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Recepção: 06 Junho 2017
Aprovação: 02 Agosto 2017
DOI: https://doi.org/10.15175/1984-2503-20179307
Resumo: No presente ensaio pretende-se fazer da apresentação do livro de Eric Santner, The Royal remains: the people’s two bodies and the endgames of sovereingnty, uma linha guia para algumas reflexões sobre os temas desenvolvidos pelo Autor, na tentativa de ressignificá-los a partir de duas artistas brasileiras contemporâneas - a pintora paulista Rosana Paulino e a escritora mineira Conceição Evaristo, cujos trabalhos ecoam fortemente, em especial, o difícil lugar ocupado pela mulher negra brasileira. Em sua obra o professor americano investiga, através de pistas deixadas pela arte produzida no período de formação da modernidade, o modo pelo qual as sociedades pos-monárquicas, estabelecidas sob o signo da razão cientificista, da secularização, da eclosão do capitalismo e da ideia de autonomia dos sujeitos, e marcadas pelo poder disciplinar da biopolítica, enfrentam o processo de substituição da soberania monárquica pela soberania popular. Na condição de artistas que produzem, sob uma perspectiva eurocêntrica (adotada por Santner), a partir do olhar do “Outro”, Rosana Paulino e Conceição Evaristo acabam por revelar que a questão da soberania popular e do lugar que nela ocupa o povo ainda carece de um giro descolonizador, a suscitar novos olhares e reflexões.
Palavras-chave: Eric Santner, flesh, soberania, modernidade, descolonização.
Resumen: El artículo analiza a dos artistas brasileñas contemporáneas; la pintora Rosana Paulino, de la ciudad de São Paulo, y la escritora Conceição Evaristo, natural de Minas Gerais, cuyos trabajos se hacen eco del difícil lugar que ocupa la mujer negra brasileña, a la luz del libro de Eric Santner The Royal remains: The People’s Two Bodies and the Endgames of Sovereignty. A través de las pistas dejadas por el arte producido en el período de formación de la modernidad, Santner teoriza sobre el modo en que las sociedades posmonárquicas, establecidas bajo el signo de la razón científica, de la secularización, de la eclosión del capitalismo y de la idea de autonomía de los sujetos, y marcadas por el poder disciplinario de la biopolítica, encaran el proceso de sustitución de la soberanía monárquica por la soberanía popular. En la condición de artistas que crean y bajo una perspectiva eurocéntrica (adoptada por Santner), a partir de la mirada del Otro, Rosana Paulino y Conceição Evaristo acaban por revelar que la cuestión de la soberanía popular y del lugar que en ella ocupa el pueblo todavía carece de un giro descolonizador que suscite nuevas perspectivas y reflexiones.
Palabras clave: Biopoder, soberanía, descolonización, Eric Santner, Conceição Evaristo, Rosana Paulino.
Abstract: This article analyzes two contemporary Brazilian artists – painter Rosana Paulino from São Paulo and writer Conceição Evaristo from Minas Gerais – whose works strongly reflect the difficult space occupied by black Brazilian women, in light of Eric Santner’s book The Royal Remains: The People’s Two Bodies and the Endgames of Sovereignty. By means of clues left by the art produced in the period shaping modernity, Santner theorizes on the way in which post-monarchical societies confront the process of substituting monarchical sovereignty with popular sovereignty, established as they are in a context of scientistic reason, secularization, the eruption of capitalism, and the idea of the autonomy of subjects, and marked by the disciplinary power of biopolitics. Under the Eurocentric perspective (adopted by Santner) and based on the gaze of the Other, Rosana Paulino and Conceição Evaristo’s artistic production effectively reveals that the question of popular sovereignty and the space people occupy in it still lacks a decolonial shift, raising new gazes and reflections.
Keywords: Biopower, sovereignty, decolonization, Eric Santner, Conceição Evaristo, Rosana Paulino.
Résumé: Cet article se penche sur deux artistes brésiliennes contemporaines, la peintre pauliste Rosana Paulino et l’écrivaine de l’État de Minas Gerais, Conceição Evaristo, dont les travaux reflètent la place difficile occupée par la femme noire brésilienne, à la lumière du livre d’Eric Santner, The Royal remains: The People’s Two Bodies and the Endgames of Sovereingnty. À travers les pistes laissées par l’art produit à l’époque de la formation de la modernité, Santner théorise sur la manière dont les sociétés post-monarchiques, établies sous le signe de la raison scientifique, de la sécularisation, de l’éclosion du capitalisme et de l’idée d’autonomie des sujets, et marquées par le pouvoir disciplinaire de la biopolitique, font face au processus de substitution de la souveraineté monarchique par la souveraineté populaire. Dans leur condition d’artiste produisant, sous une perspective eurocentrique (adoptée par Santner), à partir du regard de l’Autre, Rosana Paulino et Conceição Evaristo finissent par révéler que la question de la souveraineté populaire et de la place qu’y occupe le peuple doit encore passer par un tournant décolonial et susciter de nouveaux regards et réflexions.
Mots clés: Biopouvoir , souveraineté , décolonisation , Eric Santner , Conceição Evaristo , Rosana Paulino.
摘要: 本论文分析了两位巴西当代艺术家的作品,一位是圣保罗州的女画家罗莎娜·保利诺(Rosana Paulino),另一位是米纳斯吉拉斯州的女作家康赛颂·埃瓦里斯托 (Conceição Evaristo)。她们的作品都特别强调了巴西黑人女性所处的艰难的地位。作者引用了美国著名社会心理学家埃里克·桑特纳(Eric Santner)的理论。在其著作《皇权遗留:人民的双重肉体和君权的终极游戏》,桑特纳通过分析解读现代时期的艺术家的作品,理论描述了通过科学理性,世俗化,资本主义和主体自主权的爆发,在此基础上构建的后君主制社会。这个后君主制社会的特征是用生物政治(biopolitica)权力作为奖惩机制,以民众主权(soberania popular)取代君主权(soberania)。两位巴西艺术家, Rosana Paulino和Conceição Evaristo,在欧洲中心主义(桑特纳所采用)视野下,用“他者”的眼光观察和反思后君主制社会的民众主权问题,她们认为,以民众主权为特征的巴西社会仍然缺乏一个去殖民化转变。她们的艺术作品引发人们关于后君主制(和后殖民)社会多重问题的反思。
關鍵詞: 生物权力(biopoder), 主权;去殖民化, 埃里克·桑特纳 (Eric Santner), 罗莎娜·保利诺(Rosana Paulino), 康赛颂·埃瓦里斯托 (Conceição Evaristo).
Introdução
No presente ensaio, proponho-me fazer da apresentação do livro de Eric Santner, The Royal remains: the people’s two bodies and the endgames of sovereingnty (ainda sem tradução para o português),2 uma linha guia para algumas reflexões sobre os temas desenvolvidos pelo Autor, na tentativa de ressignificá-los a partir de duas artistas brasileiras contemporâneas, cujo trabalho ecoa fortemente, em especial, o difícil lugar ocupado pela mulher negra brasileira.
Nessa obra, o professor americano do Departamento de Estudos Germânicos da Universidade de Chicago – cujos trabalhos situam-se na interseção entre literatura, filosofia, psicanálise, teoria política e o pensamento religioso – investiga, através de pistas deixadas pela arte produzida no período de formação do que se chama de “modernidade” (em especial entre o fim do século XVIII e o início do século XX), o modo pelo qual as sociedades pos-monárquicas, estabelecidas sob o signo da razão cientificista, da secularização, da eclosão do capitalismo e da ideia de autonomia dos sujeitos, e marcadas pelo poder disciplinar da biopolítica, enfrentam o processo de substituição da soberania monárquica pela soberania popular.
