Resumo: Este trabalho reflete sobre limitações cognitivas e sensíveis para lidar com nossas experiências atuais ao nos apoiarmos em valores morais canônicos e desconectados das circunstâncias de vida coletiva. Ficções úteis preenchem as lacunas e justificam alternativas escolhidas como substitutas para nossos medos. Curiosamente, também aponta uma sedução culposa pelo horror, pelo monstruoso, ao lançarmos os olhos à história das sensibilidades do ver. Refletir sobre essas mudanças sensíveis e a forma como são articuladas pelo sistema midiático talvez ofereça soluções para crises causadas pelas instabilidades de um tempo confuso. Busca saídas epistêmicas para lidar com estes cenários e aponta a ecosofia como uma trilha para imaginarmos outra narrativa capaz de reorientar nossos relacionamentos conosco, com os outros e com os ecossistemas do entorno, a biosfera. Este trabalho realiza, ainda, uma reflexão teórica apoiada em pesquisa bibliográfica e observação empírica.
Palavras-chave: Epistemologia, crise, sensibilidade.
Abstract: This work reflects on cognitive and sensitive limitations to deal with our current experiences by relying on canonical moral values disconnected from collective life circumstances. Useful fictions fill in the gaps and justify alternatives chosen as substitutes for our fears. Curiously, we also point to a guilty seduction by the horror, by the monstrous, as we cast our eyes to the history of the sensibilities of seeing. Reflecting on these sensitive changes and the way they are articulated by the media system may offer solutions to crises caused by the instabilities of a confused time. We seek epistemic outlets to deal with these scenarios and point to ecosophy as a path to imagine another narrative capable of reorienting our relationships with ourselves, with others and with the surrounding ecosystems, the biosphere. This work carries out a theoretical reflection supported by bibliographic research and empirical observation.
Keywords: Epistemology, crisis, sensitivity.
Mesas temáticas coordenadas
DAS CRISES À BIOSFERA em busca de uma sensibilidade epistêmica
FROM CRISES TO BIOSPHERE: in search of an epistemic sensitivity
Recepción: 14 Febrero 2022
Aprobación: 24 Mayo 2022
Um ambiente de instabilidade particulariza nossa existência contemporânea: mutações ambientais, precarização do trabalho, imagens de horror, desregulamentações, perda de direitos, escassez de recursos, desgastes institucionais. São desafios agudos em diversas áreas. Experimentar crises não é novidade na experiência humana, assim como não é inédita a forma como reagimos aos conflitos. A desesperança e o imaginário alimentados pelo caos, pela violência e pela intolerância passam a justificar escolhas destrutivas e a construção de muros, físicos e simbólicos.
Diante disso, este artigo busca refletir sobre nossas próprias limitações cognitivas e sensíveis para lidar com as experiências humanas atuais, quando abrimos mão da imaginação criativa em troca de valores morais canônicos, inflexíveis e desconectados das circunstâncias de vida coletiva. Ficções úteis preenchem as lacunas, esclarecem as dúvidas, e justificam as incoerências que definimos como alternativas para os nossos próprios medos. Curiosamente, também observa-se ao longo da história das sensibilidades e dos modos de ver certa sedução pelo horror, pelo grotesco e pela dor. Refletir sobre essas mudanças sensíveis e a forma como são articuladas pelo sistema midiático talvez possa oferecer soluções para as crises internas e externas causadas pelas instabilidades de um tempo confuso. Buscamos saídas epistêmicas para lidar com cenários adversos e apontamos a ecosofia como uma trilha para imaginarmos outra narrativa capaz de reorientar os modos de nos relacionarmos conosco, com os outros e com os ecossistemas do entorno, ou seja, a biosfera. É urgente redefinir a ideia de coletividade e nossas articulações ético-políticas.
A falta de esperança e o pessimismo tomam posse da imaginação sobre a contemporaneidade. Em que ponto surge a pergunta: por que algumas imagens que reforçam a violência, o rancor, a construção de muros, a intolerância e o caos passam a povoar nossas mentes e nossas almas? Alguns autores do campo da filosofia, das teorias do imaginário e até mesmo ligados às estratégias militares propõem reflexões para compreensão de nossas próprias limitações cognitivas ao lidarmos com as experiências humanas atuais; onde se encontram aspectos relacionados à ficcionalização da vida e ao afeto, ou seja, ferramentas mediadoras de nossas escolhas diárias. Curiosamente, a desesperança parece saltar das histórias de ficção para nossas experiências mais reais. O horror em múltiplas dimensões. A ideia que Deus simplesmente não existe ou, ao contrário, é o único capaz de salvar o planeta de nossas próprias degradações, sugere quimeras - combinações que de tão heterogêneas mais parecem produtos absurdos da fantasia -, sem a possibilidade de realizar-se concretamente. Vacina contra o vírus da Covid-19, a própria Covid ou medidas sanitárias simples parecem “novidades tecnológicas” do absurdo, da ditadura, até mesmo, teorias da conspiração distópica, sendo menos aceitas que a viagem de turistas ao espaço. Embaraços de um mundo sufocado pela complexidade.
Dessas e de outras hesitações surge o interesse por refletir sobre esse momento confuso, no qual parece reinar a premissa categórica no imaginário de caos, atordoando a todos (de diferentes maneiras), mas inevitavelmente investido de um pessimismo capaz de paralisar qualquer tipo de reflexão sobre novas formas de sociabilidade. Evidente que muito dessa revolta tem origem no abalo sofrido pela nossa confiança nas instituições tradicionais. Se em tese é justificável, na prática, parece um dilema que tem nos levado a soluções sobretudo confusas e destrutivas. Nesse sentido, acredita-se a priori a relevância em analisar estudos no campo da Filosofia, em suas dimensões pragmáticas, e compreender as experiências mentais empregadas pelas funções utilitárias do pensamento, bem como o caldeirão de forças que age sobre nossas dúvidas e reações. Algumas são observadas como padrões recorrentes, ou respostas intuitivas aos estímulos, neste caso, à própria incapacidade de lidar com situações complexas, para as quais idealizamos soluções simplificadoras ou aderimos à ficcionalização da vida. Propõe-se relacionar o arcabouço teórico-reflexivo às dimensões pragmáticas de nossas próprias experiências cotidianas e, de forma particular, especula sobre algumas escolhas coletivas e reações que privilegiam o caos em detrimento dos modelos de emancipação.
