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A SOCIOLOGIA DA QUANTIFICAÇÃO DE ALAIN DESROSIÈRES novos modos de dominação, de gestão e de governança neoliberal
THE SOCIOLOGY OF QUANTIFICATION BY ALAIN DESROSIÈRES: new modes of neoliberal domination, management and governance
Revista de Políticas Públicas, vol. 26, núm. 2, pp. 493-511, 2022
Universidade Federal do Maranhão

Artigos - Dossiê Temático


Recepción: 25 Julio 2022

Aprobación: 01 Noviembre 2022

DOI: https://doi.org/10.18764/2178-2865.v26n2p493-511

Resumo: Este trabalho situa o problema da nova arte de governar que se caracteriza pela instauração de novos mecanismos de poder fundamentados na razão estatística e na governabilidade dos números. Analisa a contribuição de Desrosières para a emergência da sociologia da quantificação. O mundo no qual vivemos é dominado por todos os lados pelas quantificações que são produzidos de forma específica e têm efeitos e usos próprios. Aponta que, assim, as categorias estatísticas se tornam objetos de pesquisa na medida em que os produtos da razão estatística são construções sociais. A taxonomia registra apenas o estado das lutas com as deformações que estão relacionadas à posição que o estatístico ocupa no espaço social, político e econômico. Conclui que os usos sociais dos instrumentos estatísticos se constituem, assim, como novos modos de dominação, de gestão e de governança.

Palavras-chave: Governança, quantificação, dominação, gestão, estatística.

Abstract: This work situates the problem of the new art of governing, which is characterized by the establishment of new mechanisms of power based on statistical reason and the governability of numbers. It analyzes Desrosières' contribution to the emergence of the sociology of quantification. The world in which we live is dominated on all sides by quantifications that are produced in a specific way and have their own effects and uses. Thus, statistical categories become objects of research to the extent that the products of statistical reason are social constructions. Taxonomy only records the state of struggles with deformations that are related to the position that the statistician occupies in the social, political and economic space. It concludes that the social uses of statistical instruments are thus constituted as new modes of domination, management and governance.

Keywords: Governance, quantification, domination, management, statistics.

1 INTRODUÇÃO

Alain Desrosières pertence à geração de intelectuais franceses marcada pelas influências de Bourdieu, Deleuze e Foucault. Estatístico e sociólogo, formado na Escola Nacional de Estatística e Administração Econômica (ENSAE), onde foi aluno de Pierre Bourdieu, Desrosières se interessou pela relação entre a estatística e as ciências sociais. O presente trabalho situa essa geração de intelectuais que se preocupava com a gouvernance des nombres ao orientar seus interesses de pesquisa para a Estatística como instrumento não somente de prova, mas também de gestão e de ação pública. O problema central desta pesquisa intenciona analisar a contribuição de Alain Desrosières para a emergência e institucionalização de um campo de pesquisa que é a sociologia da quantificação. Esta considera as práticas de quantificação como um objeto de pesquisa.

O mundo no qual vivemos é dominado, por todos os lados, pelas quantificações que são produzidas de forma específica e que têm efeitos e usos próprios. Assim, as categorias estatísticas se tornam objetos de pesquisa na medida em que os produtos da razão estatística (DESROSIÈRES, 1993) são construções sociais e, nesse sentido, elas têm interesse para a sociologia. O mais difícil era estudar empiricamente e reflexivamente, do ponto de vista da estatística, as categorias socioprofissionais na França, mas esse problema é superado por Desrosières em 1982. Trata-se de categorias que nasceram após a segunda Guerra Mundial e que foram colocadas em prática pelo estatístico Francês Jean Porte. A tarefa de Desrosières era pensar as categorias a partir das quais a França se representava.

Partindo da reflexão de Mauss e Durkheim, seguida por Bourdieu, sobre as formas de classificação, Alain Desrosières mostra que esta nomenclatura era um consenso entre as tipologias das profissões estabelecidas na realidade social do trabalho e os princípios de classificação lógica que pretendem ter um valor para toda a sociedade e que estas são, na verdade, heranças de lutas passadas. A taxonomia, que antecede a quantificação, registra apenas o estado das lutas com as deformações que estão relacionadas à posição que o estatístico ocupa no espaço social, político e econômico (DESROSIÈRES, 1993). As pesquisas de Foucault sobre a governabilidade, cuja intenção é elaborar uma teoria do Estado a partir de uma perspectiva das práticas, do exercício do poder, são também fontes de inspiração para Desrosières. Assim, a competência técnica tende a ser incorporada pelo Estado por intermédio dos economistas dominantes que elaboram as políticas econômicas e orientam as decisões políticas. “O Estado é ao mesmo tempo o que existe e o que ainda não existe suficientemente. E a razão de Estado é precisamente uma prática, ou antes, uma racionalização de uma prática que vai se situar entre um Estado apresentado como dado e um Estado apresentado como a construir e a edificar” (FOUCAULT, 2008, p. 6).

A noção de governabilidade é utilizada por Foucault para caracterizar a formação de uma racionalidade política neoliberal baseada em instrumentos, em aparelhos específicos de governo e em um sistema de conhecimento. Nesse sistema de conhecimento, Desrosières destaca a predominância da estatística e os modos de utilização da mesma pelo Estado que aplica esse tipo de conhecimento que se constitui ao mesmo tempo como técnica para pensar a população como totalidade de recursos e de necessidades. A lógica do Estado consiste, então, em elaborar instrumentos para a ação pública e, nesse sentido, a estatística passa a ser utilizada não somente como instrumento de prova, mas também de coordenação e gestão. A abordagem histórica de Desrosières descreve analiticamente que as crises econômicas têm efeitos reais sobre os instrumentos estatísticos que buscam sempre se adaptar e legitimar novos modos de governabilidade centrada nos números.

