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Sociedade de Risco e Desamparo: Enchente do Rio Madeira
Sociedad de Riesgo y Desamparo: la Crecida del Río Madeira.
Risk Society and Helplessness: flooding of the Rio Madeira
Société du risque et détresse : la crue du Rio Madeira
社群的灾害,危险,和无助:马得拉河流域的水灾
Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 8, núm. 2, pp. 308-330, 2016
Universidade Federal Fluminense


Recepção: 15 Fevereiro 2016

Aprovação: 21 Março 2016

Resumo: Neste trabalho aborda-se a organização social, política e econômica na sociedade contemporânea, denominada de pós-moderna, de risco ou pós-industrial. O ponto de partida do trabalho é a enchente do Rio Madeira e suas consequências aos desabrigados, no que diz respeito a necessidade de implementação de políticas públicas que minimizem as perdas/danos. Para tanto, faz-se uma análise da organização social e os riscos advindos do desenvolvimento econômico e tecnológico, dos novos riscos e seus paradoxos, bem como um breve relato sobre assoreamento e cheia do Rio Madeira. Enfoca-se, ainda, a importância do amparo social e emocional aos afetados por catástrofes.

Palavras-chave: Sociedade de risco, desastre ambiental, desamparo.

Abstract: Este trabajo aborda el tema de la organización social, política y económica en la sociedad contemporánea, denominada posmoderna, de riesgo o pos-industrial. El punto de partida es la crecida del Río Madeira y sus consecuencias para los desalojados, por ser el revelador de la necesaria implementación de políticas públicas que mitiguen las pérdidas y los daños. Para ello, se realiza un análisis de la organización social y los riesgos engendrados por el desarrollo económico y tecnológico, de los nuevos riesgos y sus paradojas, así como un relato breve sobre el encenagamiento y la crecida del Río Madeira. Se destaca además la importancia del amparo socio-emocional hacia los afectados por las catástrofes.

Keywords: Risk society, environmental disaster, helplessness.

Abstract: This work discusses social, political, and economic organization in contemporary society, also known as ‘postmodern’, ‘risk’ or ‘post-industrial’. Its point of departure is the flooding of the Rio Madeira river and the consequences for those left homeless, in terms of the need to implement public policies minimizing losses/damages. An analysis is therefore conducted on social organization and the risks derived from economic and technological development, the new risks and their associated paradoxes, with a brief report given on sedimentation in the river and its flooding. Finally, the article also focuses on the importance of the provision of socio-emotional support to those affected by disasters.

Keywords: Risk society, environmental disaster, helplessness.

Résumé: L’on abordera dans cet article l’organisation sociale, politique et économique dans la société contemporaine, baptisée de post-moderne, du risque ou encore post-industrielle. Notre point de départ sera la crue du Rio Madeira et ses conséquences sur les personnes sinistrées, et la nécessité qui en découle de mettre en place des politiques publiques en mesure de minimiser les pertes/dommages. On a mené à cette fin une analyse de l’organisation sociale et des risques issus du développement économique et technologique, ainsi que des nouveaux risques et de leurs paradoxes, que nous illustrerons par une brève présentation de l’envasement et de la crue du Rio Madeira. On soulignera en outre l’importance de la prise en charge sociale et psychologique des personnes touchées par les catastrophes.

Mots clés: Société de risque, catastrophe environnementale, détresse.

摘要: 本论文讨论巴西的后现代社会,或者说后工业社会的灾害,灾区社会,经济和政治组织以及政府应该采取的灾难应急机制。

作者调查了马得拉河流域的水灾问题,以及失去住所的灾民,研究了政府应该采取的灾前预防措施和灾后救助的公共政策,以使灾难发生次数减少,以及在灾后把损失降到最低。为此,本文结合马得拉河的枯水期和泛滥期的规律,分析了该河流域的社群组织,经济和技术发展带来的灾难危险,以及应对机制。作者强调了对灾民进行社会经济救助的重要性。

關鍵詞: 灾害社会, 环境灾难, 无助.

Palabras clave: Sociedad de riesgo, desastre ambiental, desamparo

Introdução

A modernidade definida como estilo de organização social nascida no continente europeu, nos meados do século XVII, espalhou-se pelos demais continentes e transformou todo o mundo. O século XXI traz os reflexos dessa modernidade, apresenta um estilo de vida veloz, onde a fluidez é a única constância.

As transformações no campo da ciência, da tecnologia e da economia são as principais alterações da sociedade, as quais modificaram também as relações sociais. Com essas transformações, a vida moderna ficou repleta de situações limites que acarretam medo, angústia e desamparo.

O modelo atual de organização social é visto como de risco, chegando mesmo a ser denominado como sociedade de risco, por imprimir um estilo de vida em que há incerteza sobre as consequências do desenvolvimento econômico e social.

O termo “sociedade de risco” foi cunhado pelo sociólogo Ulrich Beck no livro “Risk society. Towards a new modernity”, lançado em alemão no ano de 1986 e, em inglês em 1992. Na obra, Beck aborda o desenvolvimento da sociedade industrial, com seus bens de consumo e o risco que essa produção traz. Riscos, a princípio, invisíveis, mas conjugados e coexistindo com a sociedade globalizada. O conjunto de riscos preconizados por Beck traria “uma nova forma de capitalismo, uma nova forma de economia, uma nova forma de ordem global, uma nova forma de sociedade e uma nova forma de vida pessoal”,[2] onde as condições sociais moldam a sociedade pelas infinidades de experiências presentes no cotidiano de cada ser humano, por um indeterminado curso de ações pós tradicionais, as quais têm seus riscos correspondentes e impensados.

Entre as situações que trazem vulnerabilidade a humanidade, os desastres ambientais se destacam. Fruto ou não da atuação humana, as catástrofes ambientais falam da angústia pública nascida de uma sociedade permeada por riscos que evoluem em conjunto com o desenvolvimento e os problemas sociais, econômicos e políticos.