O percurso proposto, no entanto, exigiu incursões em um livro anterior do mesmo Eric Santner – A Alemanha de Schreber: uma história secreta da modernidade3 – vez que o Autor confessa, já no prefácio de The Royal remains, que foram os seus esforços para compreender o alcance dos delírios do juiz alemão Daniel Paul Schreber em seu Memórias de um doente dos nervos, e mesmo as razões do impacto que ela produziu em um grande número de importantes pensadores da modernidade4 que o levaram aos insights desenvolvidos posteriormente.
The Royal remains é dividida em duas partes. Na primeira delas, ao longo de três capítulos, Santner preocupa-se em apresentar as bases teóricas e históricas de seu pensamento, especialmente a fim de delimitar conceitualmente, com a ajuda de diversos autores, o que denomina de “flesh” (carne?):5 o excesso quase inominável, que não se confunde com a imanência e materialidade do corpo, nem com o espaço de transcendência a que pode chegar a linguagem, situando-se nas “sobras” do processo de simbolização humana. A preocupação central de Santner parece ser, justamente, a identificação desta dimensão, nos rastros do pensamento psicanalítico (Freud e Lacan), e as vicissitudes que a atingem diante da necessidade de sua reorganização na transição entre a soberania monárquica e popular.
Valendo-se, então, da construção empreendida pelo historiador alemão naturalizado americano Ernst H. Kantorowicz, em seu Os dois corpos do Rei,6 Santner reconhece na modernidade, a partir da noção de “biopolítica” de Foucault (embora filtrada, especialmente, pelos pensamentos de Roberto Esposito e Giorgio Agamben), a substituição do segundo corpo do Rei, do corpo “sublime” do Rei, pelo corpo do “Povo”, investigando assim as consequências que este “peso”, agora suportado indistintamente pela população, por sua “flesh”, pode ter para a compreensão da vida política, dos percalços e sofrimentos vivenciados pelas comunidades humanas a partir do século XVIII, com a ascensão da ideia de soberania popular.
De modo original, em The Royal remains juntam-se psicanálise e ciência política, no intuito de retornar a Freud e reelaborar suas intuições (seguindo os passos de Lacan), a partir da proposição de que as pesquisas de Foucault acerca da proliferação de novos tipos de poder político e autoridade na modernidade (que ele chamou de “biopolítica”) podem elas mesmas serem entendidas como uma contribuição ao paradigma investigativo freudiano da relação entre representação e “nervos”:7
Em certo sentido, eu estou colocando Freud e Foucault no mesmo time […]. Ambos preocupam-se com as formas em que uma certa “intensificação” no corpo pode estar correlacionada com desordens ou mudanças nos recursos de representação disponíveis para os sujeitos e na competência dos sujeitos para usar estes recursos, para descarregar as pressões normativas que eles introduzem na vida dos sujeitos (tradução nossa).8
Na segunda parte do livro, Santner aposta na arte como uma espécie de janela para a “flesh”: é nela que esta “carne” se deixa entrever. O Autor vai das artes plásticas à literatura, apoiando-se, especialmente, na análise d’Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, romance de Rainer Maria Rilke, publicado em 1910, com forte tom autobiográfico. Santner confessa, aliás, que, de alguma forma, “este projeto inteiro representa um esforço para entender melhor porque este trabalho de Rilke tem me perseguido, porque ele permanece comigo e tem me prendido por tanto tempo”.9 Antes de se voltar para Os Cadernos, no entanto, Santner, passa por diversas manifestações das artes plásticas (especialmente o quadro A morte de Marat, de Jacques-Louis David – que estampa a edição americana do livro – os trabalhos de Pollock, Francis Bacon, Chaim Soutine, Cindy Sherman)10 e da literatura (Edgar Allan Poe, Georges Bataille, Franz Kafka, a Carta de Lord Chandos e a peça A Torre, de Hugo Von Hoffmannsthal, a análise de Carl Schmitt da obra shakeaspereana em Hamlet or Hecuba). Por meio delas, e a partir de um refinado entrelaçamento com os referenciais teóricos apresentados na primeira parte do livro, o Autor vai identificando em diversos sinais e similaridades os ecos da “flesh” que assume o peso dos “restos mortais da realeza” (“The Royal remains”), “[...] o excesso de imanência que escapa do lugar vago deixado pela figura do rei e agora se aloja sob a pele do Povo, com todas as complexidades e complexos que no passado moldaram os Dois Corpos do Rei”.11
Desejo neste texto, ainda, por fim, valer-me das questões levantadas por Santner para mirar os trabalhos de duas artistas brasileiras, a pintora paulista Rosana Paulino e a escritora mineira Conceição Evaristo. Na condição de mulheres, negras e de origem pobre, sua arte traduz, a meu ver, uma forma peculiar de “flesh”, que muito embora possa se valer dos insights de Santner para ser entrevista, expressa dores cuja compreensão exige algo além da perspectiva eurocêntrica adotada pelo acadêmico americano, em razão dos autores e artistas que elege na sua análise. Podemos aqui substituir a arte que ecoa os delírios de um ariano alemão atormentado pela transformação no “abjeto”, como o que se dá com o juiz alemão Schreber, pela a arte produzida do lugar do próprio “abjeto” – mulher e negra, na sociedade brasileira –, raros momentos em que se ouve a voz (ou se entrevê a “flesh”) do(à) subalterno(a).12
O fim de partida da soberania
Em The Royal remains Santner usa como alavanca central do seu pensamento a ideia de “flesh”. Uma primeira dificuldade a encarar na análise de sua obra é a tradução e a compreensão deste conceito central.13
A palavra inglesa flesh equivale, numa tradução literal, à “carne” do português. O inglês conta, no entanto, com duas palavras com sentidos um pouco diferentes, ambas traduzidas como carne: flesh, “the soft substance of the body, esp. the muscular tissue; [...] the body as distinct from the soul”,14 e meat, “the flesh of animals use as food”.15 Esta primeira aproximação do significante, embora útil, ainda está longe de esclarecer o significado que lhe atribui Santner.
Santner revela, já no início de sua obra,16 a relação do seu conceito com a expressão “chair du monde” (“flesh of the world”, ou “carne do mundo”, nas traduções em língua portuguesa), consagrada pelo pensamento do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty. A alusão a Merleau-Ponty é feita por Santner de forma indireta, ao longo do seu comentário ao ensaio de Claude Lefort (discípulo e editor das obras póstumas de Merleau-Ponty), “The Permanence of the Teologico-Political?” – o que, em si, igualmente, é um elemento importante para a compreensão do termo. A tese central do livro, acerca da transposição do corpo “divino” do Rei para a “flesh” do Povo, certamente nos remete à questão do quanto a fundamentação teológica do poder, aparentemente estranha à secularização que pressupõe a modernidade, tem ainda de permanência nos Estados Modernos.17 A tese dos Dois Corpos do Rei, objeto do clássico estudo de Kantorowicz, guarda, igualmente, relação com a profunda imbricação entre o político e o divino, presente no ambiente em que se consolidou: a dualidade de corpos do Rei (e, segundo Santner, do Povo) nasce da dualidade carne e espírito do Cristo, e guarda suas propriedades divinas:
Os reis [...] são os christi, os reis ungidos do Velho Testamento, que haviam prenunciado o advento do verdadeiro Christus régio, o Ungido da Eternidade. Após o advento de Cristo na carne, e após sua ascensão e exaltação como Rei da Glória, a realeza terrestre passaria constantemente por uma transformação e a receber sua função própria na economia da salvação. Os reis da Nova Aliança não seriam mais os "prefiguradores" de Cristo, mas antes "figuras", imitadores de Cristo. O monarca cristão tornava-se o christomimè-tès –literalmente, o "ator" ou "personificador" de Cristo—que, no estágio terrestre, apresentava a imagem viva do Deus binaturado, mesmo com respeito às duas naturezas inconfundíveis.18
A concepção de “carne”, para Merleau-Ponty, na leitura de Lefort, “caracteriza “a dimensionalidade primária do social”,19 que implica “uma ideia de sua forma primária, de sua forma política”20 (tradução nossa, grifo do autor). “Flesh”, neste contexto, assim:
[…] refere-se não à matéria corpórea abaixo da pele que normalmente permanece escondida, mas sim, em primeiro lugar, à vibração semiótica – e somática – gerada pela inscrição dos corpos em um espaço normativo social, pelo entrelaçamento de direitos e gozos que abrem as possibilidades de distintas formas humanas de desventura e alegria, de sofrimento e gozo (tradução nossa).21
Roberto Esposito, cujas ideias também são objeto de análise por Santner no primeiro capítulo de The Royal remains, igualmente usa o termo consagrado por Merleau-Ponty. Esposito desenvolve seu conceito de “dialética da imunização” a partir da concepção de Foucault acerca da passagem do antigo regime para a modernidade, da ideia de “governamentalidade” centralizada no “biopoder”. A preocupação central de Esposito – que inspira Santner – é a relação entre soberania e biopolítica, e os modos e consequências da transição de uma ordem em que o poder de impor a morte vai sendo substituído pelo poder sobre os mais diversos aspectos da vida. Imunidade (immunitas) é a categoria semântica adotada por Esposito para correlacionar vida e poder, na tentativa de resolver a antinomia que o pensamento de Foucault revelou e que a solução final do Estado Nazista – exemplo extremo da bio-política – explicitou de forma mais contundente.
