Resumo: Este texto analisa a permanência cultural de longa duração da servidão feudal nas relações de gênero. A permanência do campo religioso da cristandade ocidental nos processos de modernização das codificações sobre casamento civil, no século XIX, implicou uma luta política e de ideias que compungiu o campo jurídico. Implicou ainda uma atualização das concepções sobre o “casamento perfeito” e a “perfeita casada” (construções da teologia moral, séculos XVI-XVII), que, juntamente à revivificação do casamento como sacramento, produz efeitos de dominação e controle à condição feminina, com desbordes para discussões sobre aborto e sobre o corpo perfeito no tempo presente. A perfeita casada, a mulher perfeita não deveria (não deve ainda) comer em excesso. Este trabalho pretende discutir algumas das permanências culturais, enfocando a teologia moral (aquela da temporalidade mais antiga) e sua atualização histórica na contemporaneidade, tendo em vista a análise de sua apropriação cultural. O percurso implica a identificação e descrição das práticas de leitura e edição das obras dos teólogos moralistas sobre o corpo feminino. Metodologicamente trabalhamos com a história das ideias, sublinhando a complexidade de aspectos intervenientes nos estudos do campo da história da cultura política. Seja na análise das ideias políticas, jurídicas e religiosas ou na interpretação da cultura política, estamos combinando os procedimentos tradicionais da pesquisa em história das ideias com os procedimentos epistemológicos do método indiciário. Os textos dos teólogos moralidades são interpretados, combinando a análise de forma e conteúdo.
Palavras-chave:Casamento civilCasamento civil,teologia moralteologia moral,cultura jurídicacultura jurídica,cultura religiosacultura religiosa.
Resumen: Este texto analiza la permanencia cultural de larga duración de la servidumbre feudal en las relaciones de género. La permanencia del campo religioso de la cristiandad occidental en los procesos de modernización de las codificaciones sobre casamiento civil, en el siglo XIX, implicó una lucha política y de ideas que impactó en el campo jurídico. Implicó también una actualización de las concepciones sobre el “casamiento perfecto” y la “perfecta casada” (construcciones de la teología moral de los siglos XVI-XVII), que, además de rehabilitar el casamiento como sacramento, produjo efectos de dominación y control de la condición femenina, llegando hasta la actualidad con debates sobre el aborto y el cuerpo perfecto. La perfecta casada, la mujer perfecta, no debería (aún no debe) comer en exceso. Este trabajo pretende analizar algunas de las permanencias culturales, enfocando en la teología moral (hasta la más antigua) y su actualización histórica en la contemporaneidad, con miras al análisis de su apropiación cultural. El recorrido implica la identificación y la descripción de las prácticas de lectura y edición de las obras de los teólogos moralistas sobre el cuerpo femenino. A nivel metodológico, trabajamos en base a la historia de las ideas, subrayando la complejidad de aspectos que surgen en los estudios del campo de la historia de la cultura política. Que sea en el análisis de las ideas políticas, jurídicas y religiosas o en la interpretación de la cultura política, hemos combinado los procedimientos tradicionales de la investigación en historia de las ideas con los procedimientos epistemológicos del método indiciario. Los textos de los teólogos moralistas han sido interpretados, combinando un análisis de la forma y del contenido.
Palabras clave: Casamiento civil, teología moral, cultura jurídica, cultura religiosa.
Abstract: This article analyzes the long-term cultural permanence of feudal servitude in terms of gender relations. The permanence of Western Christianity in the processes of modernizing codes on civil unions in the nineteenth century implied a political and ideological struggle which divided the legal field, also serving to update the concepts of the “perfect marriage” and the “perfect wife” (constructions belonging to the moral theology of the sixteenth and seventeenth centuries). Along with reviving marriage as a sacrament, this also led to the dominance and control of the female condition, with ramifications on debates on abortion and the perfect body in modern times, such as the idea that the perfect wife or the perfect woman should (still) not eat too much. This work aims to discuss several cultural permanences, focusing on less recent moral theology and its historical updating for modern times, in light of an analysis of its cultural appropriation. The discussion implies an identification and description of the practices of reading and publishing the work of moral theologians on the female body. We also methodologically consider the history of ideas, highlighting the complexity of aspects intervening in studies on the field of the history of political culture. Whether by means of an analysis of political, legal and religious ideas or in the interpretation of political culture, we have combined traditional research procedures belonging to the history of ideas with epistemological procedures characteristic of the evidential method. We also interpret moral theologians’ texts, combining an analysis of form and content.
Keywords: Civil unions, moral theology, legal culture, religious culture.