Independente da ação que provoca o acidente, a destruição e os danos são certos, assim como a desestrutura física e psíquica dos que sofrem com a devastação deixada pelos desastres ambientais. Diante das catástrofes, das perdas identitárias ocasionadas por elas, da sensação de desamparo e da ausência de laço social que possibilite uma reconstrução da subjetividade e a redução do dano, se pensou neste artigo para destacar a importância da necessidade de implantação de políticas públicas que atenuem os danos dos afetados em desastres ambientais, mais precisamente das comunidades que foram atingidas com a cheia do Rio Madeira, ocorrida no ano de 2013/2014 no município de Porto Velho.

Sociedade de Risco

A teoria da sociedade de risco está relacionada com os efeitos contraditórios resultantes do processo de industrialização. Pode-se dar como exemplo o uso de agrotóxicos, que são importantes para o cultivo em larga escala de alimentos, favorecendo os produtores, mas que trazem dano ao meio ambiente e ao ser humano, quando consumidos, por se tratarem de elementos químicos nocivos à saúde.

As sociedades anteriores à nossa também viviam situações de risco, entretanto, a sociedade atual está sob o domínio do potencial de ameaças, as quais produzem crescente insegurança e incerteza, relacionadas a imprevisibilidade das consequências da evolução tecnológica. O risco, portanto, está estritamente ligado ao processo de modernização. Se as últimas décadas trouxeram guerras, ataques terroristas e crises financeiras, elas também mostraram ao homem a evolução tecnológica e as suas infinitas possibilidades.

Este novo conceito de sociedade, também chamado de modernidade reflexiva, encontra em Anthony Giddens seu maior expoente. Giddens[3] afirma que a sociedade é reflexiva em relação ao ritmo que imprime a si mesma ao ponto de modificar sua rotina, seus hábitos e costumes, gerando uma instabilidade ocasionada pela própria complexidade que a modernidade comporta, pois está focada no tempo e no espaço, não mais nos ciclos naturais que permeavam a vida no século IXX.

Esse estilo de vida, chamado de modernidade, nasce com as mudanças da Europa, no século VXII, quando o mundo se volta para as transformações oriundas da sociedade industrial, com as mudanças, que ao mesmo tempo trazem progresso e destruição, disfarçadas pelas vantagens do capitalismo.

A reflexividade, proposta por Giddens, é pautada exatamente nesse paradoxo do capitalismo industrial e as transformações sociais, onde o moderno diverge da tradição, o concreto e estável torna-se abstrato e transitório. O mundo analógico transforma-se em mundo virtual.

A modernidade que permite o desenvolvimento não oferece segurança, não possibilita um conhecimento concreto do futuro, mas incertezas, como descreve Zigmunt Bauman[4] no livro “Modernidade Líquida”. Ao fazer um contraponto entre os elementos sólidos e líquidos afirma Bauman que a fluidez é a qualidade da atual sociedade. Na mesma linha de pensamento caminha Marshall Berman ao utilizar a frase de Karl Marx para afirmar que “ser moderno é fazer parte de um universo onde 'tudo que é sólido se desmancha no ar'”.[5] Berman ao citar a frase de Marx relata que a vida moderna é uma contradição. O progresso traz a modernidade, porém com ela nasce também a dominação e a destruição de culturas. A modernidade aparece como uma ameaça a toda história e tradição, ela deposita na ciência o máximo de crença na explicação do mundo, respostas que vinham antes da religião e dos mitos, passam a ser obtidas por meio da ciência.

A segurança existente nas sociedades dos séculos XVII e XVIII passa a ser, no final do século XIX e nos séculos seguintes, incertezas sociais e riscos não calculados, imprevistos e imprecisos, fruto do desenvolvimento e institucionalizado pelo Estado, na busca do progresso.

Viver no mundo moderno é caminhar na incerteza, na ausência de tradição, viver num constante vir a ser. A ausência de certeza gera sofrimento ao indivíduo da sociedade moderna, os quais são característicos dessa nova ordem social.

A responsabilidade dos riscos

Na sociedade industrial, a distribuição de riqueza gerava enormes barreiras entre as classes sociais. Na sociedade contemporânea, os riscos oriundos da atividade humana, corroem a hierarquia das classes ao introduzir uma democratização quanto aos seus efeitos, sendo estes sentidos de forma igualitária, pelo menos potencialmente, por todas as pessoas.

A este respeito,

Quando a camada social proprietária dos meios de produção não era afetada, a lógica predominante voltava-se unicamente para o desenvolvimento de mecanismos e tecnologias que permitissem agregar valor a insumos, de maneira rápida e eficiente. Não estava na pauta política a preocupação com os eventuais resultados prejudiciais decorrentes daqueles métodos produtivos. A demanda pela contenção de riscos provinha exclusivamente da camada social que os suportava, sem condições efetivas de fazer valer o discurso crítico em relação aos perigos potenciais das novas práticas industriais.[6]

Em outras palavras, enquanto não afetava os detentores das tecnologias, a busca por inovações e, consequentemente, por lucro era a base do desenvolvimento produtivo. Portanto, todas as pessoas sofrem os efeitos da tecnologia, o que fortalece a necessidade de se controlar as técnicas de produção.

Os avanços tecnológicos não avançaram juntamente com o domínio do saber. Não se tem a dimensão real de um risco por não ter métodos desenvolvidos o suficiente para analisá-los. Deste modo, “a insuficiência dos mecanismos de cálculo de risco importará, ainda, na dificuldade de determinar a responsabilidades pela causação de perigo ou dano”.[7] Além disso, há uma dificuldade de se atrelar o resultado danoso a uma determinada conduta, o que dificulta a imputação de uma sanção.

O risco traz, ainda, o efeito bumerangue, eis que “o agente produtor do risco se encontra, também entre aqueles que sofrem as suas consequências dos riscos”.[8] Antes dos grandes avanços tecnológicos, o efeito bumerangue seria limitado, já que as atividades perigosas eram restritas geograficamente. Os meios de produção perigosos eram realizados em locais distantes de moradias, por exemplo.