A questão aqui talvez seja entender por que aceitamos ideias paradoxais como realísticas. Por exemplo, em nome de que aceitamos um país que está entre os maiores produtores de grãos do mundo, inclusive em tempos de pandemia, conservar parte de sua população com fome? Da meritocracia? Do crescimento econômico? Do PIB? Por que é mais fácil defender a destruição de tudo (ou de uma parcela desse todo) como opção à crise em que vivemos? Um projeto econômico? Ou humanitário? Como acatar a morte iminente (seja por Covid ou aniquilação social) como alternativa à implantação de medidas simples de controle da pandemia? O argumento de liberdade de escolha sempre esbarra na realidade, esta sim absoluta, de que não vivemos sozinhos, e mesmo assim defendemos a todo tempo escolhas individuais dissociadas de demandas coletivas, ou pior, a destruição à reconstrução de novos modelos de organização coletiva. Em seu legado, o filósofo inglês Mark Fisher (2020) deixa clara a relação entre as escolhas políticas, isto é, modos de sociabilidade, a desesperança como estratégia e a saúde mental como consequência. Não por acaso, no Brasil de hoje, a depressão seja uma das doenças registradas mais incapacitantes[1]. Sua decorrência como disfunção química apenas reforça o entendimento de sua origem também em questões coletivas, tendo como raiz de tudo, o medo.
Curioso buscar a compreensão desse mal em narrativas ficcionais, em estudos do gênero literário do horror. O escritor estadunidense H. P. Lovecraft (1987) afirma que a emoção humana mais forte e antiga é o medo, em especial, o medo do desconhecido. O conto de horror, encontrado no folclore, nos mitos ou em textos sagrados, é tão antigo quanto a linguagem humana. Como estímulo, está enraizado tal qual as imagens mitológicas - potencialidades primordiais compartilhadas por gerações entre as civilizações. O próprio mito é considerado uma narrativa recorrente que busca explicações para a condição humana, variáveis de acordo com os diferentes contextos históricos. Portanto, a atração pelo macabro exige de nós imaginação, assim o conto de horror não só sobreviveu como culminou ao atingir a proeza de saltar das páginas da literatura ou das telas do cinema para a vida cotidiana mais banal. Dessa forma, outras ponderações levantadas por Eugene Thacker (2011, p.8), na conexão entre filosofia e horror, nos ajudam a formular indagações sobre o “mundo impensável” que começamos a imaginar (e até aceitar). O autor discorre inclusive sobre o horror da filosofia, isto é, o constrangimento das suas próprias limitações, quando os limites do pensamento colocam como alternativa a linguagem não filosófica, o “pensamento do impensável”, neste caso, por meio do horror; este que Thacker (2011) entende não exclusivamente ligado ao medo humano em um mundo humano, mas o horror entendido como os limites do humano ao confrontar o mundo e suas questões ambientais, de escassez, sobrevivência: o pensamento enigmático do desconhecido. O grande enigma passa a ser entretanto como nossa imaginação funciona em meio a tantos estímulos, muitas vezes, produzindo atravessamentos entre ficcionalização e comportamentos do cotidiano: como simplificação de soluções, negação, argumento para destruição, para o caos ou a entrega ao sagrado quando recurso para o isolamento da realidade.
O sagrado, por exemplo, para Ana Taís Martins (2019, p. 36), é algo externo a nós mesmos, ou aquilo que não podemos explicar. Remete ao que transcende nossas expectativas racionais, especula acerca de nossas imperfeições e, mais uma vez, sobre o medo do desconhecido. Talvez por isso, parte das nossas soluções para este problema ancestral, relacionado ao modo como lidamos com o fato de sermos seres imperfeitos, passe pelo atravessamento tortuoso entre ficção e realidade, quando buscamos nos desligar do medo, e passamos a habitar um mundo seguro, algumas vezes inspirador, em outras, caótico e contraditório. Neste caso, desencadeamos a produção de imagens simbólicas, o que na prática constitui o nosso imaginário: “reservatório coletivo de imagens no qual o ser humano, individual e coletivo, busca soluções” para suas questões mais prementes. Michel Maffesoli (2001, p. 76) compreende o campo das imagens como substrato epistemológico para o conhecimento do sujeito social, extrapola questões individuais e a própria noção de cultura, pois é seu alimento: “o imaginário é o estado de espírito de um grupo, de um país, de um estado nação ou de uma comunidade. O imaginário estabelece vínculo. É cimento social”.
A polifonia das imagens e a fluidez de sentidos, dentro das quais estamos hoje expostos, têm gerado uma busca consoladora por verdades absolutas. A fluidez, que obviamente representa um imaginário midiático livre, plural e criativo, por outro lado, expõe as vulnerabilidades dos comportamentos descontextualizados, a desconfiança desmedida nas instituições e os regimes imagéticos que atrelam crenças individuais aos aspectos emocionais mais destrutivos. Imagens simbólicas e narrativas da ficção são conjunções potentes das relações sociais, inclusive, como mantenedoras do equilíbrio psicossocial dos seres humanos - respostas criativas às angústias e às pulsões de medo. Yuval Harari (2018, p. 272) afirma que os humanos não pensam por meios de fatos e sim de narrativas. Para o autor, tem-se depositado confiança extrema no indivíduo racional, como bastião de todo esclarecimento. O que seria uma armadilha, considerando que a maior parte das decisões humanas é balizada pelas reações emocionais e não pelas racionais, “enquanto nossas emoções e nossa heurística talvez fossem adequadas para lidar com a vida na Idade da Pedra, são lamentavelmente inadequadas na Idade do Silício”, quando o volume de informações e o tempo empregado nas decisões são cada vez mais incompatíveis.
Dessa conexão entre afetos como mediadores das nossas escolhas, a ficcionalização como amparo comunicacional, e o imaginário como campo fundante e arquetípico das relações humanas, vemos ganhar corpo um conjunto de imagens que enaltecem o horror ao diferente e um estado de espírito mais afeito à exclusão, à desordem, à descrença e ao caos. O filósofo Anthony Appiah Kwame abre o prefácio do seu livro As if: idealization and ideals com a lendária frase creditada ao escritor e explorador britânico, Richard Burton: “A verdade é o espelho estilhaçado em uma miríade de pedaços; enquanto isso cada um acredita em seu pequeno pedaço que passa a representar o todo” (BURTON apud KWAME, 2017, p. IX, tradução nossa[2]). Com isso, explica como, às vezes, na filosofia, é útil recuar e ter uma visão ampla de um tópico, mesmo sabendo que o progresso real exija um trabalho com foco mais restrito. Recuando um pouco mais, Kwame (2017) recupera o pensamento do filósofo alemão Hans Vaihinger, para o qual extensas áreas do nosso pensamento são ficções ou defesas nobres para alguns dos nosso equívocos, isto é, muitas vezes procedemos de forma razoável como se o que sabemos ser falso fosse verdade, isto porque este tipo comportamento é útil para alguns propósitos.