Résumé: Ce texte analyse la permanence culturelle au long cours de la servitude féodale au sein des rapports de genre. Cette persistance du champ religieux de la chrétienté occidentale au sein des processus de modernisation des codifications du mariage civil au XIXème siècle a impliqué une lutte politique et des querelles d’idées qui ont secoué le champ juridique. Cela a également engendré une mise à jour des conceptions relatives au « mariage parfait » et à l’« épouse idéale » (des constructions de la théologie morale des XVIème et XVIIème siècles), qui, conjointement au renouveau du mariage en tant que sacrement, a produit des effets de domination et de contrôle de la condition féminine, avec des conséquences sur les débats actuels autour de l’avortement et du corps parfait. L’épouse idéale, la femme parfaite, ne devait pas (ne doit toujours pas) manger de trop. Ce travail veut débattre de certaines permanences culturelles encore en vigueur en s’intéressant plus particulièrement à la théologie morale (aussi ancienne soit-elle) et à son actualisation historique, mais également à l’appropriation culturelle contemporaine qui en est faite. Ce parcours implique l’identification et la description des pratiques de lecture et d’édition des ouvrages des théologiens moralistes sur le corps féminin. Du point de vue méthodologique, nous avons travaillé avec l’histoire des idées pour souligner la complexité des aspects intervenant dans les études du domaine de l’histoire de la culture politique. Que ce soit dans l’analyse des idées politiques, juridiques et religieuses ou dans l’interprétation de la culture politique, nous combinerons les procédures traditionnelles de la recherche en histoire des idées avec celles, épistémologiques, de la méthode indiciaire. Les textes des théologiens moralistes seront interprétés en combinant analyse de forme et de contenu.
Mots clés: Mariage civil , théologie morale , culture juridique , culture religieuse.
摘要: 本文分析了男女性别关系的封建农奴制度在文化上的长阶段持续。西方基督教世界的民事婚姻法律在十九世纪的现代化进程中,受到宗教领域的持久的影响,这就意味着须要在司法领域里展开多场持久的政治斗争和思想斗争。同时也意味着须要刷新“完美婚姻”和“完美嫁人”的观念,这些构建于十六和十七世纪的神学道德观,加上西方婚姻的宗教神圣化,对女性实行了统治和控制。在当代,神学道德还在影响人们对堕胎和完美身体的讨论。举例来说,现在仍有人认为,结了婚的完美女人不应该(不可以)吃过多的食物。本文讨论了一些西方基督教传统文化的沉淀,比如道德神学(最老的沉淀)和它在当代的更新,分析了道德神学对当代西方文化的浸淫。本论文分析了道德神学家的涉及女性身体的文字作品,和神学家的阅读行为。从方法论方面来说,我们的研究方法是思想史(historia das ideias)的研究方法,同时也考虑到所涉及的政治文化史的研究方面的复杂性。无论是分析政治,法律和宗教观念,还是对政治文化的解读,我们都综合了思想史研究方法与认识论研究方法这两者的注重考证分析的传统。作者对道德神学家的文本材料的形式和内容进行分析解读。
關鍵詞: 公证结婚, 道德神学, 法律文化, 宗教文化。.
“Casamento perfeito”, cultura religiosa e sentimentos políticos[1]
“Casamiento perfecto”, cultura religiosa y sentimientos políticos
The “perfect marriage”, religious culture and political sentiments
« Mariage parfait », culture religieuse et sentiments politiques
完美的婚姻,宗教文化和政治情感

Recepção: 15 Dezembro 2014
Aprovação: 06 Março 2015
1. Em 1973, convidado pela militância feminista francesa, o medievalista Georges Duby proferiu conferência memorável, depois publicada sob a forma de um pequeno livro, intitulado Eva e os Padres.[3] Nela afirmava a permanência cultural de longa duração da servidão feudal nas relações de gênero num adiantado século XX. A análise destas permanências possibilitou inovações temáticas que não se limitaram exclusivamente à discussão sobre as relações de gênero. A permanência do campo religioso da cristandade ocidental nos processos de modernização das codificações sobre casamento (que se queria “civil” no século XIX) implicou uma luta política e de ideias que compungiu o campo jurídico nos últimos dois séculos. Implicou ainda uma atualização das concepções sobre o “casamento perfeito” e a “perfeita casada” (construções da teologia moral, séculos XVI-XVII), que, juntamente à revivificação do casamento como sacramento produz efeitos de dominação e controle da condição feminina, com desbordes, por exemplo, para discussões sobre aborto e sobre o corpo perfeito. A perfeita casada, a mulher perfeita não deveria (não deve ainda) comer em excesso.
Este trabalho pretende discutir algumas das permanências culturais e suas revivificações, enfocando a teologia moral (aquela da temporalidade mais antiga) e sua atualização histórica na contemporaneidade, tendo em vista a análise de sua apropriação cultural. O percurso implica a identificação e descrição das práticas de leitura e edição das obras dos teólogos moralistas sobre as mulheres.