A sociedade contemporânea pode ser afetada por diversos riscos, uma vez que seus efeitos podem ser globais. Bottini exemplifica o quanto os efeitos podem atingir a todas as pessoas ao afirmar que “a atividade nuclear ou a utilização da engenharia genética para a produção de alimentos e outras novidades implicam potenciais de perigo suportado por todos os setores sociais, mesmo por aqueles beneficiados pelo risco”.[9] Estes riscos geram a necessidade de se restringir as atividades com maior potencial ofensivo.

Novos riscos e discursos sociais

Há quem ganhe com os riscos, como por exemplo, os produtores de filtros de contenção de poluição. O conflito econômico gerado pelo “grau de tolerância ou pela extensão das medidas de contenção de atividades é responsável pelo fortalecimento dos discursos políticos e sociais que disputam a gestão de riscos e, consequentemente, contribui para a consolidação da insegurança social sobre o tema”.[10]

Não há meio-termo, cada setor da sociedade está em algum lado nesta disputa, seja lutando pelo avanço tecnológico, seja na busca de meios para evitar determinadas atividades por serem potencialmente perigosas.

A ciência poderia ajudar neste aspecto ao apresentar dados sólidos e estruturados, mostrando quem estaria certo ou errado nesta contenda. Mas a ciência é feita por quem e para quem? As pesquisas científicas são conflitantes, chegando ao ponto de serem até antagônicas, ao apresentar resultados destinados a agradar uma parcela dos interesses em relação ao risco.

Não há a possibilidade de haver dentro deste conflito a imparcialidade ou a neutralidade científica, uma vez que os discursos sociais acabam por dar base às pesquisas. Haveria, portanto, um conflito de interesses na ciência ao analisar os avanços tecnológicos.

De acordo com Bottini, “a expansão dos novos riscos, os conflitos sociais e econômicos sobre sua admissibilidade e a ausência de diretrizes científicas que fixem pautas de condutas seguras acarretam um sentimento de temor social”.[11] Em quem as pessoas podem acreditar? Nos detentores do poder econômico, nas empresas que lucram com estes riscos ou nas pesquisas conflitantes?

Este temor social acaba sendo reforçado pelos meios de comunicação de massa, já que “o risco é aproximado artificialmente do cidadão comum, mesmo que ele não pertença ao âmbito de afetação daquela atividade potencialmente perigosa. A percepção do risco é nítida, mesmo que não presencial, mesmo que em outro contexto”.[12]

Os meios de comunicação trazem para perto os perigos ou danos que, na realidade, estão distantes, seja por distâncias geográficas, seja por não afetarem todas as camadas da população.

Estas informações mostram que o risco está diretamente ligado à produção econômica, saindo da periferia para ingressar no núcleo do sistema social. O risco sai do homem e a ele volta, enquanto produto de uma sociedade.

A existência da periculosidade do risco faz com que gestores públicos comecem a buscar mecanismos para coagir, restringir a ação do risco, isto é, medidas que limitem a incidência do risco na comunidade, considerando que há risco nos meios de produção da sociedade moderna.

Não há como alterar os meios de produção, a organização econômica da sociedade, mas há como coibir que as agressões, os danos, os riscos que possam causar catástrofes. As formas de coação no descumprimento dos limites impostos vem por meio de sanções impostas pelo Direito.

Quanto maior for o risco, mais restritivas as medidas e mais severas as sanções pelo descumprimento dos limites impostos. Nesse contexto, fica aberto o espaço para a incidência do direito penal sobre as condutas arriscadas, produzidas pelo comportamento humano que, cada vez mais, ameaçam bens interesses fundamentais para a vida em comum.

Bottini possui a visão de que as sanções estão estritamente ligadas a proporção do risco. Entretanto, existem situações que impossibilitam a mensuração do risco. Em grandes tragédias, tais como o acidente de Chernobyl ou do césio 137, não é possível dimensionar os danos causados, mas pode ser passível a punição pelas consequências geradas.

O paradoxo do risco

O modelo de produção da sociedade se baseia na busca por inovações. O desenvolvimento econômico precisa dos avanços tecnológicos, das grandes descobertas e, principalmente, dos lucros advindos destas novidades.

A velocidade das descobertas científicas, da criação de novas técnicas de produção e de novos insumos não se faz acompanhar pelo conhecimento científico sobre os efeitos destas inovações, nem sobre os potenciais perigos oriundos de sua aplicação em processos produtivos: é o que gera o risco.

Deste modo, há uma grande dificuldade, pois não se podem minimizar os efeitos potencialmente perigosos se não conhecemos a dimensão dos danos. Não se pode construir uma usina de energia nuclear se não sabemos como evitar uma explosão ou como minimizar os riscos causados pela radiação, por exemplo.

Além disso, “as novas dimensões do risco desequilibram a ordem social e econômica, colocam em questão a própria funcionalidade dos institutos e afetam todas as esferas de relacionamento, público e privado”.[13] O modo de vida atual é desestruturado pelo próprio modelo que o criou.

As inovações tecnológicas, associadas aos seus riscos intrínsecos, seriam a base do desenvolvimento econômico, sendo, portanto, imprescindíveis para a sociedade, e, ao mesmo tempo, devem ser evitados, caso não se conheça a real extensão de seus riscos.

Assoreamento e cheia dos rios: O Caso de Rondônia e o Rio Madeira

O desenvolvimento econômico da sociedade de risco compromete sua própria existência. A degradação ambiental é apenas um dos resultados do progresso e do uso inadequado dos recursos.

No Estado de Rondônia, há um processo preocupante que se desencadeia em alta velocidade: o assoreamento dos rios em virtude do desmatamento causado pelo homem.

Esse fato tem como resultado a morte de rios, riachos e igarapés, obrigando famílias, que tiram seu sustento desses locais, a deslocarem-se e, por via de consequência, sofrem a perda de sua identidade. Não recebem assistência, nem acompanhamento do Estado.

