhadoras domésticas a se sentirem inseguras em relação à perspectiva de renda, saúde e proteção trabalhista.
Um outro fator importante a destacar é que boa parte das mulheres que compõe o trabalho doméstico são mulheres com 60 anos ou mais[9]. Esses dados foram demonstrados em uma matéria do site de notícias da UOL[10](2020), evidenciado o grau de vulnerabilidade enfrentado por essas mulheres no mercado de trabalho e maior risco de adoecerem com a COVID-19. Neste sentido, o envelhecimento das trabalhadoras domésticas
[...] responde, por um lado, ao processo de envelhecimento da força de trabalho de forma geral. Ao longo dos últimos anos, o peso das mulheres adultas na força de trabalho (com idade entre 30 e 59 anos) ampliou-se de forma expressiva, enquanto a proporção de mulheres jovens (de até 29 anos) se reduziu em magnitude similar (PINHEIROS, et al., 2019, p.13).
Por conta da idade e da baixa escolaridade, o trabalho doméstico se torna uma porta de entrada para mulheres idosas que não tiveram oportunidade de se inserirem no mercado de trabalho, ou até mesmo na garantia da aposentadoria. Assim, é bastante comum encontrar mulheres idosas trabalhando como domésticas há mais de 30 anos, reforçando ainda mais a relação de “quase da família”. Muitas dessas trabalhadoras começaram a trabalhar como domésticas ainda crianças. Como não existia uma legislação específica e clara a respeito da proibição do trabalho infantil[11]antes da década de 1990, muitas tiveram que trabalhar desde novas nas “casas de família”. Apesar das conquistas em relação à proibição do trabalho infantil em todo o país, essa realidade ainda não foi extinta e continua a prevalecer na realidade de crianças pobres e negras. Assim,
[...] a primeira morte registrada pelo novo coronavírus, foi de uma trabalhadora doméstica, Dona Cleonice, de 63 anos, diarista e cozinheira, teria contraído a doença de sua empregadora, que havia regressado de viagem à Itália e, mesmo de quarentena, não informou à empregada que estava doente, nem a liberou do trabalho para fazer isolamento social. Mesmo reclamando no final de semana de que não se sentia bem, Cleonice saiu cedo de casa para trabalhar na segunda-feira e, como fez durante quase 20 anos, percorreu os 100km que separam Miguel Pereira, município da Região Serrana do Rio de Janeiro, do apartamento onde trabalhava no bairro nobre do Leblon. De lá, saiu no final da tarde direto para o hospital municipal de Miguel Pereira. Chegou a ir para a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) para ventilação mecânica, mas faleceu no dia seguinte (CAL et al., 2020, p.232).
Nesse contexto, não podemos deixar de destacar que a primeira vítima fatal por COVID-19, no município do Rio de Janeiro, foi de uma trabalhadora doméstica negrae idosa, que contraiu o vírus de sua patroa recém-regressada de uma viagem da Itália. A vítima trabalhou por mais de 15 (quinze) anos sem carteira assinada em regime integral de segunda a sexta na casa da patroa; mesmo sendo “grupo de risco”, não foi liberada e comunicada sobre o adoecimento da patroa. Assim, segundo as fontes de um site noticia online, constataram que a trabalhadora,
[...] não era aposentada, porque ainda não tinha tempo de contribuição para isso. Então, mesmo com obesidade, diabetes, hipertensão e infecção urinária, ela continuou trabalhando. Ela precisava do dinheiro", destacou, emocionado, um dos irmãos da vítima (UOL, 2020, grifos nossos).
Apesar do Ministério do Trabalho (MPT) ter emitido a Nota Técnica Conjunta nº4/2020, se posicionando a favor da “quarentena remunerada”, incluindo as trabalhadoras domésticas, muitas trabalhadoras tiveram que trabalhar durante o processo de quarentena nos primeiros meses da pandemia, já que essa nota técnica só garantia o direito à quarentena remunerada apenas casos sob suspeita de contaminação e, como não existe um processo de fiscalização e por se tratar de espaço privado inviolável faz com que a fiscalização não chegue aos demais órgãos de proteção. Assim,
Para as trabalhadoras não dispensadas do trabalho, a Nota orienta que seja garantido acesso a equipamentos de proteção individual, tais como luvas, máscaras, óculos de proteção e álcool em gel para higienização. Por fim, sugere que as medidas sejam adotadas não somente para as trabalhadoras empregadas como mensalistas, mas também para os contratos de diaristas (DIEESE, 2020, p.4).
Nesse contexto, a prática não ocorre dessa forma. A garantia de qualquer equipamento de proteção individual recai sobre a trabalhadora, sendo obrigada a circular pela residência com os patrões sem máscara e dormir em quartos mal arejados e sujos, considerados como os “quartinhos de empregas”[12], analisados hoje como as novas senzalas contemporâneas, como constatou a historiadora, escritora, rapper e ex- trabalhadora doméstica Preta Rara em seu livro “Eu, Empregada Doméstica –A Senzala Moderna é o quartinho da empregada”.