Desse modo, o instrumento estatístico deve ter uma legitimidade científica como instrumento de prova, mas isso não é suficiente, pois ele deve igualmente ter uma legitimidade social para poder exercer um papel de instrumento de coordenação, ou seja, de linguagem comum entre os atores sociais. Os usos sociais dos instrumentos estatísticos se constituem como novos modos de dominação, de gestão e de governança. Assim a política dos indicadores estatísticos domina a sociedade ao retroagir sobre os comportamentos dos atores sociais, mas isso é mais perceptível do ponto de vista de uma sociologia da quantificação tal como ela é praticada por Alain Desrosières, dentre outros.

2 A RELAÇÃO ENTRE SOCIOLOGIA E ESTATÍSTICA

A emergência da sociologia na França é marcada por essa relação entre ciências sociais e a estatística. Desde seus primeiros trabalhos Durkheim atribui uma grande importância à estatística como instrumento objetivo de luta contra as noções primeiras, analisando os fatos sociais como coisas, ele se interessa por essa disciplina por tratar-se de um campo do conhecimento que permite desmistificar as falsas impressões sobre a realidade ao construir dados quantitativos. A sociologia de Durkheim parte do princípio de que a noção de probabilidade estatística é essencial para análise da realidade social e um dos instrumentos de prova empírica. O otimismo e confiança nas estatísticas nos anos 1950 a 1970 estavam vinculados a uma representação de sua objetividade e imparcialidade. Ao mesmo tempo a informação fornecida pela estatística era considerada como um dos componentes maiores de uma sociedade democrática (DESROSIÈRES, 2014, p. 70-71). A pretensa imparcialidade das categorias estatísticas não foi objeto da sociologia de Durkheim, o que não é o caso de Bourdieu, onde a estatística ocupa um lugar central.

O problema da objetividade, presente em Durkheim, nos faz esquecer um princípio segundo o qual não podemos desvincular nossa experiência do mundo social e ao mesmo tempo formar uma concepção das relações sociais (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 125). A objetividade existe em relação à subjetividade do agente social, logo essa concepção fenomenológica de Merleau-Ponty exige uma teoria da reflexividade. Assim, Bourdieu, próximo desta fenomenologia, sobretudo nos seus primeiros trabalhos, mesmo utilizando a estatística como instrumento de ruptura epistemológica com o senso comum, transforma as categorias estatísticas em objeto de reflexão na sua teoria da prática.

A estatística é para Bourdieu um excelente instrumento de análise e de prova empírica. As pesquisas que ele coordenou na Argélia, durante a guerra, com os administradores do INSEE (Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos) nos dão uma percepção da relação estreita que ele tinha com a estatística. Nos anos 1970 Bourdieu se inspirou nos trabalhos de Jean-Paul Benzécri e de sua discípula Brigitte Cordier Escoffier para representar sua teoria do campo e a teoria de capital social. Nesse período emerge uma nova ferramenta estatística: a análise de correspondência múltipla(ACM) que permite a visualização dos campos a partir de quadros estatísticos que cruzavam os indivíduos ou grupos sociais e as observações empíricas. A ACM diz respeito a “uma metodologia com análise de dados geométricos que foi parcialmente criada por Benzécri, mas que tentamos ampliar e difundir agora, que envolve uma concepção de prática estatística [...]” (LEBARON, 2018, p. 312-313).

É na anatomia “anatomie du goût” (anatomia do gosto) que Bourdieu mobiliza pela primeira vez esse método de análise dos dados e posteriormente em “La distinction” (BOURDIEU, 1976, 1979). Os dados estatísticos eram utilizados por Benzécri para descrever e analisar o espaço social. Nesse período as ciências sociais começam a utilizar massivamente a análise de correspondência múltipla (BENZÉCRI, 1977). O que se nota é que a leitura das formas primitivas de classificação de Durkheim e Mauss (1903) foi o ponto de partida para Bourdieu estimular os jovens estatísticos, com os quais ele trabalhava, a analisar reflexivamente as categorias estatísticas como objeto de pesquisa.

Bourdieu não elaborou uma sociologia da quantificação tal como fora elaborada por Alain Desrosières que se inspira não somente em Bourdieu, mas igualmente em Michel Foucault. Desrosières leva em conta que a produção estatística é também produção social de significados, e, nesse sentido, a estatística pode ser pensada não somente como instrumento de prova, mas também como objeto da sociológica. Assim, ele começa a se interessar pelas categorias estatísticas como objeto sociologia, mas considerava que era difícil trabalhar empiricamente com a estatística e ao mesmo tempo estudá-la reflexivamente (DESROSIÈRES, 2003a). A superação deste obstáculo epistemológico, como diria Bachelard, fora viabilizado com a reforma das categorias socioprofissionais na França em 1992, momento crucial para elaborar os primeiros instrumentos de uma sociologia da quantificação.

Entre 1979 e 1982 Desrosières trabalhou com Laurent Thévenot em um grupo de pesquisa encarregado de repensar a nomenclature (nomenclatura) francesa; eles são responsáveis pelas principais mudanças nesse campo. A tarefa consistia em repensar o instrumento paradigmático a partir do qual a França se representava. Tratava-se de retomar a lista das subcategorias bem como a organização das categorias em vários níveis hierárquicos. Desrosières se interessa primeiramente pela história da nomenclature das categorias socioprofissionais e parte igualmente da reflexão de Marcel Mauss e Durkheim sobre as classificações que Bourdieu deu continuidade (DESROSIÈRES, 2014, p. 8).