O desaparecimento de florestas e bosques causado pela atividade humana se dá principalmente devido a cortes realizados pela indústria madeireira, assim como para a obtenção de solo para cultivos agrícolas e pastagens de gado.

A devastação florestal preocupa ambientalistas do mundo todo, pois interfere na fauna, destrói espécies da flora, contribui para a poluição da água, do ar, das chuvas ácidas, do efeito estufa e a comercialização ilegal de madeiras nobres.

Só com o transporte e a extração ilegal de madeira, foram apreendidos mais de 2,6 mil metros cúbicos de madeira em toras e 893 metros cúbicos de madeira serrada, sendo estas apenas poderiam ser extraídas mediante autorização expedida pelos órgãos de controle, com identificação da origem da matéria prima.

De janeiro a junho de 2013 foram apreendidos 14.169,23 metros cúbicos de madeira no Estado. O número é 47% menor em relação ao mesmo período do ano passado, quando foram apreendidos 25.873,72 m³. Entre as regiões que mais desmatam e com o maior número de apreensões estão: Porto Velho, principalmente nos distritos de Rio Pardo e União Bandeirantes; os municípios de Cujubim e Machadinho, no Vale do Jamari; a cidade de Nova Mamoré; a extensão da BR 429, que liga a BR 364 a cidade de Costa Marques; e ainda o Cone-Sul do Estado, onde há um grande avanço da cultura da soja.

Paradoxalmente, quando ocorrem chuvas em demasia, a região sofre com alagações, supostamente por influência das construções de Usinas Hidrelétricas no Rio Madeira, que está sob a suspeita de ter se utilizado de expedientes escusos e simulação de estudos de impacto ambiental. Estamos constantemente diante da tensão existente entre o meio ambiente e o desenvolvimento econômico, considerando que esse embate contribui, substancialmente, para o agravamento da questão ambiental.

No período que compreende dezembro de 2013 a abril/2014, o município de Porto Velho, no Estado de Rondônia, sofreu uma cheia decorrente de fatores vários. Agravados pela falta de barragem correta e construção de estruturas de contenção de cheias, segundo Teixeira, a “desfaçatez dos políticos e governantes que nunca agem preventivamente e quando são forçados a agir reativamente o fazem da forma mais medíocre possível”.[14]

Entre os fatores que se apontam como causadores da cheia estão: desgelo acelerado da neve dos Andes em virtude do aquecimento global e o índice pluviométrico acima do normal. Mas paira sobre as chamadas “Usinas do Madeira” muitas suspeitas e questionamentos acerca da falta de cuidado com o ecossistema, bem como sobre o direito das populações afetadas, às alterações nos parâmetros hidrológicos.

Segundo Teixeira, os gestores foram “incapazes de levar a cabo estudos preventivos e por agirem de forma tão canhestra quando a tragédia se faz sentir”. Acrescenta o autor que a cheia excepcional à qual nos referimos “colocam em dúvida muitas coisas: os estudos e os projetos das duas usinas, a operação dos reservatórios, os níveis d'água de inundação reais, as verdadeiras consequências dos impactos destes projetos no Brasil e na Bolívia”.[15] Preocupa-se com o que possa ocorrer no futuro.

É certo que enchentes são naturais e a intensidade das mesmas ainda carece de estudos mais efetivos. Há relatos de enchentes devastadoras nos anos 1950, 1986/87; 1997. No entanto, pensemos, é impossível ignorar os efeitos do barramento do rio Madeira e as proporções da inundação que atinge o Estado e a vizinha Bolívia, sem esquecer das funestas consequências para nossos irmãos do Acre, tão vítimas quanto nós mesmos.

Os efeitos que se verificam são capazes de atestar a vulnerabilidade ambiental, social e econômica da região onde esses empreendimentos estão sendo implantados.

Sobre a questão da relação da população com o Rio.

A colonização do vale do rio Madeira definiu a formação da identidade territorial e social do povo rondoniense. A História de Rondônia, em larga escala, se confunde com a história recente do rio e da exploração de seus potenciais. De todo o processo de ocupação das margens do Madeira e do Mamoré, ficou, sempre, muito claro, que aos habitantes das margens desses rios restava a adaptação aos ritmos da natureza ou o seu aniquilamento. De diferentes formas, as intervenções humanas que ignoraram os fatores e condicionantes ambientais, mostraram-se desastrosas e causadoras de consideráveis perdas, tanto humanas, quanto econômicas e ambientais. Foi assim para a Ferrovia Madeira Mamoré e tem se revelado da mesma forma, na atualidade, com a megaintervenção das barragens das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio.

Não se nega que a instalação do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, em Rondônia, trouxe certo desenvolvimento regional, como a geração de empregos e a valorização do comércio. Todavia, ocorreram graves problemas sociais e ambientais, como a perda das espécies de animais e vegetais, dos peixes, da mata ciliar, a proliferação de mosquitos e as tragédias econômicas e sociais: o isolamento de populações, deslocamento destas e a perda do seu lar, sua cultura e identidade, a destruição das estradas, de lavouras e rebanhos.

Há que se contar ainda a densidade populacional que, em conjunto com as demandas de saúde, educação, entre outras, tornou o atendimento mais difícil. Outros problemas associados à construção das Usinas se verificam como a prostituição infantojuvenil na região das obras.

Assim, como o Estado tem o dever de desempenhar e executar políticas públicas as quais estimulem o desenvolvimento econômico equilibrado e de modo sustentável e, ao mesmo tempo, proteja de forma efetiva o meio ambiente; assim como tudo que dele advém para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, seja no campo ou nas cidades.

Em decorrência das cheias, quer pelo assoreamento dos rios, quer por influência das Usinas, as populações que vivem as margens ou proximidades do Rio Madeira foram duramente impactadas com a enchente. Os efeitos da inundação foram centenas de pessoas desabrigadas e realocadas em abrigos, necessitando ajuda material e emocional, pois perderam tudo, até a sua identidade de sujeito.