Estes filósofos, portanto, estão interessados na dimensão pragmática da mentira ao pensar a realidade, uma certa lógica de organização do pensamento e não a utilidade de falar mentiras intencionalmente: a idealização é uma inverdade útil. Assim como as ficções são erros, mas erros frutíferos, pois existe uma lacuna entre o que é verdadeiro e o que é útil acreditar. Nesta lacuna entram as ficcionalizações sobre o mundo, ou o que Vaihinger chamou de “ficção real” ou “semi-fictions” (KWAME, 2017, p.7): estranhas contradições com as quais nos deparamos dia a dia, isto é, necessitamos de “ficções úteis”, reduções ou simplificações para nos ajudar a compreender a complexidade do mundo. Kwame (2017) utiliza vários exemplos dentro das ciências exatas, na matemática, no composto dos átomos, nos sistemas econômicos, entre outros; mas nada poderia ser mais simples para ilustrar as contradições do pensamento humano que a experiência de ser agnóstico, isto é, afirmar não acreditar em Deus concomitante ao fato de ter que admitir que certas verdades transcendem os seus próprios conhecimentos, isto é, negar e ao mesmo tempo considerar-se incapaz de sustentar argumentos racionais para essa negação. Momentos de aflição também são ilustrativos, quando para não se entregar ao medo, agarra-se ao desconhecido (ou, como alternativa, à negação). Qual seria a verdade útil, neste caso? Uma questão abstrata, desviante em termos lógicos, mas por isso mesmo, extremamente relevante. Os pesquisadores ponderam, portanto, que as classificações linear, racional e lógica são ficções, pois nada há no mundo físico que corresponda a elas. São úteis e importantes porque nos ajudam a preencher as lacunas de nossa própria existência complexa: a verdade real permanece como uma possibilidade aberta.
Se idealizar envolve agir conscientemente para alguns propósitos, como se o que seja falso fosse verdadeiro, então a idealização significa tratar uma proposição como verdadeira, enquanto, em outra parte do cérebro a considera falsa, isto é, em diferentes contextos os comportamentos podem ser opostos. Vida ou morte. Economia ou pessoas. Família ou solidão. Deus ou mundo material. Amor ou egoísmo. Caridade ou individualidade. A pergunta que fica é: o que mobiliza nossas idealizações, nossas crenças, nossos desejos, assim como, nossas pequenas contradições diárias? Vaihinger acrescenta (KWAME, 2017, p.17): a idealização, as inverdades são úteis para quê e quando? A estas perguntas cabe, a cada um de nós, reflexões pessoais. Entretanto, voltando ao tema inicial do imaginário do caos e da desesperança: a quem interessa a desordem social? A desesperança nas instituições estabelecidas e no próprio ser humano como ser capaz de mobilizar seus pares e transformar a sociedade em algo melhor?
O professor visitante da Thomas Hawkins, na Academia Militar dos Estados Unidos, P. H. Liotta (2002) nos apresenta um estudo interessante em torno do caos como estratégia militar. Em parte, as tomadas de decisões sobre segurança nacional são racionais, e buscam equilibrar fins e meios. Por outro lado, também podem ser extremamente vulneráveis. A estratégia de caos, utilizada no sentido de confundir o adversário de guerra e manipular o cenário da melhor maneira possível, é uma tática que busca induzir a paralisia das decisões. De acordo com Liotta (2002), no Afeganistão, por exemplo, a ofensiva contra as forças militares americanas teve como principal critério convencer os líderes políticos americanos de que nenhuma resolução estava clara, desencorajando a priori movimentos bélicos mais contundentes. Os ataques de 11 de setembro de 2001, em Nova York e Washington, tinham como meta induzir ao medo e à sensação de extrema vulnerabilidade dos modos de vida ou liberdades dos cidadãos norte-americanos. Não são necessários hoje cálculos tão elaborados para constatar as mesmas estratégias sendo operadas em níveis não militares: a desesperança como estratégia de paralisia e movimento incapacitante de auto-organização. Liotta (2002, p.4) afirma que o estrategista do caos bem-sucedido ataca o que mais valorizamos e nos direciona para onde somos mais vulneráveis, não como uma ameaça direta, mas como instrumento paralisante. Todos esses elementos fornecem terrenos férteis para a implantação do horror, com zonas de pesadelo que fomentam o caos e a oportunidade de germinar a desesperança. O Brasil e o mundo parecem viver o auge desse caldo de experimentações, inclusive empregando métodos que exploram as dimensões comunicacionais, com as fake news e apologia ao uso dos impulsos violentos estimulados pelo medo.
Diante de tantas possibilidades, não deixemos escapar o comportamento filosófico de reconhecer nossas próprias limitações, ao buscar sempre levantar questões em torno das experiências vividas. As especulações levantadas escrutinaram o maior número de ponderações possíveis em torno da emergência de um estado de espírito coletivo aclimatado ao horror e ao caos - um imaginário contemporâneo que organiza representações e privilegiam a descrença, a desesperança, o rancor e tantas outras matérias inclinadas a afetar nossas existências - sustentando "ficções úteis”, que facilitem escolhas e tomadas de decisão, mas invariavelmente conclamando soluções mágicas ao invés de alternativas para a capacidade de auto-organização social.
Para nossa sorte, ou azar neste momento, as ficções são as ferramentas mais utilizadas pelo ser humano no sentido de encontrar saídas para seus impasses, pois inspiram e auxiliam na cooperação em grande escala. Entretanto, há de se perguntar quais inspirações mobilizam a imaginação global em nossos dias? As que auxiliam na construção de hospitais, escolas e pontes ou as que lutam por subjugação, armas, exércitos e prisões? As imagens propagadas libertam ou aprisionam?
De acordo com as teorias do imaginário, o pensamento ocidental tem por tradição desvalorizar a imagem e seus efeitos psicológicos, desconsiderando seu potencial imaginativo, de criação ou como faculdade ativa relevante; quando na prática é utilizada como estratégia significante de mobilização. Há de se ponderar sobre o ponto convergente entre afetos, ficção, imaginação e caos, como vínculos às paixões tristes de Baruch de Espinosa (2012), assim como, seu poder desencadeador de instintos destrutivos, desilusão, aversão e raiva. A simples compreensão desses atravessamentos entre razão e emoção, ou realidade e ficção, já faculta o controle das paixões cegas nos momentos de tomadas de decisão.