Trata-se, assim, do campo teórico herdeiro das proposições de Michel Foucault para a compreensão da modernidade, a partir de elementos que, aliás, parecem cada vez mais eloquentes no mundo contemporâneo. O processo de substituição de uma lógica de poder fundada na figura do Soberano e no seu território se desenrolaria, segundo Foucault, desde o século XVI, sendo traduzido por em vários elementos que vão ganhando centralidade, a exemplo de população, segurança, normalização, natureza, ciência, estatística, governamentalidade,22 transformando o modo de exercício do poder, transformando-o em um “biopoder”:
A população aparece, portanto, nessa espécie de espessura em relação ao voluntarismo legalista do soberano, como um fenômeno de natureza. Um fenômeno de natureza que não se pode mudar como que por decreto, o que não quer dizer entretanto que a população seja urna natureza inacessível e que não seja penetrável, muito pelo contrário. É aí que a análise dos fisiocratas e dos economistas se torna interessante, porque essa naturalidade que se nota no fato da população é perpetuamente acessível a agentes e a técnicas de transformação, contanto que esses agentes e essas técnicas de transformação sejam ao mesmo tempo esclarecidos, refletidos, analíticos, calculados, calculadores [...].
É importante porque vocês vêem que com essa ideia de uma gestão das populações a partir de uma naturalidade do desejo delas e da produção espontânea do interesse coletivo pelo desejo, que com essa ideia tem-se algo que é o exato oposto do que era a velha conepção ético-jurídica do governo e do exercício da soberania.23
No entanto, como Foucault acentua, “a soberania não é de forma alguma eliminada pelo surgimento de uma nova arte de governar [...], o problema da soberania não é eliminado; ao contrário é tornado mais agudo do que nunca”24 (grifo nosso). Foucault já apontava que este movimento tão somente “desloca as constantes da soberania para detrás”25 do problema, agora maior, das técnicas de governo que passam a tratar a população como um dado, como o alvo de um saber científico que ganha proeminência na mesma época.
Roberto Esposito e Eric Santner voltam-se, justamente, sobre as vicissitudes que derivam desse deslocamento, demonstrando que ele não se dá sem que o peso, o excesso antes assumido pela figura do Soberano fique sem lugar. E este lugar para o qual ele migra na modernidade é, justamente, o que Santner chama de “flesh”.
Em “A Alemanha de Schreber”, Santner já se debruçava sobre tais questões. Em determinada altura, contrastando a noção de poder disciplinar de Foucault com as reflexões de Walter Benjamin, em sua famosa “Crítica da Violência”,26 sobre a violência inerente ao poder da lei, pontua a caracterização do poder disciplinar como um contradireito, secretado pela e dentro da lei. “A constatação mais ‘schreberiana’ de Foucault”, diz Santner, “é que a exposição ao excesso de saber que caracteriza as disciplinas produz um novo tipo de corpo ‘intensificado’, um corpo que, em certo sentido, recapitula e traveste o corpo sublime do rei”:27
Historicamente, o processo mediante o qual a burguesia se tornou a classe politicamente dominante, no decorrer do século XVIII, foi mascarado pela instauração de um arcabouço jurídico explícito, codificado e formalmente igualitário, possibilitado pela organização de um regime de tipo parlamentar e representativo. Mas o desenvolvimento e a generalização de mecanismos disciplinares constituíram a obscura vertente oposta desses processos. A forma jurídica geral que garantia um sistema de direitos em princípio igualitários era sustentada por esses mecanismos miúdos, cotidianos e físicos, por todos esses sistemas de micropoder essencialmente não-igualitários e assimétricos a que chamamos disciplinas. E embora, de um modo formal, o regime representativo torne possível que [...] a vontade de todos continua a instância fundamental da soberania, as disciplinas proporcionam, na base uma garantia da submissão das forças e dos corpos.28
No caso de Esposito, a “flesh” aparece, sobretudo, nas suas reflexões sobre a tanato-política do nazismo.29 Segundo Santner é aí que Esposito “marca o lugar da “flesh” por meio do quiasma30 [...] que funciona como o relé das forças produtivas e destrutivas entre as instituições jurídico-políticas da soberania e as práticas disciplinares do biopoder”.31 Nas palavras do próprio Esposito, lembradas por Santner e por ele apresentadas como “uma versão extrema do que eu estou chamando de “os Dois Corpos do Povo”:32
Em nenhum dos escritos de seus teóricos o Nazismo nega o que é comumente definido como ‘alma’ ou espírito – no entanto eles não são meios de abertura do corpo para a transcendência, mas para um encerramento mais e mais definitivo. Neste sentido, a alma é o corpo dos corpos, o fechamento de seu fechamento, o que de um ponto de vista subjetivo nos conduz a nosso aprisionamento objetivo. Esse é o ponto de absoluta coincidência do corpo com ele mesmo, a consumação de cada intervalo de diferença, a impossibilidade de qualquer transcendência. Neste sentido, mais do que uma redução do bios à zoē ou à ‘vida nua’... há que se falar de espiritualização da zoē e da biologização do espírito.33
No entanto, a dimensão a que Santner chama de “flesh” guarda relação, sobretudo, com a psicanálise. Não é por menos que, como visto, a intenção do autor é colocar “no mesmo time”, Foucault e Freud, este a quem coube, diante da “insuficiência das ciências da imanência (incluindo, primeiramente e mais do que tudo, a medicina)” a fundação da psicanálise, que emerge como “a ‘ciência’ que é chamada à cena pelo corpo histérico, aquele que manifesta o estranho excesso de vida que tanto pertence quanto não pertence ao corpo em questão”.34 A “ciência da ‘flesh’”, como anuncia o título do terceiro capítulo de The Royal remains. O esforço de Santner concentra-se em revelar o caráter sócio-político da teoria freudiana da libido, e da psicanálise como um todo, fazendo do que chama “flesh” o ponto de interseção entre psicanálise e política. Aliás, para ele, a “Teoria da Libido é [...] desde o início, um tipo especial de teoria social”:35
Em um certo sentido, então, o problema para a psicanálise nunca foi realmente como generalizar de um nível do individual para o do coletivo (esta sempre tem sido a crítica feita à tentativa de “aplicar” a psicanálise à sociedade), mas sim mostrar como os indivíduos iniciam-se, são atraídos, ‘seduzidos’, pelas maneiras pelas quais as formas históricas de vida têm – sempre precária e provisoriamente – chegado ao um acordo com impasses fundamentais que afligem o florescimento humano de modo geral. Tanto para o indivíduo quanto para o coletivo, o problema central pertence a um “elo perdido” na gênese da subjetividade humana, que se manifesta em nossos variados modos de engajamento no mundo.36
A centralidade do papel da psicanálise no pensamento de Santner talvez seja ainda mais explicitada na sua obra precedente, A Alemanha de Schreber, em que o professor americano analisa o caso Schreber e, mais que tudo, a própria leitura de Freud acerca da obra do juiz alemão.37