Metodologicamente estamos trabalhando com a história das ideias, sublinhando a complexidade de aspectos intervenientes nos estudos do campo da história da cultura política. Seja na análise das ideias políticas, jurídicas e religiosas ou na interpretação da cultura política, estamos combinando os procedimentos tradicionais da pesquisa em história das ideias com os procedimentos epistemológicos do método indiciário. Os textos dos teólogos moralidades são interpretados, combinando a análise de forma e conteúdo, tal como sugerido por Robert Darnton.[4]
Estamos ainda levando em consideração o debate epistemológico encaminhado no campo dos estudos históricos sobre as implicações entre retórica/narrativa (interpretação) e prova (documental). Tomamos a crítica (e sua defesa) dirigida à prática historiográfica do historiador italiano Carlo Ginzburg,[5] um dos expoentes polemistas das duas últimas décadas que tem brindado o campo dos estudos históricos com teses e ensaios inovadores. Os estudos históricos são um campo de saber que tem, recorrentemente, se preocupado com as questões da ordem do que se designa por “realidade concreta” - aquela referida aos fatos (como se os dados, ou fatos históricos, contivessem, por si só, uma “essência” que não fosse afetada pelas mediações múltiplas que se interpenetram por todo o acontecer das práticas sociais).
Aplicando a metodologia de análise histórica presente na prática historiográfica de Ginzburg, esta, de fato, inspirada no método regressivo de Marc Bloch no livro Apologia da História ou o Ofício de Historiador,[6] devemos partir do texto onde Carlo Ginzburg trata de questões metodológicas para o campo da história. Falamos de Relações de força: história, retórica e prova,[7] conjunto de ensaios destinado a atualizar e repor no centro do debate a discussão sobre retórica e prova. Retórica e prova e suas implicações com as relações de força política e ideológica no processo de produção de conhecimento; vale dizer, problemas relativos à (des)conhecimento, reconhecimento; validação/validade das interpretações e (porque não?) ressentimentos vários produzidos pela acidez dos debates dos diferentes campos concorrentes em disputa ideológica. Epistemologia, entendimento e verdade constituem o pano de fundo destas questões, que acompanharam as formulações filosóficas sobre o campo científico por muitas décadas durante o século XX.[8]
2. O livro de Luís de León (1528?-1591) La perfecta casada foi publicado pela primeira vez em 1583, em Salamanca pela casa de Juan Fernandez. A Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, guarda em seus fundos as edições 1586, 1587 e 1595. Em seu catálogo, encontramos ainda a 7ª. edição da obra, publicada em 1957.[9] Curioso, mas muito sintomático para nossa pesquisa, que o volume desta edição mais recente não apresenta qualquer introdução ou nota explicativa sobre a temporalidade em que a obra fora escrita. O livro é novo e fresco como se fosse um produto cultural de meados do século XX.[10] Embora o catálogo da Biblioteca Nacional de Lisboa informe aos leitores o ano provável do nascimento e o ano da morte do autor (além de informar a ordem religiosa a qual pertencia Luís de León - OSA, Ordem de Santo Agostinho), o leitor não é avisado da data da primeira edição.
Contudo, é na profusão de edições do depósito legal da Biblioteca Nacional de Madri que podemos confirmar as sucessivas atualizações históricas da obra. E edições digitais estão disponíveis na base aberta de dados Dialnet da Universidad de La Rioja, Espanha. Ainda do século XVI encontramos edições de 1583, 1584, 1586, 1587 e de 1595. Do século XVII encontra-se uma única edição de 1632 e do século XVIII, o “Século das Luzes” conhecido pela radicalização anticlerical,[11] encontramos as edições de 1773, 1775, 1786 e 1799. No século XIX, localizamos as edições de 1865, 1876, 1882, 1884 1889 e 1899. A profusão das edições do século XX é surpreendente e encontramos a obra publicada na Cidade do México, em 1945. Em Buenos Aires recebe uma edição em 1943, três anos antes de Juan Domingo Perón assumir o poder na Argentina. Peron havia se casado com Eva Duarte Perón em 1944, depois denominada “mãe dos pobres”; iniciou sua carreira política em 1945, quando da prisão do marido pelos militares. Assumiu, em vários aspectos o personagem da “perfeita casada”.