Mas, ainda que consideremos historicamente os sentidos quase imemoriais do medo, a emergência de um estado de espírito coletivo aclimatado ao horror e ao caos talvez seja menos emergente ou urgente do que o cenário contemporâneo faz crer. Entre abril e maio de 2020 o colapso funerário e de saúde de Manaus, capital do Amazonas[3], nos ofereceu imagens de um horror quase inenarrável: covas coletivas, com caixões empilhados e cobertos de terra por retroescavadeiras; corpos amontoados ao ar livre e em freezers, sem identificação; pacientes dividindo espaço em uma unidade semi-intensiva com um cadáver. Não bastou. Menos de um ano depois, em janeiro de 2021, pessoas morreram sem oxigênio que não chegou a tempo para permitir aos doentes respirar. E as covas coletivas foram reabertas[4].
Não obstante as imagens choquem, elas nos chegam carregando muitas outras que já vimos, com as quais já nos horrorizamos e mesmo nos fascinamos. Há uma persistente impressão do “já visto”. A monstruosidade que carregam as imagens de Manaus não nos é estranha por fim, afinal, registramos e divulgamos na velocidade e extensão permitidas pelo sistema midiático, na banalidade rotineira dos lares, mais de um século de imagens de horror. E um século particularmente brutal no extermínio humano e no registro de monstruosidades indizíveis. A quantidade de corpos mortos, seviciados e dilacerados - e suas imagens - que o século XX nos ofertou sem cessar, marcou, desde 1914, uma “acentuada regressão dos padrões então tidos como normais” (HOBSBAWM, 1995, p. 22) e isso não em algum país longínquo da África ou da Ásia, onde, afinal, nos ensinam que atrocidades acontecem, mas no coração da Europa “civilizada”. Adolf Hitler, afinal, marchou pelo Arc de Triomphe[5].
As imagens dessas condições brutalizadas tem memória, “fotos ecoam fotos”, nos lembra Sontag (2003, p. 72), para mais na frente ratificar, fotos, “nos perseguem” (2003, p. 76). Mas, nem seria necessário isso - imagens que repetem outras - para que imagens monstruosas fossem, por nós, vistas. A humanidade, afinal, não cansa de produzi-las, novas, outras, atualizadas “catástrofes humanas”, mas sempre as mesmas e as já vistas. E são tantas e tão repetidas que se sentir surpreso quando tais imagens invadem o entretenimento televisivo doméstico evidencia, no mínimo, uma infantilidade “moral e psicológica”, já que “ninguém, após certa idade, tem direito a esse tipo de inocência, de superficialidade, a esse grau de ignorância ou amnésia” (SONTAG, 2003, p. 95).
Trata-se, então, também disso: memória. Pacientes agonizando sem ar e corpos sem vida - tantos deles e tão rapidamente acumulados que precisam ser cobertos de terra por uma máquina - lembram, evocam, trazem em sua genealogia outras imagens que, como consumidores globais de “imagens-mundo[6]”, convocamos, que habitam nossa memória visual, mas que também apagamos, silenciamos, dissolvemos de nossas lembranças. Falar de memória é revelar uma relação tríade entre memória, esquecimento e silêncio (POLLAK, 1992), é considerar que há enquadramentos de memória e que a memória pode se transformar em um objeto de poder.
Ainda assim, enquadrar significa deixar de fora. O que câmeras captam são imagens escolhidas por alguém. “Fotografar é enquadrar, e enquadrar é excluir” (SONTAG, 2003, p. 42). É preciso compreender que olhar imagens e recordá-las - junto a seu poder de “ferir fundo” - nos traz outras, nos traz suas origens, uma genealogia que lhe é anterior, memórias individuais e coletivas, os “dispositivos que estimulam sua fabricação e sua difusão, os desejos e as pulsões dos olhares que as animam, quer se trate de quem as produziu, quer se trate de seus espectadores” (COURTINE, 2013, p. 158). É a lógica da intericonicidade, segundo a qual - ligada ao entendimento do conceito de discurso foucaultiano - considera que “toda imagem se inscreve em uma cultura visual, e esta cultura supõe a existência junto ao indivíduo de uma memória visual, de uma memória das imagens onde toda imagem tem um eco” (COURTINE, 2013, p. 43).
Isso inclui imagens externas, observadas, mas também as internas, insinuadas pelas que são vistas, as que estão guardadas na memória, talvez esquecidas, ressurgidas, ou até mesmo as que tenham sido imaginadas, sonhadas. Trata-se de compreender que imagens relacionam as vistas e as sugeridas por outras, pela memória, pelas “impressões visuais estocadas pelo indivíduo”. Eis que a pergunta aparece: e como articular essas imagens umas às outras para que, de algum modo, um sentido possa ser compartilhado? Pela “genealogia das imagens de nossa cultura”, pela busca do “material significante das imagens, pelos indícios, pelos rastos que outras imagens ali depositaram” (COURTINE, 2013, p. 44). Voltar os olhos às imagens para analisá-las implica, portanto, em referenciar os indícios do que ali se apresenta pois essas representações “perdem seu sentido fora desta genealogia dos indícios que as atravessam e as constituem” (COURTINE, 2013, p. 45). A antropologia histórica das imagens torna-se, assim, uma “arqueologia do imaginário humano”.
E, para além de procurar indícios e genealogias para a compreensão das imagens, o que nos conta a disseminação e a memória de imagens monstruosas? De imagens de horror? O que esse gesto, tão amplamente difundido no último século, no âmbito ficcional e não ficcional, diz de nossos dispositivos de disseminação? De nossas práticas de produzi-las? De lançar os olhos sobre elas? O que dizem de nós essas imagens? As pulsões dos olhares, desejos e repulsas que ali se colocam?
Pensar em imagens monstruosas e sua genealogia significa não abandonar completamente imagens outras que parecem que vem de longe, diante do ethos que organiza nossas sensibilidades contemporâneas e nos orienta a como pousar os olhos sobre o corpo humano e suas desordens e catástrofes. Mas, na verdade, a monstruosidade, até pouco tempo, apresentava um juízo mais sobre a forma (conforme/disforme) e o gosto (belo/feio) do que um juízo sobre a moral (bom/mau) (CALABRESE, 1999). É a exibição da monstruosidade, como categoria morfológica, que estará na sedimentação do início de uma indústria do entretenimento, entre a segunda metade do século XIX e início do XX e são os monstros humanos, oferecidos como espetáculo diante dos olhos, que deixam claro que o interesse que experimentamos pela desordem, pelo excesso, pelo maravilhoso, pelo outro, pelo inumano é persistente, guloso e tem uma função fundamental: marcar um poder de normalização.