Essa é mais uma das causas da pós-modernidade, uma sociedade que põe em risco seus cidadãos, sob o escopo de lhes proporcionar conforto e progresso.

A enchente de 2013/2014 em Porto Velho

O ano de 2014 está marcado na memória dos moradores do município de Porto Velho em virtude da enchente que ocorreu no período de fevereiro a março de 2014. A bem da verdade, o Rio Madeira começou a subir em dezembro de 2013, porém não se tinha em mente que as águas do Madeira chegariam a 19,74 metros, alagando tudo a sua volta, desalojando ribeirinhos e moradores que dos bairros que margeiam o rio.

O Rio Madeira é um rio considerado novo e em formação, com aproximadamente 440 a 9.900 metros de largura em sua foz e 13 metros de profundidade, por ser um rio largo e com grande volume de águas, sua cheia atingiu área urbana e rural, florestas em ambas as margens foram alagadas.

Um dos motivos do grande volume de água do Rio Madeira, na enchente de 2013/2014, é atribuído as chuvas e recebidas nas cabeceiras dos rios Beni, na Bolívia, e rio Madre de Dios, no Peru; ambos afluentes do Madeira. O Madeira costuma encher nos meses de novembro a abril, porém não da forma que aconteceu no dia 30 de março de 2014, quando a cota máxima de água atingiu 19,74 metros, inundando áreas dos munícipios de Guajará Mirim, Nova Mamoré, Porto Velho e Costa Marques (FIDE[16]/2014).

No município de Porto Velho, a enchente afetou áreas urbanas e rurais. No perímetro urbano de Porto Velho, teve 10 bairros foram alagados. Na zona rural as águas chegaram a 9 distritos, dentre os quais aponta-se o distrito de São Carlos, totalmente devastado, famílias perderam casas e meios de produção, como é possível observar nas imagens abaixo.



Vista área do distrito de São Carlos/RO.
Fonte: Defesa Civil/2014




Fonte: Defesa Civil/2014

Nas duas imagens vemos a dimensão da enchente em São Carlos. A localidade ficou submersa por quase três meses. Entretanto, a comunidade não se rendeu a força das águas. Baixando o volume do rio, as casas foram ficando a mostra e seus moradores foram retornando. Não sem antes retirar toda a lama trazida pelas águas barrentas do rio. O retorno ao distrito não significa que o risco desapareceu. A região pode ser alvo de outras enchentes. Diante dessa possibilidade, aventa-se a construção de uma Nova São Carlos numa área distante dos entornos do Rio Madeira e das histórias construídas pelas famílias naquele local.

A Psicologia das emergências

As situações de emergências e desastres ocorridos em várias partes do mundo ocasionaram a criação mecanismos sociais e políticos com objetivo de reduzir seus efeitos das perdas e o gerenciar as operações de segurança. Como resposta a necessidade de lidar com os aspectos da saúde psíquica dos afetados por catástrofes, a psicologia cria a “psicologia das emergências”, como mais um dos possíveis ramos de atuação dos psicólogos.

Mesmo pouco divulgada, a psicologia das emergências tem seus expoentes em atuação na escuta e assistência às vítimas das catástrofes. Nesse cenário destacam-se os grupos Ipê (Intervenções Psicológicas em Emergência), de São Paulo, e o APICE (Assistência Psicológica em Crise e Emergência), de Fortaleza, que prestam atendimento em situação traumática.

A Psicologia das emergências tem por campo de estudo o comportamento das vítimas de acidentes e desastres, durante o evento e após este, uma vez que cada sujeito com sua singularidade irá responder de forma distinta aos eventos traumáticos, sendo dever do psicólogo prestar o auxílio necessário para que o sujeito posso lidar e suportar a sua dor.

Importante ressaltar que a atuação em situações extremas requer do psicólogo um conhecimento prévio de seus limites, uma vez que a situação implica na escuta do sofrimento do outro, a qual deve ser despida de conceitos e preconceitos.

Esse trabalho é feito por uma equipe multidisciplinar, com profissionais de diversas de áreas. Assim, mais que prestar auxílio, o psicólogo deverá atuar de forma diversa dos membros dessa equipe, num atendimento humanitário, com acolhimento da dor de forma diversa da proposta pela equipe da defesa civil, ou mesmo da equipe médica. A vítima quer ser escutada, amparada na sua fragilidade, para, assim, poder encontrar meios de reconstruir sua identidade frente ao laço social.

É necessário haver um acompanhamento psicológico subsidiado pelo Estado, além da ajuda material às pessoas deslocadas, desabrigadas, e todos aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade, pois o sofrimento dos afetados em desastres tem efeitos nefastos.

As necessidades visíveis das vítimas de catástrofes/desastres são supridas na sua grande maioria, porém o que escapa aos órgãos públicos, designados para atender estas demandas são as necessidades emocionais, escondidas nos rostos aflitos e preocupados. O flagelo emocional passa despercebido ante as perdas materiais.

[...] é possível prever que, mais cedo ou mais tarde, a consciência da sociedade despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem exatamente tanto direito a uma assistência à sua mente, quanto o tem, agora, à ajuda oferecida pela cirurgia, e de que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos que a tuberculose, de que, como esta, também não podem ser deixadas aos impotentes de membros individuais da sociedade. [...] Pode ser que passe um longo tempo antes que o Estado chegue a compreender como são urgentes esses deveres.[17]

Em 1919, Freud já dizia que longo tempo passaria para que o Estado reconhecesse a importância do atendimento psíquico da mesma forma que disponibiliza o atendimento cirúrgico ou medicamentoso. O amparo material é tão importante às vítimas de catástrofes quanto a escuta de seu sofrimento psíquico. Escutar a angústia do sujeito é escutar o sujeito na fala de seu sintoma, nas implicações daquilo que lhe cabe. A escuta clínica e a assistência institucional não se desvinculam, são duas vertentes de um mesmo olhar.