A nomenclatura de catégories socioprofessionnelles– CSP (Categorias socioprofissionais) foi pensada pelo INSEE em 1954 para classificar os indivíduos a partir de suas condições profissionais, levando em conta diversos critérios como profissão, atividade econômica, qualificação, posição na hierarquia social e status. As nomenclaturas deste período foram abandonadas em 1982 e substituídas pela nomenclatura das professions et catégories socioprofessionnelles - PCS (profissões e categorias socioprofissionais) que se fundamentam em outros critérios tais como a renda e o nível escolar, mas esse método será menos utilizado pela estatística pública (DESROSIÈRES, 2008b, p.13-14).O resultado da análise de Desrosières demonstra que a nomenclature é produto “impuro” da conjunção entre as classificações naturais e as classificações lógicas; era um arranjo entre tipologias de profissões estabelecidas na realidade social do trabalho e princípios de classificação lógica pretendendo ter valor para todas as sociedades quando, na verdade, são heranças de lutas históricas. Assim, o instrumento é produtor de uma representação da questão que ele trata e “outra modalidade de uso da estatística na linguagem da ação é presumível. Ela se apoia na ideia de que as convenções, definindo os objetos, engendram na verdade realidades na medida em que esses objetos resistem à provas que se abatem sobre eles” (DESROSIÈRES apud LASCOUMES; GALÈS, 2012, p. 34). Assim, o instrumento cria efeitos de inércia que torna possível a resistência contra as pressões exteriores tais como os conflitos de interesses ou as mudanças política mais globais.

Dessa forma, aparece no século XIX a diferença entre patrões e assalariados; em seguida nos anos de 1930 a ampliação dos níveis de qualificação legitimada pelo diploma modificou a representação do trabalho. A nomenclarure das categorias socioprofissionais não encontra sua razão de existir na dedução lógica e tampouco na indução a partir das profissões observadas, mas sim nas determinações históricas orientadas pelas lutas de classificações e, neste sentido, tem um valor apenas para um grupo restrito de categorias. Na coleta de dados sobre a população, diversas profissões são declaradas pelos entrevistados, mas a tarefa primordial do estatístico consiste em classificar a população (em quantidade restrita de categorias) em grupos socialmente homogêneos e sem prejuízo para as características originais das profissões. Esta homogeneidade supõe certa afinidade entre as pessoas de uma mesma classe e o que a taxonomista registra é o estado dessas lutas com as deformações que estão vinculadas à posição que o indivíduo ou grupo ocupa no espaço social. O problema para Desrosières é que a instituição estatística se representa utilizando uma legitimidade oriunda do Estado e outra mais científica (DESROSIÈRES, 2003b, p. 219).

É a partir dessa constatação de que a nomenclature não provém unicamente de uma categoria lógica que o problema de sua dimensão mutidimensional (bem como a dupla estrutura do espaço social) é pensado e, neste caso, Desrosières e Thévenot encontram a teoria do capital social total de Bourdieu que é dividido em capital econômico e capital cultural (DESROSIÈRES, 2014, p. 203-205). A contribuição desta pesquisa é que as categorias como os artistas, os professores, os padres, que foram classificados anteriormente como grupo outros da nomenclature, foram analisados como um grupo que tem um capital intelectual elevado, mas com pouca renda e foram classificados no grupo geral de cadres, pela proximidade em termos de capital cultural (DESROSIÈRES, 2014, p. 9).

A partir dessas constatações de Desrosières se estabelecia um novo tipo de relação entre a estatística e as ciências sociais. O ambiente no INSEE nos anos de 1970 era muito favorável às ciências sociais. O que é bem demonstrado pelo congresso de Vaucresson em 1976: Pour une histoire de la statistique (GENET, 1990). Ao mesmo tempo muitas pesquisas foram elaboradas em colaboração com um grupo de pesquisa próximo de Bourdieu. E, nesse sentido, Desrosières trabalha em particular com Luc Boltanski ,que estava escrevendo Les cadres (1982) e, neste livro, a relação entre as categorias sociais e representações políticas são analisadas em detalhe. Estas pesquisas e relações estabelecidas, nos anos 1970, entre os membros de uma mesma geração contribuiu com o nascimento de uma nova sociologia interessada pela “économies des grandeurs” (BOLTANSKI ET THÉVENOT, 1987).

Desse modo, no decorrer dos anos de 1980 uma nova forma de pensar a prática das ciências sociais emerge na França e a sociologia da quantificação de Desrosières teve um papel importante pelo fato de construir uma relação com o Centro de Sociologia das Inovações em torno de Bruno Latour e Michel Callon e com os economistas Robert Salais, André Orléan, François Eymard-Duvernay, Oliver Facereau e Jean-Pierre Dupuy. O pensamento econômico heterodoxo da escola da economia das convenções, 1970-1980, cujos economistas na sua maioria eram formados em engenharia e com forte formação em matemática, utiliza pouco o método quantitativo e em especial a econometria.

Esse pensamento provocou, a partir dos anos 1980, uma mudança no status científico das técnicas quantitativas, o que levou Desrosières a analisar a relação sutil que existe entre a preocupação com a reflexividade e a demanda de expertise que é direcionada à ciência econômica (DESROSIÈRES, 2014, p. 218-226). A noção de convenção das equivalências é importante para a emergência de uma sociologia da quantificação. Noção esta que é oriunda dos trabalhos de Bruno Latour (2004) e dos trabalhos da economia das convenções dos anos 1930 (DESROSIÈRES, 2014). O interesse desta noção é que ela combina uma noção social das convenções, e uma noção lógica, a de equivalência. É preciso se reunir para convier do que é equivalente, pois a equivalência não é dada imediatamente, ela é construída na negociação entre atores sociais. Esta ideia introduz uma ruptura com a concepção positivista das ciências sociais quantitativas ao pôr um fim à naturalização das categorias sociais oriundas da estatística.

A economia da convenção foi lançada em 1989 por um número especial da Revue économique[1]. A economia das convenções, juntamente com a escola da regulação, são duas correntes heterodoxas que surgem na França entre os anos de 1970 e 1980. Nos dois casos os pesquisadores possuem uma formação de engenheiro ligada a um componente fundamental que é a matemática. A análise que Desrosières elaborou destas duas correntes faz emergir uma preocupação não somente em relação à reflexividade, mas também em relação ao espaço que as ciências econômicas dominantes ocupam no processo de construção e orientação das políticas econômicas.