Os monstros humanos - os anormais - podem ser compreendidos em um movimento que Courtine (2011) chama de “normalização dos anormais”, aquele que vai apresentar tais desordens morfológicas primeiro como uma monstruosidade lúdica, curiosidades de feira e protagonistas de shows, para depois serem solicitados pelo discurso médico e ali, onde via-se o maravilhoso, vai perceber-se o enfermo. Uma mudança da sensibilidade dos olhares postos sobre o corpo humano anormal que vai deslocar o monstruoso, como significado, para o âmbito moral, aquilo que Foucault (2010) vai chamar de “monstro pálido” - e vai exigir que o cinema, por exemplo, fabrique novas ficções, invente “monstruosidades sem monstros para livrar os olhares desse mal-estar” (COURTINE, 2011, p. 324), aquele que abala a experiência perceptiva diante do corpo ontem anormal e monstruoso, hoje acolhido em sua “diferença”. Vai exigir-nos separar o monstro do monstruoso, ou seja, do monstro como presença física, que caracteriza a folia desse mercado do olhar de meados do século XIX e início do XX, para o monstruoso que é produção de discursos, imagens, signos, a “inscrição do monstro no campo imaginário da representação” (COURTINE, 2011, p. 274).
Quando nos perguntamos sobre a monstruosidade das imagens e das histórias de Manaus não estamos nos perguntando sobre corpos monstruosos. Os corpos estão ali, desumanizados depois de sua morte, empilhados anonimamente, inspirando horror, mas trata-se de pensar também a maldade para com os vivos, com os que sofrem pela doença, pelo desamparo, pela perda. Trata-se, pois, do monstruoso como representação, discurso. A história da exibição de anões, mulheres barbadas, gêmeos siameses na centro da cena do entretenimento da Belle Époque que exigia "corpos excepcionais”, no qual se voltam os olhos para um “corpo-catástrofe” (BAECQUE, 2011), nos fala do corpo monstruoso ele mesmo. Não o signo, mas o corpo materializado. É o cinema que vai fazer sua aparição nos últimos anos do século XIX, que vai instalar entre o corpo deformado e seu espetáculo, “múltiplos distanciamentos”.
Há um sentimento no público da Belle Époque, uma certa confusão não consciente de que os corpos-catástrofes vão desaparecer da cena do espetáculo, baseado em uma “base antropológica muito antiga” e, por sua vez, responde a uma “necessidade psicológica demasiadamente profunda” (COURTINE, 2013, p. 141) para que se esvaneça rapidamente, sem resistência e sem deixar restos e rastros. É necessário um “recalcamento deliberado do olhar pela razão” (COURTINE, 2013, p. 142) sem o qual seria impossível a "normalização dos anormais”, um movimento a partir do qual, hoje, nos envergonhamos daquele outro olhar, guloso, festivo e despreocupado de nossos antepassados quando pousados sobre corpos anormais, os “estigmas” das “abominações do corpo” (GOFFMAN, 2017, p. 14). Tal recalcamento, organizado em torno de um conflito entre “razão política e singularidade do olhar” (COURTINE, 2013, p. 141), vai reivindicar, contemporaneamente, que todos os indivíduos sejam tratados de modo “igual”, não obstante suas “diferenças”. É como se, em alguma medida, a desordem do corpo deixasse de funcionar como o poder de ensinar a norma, como o “poder de normalização” (FOUCAULT, 2010). Como se, de algum modo, o recalcamento do olhar só permita ver no corpo anormal uma normalização e aceitação, política e compulsória, mas no qual reside uma sedução que só pode ser sentida como uma falha. Emergem, diz-no Courtine (2011), novas sensibilidades do olhar, marcadas um “recalque em escala industrial das sensibilidades” e uma “pornografia do handicap”.
Mas, afinal, o que é esse poder de normalização? É a emergência das técnicas de normalização, com os poderes a elas ligados. Foucault pensa tal poder a partir do encontro do saber médico e judiciário, através da sociedade moderna deste tipo específico de poder, que por sua vez, não se limita lá e tem suas regras e autonomia. Ele nos alerta sobre seu interesse em “Os anormais”: “Essa emergência do poder de normalização, a maneira como ele se formou, a maneira como se instalou, sem jamais se apoiar numa só instituição, mas pelo jogo que conseguiu estabelecer entre diferentes instituições, estendeu sua soberania em nossa sociedade” (FOUCAULT, 2010, p. 23).
O proveito da exibição de corpos monstruosos tem precisamente este contorno: ensinar, por oposição, a norma, a normalidade, a humanidade. É, em si, uma função didática. E coloca, ainda, o outro como parâmetro de alteridade. “Os homens precisam de monstros para se tornarem humanos” (GIL, 1994, p. 88). Uma diferença que é exibida como espetáculo e que tem aí, uma espécie de catarse: acalma-se aquele que vê pois reconhece, na radical diferença do monstro, sua modernidade, sua humanidade. O domínio da norma faz-se a partir da exibição de seu contrário, um didatismo que é disseminado por um conjunto de dispositivos organizados por uma rede de estabelecimentos de espetáculos e que vai, logo, conhecer uma indústria da diversão de massa, que “inventa dispositivos que atuam sobre o olhar, fabrica um estímulo a ver, tendo nas espécies anormais do corpo - ou das ficções, dos substitutos realistas deste último - a sua matéria-prima” (COURTINE, 2013, p. 123).
Recorrer ao entendimento dessa cultura visual massiva pré-televisão, no entanto, não é suficiente para compreendê-la, nem sua extensão. A exibição dos estigmatizados como espetáculo, sabemos, vai findar-se na primeira metade do século XX. É a ciência que vai, aos poucos, transformar o olhar lúdico para o corpo monstruoso em uma cultura da observação médica e posicionar a monstruosidade não no corpo, mas no olhar de quem lá, fica. A curiosidade pelos monstros humanos, quando exercida nos espetáculos e não na esfera médica, “será viciosa, insana, perversa: uma infração repreensível em relação à lei e simultaneamente uma tara psicológica em relação à norma” (COURTINE, 2013, p. 131). Monstruoso é, agora, o olhar. Eis a chave que transforma a monstruosidade em uma questão moral, mudança na qual observamos uma “mutação das sensibilidades”, um acolhimento dos monstros humanos pela ciência e compaixão. São, por fim, humanos eles mesmos. Não mais o outro, mas um igual.