Acentuando as “dimensões transferenciais da produção literária”,38 Santner intercala a análise que faz do texto de Freud sobre o caso Schreber com cartas trocadas por ele com amigos próximos, chamando atenção para entrelinhas que revelam as preocupações de Freud com seus próprios desejos homossexuais, com o seu reconhecimento acadêmico e da “ciência” que com ele surgia, e, em especial, com as pressões advindas da sua condição de judeu.39
A descrição que faz Schreber de seus delírios transpõe os limites que se supõe de uma obra escrita por um paranoico, na medida em que é capaz de revelar a dimensão humana sobre a qual, quase simultaneamente, a psicanálise tentava àquela época teorizar inauguralmente. Segundo Freud,
[...] os “raios divinos” de Schreber, que se compõem de uma condensação de raios solares, fibras nervosas e espermatozoides, na realidade não são nada além de uma representação concreta e uma projeção dos investimentos libidinais para o exterior e, desse modo, conferem a seus delírios uma impressionante conformidade com a nossa teoria.40
Já aí se vislumbrava, portanto, o que Santner viria a chamar de “flesh” na sua obra posterior.41
O tempo e espaço em que viveu Schreber é lembrado por Santner como o mesmo que veio, mais tarde, a dar suporte aos horrores patrocinados pelo Nazismo. É compreensível, assim, que Elias Canetti atribua às Memórias de Schreber o título de precursora de outra autobiografia paranoica famosa – o Mein Kampf, de Hitler – e aponte a íntima relação entre a paranoia e o líder totalitário, amparado nas similaridades entre as duas biografias.42 Schreber e seus contemporâneos vivenciaram mudanças no modo como se dão as relações entre os indivíduos e os símbolos e estruturas sociais e institucionais – muito semelhantes, deve-se alertar desde já, com o que vivenciamos hoje:43
Minha hipótese é que esses impasses e conflitos dizem respeito a mudanças na matriz fundamental da relação do indivíduo com a autoridade social e institucional, aos modos como a ele se dirigem e como ele responde aos chamamentos do poder e da autoridade ‘oficiais’. Esses chamamentos são, predominantemente, convocações à ordem, ritos e processo de investidura simbólica pelos quais um indivíduo é dotado de um novo status social, é investido de um mandato simbólico que, desse momento em diante, impregna sua identidade na comunidade. A estabilidade social e política de uma sociedade, assim como a ‘saúde’ psicológica de seus membros parecem correlacionar-se com a eficácia das operações simbólicas – com o que poderíamos chamar de sua magia performativa – pelas quais os indivíduos ‘se tornam quem são’, assumem a essência social que lhes é atribuída através de nomes, títulos, diplomas, postos, honrarias e coisas similares. Cruzamos o limiar da modernidade quando a atenuação desses laços sociais performativamente efetivados torna-se crônica, quando eles já não são capazes de se apoderar do sujeito em sua compreensão de si mesmo.44
Philipp Blom, em suas reflexões em torno da primeira quinzena do século XX – a que chama de “anos vertiginosos” – bem retrata os elementos que podem explicar esta crise de investidura vivenciada pelos contemporâneos de Schreber, assim como nos faz notar as semelhanças que tornam o olhar para este período histórico um importante alerta para os problemas do nosso próprio tempo:
Tal como agora, as conversas e artigos de jornal eram dominados pelas rápidas mudanças tecnológicas, a globalização, as tecnologias de comunicação e as mudanças do tecido social; tal como agora, as culturas do consumo de massa imprimiam sua marca; tal como agora, era esmagadora a sensação de estar vivendo num mundo em aceleração rápida para o desconhecido [...].
Ao mesmo temo que é euforizante, a velocidade pode ser assustadora, e é esse medo ou rejeição à mudança que vemos reverberar ao longo do século. [...]
Os Anos Vertiginosos tiveram muito em comum com nossa época, notadamente em sua imprevisibilidade: em 1910, e mesmo em 1914, ninguém tinha certeza de como seria o futuro, de quem deteria o poder, de quais seriam as constelações políticas vitoriosas ou o tipo de sociedade que surgiria de mudanças tão precipitadas. Em contraposição, na segunda metade do século XX, a Guerra Fria gerou uma situação bem diferente: o desfecho parecia incerto, mas era perfeitamente claro o que estava em jogo, assim como o fato de que um dos dois sistemas ideológicos acabaria saindo vitorioso. Com o colapso do império soviético, ressurgiram em certa medida a imprevisibilidade e a incerteza dos Anos Vertiginosos, e hoje é muito mais difícil dizer o que o futuro reserva para nossas sociedades.45
Também Lacan, lembra Santner, alude à “flesh”, à “flesh that one never sees” (a carne que ninguém vê), identificando-a com o que Freud batizou de libido, “a própria substância do desejo humano, o elemento da vida psicossomática que, se as coisas vão suficientemente bem, é ‘investido’ nos objetos do mundo” (tradução nossa).46 Em seu Seminário “Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise”, segundo Santner, Lacan caracteriza esta mesma “flesh” como o “órgão da pulsão” e batiza-o de “lamela”: “esta lamela, este órgão, cuja característica é não existir, mas que mesmo assim é um órgão [...], é a libido”.47 A “flesh” de Santner é, afinal, este “órgão” invisível, que estranhamente transita entre a imanência e a transcendência, e que constitui, afinal, a matéria-prima da psicanálise:
Nós somos seres libidinosos, isto é, desejamos num sentido humano e não animal, porque nosso gozo está entrelaçado com o significante, com títulos e direitos, com os vários “ofícios” com os quais passamos a ser investidos no mundo. O estranho excesso de carne que Freud chamou libido e que constitui o material de nossas ligações eróticas no mundo “nasce” do fato de que nosso ser é compelido a desdobrar-se em uma matriz de representações significantes, um campo nunca feito à medida do animal que também somos.48
Ao modo de um fecho dessa primeira parte do texto, retorno ao subtítulo do livro de Santner, para trazer uma questão deixada em aberto, a meu ver, pelo Autor. Fiel ao tema que parece central à sua obra, Santner fala em “The Endgames of Sovereignty”. O que desejaria realmente dizer com os “jogos finais” da Soberania?
À primeira vista, o subtítulo faz sentido se “Sovereignty” é traduzido como Poder Soberano, no sentido do poder do soberano monárquico, aquele cuja substituição pelos Dois Corpos do Povo (o subtítulo completo é “The People’s Two Bodies and the Endgames of Sovereignty”) é a preocupação do Autor ao longo de sua obra. Esta saída mais simples, no entanto, parece ser desmentida por Santner no seu epílogo, fazendo eco à constatação de que, como já se demonstrou, ele não está a falar do fim da Soberania, mas da configuração de uma nova forma de Soberania – a Soberania Popular – cujas consequências reverberam nos corpos dos indivíduos, na forma de se exercer o poder político, na capacidade de os indivíduos integrarem-se à rede de símbolos, posições, sentidos que lhes enreda a existência e lhes faz suportar o poder suposto no funcionamento das sociedades humanas desde a modernidade.