3 A QUANTIFICAÇÃO COMO OBJETO SOCIOLÓGICO

Desde sua juventude Desrosières tinha uma relação de conflito com a matemática, considerando-a como tortura. Esta disciplina era pensada por ele como uma ciência do engenheiro, do poder e é por isso que ele se interessava por uma estatística mais social e essa era a proposta da escola francesa ENSAE. Os quadros do INSEE, fundado em 1960, são formados em uma grande escola, a ENSAE, que oferece formação em nível elevado em estatística, em economia, em econometria e um pouco de sociologia. Edmond Malinvaud, desde os anos 1950, ensinava no ENSAE a econometria de Crowles Commission americana onde fez pesquisa nos anos de 1950. Esse instituto teve um papel importante no desenvolvimento da econometria. Desde seus primeiros ensinos, a economia matemática de Walras e Pareto não foram ensinadas na universidade, mas na École des Mines pelo engenheiro Maurice Allais. Este ensino era seguido pelos estudantes da ENSAE. Nos mesmos anos 1950-1960, dois instrumentos foram desenvolvidos: a contabilidade nacional e as pesquisas socioeconômicas, uma vez que era um período de crescimento econômico e de grande otimismo sobre a potencialidade das ciências sociais, mais precisamente quantitativa, para acompanhar o progresso e as transformações econômicas. Nesse contexto, a “informação pública torna-se assim uma questão considerável que permite orientar as demandas e os termos da escolha, porque o direito à informação/obrigação de informar pode aparecer como novo arcano do poder” (LASCOUMES et al, 2012, p. 29)

Essas ciências sociais se tornaram quantitativas desde os anos 1930 e 1940. Uma economia matemática é marcada pelas probabilidades e a estatística inférentielle nasceu nos Estados Unidos no fim dos anos 1940, com Trygve Haavelmo e Tjalling Koopmans, tendo sido utilizada primeiramente no âmbito dos modelos macroeconômicos keynesiano. Em seguida, pela sociologia empírica quantitativa de Paul Lazarsfeld e desenvolvida na França após 1945. Enfim, a história na École des Annales tornou-se quantitativa sob a influência de François Simiand e Ernest Labrousse e mesmo com François Furet. Os jovens economistas-estatísticos eram formados por influências contraditórias entre os anos 1960 e 1970. Por outro lado, o otimismo quantificador e cientista eram acompanhados por uma sociedade com forte taxa de crescimento e conhecia um baixo índice de desemprego (FOURQUET, 1980). O marxismo ainda era influente, em 1965 a União dos estudantes comunistas era ativa no universo estudantil, inclusive no ENSAE (DESROSIÈRES, 2014, p. 214). Os primeiros economistas da escola da regulação, como por exemplo, Aglietta que se formou na ENSAE, foram marcados por essa contraformação de inspiração marxista. O jovem sociólogo Bourdieu, que encontrou os jovens estatísticos na Argélia durante a guerra, trabalhou com eles até os anos de 1980 e ensinou na ENSAE de 1963 a 1966. Bourdieu introduziu a preocupação com as práticas estatísticas que devem ser analisadas reflexivamente e isso se configura como os primeiros passos que conduzem à economia das conversões e à sociologia da quantificação.

Tal sociologia se constituiu como uma ligação essencial entre a sociologia das ciências, a economia das convenções e a sociologia crítica de Bourdieu e Luc Boltanski. Esta relação se expressa bem quando, mesmo continuando no INSEE, no laboratório de pesquisa do instituto, Desrosières continua fazendo parte do Grupo de Sociologia Política e Moral (GSPM). Ele publicou em 1993, na coleção Antropologie des sciences sociales et des techniques, coordenada por Bruno Latour e Michel Callon, La poltitique des grands nombres. Une histoire de la raison statistique (DESROSIÈRES, 1993). Esse livro faz uma verdadeira análise histórica da razão estatística e o período estudado vai do século XVII até meados do século XX. Os objetos de pesquisa vão além das nomenclatures e Desrosières analisa elementos tais como técnicas de sondagem, econometria, etc. Ele mostra que todos os instrumentos estatísticos são ao mesmo tempo lógicos e naturais, construídos e reais e, enfim, todos os dados estatísticos são artificiais porque são construídos por seres humanos e reais porque descrevem o mundo. A sociologia da quantificação tem por objeto a circularidade da ação e da representação estatística, mas não somente, uma vez que as pesquisas nesta área visam igualmente analisar o conjunto das operações de construção e os usos dos instrumentos estatísticos, bem como os efeitos sobre a realidade social construída estatisticamente. É o que sugere a análise de Desrosières sobre as formas de construção dos dados estatísticos, os altos custos e as consequências da cristalização das categorias estatísticas (DESROSIÈRES, 1993, 2008a).

Os objetos da estatística, para Desrosières, não podem ser negados, pois eles existem, mas ao mesmo tempo eles são produtos sociais e não passam de convenções. Na verdade, a realidade aparece como produto de uma série de operações materiais de inscrição, de classificação, de medidas e as convenções de equivalência que as fundam são solidamente forjadas a partir de grandes investimentos de coleta de dados (DESROSIÈRES, 1993, p. 21). A permanência dos objetos que legitimam a prática estatística são eles mesmos produtos de investimentos políticos, sociais e técnicos (DESROSIÈRES, 1993). Assim se compreende melhor o atual poder da econometria moderna e mais especificamente o poder da razão estatística. Desrosières mostra bem como os modelos estatísticos são construídos e utilizados para fins ideológicos e que as condições da sua duração no tempo supõem a negação ou esquecimento das condições de sua gênese (DESROSIÈRES, 1995, p. 13). Desse modo, ele nos esclarece sobre as formas sociológicas do raciocínio estatístico que são científicos e políticos e analisa as formas de convenções estabelecidas para se construir o instrumento estatístico. Desrosières insere nesse processo a coerção social; a ciência tem esse duplo caráter de ser cognitiva e social ao mesmo tempo e o argumento estatístico ocupa um espaço diferenciado no campo científico.