As edições do século XX cobrem vários anos: 1903, 1905, 1906,1912, 1914, 1917, 1929, 1935, 1939, 1942, 1944, 1946, 1949, 1950, 1954, 1957 e 1968. Recebeu uma tradução para o holandês em 1925, que também se encontra no catálogo da Biblioteca Nacional de Madri.[12] Posteriormente à publicação da conferência de Georges Duby e outros escritos sobre a condição feminina derivados dos impactos da chamada “Revolução Sexual”, encontramos as edições de 1976, 1979, 1980, 1983, 1987, 1992, 1996, 1998, 2002, 2005 e 2008. Mesmo que consideremos edições históricas que editores organizam tendo em vista as facilitações com direitos autorais, não podemos desconsiderar suas expectativas de vendas de grandes tiragens para um público que aprecia esta literatura. Não é o caso de neste trabalho cotejar cada edição para constatar as omissões de data da primeira edição (tal como fizemos no exemplar consultado na Biblioteca Nacional de Lisboa, de 1957). Contudo, a profusão de edições salta aos olhos e mesmo que não tenha a intenção manifesta, realiza-se um processo de apropriação cultural evidente.
3. Realizamos a análise do livro de Luís de Leon pela edição de 1855 depositada na Biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro.[13] A forma da escrita é antiquíssima, paulina: epistolar, muito frequente na cristandade ocidental. Luís de Léon escreve para Doña Maria Varela Osorio, que está prestes a ser casar. “En que se habla de las leyes y condiciones del estado del matrimonio, y de la estrecha obligación que corre á la casada de emplearse en el cumplimiento dellas”.[14]
Da “perfeita casada” são esperados vários comportamentos sociais: recato, parcimônia, trabalho dedicado ao governo do lar (acordar antes e dormir depois de todos):
Pondérase la obligación de madrugar en las casadas, y se persuade á ello con una hermosa descripción de las delicias que suele traer consigo la mañana. Avísase tambien que el levantarse temprano de la cama ha de ser para arreglar á los criados y proveer á la familia.[15]
Qué confianza ha de engendrar la buena mujer en le pecho del marido, y de cómo pertenece al oficio de la casada la guarda de la hacienda, que consiste en que no sea gastadora.[16]
A honestidade e fidelidade conjugal:
Y como en el hombre, ser dotado de entendimiento y razon no pone en él loa, porque tenerlo es su propia naturaleza, mas si el faltase por caso, el faltarle pondría en él mengua grandísima, así la mujer no es tan loable por ser honesta, cuanto es torpe y abominable si no lo es.[17]
Para manter o equilíbrio financeiro doméstico, a “perfeita casada” não deve gastar muito. Precisa atender apenas suas necessidades básicas, deixando de lado as vaidades. Até mesmo em sua alimentação, a “perfeita casada não deve ser excessiva”. Pois sua necessidade física requer menos quantidade de comida do que a do homem. A perfeita casada não deve desperdiçar o que deixou de ser utilizado.
Y si el regalo y mal uso de ahora ha persuadido que el descuido y el ocio es parte de nobleza y de grandeza, y si las [mulheres casadas] que se llaman señoras hacen estado de no hacer nada y de descuidarse de todo, y si creen que la granjería y labranza es negocio vil y contrario de lo que es señorío, es bien que se desengañen con la verdad.[18]
A alusão ao estado de parcimônia quanto ao regime alimentar das mulheres, não pode passar sem um comentário sobre a extensão da abstinência imposta às mulheres. No século XIX, tendo o processo de aburguesamento avançado o tempo suficiente para consolidar as oposições entre a ideia de casamento como contrato (tal como sustentado no Código Civil da França) e a ideia de casamento como um sacramento, sustentado pelo conservadorismo clerical, vemos o tema tratado no romance de Nikolai Tchernichevski.[19] Vários foram os autores, do campo jurídico, mas especialmente do campo literário que refletiram sobre a condição feminina, face às mudanças impostas pela modernidade. As personagens femininas ganham um protagonismo ativo na pena de vários autores (Arthur Schnitzler, em Viena,[20] José de Alencar, no Rio de Janeiro,[21] para citar apenas dois). Mas não só no processo de criação literária, a discussão sobre o lugar das mulheres passa a ser discutido pelo campo intelectual europeu, a partir da reflexão inaugurada por J. J. Rousseu, com o livro A Nova Heloísa,[22] ainda no século XVIII.