Somente no seu epílogo, Santner faz de fato referência à palavra que compõe o título de sua obra, através do texto teatral de Samuel Beckett, Endgame.49 Não sem antes pontuar a presença na obra de Beckett do “surplus of immanence” que, ao longo de The Royal remains, reconhece na arte do modernismo, Santner descreve brevemente a peça de Beckett, chamando atenção para as coincidências com o tema central de seu livro:
Já pelo seu próprio título, Fim de Partida de Beckett nos coloca no meio da turbulência da soberania, a ascensão e queda de reis e rainhas (no tabuleiro de xadrez da batalha). [...]Pode-se, por exemplo, argumentar que a peça inteira esta em algum nível assombrada pela dimensão de carne evocada pelo ‘prato’ que as duas personagens principais encarnam através de seus nomes – presunto com cravo-da-índia [Hamm e Clov – Ham and Cloves] – um prato típico servido nos feriados que marcam o nascimento e a morte de Cristo. Poder-se-ia notar ainda que, invertendo suas letras, o nome de Clov corresponde ao nome do novo portador da Soberania na modernidade: o Povo [The Volk]. A fatídica constituição das nações (junto à violência que separa o povo do verdadeiro Volk/Povo) é evocada ainda pelo vínculo com a figura bíblica Cam.50 Mas como muitos leitores também notaram, Hamm poderia ser lido como uma abreviatura de ‘Hamlet’, retornando-se assim ao ‘bárbaro’ início da história moderna da teologia política da soberania juntamente com seus múltiplos fantasmas e espíritos que o assombram.51
Extraio a síntese do enredo da peça da Tese de Claudia Maria de Vasconcellos:
No plano fabular, a situação dramática figura quatro personagens confinados em um abrigo, ou bunker, fora do qual grassa a destruição completa da natureza e da civilização. São eles Hamm, cego e paralítico; Nagg e Nell, aleijados; e Clov, coxo. Com as provisões acabando, esta família desditada aguarda o fim revolvendo o passado e buscando infligir-se mais dor. A situação narrativa, por sua vez, se dá a partir da situação dramática, e manifesta-se na forma de um romance em processo de criação enunciado oralmente por Hamm. O romance discorre sobre um pai moribundo que, após rastejar por uma paisagem morta, chega, às vésperas do natal, à propriedade de Hamm, e pede pão para o filho, abandonado sem forças há muitas horas dali.52
O título da peça no original em francês, “Fin de partie”, guarda uma ambiguidade que o título inglês é incapaz de esclarecer: “partie” ecoa “partir”, não há como partir – o fim de partida não representa só o final de um jogo, mas também o fato de que Clov não partirá. Apesar de, ao longo de toda a peça, Clov repetir que partirá, ele nunca o faz. “A peça é cíclica, começa como termina, com as personagens anunciando que acabou, mas por outros diálogos no texto sabemos que aquele é só mais um dia como todos os outros desde que eles chegaram ali”.53
Mas a expressão fin de partie também é tomada de empréstimo do jogo de xadrez (jogo do qual Beckett era um aficcionado):
Por outro lado, a expressão ‘fim de partida’ designa a última etapa de uma partida de xadrez, quando há poucas peças no tabuleiro, quando os peões tornam-se mais importantes (podem deixar o tabuleiro, e ser promovidos) e o rei, antes em guarda contra o xeque-mate, deve, então, ocupar o centro do jogo e atacar. Postado no centro do palco, cego e paralítico, entronado na cadeira com rodízios emperrados, o ‘rei’ Hamm ataca, porém com palavras. Claudicante, mas móbil, o ‘peão’ Clov parece buscar sua emancipação”.54
É Anica55 que propõe, então, a partir de uma simples pesquisa na Wikipedia sobre o significado do “Endgame” para o jogo de xadrez, uma interpretação surpreendente, que acaba, proponho, por lançar novas luzes sobre o uso da expressão no título do livro de Santner:
Finais favorecem um rei agressivo[...]
Os peões passados aumentam significantemente em importância. (Ninguém sobreviveria sem Clov naquele lugar, e ironicamente ele é o único que pode acabar com a vida deles também)
Zugzwang [ expressão que indica uma dada posição no tabuleiro, na qual mesmo os dois enxadristas não tendo igualmente nenhuma opção favorável, um deles será obrigado a fazer o seu lance primeiro, em razão das regras do xadrez, indo para uma posição mais desfavorável ainda ou à derrota imediata] é comumente um fator em finais, e raramente em outros estágios do jogo [...]
Em finais de rei e peão, um peão a mais é decisivo em mais de 90% dos casos.
Em finais com peças e peões, um peão dá uma vantagem vitoriosa em 50-60% dos casos. Se o jogador com esta vantagem também possui uma vantagem posicional, a vantagem aumenta ainda mais.
O rei possui um importante papel no final.
A iniciativa é mais importante no final do que em outras fases do jogo. Em finais contendo torres, a iniciativa vale no geral, no mínimo, um peão.
Dois peões conectados e passados são muito fortes. Se eles alcançam a sexta, são consideradas tão fortes quanto uma torre.56
Na peça de Beckett, Clov (The Volk?), ressalta Anica,57 é o único que se move pelo palco: as outras personagens não sobreviveriam sem ele, assim como ele é o único que pode, por ironia, por fim às suas vidas.
Teria sido proposital o uso do termo Beckettiano no título de Santner? Teria ele conscientemente sugerido as implicações do fin du partie nas suas reflexões sobre a Soberania Popular como a entendemos hoje nas combalidas e conflituosas Democracias contemporâneas?
O livro de Santner acaba com a menção ao seguinte diálogo entre Clov e Hamm:
Clov: Você acredita na vida depois da morte?
Hamm: A minha sempre foi.58
Seguida, por um parágrafo que permanece em aberto, quase um “fin de partie” que convida a recomeçar:
Gostaria de sugerir que o “pós-vida” em questão aqui diz respeito não tanto àquele que está além da vida natural do indivíduo biológico, do corpo mortal, mas sim àquilo que está além da morte das formas de vida evocadas pelas figuras e conceitos cujos vestígios assombram os nomes dos dois personagens principais da peça. Há claramente muito trabalho a ser feito a respeito das implicações dessa reinvidicação, mas a este ponto de minhas pesquisas minhas capacidades me levam a dizer, com Bartleby,59Eu prefiro não fazer.60
E se Schreber tivesse nascido ao sul do Equador?
Nesta parte do texto desejo dar uma guinada no sentido que segui até o momento, sem, no entanto, abandonar como fio condutor a obra de Eric Santner. Instigada pela segunda parte de The Royal Remains, proponho agora um giro de perspectiva, um giro descolonizante.
Na segunda parte do seu livro, Santner faz da arte um celeiro de pistas da sua tese, identificando em diversas obras, da pintura à literatura, ecos da “flesh” cuja caracterização tentei fazer no capítulo anterior. Os autores de que parte e as obras que utiliza, no entanto, são representantes, sem exceção, do que se costuma chamar de ocidente, conceito cuja formulação é contemporânea da modernidade sobre a qual trata a obra de Santner.