A sociologia da quantificação analisa a relação entre a formalização dos instrumentos ou dos modelos estatísticos com o espaço social no qual os mesmos são produzidos. Neste sentido, as diferentes formas da estatística em diversos países da Europa desde o século XIX permitem compreender como o Estado participa do processo de construção de um espaço de equivalências cognitivas elaboradas com fins práticos, para descrever as sociedades humanas, administrá-las ou transformá-las. Os dados estatísticos são utilizados e transportados por agentes múltiplos e a lógica do Estado consiste em forjar instrumentos para a ação pública. Esta atividade é definida como a arte de raciocinar com os números sobre objetos relativos à governabilidade. Nesse sentido, a lógica cognitiva e a lógica da ação pública são inseparáveis. No caso da França, a competência técnica tende a ser incorporada pelo Estado por intermédio dos politécnicos que se tornam economistas (DESROSIÈRES, 1993, p. 203).

Aos poucos surgem preocupações em relação aos modos diferenciados de manipulação dos instrumentos estatísticos e seu problema específico que é classificar, medir e quantificar. Desrosières participou de pesquisas sobre a forma como os seres humanos descrevem a qualidade de suas realidades específicas, já que seu interesse era mostrar que existem certas qualidades humanas que não podem ser quantificadas. Nota-se que há um conjunto de fatores que fazem surgir as pesquisas de Alain Desrosières sobre a quantificação como objeto sociológico e dentre elas podemos destacar o ambiente intelectual francês onde a filosofia de Foucault analisa o Estado a partir de suas práticas.

A teoria do Estado de Foucault deve ser compreendida a partir das práticas do Estado, da governabilidade entendida como um modo específico de exercício do poder, mas é a partir dos anos 1970 que Foucault desenvolve uma reflexão em seus seminários sobre o governo de si mesmo e dos outros. Nesse período ele se interesse pelas ciências camerais, que é uma forma de organização concreta da sociedade, abordagem essa que lhe permite se distanciar dos grandes debates ideológicos que marcaram os anos 1960-1970 (LASCOUMES et al, 2012, p.26) O seminário sobre a governabilidade no período de 1978-1979 e o de 1980, sobre a razão do Estado, são centrais para analisar sua concepção da governabilidade. Foucault começa a se interessar pelas questões materiais das práticas do Estado, as ações operacionais sobre a governança dos sujeitos e da população. Para ele a estatística faz aparecer certas regularidades e efeitos da agregação das famílias, visto que ela permite quantificar fenômenos específicos de uma população e esta aparece como sujeito das necessidades, mas também como objeto nas mãos do governo (FOUCAULT, 2001, p. 651-652). Ele nos diz ainda que a governabilidade é indissociável da constituição de um conhecimento de todos os processos que giram em torno da população no sentido amplo, o que ele nomeia de economia.

Para Foucault, a constituição da economia política foi possível a partir do momento em que emerge um novo sujeito que é a população. Foucault considera que na trilogia: soberania, disciplina e gestão governamental o foco central é a população e é, justamente nesse campo, que os mecanismos essenciais são os dispositivos de segurança (FOUCAULT, 2001, p. 653-654). A economia política é considerada como ciência e ao mesmo tempo como técnica de intervenção e de governabilidade (FOUCAULT, 2001, p. 655). Foucault se distancia das análises em termos de ideologias para pensar o Estado a partir dos instrumentos, os processos e as racionalidades que fundamentam as práticas do Estado. Falar em termos de governança significa argumentar a partir de transformações radicais das formas de exercício do poder por uma autoridade centralizada; processo que resulta da racionalização e da técnica. Foucault introduz, assim, o conceito de tecnologia da governança e instrumentação da ação pública.

Foucault demonstra sistematicamente a importância dos procedimentos técnicos, da instrumentalização como atividade central da arte de governar (LASCOUMES, 2004, p. 6). O instrumento de ação pública é definido como um dispositivo técnico e social que organiza as relações específicas entre o poder público e a população em função das representações e dos significados atribuídos aos instrumentos. A estatística como instrumento de ação pública é definida por Desrosières como um conjunto de problemas que são colocados tanto pela escolha quanto pelo uso dos instrumentos –técnicos, meios de operar, dispositivos – que permitem materializar e operacionalizar a ação do governo.

Trata-se não somente de compreender racionalmente, mas também de considerar os efeitos sociais produzidos pelas escolhas políticas (DESROSIÈRES, 1993, p. 401). “A noção de instrumento da ação pública (IAP) permite ultrapassar as abordagens funcionalistas que se interessam antes de tudo pelos objetivos das políticas públicas, por considerar a ação pública sob o ângulo dos instrumentos que estruturam seus programas. É de algum modo um trabalho de desconstrução pelos instrumentos. A abordagem pela instrumentação permite apreender dimensões que de outra maneira seriam pouco visível” (LASCOUMES et al, 2012, p. 21). Esta abordagem se apoia na história das técnicas e na sociologia das ciências que desnaturalizaram as técnicas. Foucault busca compreender as regras impostas pelos instrumentos de gestão, suas significações em termos de poder e a difusão de modelos cognitivos. Ao utilizar de forma equivalente os termos do dispositivo e instrumento, ele mostra o caráter heterogêneo dos instrumentos de gestão que são formados por um substrato técnico, uma representação esquemática da organização e uma filosofia da gestão (LASCOUMES, 2004, p. 7).