Especificamente sobre o controle da alimentação das mulheres, não podemos deixar de mencionar o romance de Nikolai Tchernichevski, Que fazer,[23] romance que influenciou toda a juventude revolucionária russa na virada para o século XX. Sua “nova Heloísa” é Vera Palvovna, uma mulher revolucionária. Não vamos aqui detalhar toda a trama do romance Que fazer?, mas advertir que não se trata de um dilema sobre os rumos da revolução política, mas de uma outra revolução, operada no campo da libertação feminina. A revolução dos “homens novos”, os revolucionários e, por suposto, as “novas mulheres”, uma vez que revolucionárias estão incluídas na referência geral dos “homens novos”. Vera Pavlovna, livremente escolhe seus maridos (teve mais de um); experimenta muitas atividades profissionais, buscando sua independência; e escolhe, por fim, ser médica tal como seu último marido. O que queremos reter deste romance de 1863, e sua radicalidade em relação à condição feminina, entretanto, é a passagem onde, iniciando sua formação como médica e aqui já estamos nas últimas páginas do romance, Nikolai Tchernichevski refere-se ao fato de Verinha comer muito.
Eu, como narrador, sem nenhum peso na consciência, comprometi seriamente a imagem poética de Vera Pavlovna. Por exemplo, não escondi que ela jantava todo dia, com muito apetite e, além disso, bebia chá duas vezes por dia. Mas agora cheguei a tal ponto que, apesar de toda depravação descarada das minhas ideias, tenho um ataque de timidez e penso: Não seria melhor esconder este item? O que vão pensar de uma mulher quer fazer medicina? Que nervos brutos ela deve ter! Que alma insensível! Isso não é uma mulher, mas sim um açougueiro! Mas, relembrando que eu realmente meus personagens com ideias de perfeição, eu me acalmo: que julguem como quiserem quão bruta é a natureza de Vera Pavlovna. Que me importa? Se é rude, eu seja rude.[24]
Como pode ser observado, encontramos no trecho acima destacado duas anotações que norteiam nossa reflexão: a crítica à ideia de perfeição (que só um autor revolucionário poderia empreender em meados do século XIX) e a manifestação de consciência de Tchernichevski de que estava construindo seu personagem com detalhes que rompiam com o confinamento da condição feminina; seja no ideal de abstinência (sexual e alimentar), seja no ideal de perfeição. O quanto o texto de Luís de Leon circulou e foi apropriado pelo campo intelectual russo não pudemos ainda aquilatar. Mas podemos supor que sim. Tchernichevski pode ter conhecido a teologia moral tomista, dado que a expulsão dos jesuítas da Europa ocidental em fins do século XVIII implicou uma maior presença da Companhia de Jesus na Rússia czarista. Portanto, a “perfeita casada” pode ter sido conhecida no campo intelectual e religioso russo. Se isso ocorreu diretamente pelo texto de Luís de Leon, não podemos afirmar. Mas certamente, pela própria quantidade de livros produzidos que repetem a tópica da teologia moral sobre a condição feminina, a ideia de perfeição e de casamento perfeito foi apropriado pelo campo intelectual russo.
Retomando o texto de Luís de Leon, a mulher casada não deve andar muito enfeitada. É preciso que ela seja asseada, porém sua vestimenta deve ser sóbria e recatada.
De cómo el traje y manera de vestir de la perfecta casada ha de ser conforme á lo que pide la honestidad y la razón. Aféase el uso de los afeites, y condénanse las galas y atavíos, no solo con razones tomadas de la misma naturaleza de las cosas, sino también con dichos y sentencias de los padres de la Iglesia y autoridades de la Sagrada Escritura.[25]
O texto adverte as mulheres que não são bonitas e maquiam-se na ilusão de ficarem mais belas, estariam totalmente enganadas. Pois a maquiagem as torna sujas e a limpeza é o maior princípio para alcançar a formosura. “Preciadoras de lo hermoso del rostro, y no cuidadosas de lo feo del corazón; porque sin duda; como el hierro en la cara del esclavo muestra que es fugitivo, así las floridas pinturas del rostro son señal y pregon de ramera”.[26]
Para as faltas (pecados), a abstinência, sexual e alimentar, é recomendada como penitência.[27] Em resumo: a “perfeita casada” dorme e come pouco; e não pode manifestar qualquer gozo na atividade sexual.
A teologia moral da cristandade ocidental preocupa-se com outros aspectos que referem ao corpo e que igualmente constituem objeto de atualizações históricas e apropriações culturais no tempo presente. A idade de casal, por exemplo, com recomendações sobre as agruras que podem advir do casamento de homens velhos com jovens; a altura e idade ideal de casal (os homens devem ser mais velhos e mais altos que suas mulheres; mas não muito mais velhos que suas mulheres).