Enrique Dussel, cuidando do que intitula “deslizamento semântico do conceito de ‘Europa’”, chama atenção para os diversos significados que já assumiu esta palavra, desde a figura mitológica filha de fenícios (de semitas, portanto), passando pelo império romano que fala latim, pela Europa latina medieval que se contrapunha também ao mundo árabe-turco, até se chegar ao Renascimento italiano, onde se fundem, obliterando-se a origem helenística-bizantina do mundo muçulmano, na “seguinte falsa equação: Ocidente = Helenístico + Romano + Cristão. Nasce assim a ‘ideologia’ eurocêntrica do romantismo alemão”.61
Dussel prossegue discutindo o conceito de modernidade, para posicioná-lo no entorno de “acontecimentos históricos essenciais para a implantação do princípio da subjetividade [moderna]”: a Reforma, a Ilustração e a Revolução Francesa. Mas igualmente, numa segunda visão, um conceito marcado pelo fato de que o “mundo moderno passa a ser (seus Estados, exércitos, economia, filosofia, etc.) o centro da História Mundial”,62 já que o “‘eurocentrismo’ da Modernidade é exatamente a confusão entre a universalidade abstrata com a mundialidade concreta hegemonizada pela Europa como ‘centro’”:63
A Europa moderna, desde 1492, usará a conquista da América Latina (já que a América do Norte só entra no jogo no século XVII) como trampolim para tirar uma ‘vantagem comparativa’ determinante com relação a suas antigas culturas antagônicas (turco-muçulmana, etc.). Sua superioridade será, em grande medida, fruto da acumulação de riqueza, conhecimentos, experiência, etc., que acumulará desde a conquista da América Latina.
A Modernidade, como novo “paradigma” de vida cotidiana, de compreensão da história, da ciência, da religião, surge ao final do século XV e com a conquista do Atlântico. O século XVII já é fruto do século XVI; Holanda, França e Inglaterra representam o desenvolvimento posterior no horizonte aberto por Portugal e Espanha. A América Latina entra na Modernidade (muito antes que a América do Norte) como a “outra face”, dominada, explorada, encoberta.64
A partir dessa perspectiva, as obras escolhidas por Santner para a figuração da “flesh”, na medida em que produzidas pelo olhar eurocêntrico, representam, de regra, o olhar do que “olha para O Outro” – nunca o olhar “d’O outro”.
Uso como primeiro exemplo, o caso de Schreber: homem branco, ariano alemão, ocupante de importantes cargos da hierarquia judiciária. Muito embora em seus delírios demonstre a sua fragilidade diante do peso da encarnação da personagem social que lhe é imposta,65 estes mesmos delírios apontam para uma crise de investidura em papeis dos quais, em tese, seria “merecedor” – e o temor de, não sendo capaz de assumi-los, resvalar para o lugar d’O Outro:
A crise de Schreber foi uma crise de investidura. Ele descobriu que seu poder e autoridade simbólicos de juiz – e de varão alemão – fundamentavam-se, pelo menos em parte, na magia performativa dos ritos de instituição [...]. O fato de ele haver experimentado essa sexualização como feminizadora e ‘judaizante’ sugere que, no advento da modernidade europeia, o ‘saber’ sobre o gozo era atribuído às mulheres e aos judeus, o que significa que as mulheres e os judeus eram amaldiçoados com a tarefa de ocupar o lugar daquilo que não podia ser diretamente reconhecido [...].66
Na mesma posição encontra-se “Malte”, personagem do romance de Rilke longamente comentado por Santner em The Royal remains[...], ou “Lord Chandos”, personagem de Hugo Von Hofmannsthal. A crise de investidura certamente vivenciada por tais personagens – que comungam o fato de serem escritores a enfrentar um bloqueio de sua capacidade de criar e de observarem o ocaso de uma específica formação social e simbólica – não é descrita do lugar do “Outro”, mas do que olha este “Outro” como paradigma da crise, sempre tratado na terceira pessoa:
Embora eu seja pobre. Embora minha roupa, que uso diariamente, comece a ficar puída, embora se possa objetar isso ou aquilo contra os meus sapatos. Meu colarinho, sem dúvida, está limpo, minhas roupas também, e eu poderia, como estou, ir a uma confeitaria qualquer, quem sabe nos grandes bulevares, e poderia, sem receio, pegar um pedaço num prato de bolos. Isso não chamaria a atenção de ninguém, eu não seria censurado e não me mandariam sair, pois, em todo o caso, é uma mão da boa sociedade, uma mão que é lavada de quatro a cinco vezes por dia. Sim, não há nada sob as unhas, não há tinta de escrever nos dedos, e os pulsos, em especial, estão impecáveis. Pessoas pobres não se lavam até ali, isso é coisa sabida. Pode-se, assim, tirar certas conclusões sobre seu asseio. E elas também são tiradas. São tiradas nos estabelecimentos. Mas há algumas criaturas, no Boulevard Saint-Michel, por exemplo, e na Rue Racine, que não se deixam enganar, que fazem pouco dos pulsos. Elas olham para mim e sabem. Sabem que, no fundo, sou uma delas, que estou apenas representando um pouco de comédia. [...] Pois é claro para mim que eles são os repudiados, não apenas mendigos; não, eles não são propriamente mendigos, é precisão fazer distinções. São restos, cascas de homens que o destino cuspiu fora. Úmidos do cuspe do destino, grudam numa parede, num poste, numa coluna para cartazes ou escorrem lentamente ruela abaixo, deixando um rastro escuro, sujo, atrás de si”.67
O que aconteceria se Malte ou Schreber viessem ao mundo encarnados como “cascas de homem” – e não apenas vivenciassem a ameaça dessa condição? Certamente, em primeiro lugar, provavelmente não ouviríamos suas vozes. Como já advertiu Gayatri Spivak, em seu famoso ensaio, o subalterno não pode falar.
Importante lembrar, aliás, que Spivak começa seu texto pontuando que “embora a história da Europa como Sujeito seja narrada pela lei, pela economia política e pela ideologia do Ocidente [e pela arte, eu acrescentaria], esse Sujeito oculto alega não ter ‘nenhuma determinação geopolítica’”. Fala, assim, de um desejo interessado em “manter o sujeito do Ocidente, ou o Ocidente como Sujeito”.68 A partir daí, concentra-se especialmente em analisar o diálogo estabelecido entre Foucault e Deleuze em um texto específico,69 demonstrando o quanto, mesmo onde se identifica a vanguarda crítica do pensamento ocidental, resta, velada, a referência a um sujeito monolítico, ainda incapaz de falar em nome do subalterno não-europeu:
Foucault é um pensador brilhante do poder nas entrelinhas, mas a consciência da reinscrição topográfica do imperialismo não faz parte de suas pressuposições. Ele é cooptado pela versão restrita do Ocidente produzida por essa reinscrição e assim, colabora para consolidar seus efeitos. Pode-se observar, na seguinte passagem, a omissão do fato de que o novo mecanismo de poder nos séculos 17 e 18 (a extração da mais-valia sem a coerção extraeconômica é sua descrição marxista) é assegurado por meio do imperialismo territorial – a Terra e seus produtos – ‘em algum outro lugar’. A representação da soberania é crucial naqueles espaços:
‘Nos séculos 17 e 18, temos a produção de um fenômeno importante, o surgimento – ou melhor, a invenção – de um novo mecanismo de poder dotado de técnicas de procedimentos altamente específicas [...] que é também, creio eu, absolutamente incompatível com as relações de soberania. Esse novo mecanismo de poder é mais dependente dos corpos, e do que esses fazem, do que da Terra e de seus produtos (PK, p. 104)’.70
Spivak é um entre diversos(as) pensadores(as) que têm se empenhado, nas últimas décadas, em repensar a modernidade a partir da desconstrução de uma subjetividade pretensamente universal, incorporando um movimento de “descolonização”. Se pensarmos especialmente na perspectiva Latino-Americana, destaca-se, pela pertinência com o que aqui se tenta refletir, os chamados representantes do grupo “modernidade/colonialidade”, a exemplo de Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Catherine Walsh, Ramón Grosfoguel, Santiago Castro-Gómez, entre outros. Estão eles a explicitar o quanto o processo de colonização foi parte integrante da construção da modernidade ocidental e imprescindível para a compreensão, portanto, tanto da mudez do subalterno, quanto do tom específico que assumiu a subjetividade do “homem branco ocidental”.71
Escolhi, a partir de tais reflexões, duas (raras) representantes do que poderíamos chamar de voz do subalterno na arte brasileira. A minha intenção, no entanto, dada a brevidade deste texto, é, partindo de exemplares de seus trabalhos, propor algumas questões, considerando o paradigma proposto por Santner, mas sem ainda arriscar respostas. Um movimento que comparo a subtrair algumas telhas, mas sem saber ao certo como e onde a luz vai chegar.