Essa teoria de Estado de Foucault é fonte de inspiração para Desrosières que se interessa mais pelos modos de utilização que o Estado faz dos instrumentos estatísticos, ao passo que Foucault se preocupa mais com a economia política como instrumento de governabilidade. Nesse sentido, são as práticas da vida pública que despertam o interesse tanto de Foucault quanto de Desrosières. Este último observa que, a partir dos anos 2000, novos instrumentos estatísticos são difundidos na França e em toda parte do mundo. Tratava-se de indicadores de performatividade, dos objetivos quantificáveis e todas as técnicas de benchmarking. Em 2001 é promulgada a lei orgânica relativa às leis de finanças (LOLF) e ela possibilitou a criação de novos indicadores quantitativos de performatividade que foram implementados em diversas administrações inclusive no INSEE e estes exigem que cada agente deve prestar conta quantitativamente de suas atividades profissionais. As críticas diversas contra esses instrumentos de gestão e a generalização dos mesmos com o neoliberalismo (BRUNO, 2008; GINGRAS, 2014) nos fez perceber a relevância da sociologia da quantificação de Desrosières.

3. 1 Formas de Estado

Ao descrever historicamente as cinco formas de governabilidade e os diferentes usos da estatística, Desrosières mostra bem que cada forma de Estado conserva elementos da fase precedente e as transforma ao mesmo tempo. O Estado engenheiro, por exemplo, engloba formas diferentes indo dos grandes projetos da França de Charles de Gaulle às das economias planificadas do socialismo. Neste caso, as estatísticas são comparáveis ao de uma grande empresa que planifica seu atelier ou de um exército administrando sua logística. Esta concepção se desenvolve no período de guerra e implica uma centralização organizada das forças produtivas. Os engenheiros franceses oriundos da escola politécnica, escola militar, durante muito tempo foram os representantes desta concepção técnica e política (LASCOUMES, 2004).

No caso da planificação da Rússia, duas formas de quantificação se sucederam. Nos anos 1920 as pesquisas por sondagem aleatória sobre os modos de vida da população seguiram de uma tradição matemática já presente desde a revolução de 1917, tendo como objetivo quantificar as necessidades da população. Em 1930 a contabilidade ligada ao Plano autoritário estalinista substituiu esta estatística sofisticada e muitos estatísticos foram fuzilados. Logo após os anos 1960 a estatística soviética era considerada pelo Ocidente, como sendo de péssima qualidade ou sujeita a todo tipo de manipulação. O ponto comum destas duas concepções é a retroação dos indicadores sobre os atores quantificados. Uma análise deste tipo de Estado é elaborada por Michel Foucault e ele critica o marxismo ortodoxo pela incapacidade de compreender os mecanismos do aparelho do Estado burguês os quais não se modificaram com a revolução (LASCOUMES, 2004, p. 2).

O Estado liberal clássico reduz ao mínimo a intervenção do Estado visando a liberação das forças do mercado. É o sonho de uma sociedade sem Estado, que é uma utopia. Por sua vez, o Estado-providência visa proteger os trabalhadores assalariados da lógica do capitalismo de mercado e para isso organiza os sistemas de proteção contra o desemprego, os incidentes de trabalho e se preocupa com a saúde do trabalhador garantindo uma previdência social. Assim, o Estado se constrói com a grande crise social e econômica no fim do século XIX. Os instrumentos estatísticos são centrados no trabalho assalariado, mais precisamente as pesquisas sobre o emprego, sobre as necessidades do trabalhador e o índice de preço ao consumidor. Nesse contexto nascem as pesquisas sobre as condições de vida dos operários e as estatísticas oficiais deste período são mais voltadas para essa temática.

O Estado Keynesiano parte de uma filosofia macroeconômica da sociedade sem contestar o caráter do mercado capitalista. É com a grande crise de 1930 que esta concepção emerge e domina dos anos 1945 a 1975. A contabilidade nacional é um o instrumento central (FOURQUET, 1980). O consumo e os índices de preço que quantificam a inflação são concernentes a toda a população e não somente aos trabalhadores assalariados. Os modelos macroeconômicos confrontam a oferta e a demanda global (ARMATTE, 2010). Tanto no Estado providência quanto no Estado keynesiano, as retroações resultam das indexações sobre o índice de preço ou sobre o produto interno bruto (PIB). A construção de índices conforta a hipótese de Dersosières na medida em que “trata-se de uma técnica atualmente banalizada de estandardização de uma informação pela combinação de diferentes medidas sob uma forma, considerada, em dado tempo, às vezes como significativa e como comunicável (LASCOUMES et al, 2012, p. 35).

Enfim, o Estado neoliberal se fundamenta nas dinâmicas da microeconomia marchand, as orientadas por sistemas distintos e aceita as principais hipóteses da teoria das antecipações racionais. Esta concepção surge a partir da crise de 1970 e a retroação toma a forma de um benchmarking, da avaliação, da classificação e da performance. Observa-se que as tecnologias que mais se desenvolvem hoje são as da gestão, da coleta, da análise e transmissão das informações (GINGRAS, 2014). Nesse sentido, são elaborados diversos indicadores de excelência e de qualidade que se multiplicam, ao mesmo tempo em que se camuflam as bases de construção desses indicadores estatísticos. É no contexto de reforma das universidades, particularmente na Europa, desde o início do ano 2000, que o conceito central passou a ser a avaliação. Assim, a bibliometria tornou-se sinônimo de avaliação, como se o único objetivo do trabalho acadêmico fosse a avaliação da pesquisa (BRUNO, 2008; GINGRAS, 2014).