É necessário ressaltar que ambas as trabalhadoras encaram a dupla e tripla jornada de trabalho, ainda mais na pandemia, onde atividades escolares foram suspensas, tendo seus filhos(as) pequenos(as) dentro de casa. Sem ter com quem deixar, muitas acabam levando seus filhos para a casa de seus patrões. Esse exemplo foi demostrado ano passado com o Caso do Menino Miguel, que morreu após cair do 9° andar de um condomínio de luxo em Recife por negligência da patroa, enquanto a sua mãe, trabalhadora doméstica, deixava o menino sob o seu cuidado, enquanto levava o cachorro para passear. Logo após o ocorrido, a patroa foi presa em flagrante por “homicídio culposo”, mas pagou fiança de R$ 20 mil, aguardando até hoje o processo ir para o julgamento. Nesse caso, vemos a naturalização da herança escravista ainda presente na sociedade brasileira onde “vidas negras valem menos”.
Além disso, um número significativo de trabalhadoras domésticas foi mandado embora diante da pandemia, sendo que uma parcela expressiva de trabalhadoras não tem o acesso aos direitos trabalhistas e previdenciário garantidos pelo regime da CLT. Desse modo, vemos muitas dessas trabalhadoras vivendo com a ajuda de custo do Auxílio Emergencial[13], que mal dá para garantir o sustento de suas famílias, tornando-se evidente o grau de vulnerabilidade social a que essa categoria sempre esteve submetida: a exploração.
Desse modo, a morte do menino Miguel é um caso exemplar das relações coloniais que atravessam a sociedade brasileira, em especial a mulher negra, que sofre discriminação interseccional de classe, raça e gênero. Nesse sentido, “a agudização das desigualdades estruturais da nossa sociedade em meio à pandemia do novo coronavírus – a pandemia de classe, gênero e raça” –, atingiu em seu cerne as trabalhadoras domésticas” (CAL et al., 2020 apud HARVEY, 2020) – revelando as vulnerabilidades atravessadas pelas relações coloniais no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil.
A pandemia causada pelo coronavírus chegou ao Brasil em meio a um processo de recessão econômica e crise política, agravando ainda mais a situação do país (DIEESE, 2020). Entre as ocupações mais atingidas pelos efeitos da covid-19 - e tipicamente feminina - está o emprego doméstico, que se caracteriza por altos níveis de informalidade, baixos salários e desproteção social e sindical, dada a circunscrição da relação de trabalho aos domicílios dos empregadores (IBIDEM, 2020).
A relação entre COVID-19 e trabalho doméstico no Brasil é um retrato da vulnerabilidade social dessa categoria profissional atravessado por relações coloniais e de discriminação interseccional. Vários exemplos foram demonstrados pela grande mídia, como foi o caso do menino Miguel em Recife e da trabalhadora doméstica Cleonice Gonçalves, que veio a ser a primeira morte confirmada por covid-19 no município do Rio de Janeiro.
Apesar de vivenciarmos um contexto de ampliação de direitos das trabalhadoras domésticas no Brasil, a partir da aprovação da “PEC das Domésticas” – que culminou na Emenda Constitucional nº 72/2013 e na Lei Complementar nº150/2015, com o desenvolvimento de legislações que buscam equiparar os direitos dos trabalhadores domésticos aos de outros trabalhadores, ainda o trabalho doméstico é um caso exemplar da conjugação da discriminação interseccional: “a força de trabalho é recrutada entre mulheres, as quais geralmente provêm daquelas camadas mais pobres e com índices menores de escolaridade, características sobrepostas por uma forte marca de racialização” (CAL et al, 2020, p.241 apud BRITES, 2013, p. 429).
Com relação à efetivação da legislação que garante a equiparação dos direitos trabalhistas e previdenciário às trabalhadoras domésticas, ainda se torna um campo de disputas, principalmente diante da conjuntura atual com a aceleração dos desmontes dos direitos trabalhistas e sociais que, por sua vez, torna-se um grande obstáculo na sua efetivação.Outro elemento que dificulta a efetivação da legislação é a falta de compromisso dos patrões em regularizar a carteira, remetendo ainda auma desvalorização em relação ao trabalho doméstico.
Apesar de o Ministério Público ter emitido a Nota Técnica Conjunta nº 04/2020, a respeito do direito à quarentena remunerada para as trabalhadoras domésticas nos primeiros meses da pandemia, na prática essa realidade não acontece, principalmente diante da intensificação do trabalho doméstico durante a quarentena que o colocou como “serviço essencial”.
Os dados levantados durante o artigo demostraram que o perfil do trabalho doméstico no Brasil é ocupado majoritariamente por mulheres negras, sem carteira assinada, mostrando que os laços escravistas e patriarcais ainda não foram rompidos. Assim, é possível encontrar, ainda hoje, características discriminatórias presentes no trabalho doméstico, principalmente em relação à negação do seu reconhecimento enquanto trabalho, colocando-o numa zona desqualificada e desvalorizada.
Nessa perspectiva, para enfrentar essa problemática é essencial o reconhecimento da existência do capitalismo, do racismo e do patriarcado como sistemas que se entrelaçam e oprimem as mulheres, colocando-as num lugar de subalternidade, que negam sua cidadania e estruturam as desigualdades sociais. Portanto, é fundamental reconhecer as influências que as relações sociais de gênero e de raça/etnia produzem, e articulá-las com as questões de classe social no mundo do trabalho e na sociedade (BARBOSA, 2013, p.141).