Na sociedade atual, as situações que reclamam cuidado são uma constante. Acidentes ambientais acontecem em toda parte do planeta, decorrentes ou não das mudanças climáticas. As calamidades fazem suas vítimas, as quais necessitam amparo material, presentes na figura de abrigos, roupas, alimentação e atendimento médico e, assim como, acolhimento emocional da sua angústia. Os desastres ambientais são uma resposta da natureza para a tentativa humana de controlar a sociedade tecnológica.

Esse modelo da sociedade se baseia nos novos parâmetros que o risco adquiriu, levando-se em conta a relação paradoxal existente na ordenação social, uma vez que o risco é necessário para as atividades produtivas, mas, ao mesmo tempo, é um elemento que fragmenta o sistema.

Por isso, existem mecanismos de gerenciamento de riscos e surge a ideia de um gestor de riscos, da mesma forma que existe a o profissional que vai atuar na psicologia das emergências, com a atribuição de avaliar e tomar as decisões para evitar os danos ou minimizar e ajudar a compreender a situação inesperada.

Catástrofes, como do Haiti, Chile, Niterói e Angra, mostram que, em muitas situações, a dor humana está acontecendo. Esse é um processo natural de uma realidade que tem limites, os quais não são respeitados. Estes acontecimentos despertam sentimentos estressores provocam mal-estar nos envolvidos, podendo causar até um desequilíbrio emocional.

O processo civilizatório em constante ação traz a cada dia uma situação nova, dando a impressão que as tragédias da vida moderna sejam até banalizadas, pois cada dia é uma situação diferente. Mudam as notícias, mas o sofrimento humano continua sendo o mesmo.

A psicologia das emergências é uma especialidade aliado, que ajuda a cuidar da população afetada direta ou indiretamente pelo sinistro, que quando ocorre pode arrasar cidades, vilas, bairros, causando colapso, angústia e medo.

O crescimento desordenado do espaço urbano e os loteamentos em áreas de risco, são fatores que causam impactos ambientais e elevam índice de riscos de desastres ambientais. Desigualdade social e econômica são fatores que contribuem para o aumento considerável de desastres ambientais.

O impacto pode incluir mortes, ferimentos, doenças e outros efeitos adversos sobre a perda física, mental, social e humana, juntamente com danos à propriedade, a destruição de bens, a perda de serviços, transtornos sociais e econômicos, e a degradação ambiental.[18]

A proteção ambiental fala da proteção do próprio homem, enquanto espécie ameaçada, por consequência lógica, protege as demais espécies. A precaução com os efeitos dos desastres ambientais reclama adoção de medidas que consigam conciliar desenvolvimento tecnológico com proteção ambiental, para isso, é necessário a adoção de políticas públicas de venham reduzir os riscos dos desastres, tais como:

Ações destinadas a reduzir a ocorrência e a intensidade de desastres, por meio da identificação, do mapeamento e do monitoramento de riscos, ameaças e vulnerabilidades locais, incluindo a capacitação da sociedade em atividades de defesa civil, entre outras estabelecidas pelo Ministério da Integração Nacional.[19]

Políticas de prevenção não excluem a possibilidade do sinistro, mas minimizam os efeitos. Dentre as citadas acima, mecanismos que diminuam as desigualdades sociais e econômicas “haja vista que está provado que o risco de desastres e a pobreza guardam estreita relação”.[20]

Desamparo e laço social

O modo de viver nessa sociedade de risco, criada como para a satisfação do homem, numa cultura que gerasse proteção social, abriga modos de vida que desvencilham o homem de suas tradições, de suas crenças e certezas.

A sociedade arcaica virou refém da sociedade de risco, onde a modernidade não permite espaço para durabilidade. Efêmero e volátil é o impacto causado com suas criações, impactos que acarretam consequências pensadas ou não, esperadas ou não. Entre as consequências trazidas pela modernidade está o processo de desenraizamento das tradições.

Com a perda da sociedade arcaica, arraigada aos seus padrões e costumes, com o senso de coletivo diminuindo em detrimento do processo de individualização, o sujeito moderno vai perdendo suas referências, sua subjetividade. O apego ao passado, à tradição desaparece frente as demandas do momento imediato, onde operacionalmente tudo é muito claro, mas emocionalmente é irracional, ilegível, numa lógica de desencaixe, que traz insegurança e desamparo.

Frente a ausência do sentido empregado pelas “tradições, pelas religiões e pela transmissão familiar”,[21] o sujeito questiona qual o seu lugar no mundo quando não há mais sentido, quando lhe faltam elementos que possibilitem um elo de familiaridade com o presente.

Cria-se então outro paradoxo: a sociedade que cria o desenvolvimento econômico e tecnológico traz um lado sombrio, a ponto de causar sua própria destruição, como afirma Freud quando fala do mal-estar na civilização.[22]O texto de 1930 é atual em pleno século XXI. As incertezas e os riscos geram uma sensação de desamparo, de falta de proteção nas esferas sociais e políticas. O “controle” que o homem impõe sobre as forças da natureza acarreta o descontrole dessa e contribuem para sua destruição. Freud afirma que grande parte da inquietação e infelicidade do homem nasce desse reconhecimento da destruição, do uso irracional dos recursos que coloca o homem como o principal predador de sua espécie, como escrito por Thomas Hobbes em Leviatã[23] “o homem é o lobo do homem”.[24] O dito de Hobbes remete a um homem que não se importa com o outro, com as regras sociais, sendo preciso que haja um contrato social para que regras sejam impostas e regulem o convívio.

Ora, é o Estado, enquanto entidade reguladora de direitos e garantias que dará o suporte ao sujeito, fazendo com este o laço social necessário a toda sociedade. A sociedade extrai do Estado o limite, as regras, a proteção. No modelo da dinâmica familiar e nos moldes da vida infantil o homem necessita de proteção. A mesma proteção e necessidade de amor que existe na infância de todos, a qual é representada pela figura do pai.