A ideia de que os corpos são iguais estará na base de uma reivindicação pelo “apagamento" das diferenças, nas políticas de acessibilidade e inclusão, nos lemas publicitários de “ser diferente é normal”, no esforço das sociedades democráticas que desejaram uma transmutação só possível à força do recalcamento do olhar pela razão. É uma transmutação hoje experimentada sob a forma de uma prática comum, rotineira, mas que não encontra sossego real: a dos corpos anormais em corpos ordinários. Mas se já não é o monstro que ensina a norma - que agora o inclui - o que acontece com o “poder de normalização”? Quem ou o que assume a função de demonstrar o anormal? De marcar uma alteridade radical que nos ensine o que é humano? E mesmo de nos seduzir, ainda que compareça lá, toda uma pulsão do ver, um desejo intolerável? São preciso imagens, ainda, para recolocar perguntas sobre a humanidade dos homens. São necessárias narrativas. Mas, como entender e sentir tais imagens e histórias, em um âmbito de proliferação das mesmas? Como compreender um certo embotamento de sentidos - ou uma aura de fascinação que de lá não se extingue - quando o horror invade o fluxo do “palimpsesto televisivo[7]” ?
O sofrimento alheio é precisamente o que podemos ver nas imagens de Manaus e que nos traz a formação do olhar do telespectador de hoje: o consumo, à distância, da dor do outro disseminado numa corrente de produção de imagens de degradação e padecimentos que parecem despertar uma solidariedade que proclama nossa inocência diante do horror; despertam muito pouco; ou, ainda, incitam acusações de instigar um desejo condenável, uma curiosidade incansavelmente acusada de mórbida. Mas, Sontag (2003, p. 80) logo nos lembra: “chamar tal desejo de ‘mórbido' sugere uma aberração rara, mas a atração por essas imagens não é rara e constitui uma fonte permanente de tormento interior”.
Reagir a imagens monstruosas não está circunscrito pela razão. Não há um único modo de, diante delas, mobilizar sentimentos, ainda que haja repetidas solicitações de compaixão e solidariedade. Podemos sentir, naturalmente, a compaixão esperada. Podemos nos sentir obrigados a vê-las para refletir sobre seus significados imediatos, assimilar o apelo humano diante do mal que exibem. Essas imagens podem atender a necessidades precisas: “nos enrijecer contra a fraqueza. Tornar-nos mais insensíveis. Levar-nos a reconhecer a existência do incorrigível” (SONTAG, 2003, p. 83). E, acrescentaríamos ainda: nos indicar, por oposição, a norma, o humano, a exemplo do “poder de normalização”. Imagens monstruosas - tantas e tão vastamente exibidas diante de nós - tem essa função pedagógica por fim: nos ensinar que os seres humanos são capazes de tamanha desumanidade. Eles fazem estas coisas e o fazem voluntariamente. Eles produzem esses horrores e essas imagens quase irrepresentáveis, essas narrativas inenarráveis.
Não são necessidades menores. Nem simples. Mas, não parece ser somente isso o que lançar os olhos sobre imagens monstruosas diz de nós. O fato é: essas imagens seduzem. Não é confortável, claro, reconhecer um apetite por cenas de desumanidade e horror. Platão já nos fala em A República sobre a razão ser “esmagada por um desejo vil” e como “uma pessoa pode render-se, ainda que com relutância, a atrações repulsivas”. Sócrates nos conta de Leôncio, filho de Aglaion, que ao avistar cadáveres próximos a um carrasco, desejou vê-los, mesmo isso lhe sendo insuportável. Lutou por um tempo consigo mesmo, mas “o desejo foi excessivo para ele” (PLATÃO apud SONTAG, 2003, p. 81). E não obstante ser, desde sempre, esse olhar cativado pelo que degrada o humano, persiste a acusação de que monstruoso é o olhar, não só porque o racionalizamos e normalizamos o anormal, mas por que depois e sempre junto à racionalização dos olhares diante da desordem - lá, física, aqui, moral, ainda que direcionada ao corpo - o interesse licencioso, lascivo, pelo que desvia insiste em não nos abandonar.
Em parte a “acusação contra a indecência de olhar tais imagens, ou das indecências existentes nas maneiras como tais imagens são disseminadas”, tem relação com “a frustração de não ser capaz de fazer nada a respeito daquilo que as imagens mostram” (SONTAG, 2003, p. 97). Há um oferecimento incontável de imagens brutais e é razoável considerar que monstruosidades fazem parte de modos habituais de consumo de mídia e, por isso, afastam o impacto do choque que certas imagens parecem ter o poder, inato, de causar. Habituar-se ao horror, não é, afinal, apenas sintoma de desumanidade de quem vê. “As pessoas têm meios de se defender do que é perturbador […] isso parece normal, ou seja, adaptativo” (SONTAG, 2003, p. 70). As pessoas podem, ainda, não escolher ver por medo. Mas, nem todas as violências são sentidas da mesma maneira e com o mesmo distanciamento. Há dores que, ali representadas, não esgotam nossa capacidade compassiva. No entanto, de que serve a compaixão se não há nada a se fazer? “A compaixão é uma emoção instável. Ela precisa ser traduzida em ação, do contrário definha. A questão é o que fazer com os sentimentos que vieram à tona, com o conhecimento que foi transmitido” (SONTAG, 2003, p. 85). Não se trata, então, de estarmos saturados de imagens de horror. Não se trata da quantidade delas. “É a passividade que embota o sentimento”.
Mas esse sentir a dor do outro ativa um dispositivo psíquico chamado por Courtine (2013, p. 152) de “usura compassiva”. Algo como uma anestesia, um mecanismo de defesa que cresce e radicaliza o distanciamento entre a compaixão e a dor. "O paradoxo de tais imagens pretende que a necessidade do distanciamento seja proporcional à intensidade do sofrimento encenado”. É à distância que a dor do outro é sentida, no estranhamento, no afastamento, dos lugares, dos atores, que a usura compassiva comparece e, junto a outras respostas emocionais, permite uma miríade de possibilidades de sentir. Inclusive uma possível satisfação de se saber seguro, de perceber, não de modo totalmente consciente, que o mal que ali triunfa nos conforta pois expia nossos medos. Como os monstros humanos que, oferecendo suas desordens como show diante dos olhares, acalma aquele que vê por que evidencia, afinal, um parâmetro de humanidade.