A escritora mineira Conceição Evaristo, considerada “a decana da Literatura Negra no Brasil”,72 nasceu em uma favela da zona sul de Belo Horizonte em 1946, filha de uma lavadeira. Conciliou o trabalho como empregada doméstica até concluir o curso normal, já com 25 anos (FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, http://www.palmares.gov.br/conceicao-evaristo). É do seu livro de contos Olhos d’Água,73 indicado ao Prêmio Jabuti na categoria “Contos e Crônicas”, que escolhi o conto “A gente combinamos de não morrer”. (Error 1: El enlace externo debe ser una url) (Error 2: La url undefined no esta bien escrita)
Da narrativa, apresentada em três vozes que se intercalam (Dorvi, o rapaz envolvido com o tráfico; Bica, mãe do filho recém-nascido de Dorvi; e Dona Esterlinda, mãe de Bica), selecionei os seguintes trechos. Neles, medo, morte, coragem e gozo confundem-se, escancarando uma peculiar estratégia de sobrevivência psíquica diante de uma realidade áspera, violenta, próxima da atmosfera delirante das Memórias do juiz alemão (mas que, como sabemos, é vivenciada em “flesh and blood” por muito(as) brasileiros(as)):
Não sei porque o medo, pensou Bica. Se ao menos o medo me fizesse recuar, pelo contrário, avanço mais e mais na mesma proporção desse medo. É como se o medo fosse uma coragem ao contrário. Medo, coragem, medo, coragemedo, coragemedo de dor e pânico. A festa está se dando. Balas enfeitam o coração da noite. Não gosto de filmes de tevê. Morre e mata de mentira. Aqui, não.74
Morremos nós, apesar de que a gente cominamos de não morrer. A morte às vezes tem um gosto de gozo? Ou o gozo tem um gosto de morte? [...] No meio do tiroteio, esporrei, gozei. E juro que não era de medo, foi de prazer. Uma alegria tomava conta de meu corpo interior. Senti quando o meu pau cresceu ereto, firme, duro feito a arma que eu segurava nas mãos. Atirei, gozei, atirei, gozei, gozei...75
Para as personagens de Conceição Evaristo a modernidade jamais chegou. Poderiam ser tais personagens alçadas à condição de “Povo”, aquele “Povo” que “reina” na Soberania? Como ler a “crise de investidura” produzida pela modernidade a partir de tais sujeitos – cuja investidura original, há séculos, é, em si, traumática? Como a “flesh” desses sujeitos gestiona um excesso que, de tão constitutivo, parece deixar de ser insuportável? “Produtos” bem-acabados do poder disciplinar?
Em outra passagem, D. Esterlinda fala de Bica, apontando elementos que podem ajudar a pensar estas questões:
Já teve outros namorados, inclusive um rapazinho crente. Bom menino, mas Bica não gostou dele. Dizia que ele era um banana. Eu não entendia por que. Um menino tão bom e ainda com a garantia de estar longe das drogas. Foi aí que ela encrespou. Bica disse que ele era drogado sim. Drogado pela Bíblia, pelo pastor, pela igreja, enfim. Que nem vontade própria tinha. Não entendi nada, mas passei a observar o menino. Ele realmente parece uma pessoa sem sustância, sem a coragem de Dorvi.76
O trecho faz recordar a figura do “grande criminoso” citada por Walter Benjamim em seu “Para uma crítica da violência”:77 a admiração do povo pelo grande criminoso como uma janela pela qual se pode reconhecer a violência mítica, de um lado, e, de outro, se desnuda a violência que é marca da lei em seu nascedouro e em sua manutenção.
A segunda artista com que desejo ilustrar este ensaio é Rosana Paulino – pintora paulista, nascida na Freguesia do Ó, filha de uma empregada doméstica e de um carregador de açúcar. Cursou Artes Plásticas na Universidade de São Paulo, onde ingressou em 1989, após pagar o cursinho com o emprego de bancária.78
A primeira obra que escolhi dessa artista faz parte da série Assentamentos, em que trabalhou sobre fotos que August Stahl produziu no século XIX,79 com a intenção de comprovar uma suposta inferioridade negra diante do Europeu. A artista imprimiu as fotografias em tecido, costurando em seguida seus pedaços:
Mais do que uma linha de costura, trata-se de uma sutura. Quis mostrar o drama pessoal da escravidão. O negro sequestrado dos seus e levado a outra terra ainda consegue se refazer. Mas não se refaz por completo. Um trauma fica. A costura não fecha”. Em sua instalação, colocou as fotos ao lado de gravetos que simbolizavam o povo negro, lenha para queimar. E os tablets mostravam o mar aberto.80

A segunda obra da artista compôs a exposição O Amor, modos e usos, de 2011. Escolhi-a pela força que transmitem as lágrimas que enredam a figura, a lembrar o “surplus o immanence”, o “excess of flesh” que “[her]own bodie[s] cannot fully close in upon and that must be ‘managed’ in new ways”.[82] As lágrimas parecem figurar a “proteção extrema contra cor e o sofrimento”, tal qual o título que a Artista dá a obra. Ao mesmo tempo, concedem materialidade ao sofrimento, quase como um órgão que se projeta corpo afora, estranhamente expelido numa contorção de dor.
Talvez os seres humanos trazidos da África para o trabalho escravo nas Américas tenham sido os primeiros a sentir na pele, sem eufemismos, o poder disciplinar em sua mais eloquente versão – os primeiros a serem confrontados com o “unbearable excess” de que fala Esposito,83 e que se põe entre os elementos de que o Filósofo italiano se utiliza na tentativa de compreender a paradoxal proximidade entre “biopolítica” e a “tanato-política”. Junto à experiência de milhões de africanos e americanos indígenas, mortos e escravizados por vários séculos, o exemplo do holocausto nazista – que é o mote, por exemplo, de Roberto Esposito, assim como de outros pensadores ocidentais para as reflexões sobre os limites (ou o sem limite?) da violência do homem – pode mesmo parecer ofuscado. No entanto, o genocídio e escravidão ocorridos nas Américas, no decorrer do mesmo período que Foucault toma como alvo de seus estudos para compreender o fenômeno do poder, não chegaram a mobilizar verdadeiramente o pensamento e a arte ocidentais.

Conceição Evaristo e Rosana Paulino são exemplos raros. Tornar-se voz da subjetividade subalterna é um processo que implica um poder de superação além do “normal”, que transgride a normalidade85 imposta a pessoas para quem a vida moldada no trabalho, na escola, nos hospitais, pela polícia, pelos meios de comunicação, desde cedo impõe-lhes saber, em uma mensagem gravada em suas próprias peles, cabelos, feições, “qual é o seu lugar”:
A babá Lidiane, da novela das oito, acabou sozinha. Não gostei do final. Assisti outra novela em que a babá casou com o filho do patrão. Bonito, tudo muito bonito. Chorei de emoção. Quando choro diante de novela, choro também por outras coisas e pela vida ser tão diferente. Choro por coisas que não gosto nem de pensar.86
Considerações finais
O presente nos sinaliza uma preocupante coincidência com os sinais captados por Eric Santner na estética subjacente aos albores do século XX. Isto parece ser, aliás, o que justifica o seu mergulho no passado, nele colhendo os elementos que, renitentemente, têm mantido os seres humanos, a despeito de seus avanços tecnológicos e sonhos iluministas, mergulhados em diferentes estados de exceção, assombrados pelos mesmos fantasmas.