Essa necessidade de proteção, de amparo, é uma constante na vida humana, da infância à vida adulta o desamparo causa uma sensação terrificante. Esse desamparo, na vida adulta, segundo Freud[25] desperta uma inevitável busca por proteção de um pai poderoso, personificado pelo Estado ou pela religião, ou ainda, por qualquer outra figura estatal que possa dar essa sensação de proteção, uma vez que mesmo com a autonomia da vida adulta, há uma nostalgia com a lembrança do passado, com a cena reconfortante de algum momento da infância, principalmente quando existe algum desconforto ou sofrimento no presente. A sensação de amparo da infância quer se fazer presente nos momentos de desprazer.

Mais uma vez, portanto, nos contentaremos em dizer que a palavra ‘civilização’ descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos, a saber: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos.[26]

Na modernidade, os ideais de progresso são insuficientes para aplacar ansiedade e inquietação quanto ao futuro. Os alicerces do agrupamento tradicional, segurança e continuidade, inexistem na sociedade radicalizada. Desancorado da tradição o sujeito não consegue saber o que fazer com tanta opção e estímulo à sua volta.

Os avanços tecnológicos, o controle sobre a natureza, a ausência de separação entre tempo e espaço revelam um mundo comandado pela racionalidade, sem lugar para inquietações, dor ou desprazer. Sobre esse desconforto Ferrari escreve que “[...] A angústia é enorme, a solidão é coletiva, as drogas são consumidas em abundância [...] Desta forma, ainda que a psicanálise não seja querida no mundo científico, a subjetividade do homem a reclama como possibilidade de ser escutada”.[27]

O sujeito inserido no corpo social do século XXI está em meio ao desamparo. A ideia de desamparo é utilizada pela psicanálise para designar o estado inicial do ser humano. Freud (1895), no Projeto para uma Psicologia Científica,[28] enuncia que o bebê humano nasce com uma total dependência do seu cuidador, sem os cuidados de outro humano, o recém-nascido não sobrevive. O desamparo é o marco inicial de todo ser humano e o acompanha no decorrer de sua vida, fazendo-se presente toda vez que houver sofrimento/frustração. É uma condição comum a todo ser humano, enquanto ser incapaz de se constituir sem o outro.

[...] Como já sabemos, a impressão terrificante de desamparo na infância despertou a necessidade de proteção — de proteção através do amor —, a qual foi proporcionada pelo pai; o reconhecimento de que esse desamparo perdura através da vida tornou necessário aferrar-se à existência de um pai, dessa vez, porém, um pai poderoso.[29]

Milton Nascimento, em “Bola de meia, bola de gude”,[30] mostra em versos despretensiosos essa necessidade de voltar ao aconchego da infância, ao amparo de familiaridade que apresente uma segurança. O compositor escreve que há um menino, uma criança, que mora em cada adulto e quando este adulto “balança” o menino da infância, que mora no coração de cada um, retorna para “segurar a mão” do adulto. A letra da música fala de forma clara desse passado que reaparece no momento do desamparo, onde o objeto de proteção da vida infantil, retratado na música pelo “menino” dá o abrigo para aliviar o desprazer na vida adulta.

O homem da modernidade é confrontado com uma realidade que exclui sua singularidade. Está em muitos lugares. O tempo e o espaço, na era tecnológica, fazem do mundo virtual mundo real, onde os sujeitos estão sempre conectados, sem, no entanto, ter um sentimento de pertencimento. Ainda que estejam ligados às redes sociais, estas não acentuam a universalidade de cada sujeito.

A sociedade contemporânea oferece um arsenal de possibilidades, as quais tornam os sujeitos cada vez mais isolados e alienados. Aparelhos eletrônicos aproximam e isolam os indivíduos. A demanda virtual invade a vida real e tira o homem do campo social, afastando-o do convívio com seus pares.

Novas formas de interação surgem, o sujeito na modernidade assiste ao espetáculo de existências desordenadas, vivendo no isolamento de sua peculiaridade, não reconhecendo os traços de cumplicidade que o une aos demais, fica envolto no desamparo. Quando busca uma identidade, o sujeito se defronta com uma diferença que não propícia identificação. A ausência de identificação fragiliza o sujeito em suas relações.

...] primeiro, a identificação é a mais primordial forma de ligação afetiva a um objeto; segundo, por via regressiva ela se torna o substituto para uma ligação objetal libidinosa, como que através da introjeção do objeto no Eu; terceiro, ela pode surgir a qualquer nova percepção de algo em comum com uma pessoa que não é objeto dos instintos sexuais. Quanto mais significativo esse algo em comum, mais bem-sucedida deverá ser essa identificação parcial, correspondendo assim ao início de uma nova ligação.[31]

A identificação é mecanismo de ligação entre o sujeito e outro, assim, a fragilidade de suporte identitário aumenta a fragilidade dos vínculos sociais, além de fragmentar os laços que o sujeito mantém com a sociedade, acarretando uma subjetividade forjada na ausência de alteridade.

O conflito se instaura: sujeito e social. Pulsões a serem satisfeitas de um lado e civilização do outro. Ao mesmo tempo que busca acompanhar a velocidade que as exigências da modernidade requisita do sujeito, para que possa se manter pertencente a esse processo civilizatório, a dita sociedade contemporânea o excluí, enquanto sujeito com identidade própria.

Diante dos riscos trazidos com o progresso científico e tecnológico, o sujeito se depara com o desamparo, fruto do processo histórico que desagrega a sociedade e mostra o abandono diante da ausência de apoio para os efeitos do vazio que a perda dos traços identitários deixam na sociedade. O medo se instala pela constância do perigo e debilidade dos laços afetivos.

Considerações finais

O crescimento desordenado, as descontinuidades institucionais, a ausência de tradição, tem feito com que o século XXI, seja visto como um século de incertezas. As características principais desta era falam de velocidade e insegurança, as quais apontam para um dinamismo da sociedade, assim como dizem de uma organização social voltada para o desenvolvimento econômico e tecnológico, fatores que colocam a sociedade diante de riscos nem sempre previsíveis ao homem.