O horror do outro, à distância, é tão disseminado que pode anular nossa capacidade de reação, anestesia a compaixão. Mas, Sontag (2003, p. 90) logo pergunta: "o que se pede aqui?”. Uma economia de disseminação de imagens para que se conserve potente sua capacidade de chocar e fazer chorar a dor alheia? As imagens trazem para a cotidianidade dos lares monstruosidades difíceis de ver - e também quase libidinosas - e continuam tendo a capacidade de agredir. O que não significa que assim irão fazê-lo. Não é uma falha sentir-se seduzido, ou sentir quase nada, quando pousamos os olhos sobre tamanhas desordens. Há muito os olhares lá já se demoram com prazer. Imagens monstruosas podem ser um “convite a prestar atenção, a refletir, aprender, examinar as racionalizações do sofrimento em massa propostas pelos poderes constituídos” (SONTAG, 2003, p. 97). Podem, então, ser um convite à indignação moral. E podem nos fazer perguntar. O que aceitamos, toleramos, permitimos para que tais imagens encontrassem um âmbito no qual puderam ser construídas? Para que pudessem respirar? Um ar que, sabemos, faltou aos doentes de Manaus. Vendo aquelas imagens, elas mesmas em nada distantes ou inéditas, é impossível não nos perguntarmos: afinal, que humanidade é esta que, quando diante de uma doença desconhecida e letal, escolhe deixar morrer? Que pulsões são essas que estimulam a degradação? Reside aí, e não nas imagens, a alteridade radical que ensina a norma e contorna o que é humano? Como respondemos nós quando o horror bate à porta? Manaus nos respondeu: convidamos a monstruosidade a nos fazer companhia, mesmo que a dor a ser pranteada seja a dos nossos mortos.
Tal cenário requer alternativas epistêmicas, ou seja, outras formas de concepção da existência. Foi para atender essa necessidade que se buscou a ecosofia, conceito proposto por Félix Guattari (1990) como uma articulação ético-política entre os três registros ecológicos: meio ambiente, relações sociais e subjetividade humana. A ecosofia pode oferecer uma trilha para imaginarmos outras narrativas e imagens capazes de apontar modos de nos relacionarmos conosco, com os outros e com os ecossistemas do entorno.
Embora tenha sistematizado a proposta nos anos 1980, o filósofo e psicanalista francês entreviu o cenário de redução do emprego com aumento da produtividade em benefício de poucos no contexto de aceleração das transformações técnico-científicas e dos danos ambientais, acompanhado de angústias e desamparo. Para Guattari (1990), a única forma de solucionar esses infortúnios seria encarando o problema em uma escala planetária envolvendo conjuntamente os três regimes ecológicos de forma não homogênea e não polarizada. Vejamos.
O mundo pode ser sentido como cada vez menor em função das tecnologias de transporte e comunicação. As relações econômicas e políticas entre os 195 países ficam cada vez mais interdependentes e os valores, as crenças e os desejos circulam cada vez mais. Talvez o exemplo mais recente da sensação de encurtamento do planeta seja a pandemia causada pelo novo coronavírus. No início de janeiro de 2020, os casos estavam concentrados na China e por meio de pessoas infectadas que viajaram de avião ou navio, no final do mês, já eram dez mil infectados em outros 129 países. Dois meses depois, a Organização Mundial da Saúde declarou que se tratava de uma pandemia global. Se os problemas estão cada vez mais compartilhados, as soluções precisam acompanhar.
Como defende Krenak (2019), temos que pensar o planeta como uma plataforma para diferentes cosmovisões, uma espécie de malha inacabada com potencial para infinitos nós que vão se constituindo nas relações entre os diferentes conjuntos de todos os ecossistemas que compõem o planeta, a chamada biosfera. Segundo o líder indígena, nossas diferenças (permanentes e intransponíveis) é que devem orientar nossos modos de vida e não um esforço inócuo de elaborar um mesmo protocolo que se pretende universal. Fizemos isso com diversos povos originários, que foram compelidos para um modo de vida tido como melhor em direção a um progresso que só chegou para alguns. O outro é reiteradamente visto como rival e não como parte de nós. Fabricamos a ideia de que somos diferentes, quando, de fato, somos iguais em nossa diferença. Se, como alegou Tarde (2007, p.98) ainda no século XIX, “existir é diferir”, precisamos incorporar a diferença como um elemento epistêmico central ao invés de tentar reproduzir o mesmo.
Essa compreensão encontra eco em estudos de diferentes matizes. Sloterdijk (2016) entende que a existência é esférica e orientada para o outro. Rifkin (2016) acredita que estamos nos aproximando do que ele chama de consciência biosférica, que incluirá a totalidade dos seres vivos, a natureza e as tecnologias como elementos interdependentes de um mesmo sistema. Lévinas (2005) defende que o eu só existe a partir da relação com o outro, o que implica em uma responsabilidade mútua. Esse aspecto da responsabilidade, central para a compreensão do outro como parte de nós presente na episteme ecosófica, é certamente o mais difícil. Trata-se de reconhecer todas as relações da biosfera como codependentes.
Compreender e aceitar esse raciocínio não requer esforço, mas é necessário pensar nas crenças e aspirações que orientam modos de vida comumente destituídos do respeito ao outro, mantendo a orientação ecosófica. Desde exemplos mais evidentes, como queimar com Napalm o corpo de uma criança de nove anos ou tirar a vida de outro ser independentemente da forma e do motivo; como outros menos evidentes, como uma empresa que restringe as horas dos funcionários irem ao banheiro; recusar vacinas; aumentar o patrimônio enquanto o número de seres na extrema pobreza também sobe; consumir um produto ou serviço sem transparência na cadeia produtiva podendo envolver trabalho análogo a escravidão, desmatamento, desperdício e poluição de nascentes; mentir para a chefia visando a obtenção de algo especial. O desenrolar de parte dos fios da malha que constitui a biosfera indica a presença irrefutável de diferentes ecologias. Além disso, ainda que uma pessoa não pratique nenhum desses atos, ela precisará conviver com outras que são o extremo oposto e também verá uma miríade de monstruosidades que umas pessoas fazem com as outras assim que liga uma TV.
É nessa perspectiva que devemos pensar o planeta como uma única plataforma na qual estão acoplados diferentes seres que se relacionam e se impactam independentemente de sua vontade. Um equívoco comum é achar que entender a Terra como uma só implica em reduzir todos os seres e suas diferenças a algo único. Não se trata de delimitações e normas geopolíticas para todos os seres. Isso é impossível por menor que seja a esfera. Uma família, uma organização, uma cidade, um país, são esferas menores que possuem suas normas e limites próprios, mas não deixam de compartilhar o mesmo planeta com seus constrangimentos e violências, como pandemias, guerras e mutações climáticas. Em todas as esferas será necessário lidar com o diferente e a mudança, seja na família ou no país. As normas são passageiras porque acompanham as alterações permanentes que ocorrem na biosfera, ou, como propõe Guattari (1990), nas três ecologias: relações sociais (a cultura e as tecnologias perpassadas por morais), meio ambiente (a natureza) e subjetividades (a ética, os valores, as crenças). É preciso, então, encarar a esfera, grande ou pequena, como uma plataforma para o diferente. O único comum é o diferente e a mudança. Sendo assim, o planeta como uma plataforma única só vai reunir mais diferenças do que uma comunidade menor, fazendo com que a diferença seja somente de escala, pois a natureza é a mesma: seres com seus valores, histórias, tecnologias, territórios, naturezas que são absolutamente os mesmos em suas diferenças.