As “Epístolas Familiares”[28] do teólogo Antônio de Guevara (1480-1545), por exemplo, antecedem em poucas décadas à de Luís de León. Suas epístolas foram publicadas em Alcala de Henares, “en casa de Juan Gracián que sea em glória”, em 1600. Bispo de Guadix e Mondoñedo, Antônio Guevara foi capelão e cronista imperial de Carlos V. Serviu, na juventude, na corte dos reis católicos; ingressou na ordem os franciscanos (Ordem dos Frades Menores). Sua obra apresenta um forte conteúdo didático-moral e escreveu sob a forma dominante naquela temporalidade e além (a forma epistolar). O título “Epístolas Familiares” não se refere propriamente às cartas dirigidas à sua família, mas a epístolas destinadas à formação moral das famílias e dos casamentos. Na epístola XXX, encontramos uma carta dirigida para o governador Luís Bravo, que havia se enamorado, sendo velho. Tem um subtítulo: “A carta que convém ser lida pelos velhos antes que empreendam amores”.[29] Já a epístola LVI trata do inverso; contém recomendações às mulheres que se casam com algum velho; o foco é a infelicidade e dissimulação das mulheres que não amam seus maridos.
O Casamento Perfeito foi tratado por Diogo de Paiva de Andrada (1576-1660),[30] sobrinho-neto do professor de teologia em Coimbra (e seu homônimo: Diogo de Paiva de Andrada, 1528-1575). Diogo de Paiva de Andrada, o tio do autor que escreveu sobre casamento, representou o clero português no Concílio de Trento. Não se conheceram, pois o sobrinho nasceu um ano após sua morte.
Trabalhamos a publicação de 1944, editada pela Livraria e Editora Sá da Costa, de Lisboa, que está disponível no Real Gabinete Português de Leitura do Rio de Janeiro.[31] Importa destacar o precioso prefácio desta edição, assinado por Fidelino de Figueiredo. Não que este livro tenha alcançado o sucesso editorial e a longevidade nas apropriações culturais em séculos posteriores, comparativamente ao Perfecta Casada de Luís de León.
As reedições conhecidas datam de 1726,[32] 1763[33] e 1944, 1982, e 2008, respectivamente promovidas pela Livraria e Editora Sá da Costa, com o mesmo prefácio e notas de Fidelino de Figueiredo. Todas as edições da Sá da Costa foram feitas em Lisboa e apresentam o título resumido: Casamento Perfeito. E, por fim, uma edição feita do Rio de Janeiro pela Editora Livraria H. Garnier (sem data)[34] e, de certa forma, confirma pesquisa há muito realizada por nós sobre os debates sobre casamento civil no Brasil em meados do século XIX, no contexto de preparação do esboço de código civil encomendado a Augusto Teixeira de Freitas, onde opunham-se a ideia moderna de casamento civil e a ideia de casamento como sacramento, defendida pelo conservadorismo clerical.[35]
Há aqui um detalhe que não podemos deixar de ressaltar: ao que tudo indica, esta edição brasileira, sem data, terá sido editada após 1890, no contexto para assinatura da lei do casamento civil no Brasil, Decreto no.181, de 24 de janeiro de 1890.[36] A conjuntura histórico-ideológica no Brasil de então (ano seguinte ao golpe republicano que derrubou a monarquia) foi de radicalização, com a separação da Igreja do Estado. Certamente do campo político do conservadorismo clerical apresentou-se no debate inaugurado pela modernização anunciada pelos republicanos. Com a implantação do regime republicano (a partir de novembro de 1889) as expectativas de secularização dos casamentos punham fim a três décadas de intenso debates sobre o casamento civil no qual se envolvera o campo intelectual luso-brasileiro, e onde compareceu com ardor e extrema paixão o campo intelectual ligado ao conservadorismo clerical.[37] A recusa do conservadorismo clerical em admitir o casamento civil levou a que as Ordenações Filipinas (seu Livro IV, que continha a maioria dos dispositivos de direito de família) vigorassem no Brasil muito além de sua substituição em Portugal (que ocorreu em 1867); muito além da emancipação política do país (1822) e 27 anos depois da República ter sido proclamada (1889).
O decreto que institui o casamento civil no Brasil tem a marca autoral de Rui Barbosa e antecede em um ano a própria Constituição de 1891. Teve, como já tivemos oportunidade de frisar em outro trabalho, uma intenção política antecipatória. No contexto de ditadura militar no início do regime republicano, dois dispositivos legais de suma importância anteciparam de forma conservadora (ainda que tivessem conteúdos modernos) a lei maior, a própria Constituição: a lei do registro e do casamento civil e o Código Penal (ambos de 1890).[38] Em face da secularização dos casamentos, apareceu uma atualização vigorosa de um texto de teologia moral produzido em 1630, Casamento Perfeito, de Diogo de Paiva de Andrada, editado pela H. Garnier.