A imprevisibilidade do risco já é parte do cotidiano. A sociedade convive com o risco da mesma forma que convive com as comodidades do desenvolvimento econômico. O risco passou a ser a orientação da sociedade moderna, eles aparecem como invisíveis, em nada comparados com os antigos perigos/riscos que o homem do século XVII enfrentava.

Diante dos riscos trazidos com o progresso científico e tecnológico, a sociedade se vê às voltas com as catástrofes ambientais que ocorrem no mundo inteiro, fazendo como maiores vítimas as populações menos favorecidas economicamente. Fruto do processo histórico o desastre ambiental desagrega a sociedade e mostra o abandono dos afetados diante da ausência de políticas públicas que amparem e reduzam os efeitos do vazio que a perda dos traços identitários deixam na comunidade afetada.

A inexistência de suporte público aumenta a fragilidade dos vínculos sociais, além de fragmentarem os laços que o sujeito mantém com a sociedade, acarretando uma subjetividade forjada na ausência de alteridade.

Frisa-se que pela constância dos desastres ambientais a psicologia deu amparo aos afetados pelas catástrofes criando a especialidade “psicologia das emergências”, a qual dá suporte ao desamparo identitário e emocional, reconstruindo, mesmo que precariamente, o psiquismo afetado.

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Notas

[1] Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Faculdade de Rondônia (Faro)/convênio com o Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Graduada em Psicologia pela Universidade da Amazônia (1994). Psicanalista em formação pelo Circulo Psicanalista de Minas Gerais - CPMG. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público. E-mail: jarinamanoel@hotmail.com
[2] Beck, Ulrich (1992). Risk society: towards a new modernity, Londres: Sage, p. 2-7.
[3] Giddens, Anthony (1991). As consequências da modernidade, São Paulo: UNESP.
[4] Bauman, Zygmunt (2001). Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: J. Zahar.
[5] Berman, Marshall (1986). Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade. Traduçãode Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, p. 9.
[6] Bottini, Pierpaolo Cruz (2013). Crimes de perigo abstrato. 13. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 30.
[7] Ibidem, p. 29.
[8] Ibidem, p. 30.
[9] Ibidem,
[10] Ibidem, p. 32.
[11] Ibidem, p. 33.
[12] Ibidem.
[13] Ibidem, p. 36.
[14] Teixeira, Marco (25 mar. 2014). O rio Madeira e a enchente do século!. Disponível em: http://www.rondoniaovivo.com/noticias/artigo-o-rio-madeira-e-a-enchente-do-seculo-por-marcoteixeira/112422. Acesso em: 15 set. 2015.
[15] Ibidem.
[16] Formulário de Informação e Desastre (Fide), que é necessário para o reconhecimento e homologação doestado de emergência e o Plano Detalhado de Resposta (PDR), que é exigido para obtenção de auxíliofinanceiro da União para socorro, assistência e restabelecimento de serviços essenciais.
[17] Freud, Sigmund (1919/1996). “Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica”. In Obras PsicológicasCompletas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, v. 17, p. 180.
[18] Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres – UNISDR, 2009 apud Oliveira,Maria José Galeno de Souza (2012). “Políticas públicas e o meio ambiente: a questão dos desastresambientais e seus efeitos na sociedade de risco do Brasil”. In. VII Congresso de Medio Ambiente /AUGM, LaPlata: Universidad Nacional de La Plata, p. 5. Disponível em: http://sedici.unlp.edu.ar/bitstream/handle/10915/26887/Documento_completo.pdf?sequence=1. Acessoem: 15 set. 2015.
[19] Brasil (2010). Decreto nº 7.257, de 4 de agosto de 2010. Art. 2º, inc. IX. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/Decreto/D7257.htm>. Acesso em: 19 fev. 2015.
[20] Oliveira, Maria José Galeno de Souza (2012). Op. Cit., p. 21.
[21] Kehl, Maria Rita (2009). Sobre Ética e Psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, p. 9.
[22] Freud, Sigmund (1930/1996). “Mal-estar da civilização”. In Obras Psicológicas Completas de SigmundFreud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, v. 21, p. 73-150.
[23] Hobbes, Thomas (1984). Leviatã ou matéria e poder de um Estado eclesiástico e civil. Coleção Ospensadores. São Paulo: Abril Cultural.
[24] Ibidem.
[25] Freud, Sigmund (1927/1996). “O Futuro de uma Ilusão”. In Obras Psicológicas Completas de SigmundFreud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, v. 21, p. 15-44.
[26] Freud, Sigmund (1930/1996). Op. Cit., p. 100.
[27] Ferrari, Ilka Franco (jun. 2002). “A psicanálise no mundo da ciência”. In Psicologia em Revista, v. 8, n.11,p. 83. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/psicologiaemrevista/article/view/139/133.Acesso em: 22 jan. 2015.
[28] Freud, Sigmund (1895/1996). “Projeto para uma psicologia científica”. In Obras Psicológicas Completasde Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, v. 1, p. 333-443.
[29] Freud, Sigmund (1927/1996). Op. Cit., p. 39.
[30] Nascimento, Milton e Brant, Fernando (1995). Bola de meia, bola de gude. Intérprete: Milton Nascimento.In Milton Nascimento. Amigo, Rio de Janeiro: Warner Music, 1 CD, faixa 10.
[31] Freud, Sigmund (1920/1996). “Além do princípio de prazer”. In Obras Psicológicas Completas de SigmundFreud. Edição Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, v.18, p. 50.

Autor notes

1 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Faculdade de Rondônia (Faro)/convênio com o Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Graduada em Psicologia pela Universidade da Amazônia (1994). Psicanalista em formação pelo Circulo Psicanalista de Minas Gerais - CPMG. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público. E-mail: jarinamanoel@hotmail.com


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