Nossos fantasmas são medievais: este foi o título da entrevista concedida por Jacques Le Goff, publicada, em 1988, no Jornal do Brasil. Nela o historiador francês apontava a Idade Média como momento em que foram forjadas as assombrações que o século XXI está longe de exorcizar, como o antissemitismo e a figura do diabo.87 Sob novos lençóis, os fantasmas de hoje alimentam o mesmo medo com que Hobbes justificou a necessidade do Estado. O par lógico do medo é a “sujeição, a reverência”88 (awe), a minar a autonomia dos sujeitos, a sugerir a metáfora das ovelhas e do pastorado, (cuja importância foi ressaltada por Foucault na sua tentativa de compreender as facetas do “biopoder),89 ainda eloquente diante do que hoje vivenciamos de modo cada vez mais intenso:
Esquizofrênicos de toda natureza, homens e mulheres com identidades cindidas, migrantes expulsos dos seus lugares de origem, deserdados e condenados da terra, exércitos de desempregados e subempregados, jovens marginalizados, idosos ‘improdutivos’; diferentes, por qualquer critério, do padrão hegemônico imposto pela mídia; estes são alguns dos grupos sociais que vão se constituir no lugar da exclusão social porque o mercado não os absorve integralmente.
Então, no pós-modernismo o mercado é Leviatã com pele de cordeiro. Sua função não é encorajar e perpetuar a liberdade; muito menos em sua versão política, mas reprimi-la produzindo representações absolutistas.90
A partir desse contexto, os trabalhos de Conceição Evaristo e Rosana Paulino foram lembrados como exemplos de desvelamento da “sujeição” intensa produzida pelos medos peculiares da subalternidade brasileira, forjada na espoliação e violência da escravidão e do extermínio. Com eles pretendi demonstrar, sem menosprezar a clarividência da análise de Eric Santner, a insuficiência do olhar “universal” do Sujeito do Ocidente – a necessidade de um aprofundamento das reflexões sobre as específicas dores e estratégias de sobrevivência de sociedades marcadas, como a brasileira, pela extrema desigualdade.
De todo modo, é certo que a violência das balas a ecoar na noite das personagens de Conceição Evaristo tem a mesma origem que aquela que dilacerava o corpo de Schreber em seus delírios – é a violência indizível, espectral, que integra a máquina “mortífera” do capitalismo, e que parece ainda mais despudorada e impalpável nesses tempos de capitais “voláteis”, aguda precarização do trabalho, sentimentos e relações empacotados na forma de mercadorias:
[...] é a dança metafísica autopropulsiva do capital que dirige o espetáculo, que fornece a chave dos desenvolvimentos e das catástrofes que têm lugar na vida real. É aí que reside a violência sistêmica fundamental do capitalismo, muito mais estranhamente inquietante do que qualquer forma pré-capitalista direta de violência social e ideológica. [...] Encontramos aqui a diferença lacaniana entre a realidade e o Real. A ‘realidade’ é a realidade social dos indivíduos efetivos implicados em interações e nos processos produtivos, enquanto o Real é a inexorável e ‘abstrata lógica espectral do capital que determina o que se passa na realidade social. [...] Vemos uma enorme degradação ecológica e muita miséria humana. Entretanto, o relatório econômico que depois lemos nos informa que a situação econômica do país é ‘financeiramente sólida’: a realidade não conta, o que conta é a situação do capital...91
Em A gente combinamos de não morrer, Bica parece “sangrar” esse indizível, na forte imagem com que Conceição Evaristo encerra o seu conto, e que aqui também tomo emprestada como fecho:
Eu sei que não morrer, nem sempre é viver. Deve haver outros caminhos, saídas mais amenas. Meu filho dorme. Lá fora a sonata seca continua explodindo balas. Neste momento, corpos caídos no chão, devem estar esvaindo em sangue. Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia. ‘Escrever é uma maneira de sangrar’. Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito...92
Eis a Arte, em língua que não requer tradução, despindo a Flesh, devolvendo a voz.
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ZIZEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. São Paulo: Boitempo, 2014.
Notas
“Cada religião coloca em seus próprios termos que a sociedade humana somente pode abrir-se a si mesma mantendo uma abertura que ela não criou. A filosofia diz a mesma coisa, mas a religião o disse primeiro, ainda que em termos que a filosofia não pode aceitar...O que a filosofia descobre na religião é um modo de retratar ou dramatizar as relações que os seres humanos estabelecem com algo que vai além do tempo e espaço empíricos dentro do qual eles estabelecem relações uns com os outros’ (222-23). Isto é, os seres humanos preenchem, povoam esta “abertura” com objetos, figuras e histórias baseadas na ‘nas condições mais gerais de suas vidas’, ‘inventam uma liga que existe antes do tempo, organizam um espaço que existe atrás de seu espaço’ (223). O que a filosofia necessita ter na lembrança, acima de tudo, sugere Lefort, é que a experiência da diferença em questão – a mínima diferença que permite os seres humanos relacionarem-se com sua humanidade – carrega as marcas de uma ordália’ (223), encenada surpreendentemente nas narrativas e na imagem de mundo do Cristianismo. O que Lefort chama, tomando emprestado de Merleau-Ponty, a carne do vínculo sociopolítico é o elemento produzido e sustentado por esta ordália” (SANTNER, 2011, p. 5, nota 4, tradução nossa).
(“Every religion states in its own way that human society can only open on to itself by being held in an opening it did not create. Philosophy says the same thing, but religion said it fIrst, albeit in terms which philosophy cannot accept. . . . What philosophy discovers in religion is a mode of portraying or dramatizing the relations that human beings establish with something that goes beyond empirical time and the space within which they establish relations with one another" (222-23). That Is, human beings fill in, populate this "opening" with objects, figures, and stories based on "the most general conditions of their lives," "invent a lime that exists before time, organize a space that exists behind their space"(223). What philosophy above all needs to remain mindful of, Lefort suggests, is that the experience of the difference in question – the minimal difference that allows human beings to relate to their humanity –‘bears the marks of an ordeal’ (223), one staged in staggering fashion in the narratives and image-world of Christianity. What Lefort calls, borrowing from Merleau-Ponty, the flesh of the sociopolitical link is the element produced and sustained in this ordeal”).
Estas considerações do jurista francês Michel Miaille prosseguem para lembrar a relação intrínseca entre o processo de normalização e a métrica que torna possível um sistema de trocas, ancorado em um valor de troca. Por detrás do direito das sociedades burguesas, que “não pode senão ser um direito igual”, esconde-se uma produção ideológica precisa, vinculada ao voluntarismo subjetivista do humanismo que é marca da modernidade, que acaba por imputar ao “desigual” a responsabilidade por sua desigualdade e, simultaneamente, o mantém neste lugar:
“O fetichismo da norma e da pessoa, unidos doravante sob o vocábulo único de direito, faz esquecer que a circulação, a troca e as relações entre pessoas são na realidade relações entre coisas, entre objectos, que são exactamente os mesmos da produção e da circulação capitalistas. E, de facto, no mundo do direito tudo parece passar-se entre pessoas: as que mandam e as que obedecem, as que possuem, as que trocam, as que dão, etc. Tudo parece ser objecto de decisão, de vontade, numa palavra, de Razão. Jamais aparece a densidade de relações que não são queridas, de coisas às quais os homens estariam ligados, de estruturas constrangedoras mais invisíveis” (MIAILLE, 2005, p. 94, grifo nosso).
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