Arriscamos, destarte, datar a edição “sem data” da Livraria e Editora H. Garnier. Isso porque a assinatura da propriedade da editora (H. Garnier) nos permite identificar a temporalidade da publicação. A livraria e editora do Rio de Janeiro pertencia a Baptiste Louis Garnier (1823-1893), irmão mais novo de Auguste e Hippolyte Garnier, donos da Garnier Frères em Paris. O empreendimento do Rio de Janeiro teve início em 1844, tendo inicialmente Baptiste Louis aberto uma filial da editora parisiense. Até 1852 a firma brasileira denominava-se Garnier Irmãos, e depois B. L. Garnier, tendo Baptiste Louis se separado dos irmãos entre 1864-65. Em 1891, com problemas de saúde, Baptiste Louis iniciou negociações para a venda de sua empresa, mas desistiu, falecendo em 1893. A firma passou para seu irmão Hippolyte, que residia em Paris, voltando assim à condição inicial de filial da “Garnier Frères” no Rio de Janeiro. Hippolyte Garnier tinha 77 anos quando seu irmão Baptiste Louis morreu. Em 1898, Hyppolite mandou ao Rio um novo gerente, Julien Lansac, e seu assistente chefe passou a ser Jacinto Silva, que fica na firma até 1904, quando se transferiu para São Paulo. No tempo em que atuou na Garnier, Jacinto Silva teve muita autonomia, já que Julien Lansac não dominava bem a língua portuguesa. Hippolyte Garnier morreu aos 95 anos em 1911, e Lansac voltou à França em 1913.[39]
A julgar pela trajetória de Jacinto Silva e suas relações com o movimento modernista (tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro), seria pouco provável que a reedição do livro de Diogo de Paiva de Andrada tivesse sido ideia encampada sob sua gerência na editora Garnier. Em 1919, o livreiro Jacinto Silva mudou-se para São Paulo, assumindo a gerência da Livraria Garraux. A livraria paulista, por seu turno, dedicou-se tão somente ao comércio de livros, não tendo feito qualquer publicação antes de 1920.[40] Um ano depois fundou a livraria e editora O Livro. Jacinto era dinâmico e isso se refletia em seu empreendimento; foi o centro do movimento modernista em São Paulo.[41] Acolheu vários frequentadores ilustres Amadeu Amaral, Mário e Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, Emiliano Di Cavalcanti e Zina Aita. Desenvolveu ativismo cultural importante ao lado de Monteiro Lobato e outros. Di Cavalcanti expunha seus quadros em São Paulo no estabelecimento de Jacinto Silva, que tinha muito espaço e reunia a mocidade modernista na livraria.[42]
Estamos, portanto, estimando a data da publicação do Casamento Perfeito pela H. Garnier na temporalidade compreendida entre 1993 e 1998. Há uma grande probabilidade para que a publicação tenha ocorrido neste período; a conjuntura de separação da Igreja e do Estado e a radicalidade do positivismo anticlerical do início da República poder ter levado o campo político católico a investir na revivificação do Casamento Perfeito. Como a Garnier era conhecida e criticada pelos contemporâneos por editar tudo, “... a torto e a direito” (mesmo sendo a editora a publicar os livros de Machado de Assis, o mais importante literato daquela temporalidade) entre os livros publicados pode ter figurado o livro de Diogo de Paiva de Andrada. A crítica às publicações da Garnier que publicava de um tudo, aparece na opinião de Arthur Azevedo publicada em 7 de outubro de 1893 em “O Album”, ao que era seguido por Coelho Neto[43] e outros autores.
O título original do livro de Diogo de Paiva de Andrada é curioso aos leitores modernos (longo e em estilo de ementário dos conteúdos tratados): Casamento Perfeito: Em que se contem advertências importantes pera viverem os casados em quietação & contentamento, & muitas hystorias, & acontecimentos particulares dos tempos antigos e modernos: diversos costumes, leys, & cerimonias que teverão alguas nações do mundo: com várias sentenças, & documentos de autores Gregos & Latinos, declarados em Portugues; tudo em ordem ao mesmo intento.[44]
Temos no Casamento Perfeito de Diogo de Paiva um rol de recomendações para fugir dos extremos referidos à falta e ao excesso de amor no casamento, pois os extremos afastam as pessoas das virtudes. De fato, nenhuma novidade contém qualquer uma das publicações da teologia moral sobre este tema, se compulsarmos o livro de Luís de Leon ou mesmo os outros manuais do mesmo estilo e forma. Entre autores que trataram o tema, Fidelino Figueiredo recorda o Guia para Casados, de Francisco Manuel de Melo. E ainda se refere ao estado civil dos autores: o frade (Luís de Leon), o solteirão (Francisco Manuel de Melo) – como puderam escrever sobre o casamento sem terem sido casados? – e o único que experimentou o casamento: Diogo de Paiva de Andrada.