Ora, no Estado neoliberal a avaliação resulta dos procedimentos individuais que visam a modelizar os comportamentos dos atores e até mesmo a do poder público. Esta concepção é totalmente diferente das precedentes e se fundamenta na teoria das antecipações racionais. O Estado é dividido em diversos centros de direção mais ou menos autônomos e os agentes gerados quase como uma empresa. Os agentes são atores como qualquer outro, atuando a partir das mesmas formas de modelização que qualquer ator microeconômico (DESROSIÈRES, 2014, p. 44). Para Desrosières, um “fio condutor da análise das relações entre a ferramenta estatística e seu contexto social e cognitivo é fornecido pela história dos modos de pensar o papel do Estado na direção da economia” (DESROSIÈRES apud LASCOUMES et al, 2012, p. 31). A estatística não somente valida os modelos econômicos e seu uso político, mas também contribui com o processo de institucionalização das diferentes relações sociais.

3. 2 A estatística como instrumento de prova e de coordenação

A racionalização estatística pode induzir efeitos perversos ao focalizar os indicadores em si mesmo e não as práticas sociais. O simples fato de recorrer ao verbo medir indica que se estabelece uma relação direta com metrologia das ciências da natureza. É por essa razão que Desrosières distingue o verbo quantificar e medir, distinção cujo objetivo é separar analiticamente dois momentos históricos e socialmente distintos. O verbo quantificar é utilizado para expressar e fazer existir sob a forma numérica o que antes era expresso em palavras e não em números. Em contrapartida, a ideia de medir implica que algo já existe sob uma forma que pode ser medida segundo uma metrologia realista como a altura do Mont-Blanc. A utilização em ciências sociais do verbo medir, para avaliar as políticas públicas induz a um erro na medida em que deixa de considerar que a quantificação é resultado de uma convenção de equivalência.

O verbo quantificar supõe que seja estabelecida e elaborada uma série de convenções de equivalências que implica em comparações, negociações, traduções, inscrições, códigos, procedimentos codificados e cálculos que conduzem ao indicador numérico. Assim, a quantificação se decompõe em convir e medir. O primeiro é desconsiderado pelos economistas, mas é tão importante quanto medir. A quantificação nos faz pensar na dimensão sociológica e cognitiva criadora dessa atividade, pelo simples fato de que ela não oferece apenas um reflexo do mundo, mas transforma e o reconfigura de outra forma. O precedente histórico é a invenção do conceito de probabilidade, no século XVII, utilizado para quantificar o incerto por meio de números entre 0 e 1 (DESROSIÈRES, 2014, p. 39). A hipótese central da sociologia da quantificação é que, como conjunto de convenções socialmente admitidas e as operações de medidas, criam-se uma nova forma de pensar, de representar o mundo e de agir sobre ele. Quando os procedimentos da quantificação são codificados e entram na vida cotidiana, as convenções iniciais são esquecidas e o objeto quantificado é naturalizado (DESROSIÈRES, 2014, p. 40).

A quantificação estatística tem essa dupla natureza por ser um instrumento de coordenação, administração e gestão que é mais político e é ao mesmo tempo instrumento de prova que se constitui como uma dimensão científica mais prestigiada. A concepção da administração científica do Estado tornou-se banal com as frequentes referências às noções de racionalização e de burocracia de Max Weber e de governabilidade de Foucault. Mas Max Weber foi pioneiro na análise das formas de exercício do poder “sublinhando a importância de dispositivos encarnando uma racionalidade legal, formal, no desenvolvimento das sociedades capitalistas, autonomizou o lugar das tecnologias matérias de governo em relação às teorias clássicas centradas principalmente na soberania e legitimidade dos governantes” (LASCOUMES et al., 2012, p. 23). O interesse de Desrosières é analisar essa racionalização levando em conta os instrumentos técnicos da estatística em sua dimensão política, sua estrutura e conteúdo que é congruente com formas de pensar a sociedade e de agir sobre a mesma. A sociologia da quantificação se interroga sobre as diferentes formas de pensar o Estado e o papel da estatística nas diversas formas possíveis de Estado (DESROSIÈRES, 1993).

Os instrumentos técnicos são as nomenclaturas ou as modalidades de enquetes e os instrumentos mais formais do tipo matemático. Tais instrumentos foram discutidos em congressos de estatística. A congruência dos instrumentos cognitivos e a filosofia política são ilustradas pela utilização feita pelos higienistas amigos de Quetelet entre 1830 e 1860; o uso da correlação e da regressão pelos darwinistas, 1880 e 1930 e a reaparição do método de sondagem 1895 e 1935 no contexto da criação do Estado-providência. Em cada um dos casos podemos analisar a modalidade de congruência entre os formalismos estatísticos e os tipos políticos: higienismo, eugenismo, o keynesianismo e o Estado-providência.

Os pioneiros nos congressos, discípulos de Quetelet, se reconfortam com a ideia de que eram os mensageiros de uma nova modernidade, logo, ela circulava como possibilidade de influenciar o poder público e as políticas econômicas e sociais. O sucesso dos pioneiros se consolida com a institucionalização da estatística oficial, que se torna um negócio de Estado e nesse processo o InstitutInternational de Statistique (IIS) exerceu um papel preponderante. Na verdade, a história da estatística dessa época diz respeito mais a história do próprio Estado (DESROSIÈRES, 2014, p. 99-100). Nesse sentido, a relação entre a estatística e a política é bem próxima a ponto de Desrosières pensar a estatística como uma ciência de Estado. O instrumento estatístico deve ter uma legitimidade científica como instrumento de prova, mas isso não é suficiente, pois ele deve igualmente ter uma legitimidade social para poder exercer um papel de instrumento de coordenação e de linguagem comum entre os atores sociais (DESROSIÈRES, 2014, p. 104).

A quantificação tem uma linguagem específica que permite transferência, comparações, agregações e manipulações padronizadas pelo cálculo e interpretações rotineiras (Desrosières, 2008). As convenções quantitativas são produtos da história do Estado e dos modos de governança. Essa história permite fazer o contraste entre a governabilidade neoliberal e as relações precedentes. A governança neoliberal recorre mais aos indicadores de performace e ao benchmarking, ou seja, a avaliação e a classificação de outros tipos de governança como a do Estado providência.