A abstração dessa ideia pode não auxiliar a compreensão, mas não é só isso. Há pelo menos três séculos a noção de igualdade foi difundida através de mecanismos que parecem forjar padrões que reduzem as diferenças. O recalcamento do olhar pela razão, de que falávamos antes, é um exemplo. Mas o voto, a educação e a cultura exemplificam isso claramente. Escolher entre opções prefixadas mesmo não tendo nenhuma que julgue adequada, medir o saber pelos mesmos testes apesar das origens e experiências múltiplas dos seres que serão submetidos e partir de uma predefinida noção de cultura para orientar políticas públicas não são ações que vão na contramão do reconhecimento e da valorização das diferenças? Obviamente, são escolhas que esbarram nos empecilhos logísticos para contemplar a multiplicidade das realidades, conduzindo ao caminho da representatividade e dos métodos estatísticos. É nesse sentido que se faz necessária uma superação epistêmica capaz de orientar outros caminhos.
Além do paradoxo entre igualdade e diferença, existem outros habituais, dentre os quais: natureza e cultura, mente e corpo, priorizar a economia ou a saúde[8]. Fala-se também que a economia, a sociedade, a política (os âmbitos institucionais, coletivos, morais) não podem mudar sem uma alteração nos desejos, nas crenças e nos valores (âmbito pessoal, íntimo, ético). O problema é o mesmo: uma episteme maniqueísta, que Latour (1994) chamou de projeto moderno. Na perspectiva ecosófica, não existe diferença de natureza ou importância entre todos esses domínios, apenas de peso e escala. Todos os elementos e áreas integram a mesma malha que não pode ser pensada em um enfoque dualista acreditando, por exemplo, que para mudar as instituições é preciso, antes, alterar os valores dos sujeitos, ou vice-versa. Não há como separar, seja por motivações estratégicas ou didáticas, porque a experiência humana é ecosófica, reunindo o meio ambiente, as relações sociais e as subjetividades simultaneamente, ou seja, todos os ecossistemas da Terra, a biosfera, na qual as formas de vida interdependentes coexistem.
Embora existam diversas compreensões correlatas[9] a ecosofia, essa perspectiva foi adotada porque facilita uma transposição epistêmica entre o que Deleuze e Guattari (1992) consideram como as três grandes formas tomadas pelo pensamento: arte, ciência e filosofia. A primeira pensa por sensações, a segunda através de funções e a terceira por meio de conceitos, não existindo síntese entre esses três formatos de pensamento, mas podendo emergir um tecido potente ao serem considerados no mesmo plano e não em regimes opostos (DELEUZE; GUATTARI, 1992).
Recorrer a essas formas de pensamento simultaneamente permite instituir um lugar no qual sensação, função e conceito estejam juntos, facilitando a reunião das três ecologias (subjetividade humana, meio ambiente e relações sociais). Isso não constituirá uma disciplina ou ciência nova, mas o que Deleuze e Guattari (1992) chamam de pensamento como heterogênese, capaz de auxiliar a emergência de devires não humanos para podermos nos perceber não como igual a um rio, árvore ou telescópio, mas com a mesma possibilidade de gerar efeitos no mundo.
Assim, o pensamento como heterogênese favorece a eclosão de um modelo de racionalidade sem separações ontológicas entre áreas e seres, como humanos e não humanos ou economia e meio ambiente, de forma que seja possível pensar a malha heterogênea em sua diferença e inconstância, seja por meio de funções, sensações ou conceitos.
Ampliar as formas tomadas pelo pensamento é indispensável para apreender o que comumente escapa à racionalidade manifesta e legitimada pelos signos de cada ciência. O pensamento como heterogênese pode ser usado em qualquer área do conhecimento, não precisamos de uma nova para disputar verbas, mas de compreensão e coragem para nas bordas do nosso saber perceber de que maneira as três ecologias indissociáveis que compõem a ecosofia produzem sentido entre sensações, funções e conceitos.
A proposta deste trabalho preconiza a inevitabilidade de compreendermos os fenômenos que chegam à percepção existindo em uma plataforma única para as diferenças (o planeta). Tais fenômenos devem ser entendidos ao mesmo tempo através das três ecologias que compõem a ecosofia: o meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade humana. Devem, ainda, ser abordados concomitantemente pelas três formas tomadas pelo pensamento: sensação, conceito e função.
Além disso, os estudos aqui relacionados estabelecem uma espécie de instrumentalização para as teorias, ao considerar a complexidade excessiva, tão lamentada como impasse, personificando também uma lastimável forma de paralisia das nossas próprias capacidades cognitivas de compreender o mundo. A este impasse precisamos dar respostas, restabelecer a esperança por meio da imaginação criativa, aceitando as ficções úteis como alternativas - ora inferências sadias e ora destrutivas -, mas inevitavelmente caminhos necessários para o entendimento das imprecisões da vida e da capacidade para gerenciá-las. Como resposta aos impasses, precisamos restabelecer a esperança por meio da imaginação criativa e aceitar as idealizações (ficções úteis) como os meios encontrados para preencher as lacunas e as incoerências que encontramos pelo meio do caminho; e nunca como formas de restabelecimento de verdades absolutas.
Encarar o cenário de crises aqui descrito requer não apenas enfrentamentos externos, como decretos e leis, mas confrontar seus efeitos na ecologia mental do ser humano, nas relações conjugais, na relação consigo mesmo, no trabalho, fazendo isso de forma atenta ao dissenso e ao incentivo a produções singulares de modos de viver. É disso que trata a busca por outra sensibilidade epistêmica: um processo de recriação de valores existenciais e de desejo, que por sua vez irá orientar as economias, políticas e as naturezas, que deve ser encampado de forma global, o que não significa simultâneo ou orquestrado por uma grande organização internacional com o mesmo intuito (isso seria repetir a história), mas distribuído de incontáveis formas pelo mundo criando novos fluxos de valor e novos modos de sentir e estar juntos.