O que temos é que nos tratados de teologia moral, encontramos o topus que garante um auditório cativo: na forma, a repetição do estilo epistolar paulino; e no conteúdo a repetição de temas caros ao puritanismo: assepsia, abstinência, pureza, perfeição. Quanto Robert Darnton atribui o sucesso editorial de Rousseau à forma de sua filosofia moral (que repete a forma da teologia moral), destaca a possibilidade de inovação no conteúdo de seus textos que a repetição da forma possibilita.
Não importa tanto para nosso argumento a qualidade literária do texto de Diogo de Paiva. Já para Fidelino de Figueiredo esta consideração ocupa várias considerações sobre estilo e forma. No caso, Fidelino considera o texto de Francisco Manuel de Melo e seu Guia para Casados de melhor qualidade literária do que o de Diogo de Paiva. Fidelino tece loas a Luís de Leon, frade agostiniano e lamenta que no texto de Diogo de Paiva falte de referência a ele. A impressão que fica de seu prefácio ao livro Casamento Perfeito é que não gostou tanto, do ponto de vista da escrita.
Diogo e Paiva repete as recomendações de outros tratados de teologia moral. São premissas para alcançar o “casamento perfeito”: cuidados com a aparência dos cônjuges (nem muito belos, nem muito feios); cuidados com o excesso de amor e com os ciúmes e desconfianças; pureza e castidade. “Que não sejam as idades diferentes”.[45] Para ele, mesmo os casados possuindo a mesma idade, existe risco. Pois, as mulheres envelhecem mais rápido do que os homens e podem os homens de parca firmeza, deixarem-se levar por aventuras extraconjugais. Recomenda para as mulheres “Que se guardem de estar ociosas”.[46] [...] “Que sejam caladas e sofridas”.[47] Ou seja, sem novidades; mais uma repetição da tópica que predomina a cultura política e religiosa ocidental desde os esforços para disciplinar os casamentos e a sexualidade desde o século XII, nos desdobramentos da reforma religiosa gregoriana.[48]
Ao construir a ideia da “perfeita casada” e do “casamento perfeito”, a teologia moral, na passagem à modernidade, nos séculos XVI e XVII, reforça a concepção do casamento como um sacramento indissolúvel, instituído desde o Concílio de Latrão, em 1215.[49] Produz efeitos de longa duração no campo jurídico. O direito civil eclesiástico (aquele referido à normatização da vida civil e familiar à luz do catolicismo romano no Antigo Regime) interpenetrava as codificações régias europeias. A secularização dos casamentos constituiu processo histórico lento que teve início no século XVI, com as reformas religiosas, mas que encontra seu clímax na Revolução Francesa e o Código Civil (conhecido como “napoleônico”, de 1804), onde o casamento passa a ser considerado um contrato. Todo contrato, no sentido burguês, pressupõe o distrato (no caso, o divórcio). A modernização das codificações para o direito de família implicou disputas seculares do campo religioso com o campo jurídico iluminista.[50] Ao mesmo tempo, a teologia moral reforçava (reforça ainda) preceitos de perfeição moral, com efeitos sobre a condição feminina, com implicações sobre o corpo feminino, que são atualizados e apropriados culturalmente. A “perfeita casada” implica ascese e pureza; prudência, continência e discrição.
Retomando o texto de Luís de León sobre a “perfeita casada”, concluímos que as pesquisas e análises sobre a longevidade dos preceitos de teologia moral nele contidos, são relativamente poucas e expressam mais uma preocupação com a forma literária empregada pelo autor ou com questões referidas ás relações de gênero.[51] Contudo, a se considerar a força de seus efeitos sobre os sentimentos políticos, as ideias e cultura na contemporaneidade, podemos concluir sobre vários efeitos produzidos sobre a cultura. Em primeiro lugar, situemos a quantidade e a periodicidade de sucessivas edições ao longo de quatro séculos, a denotar um processo de atualizações históricas e apropriações culturais recorrentes. Pensamos que as edições mais recentes (aquelas de meados do século XX e as duas últimas editadas na Espanha no século XXI – em 2002, 2005 e 2008) estão a produzir efeitos políticos de disciplinamento e controle da sexualidade e da condição feminina.
As conclusões de Georges Duby, no texto de 1973,[52] apontam as permanências culturais da servidão feudal nas relações de gênero; o foco da sua análise é a submissão da condição feminina.
Observando os textos da teologia moral, especialmente o de Luís de León, concluímos que vários aspectos da ideia de perfeição foram construídos tomando premissas de ascese e pureza que implicavam a abstinência (sexual e alimentar). Diante de excessos de desejo sexual ou excessos alimentares, esbarramos em recomendações de continência, moderação ou abstinência. Esta última recomendação teceu ao longo dos séculos uma associação entre jejum, abstinência e pureza.