3. 3 Crise econômica e estatística

Para Desdorières, nas grandes crises econômicas a estatística é mobilizada para explicar a gravidade da situação, já que cada crise corresponde igualmente a momentos de debate sobre o papel do Estado na regulação e na elaboração das políticas econômicas. Nesse sentido, há também novas formas de quantificação e novos sistemas de observação estatística (DESROSIÈRES, 2014, p. 87) A crise de 1930 originou as políticas macroeconômicas e a contabilidade nacional fundada por Claude Greson (FOURQUET, 1980). Por outro lado a macroeconomia, introduzida na França por Edmond Malinvaud, é colocada em prática nos modelos de inspiração keynesiana até os anos de 1980, antes da intervenção da teoria das antecipações racionais que deslegitima as políticas de inspiração keynesianas, estabelecendo assim a desregulação do Estado. A criação na Europa da união econômica e monetária e a criação do euro conferem um grande espaço institucional ao Banco Central Europeu. As pesquisas de conjuntura trimestrais são cada vez mais exigidas pelo Banco Central Europeu (LEBARON, 2006). A publicação destes resultados se torna um objeto mediático, despertando debates e contradições sobre a eficácia das políticas econômicas e a manipulação frequente dos números.

Com os estudos de ciclos econômicos e a preocupação com as previsões econômicas emergiram numerosos centros de pesquisa em conjuntura econômica criados nos anos de 1920 em diversos países. Nos Estados Unidos, o barômetro de Havard, analisava a distância temporal entre as variações de certas grandezas econômicas e buscava indícios que poderiam antecipar crises econômicas. Mas este modelo fracassou ao não antecipar a crise de outubro de 1929. Tal método abriu espaço para as pesquisas de conjuntura econômica que são feitas junto aos chefes das empresas e depois com modelizações econômicas mais sofisticadas. A crise de 1970 deu origem às categorias neoliberais da microeconomia que induzem novas reformas do Estado centralizado sobre os indicadores de performatividade (DESROSIÈRES, 2014, p. 85-87).

A crise econômica e cognitiva de 2008 deu origem a novos debates sobre os indicadores estatísticos (LEBARON, 2010). Neste caso, a comissão coordenada por Amartya Senet Joseph Stiglitz foi encarregada pelo governo francês para elaborar propostas cujo objetivo era complementar as contas nacionais por meio de avaliações de elementos sociais e ecológicos que estavam ausentes. O relatório foi entregue em 2010 e propõe uma determinada quantidade de novos indicadores de bem-estar social. Por outro lado, um Fórum para analisar os indicadores de riqueza foi criado (FAIR) e tende a promover um novo debate na sociedade. Para Desrosières é difícil prever os efeitos da crise financeira que explodiu em 2008 em termos de inovação dos indicadores estatísticos. No entanto, para ele as crises ecológicas e financeiras podem ser a base para uma nova configuração da produção e dos usos dos indicadores estatísticos.

4 CONCLUSÃO

A sociologia da quantificação transformou profundamente a percepção da relação entre a estatística e a política. Desrosières nos faz compreender de que forma o Estado se articula com o desenvolvimento dos mercados e como cada período histórico desenvolve seus próprios instrumentos estatísticos; o Estado não se contenta em intervir, mas ao mesmo tempo cria um sistema de observação econômica com propriedades técnicas diferentes. A sociologia da quantificação oferece um outro viés para analisar o neoliberalismo que é diferente da abordagem filosófica e econômica de Michel Foucault.

A avaliação quantificada e comparativa das performances da ação pública, chamada cultura dos resultados, começou a ser discutida nos anos de 1980. A etapa decisiva é a negociação das convenções que tornam as coisas comensuráveis, ou seja, comparáveis segundo uma escala numérica. O fato de colocar em equivalência a performance de diversos países, ou instituições, através do jogo de indicadores, tornou-se um instrumento sistemático de governança pelos números. O objetivo desta governança “é a autorregulação das sociedades humanas. Ela se apoia na faculdade do cálculo, ou seja, nas operações de quantificação[...] e de programação dos comportamentos humanos (pelas técnicas de análise comparativa dos desempenhos: benchmarking, ranking etc)” (SUPIOT, 2014, p. 70-71).

A emergência do Estado neoliberal foi uma ocasião para grandes transformações das modalidades de utilização dos argumentos estatísticos. Diversos e novos instrumentos e modos de utilização emergiram e estes são classificados como política dos números e política dos grandes números por Desrosières. De um lado a quantificação, entendida como transformação de palavras em números, resultados contábeis, indicadores de performance e por outro lado os modelos econométricos de medidas. No neoliberalismo o indivíduo se torna responsável de sua própria gestão e contabiliza sua produção a partir de uma escala de medidas que são dadas pelo serviço de gestão das empresas e pelos chefes. A gestão direta é substituída por uma gestão indireta, fundada na interiorização das coerções pelo sujeito que se torna empresário de si mesmo. A retroação dos indicadores quantitativos sobre os indivíduos os atinge em todos os momentos da vida e pode ter repercussões graves na vida psíquica da própria pessoa. A sociologia da quantificação analisa as práticas do Estado e os efeitos do modo de dominação neoliberal baseada em números.

REFERÊNCIAS

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SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Porto Alegre: editora Meridional/Sulina, 2014.

Notas

[1] Seis autores contribuíram com esse manifesto. Eles trabalharam no INSEE entre 1970 e 1980: François Eymard-Duvernay, André Orléan, Robert Salais e Laurent Thévenot, Somente Jean-Pierre Dupuy e Olivier Favereau não tiveram ligação com o INSEE. As pesquisas elaboradas a partir desse novo paradigma utilizavam o método quantitativo.


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