Resumo: O presente artigo tem como objetivo, de início, demonstrar que elementos totalitários, comumente considerados específicos do totalitarismo, tais como a inexistência de proteção legal e a absoluta sujeição do indivíduo ao poder soberano, podem transitar em regimes ditos democráticos, nos quais se observa progressivo recrudescimento da intervenção estatal nas liberdades públicas. Após, adentrar-se-á no tema do terrorismo, tratando-se especificamente da Lei brasileira nº 13.260/16, a denominada Lei Antiterrorismo, ponto fulcral desta pesquisa. Ao longo do trabalho, buscar-se-á demonstrar a relação entre essas duas questões, totalitarismo e terrorismo, principalmente quando da análise dos tipos penais previstos na aludida norma, cuja amplitude de incidência tem efetivamente o condão de relegar o indivíduo ao poder absoluto do soberano, lugar onde se encontra desprovido de qualquer mecanismo de proteção legal. Nesse cenário, entende-se que a própria legislação possui potencial de ser utilizada como instrumento extrajurídico e não genuinamente como forma de combater o terrorismo. No estudo, serão empregadas as teorizações de Giorgio Agamben e de Hannah Arendt, filósofos que analisaram, sob perspectivas distintas, mas complementares, aspectos do totalitarismo do século XX, as características e os mecanismos que o tornaram possível, a localização, a utilidade e o papel do indivíduo nesse contexto.
Palavras-chave:TotalitarismoTotalitarismo, Democracia Democracia, Soberano Soberano, Lei Antiterrorismo Lei Antiterrorismo.
Resumen: El presente artículo tiene por objeto demostrar que elementos totalitarios, como la inexistencia de protección legal y la absoluta sujeción del individuo al poder soberano, pueden existir en regímenes considerados democráticos en los cuales se observa un progresivo recrudecimiento de la intervención del Estado en las libertades públicas. Se trata la cuestión del terrorismo a través del análisis de la Ley brasileña n.º 13 260/16, la denominada Ley Antiterrorismo. Buscamos demostrar la relación que existe entre totalitarismo y terrorismo, principalmente a partir del examen de los tipos penales previstos en esta ley, cuya amplitud de incidencia posee la facultad de relegar al individuo al poder absoluto del soberano, lugar donde se encuentra desprovisto de cualquier mecanismo de protección legal. En este escenario, se entiende que la propia legislación ostenta potencial suficiente para ser utilizada como instrumento extrajurídico y no genuinamente como forma de combatir el terrorismo. Ahondamos en las teorizaciones de Giorgio Agamben y de Hannah Arendt, dos filósofos que analizaron, desde perspectivas distintas aunque complementarias, diversos aspectos del totalitarismo del siglo XX, las características y los mecanismos que lo hicieron posible, y el lugar, la utilidad y el papel del individuo en dicho contexto.
Palabras clave: totalitarismo, democracia, soberanía, Ley Antiterrorismo de Brasil.
Abstract: The following article aims to demonstrate that totalitarian elements – such as a lack of legal protection and an absolute subjection of the individual to sovereign power – may persist in regimes considered to be democratic, revealing a gradual resurgence of state intervention in public liberties. The subject of terrorism is approached by means of an analysis of Brazilian Law 13.260/16, known as the “anti-terrorism law”. We seek to demonstrate the relationship between totalitarianism and terrorism, mainly by analyzing the types of criminal offense outlined by the law, whose scope has the effect of relegating the individual to the absolute power of the sovereign, in which they are stripped of any mechanism of legal protection. Within such a scenario, the legislation itself has the potential to be used as an extra-judicial instrument rather than a genuine means of combating terrorism. We consider theories proposed by Giorgio Agamben and Hannah Arendt, philosophers to have analyzed aspects of twentieth-century totalitarianism from different yet complementary perspectives, in terms of the characteristics and mechanisms to have contributed to its development, as well as the location, use and role of the individual in such a context.
Keywords: Totalitarianism, democracy, sovereignty, anti-terrorism law.
Résumé: Le présent article a pour but de démontrer que des éléments totalitaires, tels que l’absence de protection juridique et la sujétion absolue de l’individu au pouvoir souverain, peuvent également transiter dans des régimes pourtant considérés comme démocratiques, où l’on peut observer une recrudescence progressive de l’intervention de l’État dans les libertés publiques. Le thème du terrorisme est ici traité à travers le prisme de la loi brésilienne nº 13.260/16, baptisée Loi Antiterrorisme. Nous chercherons à démontrer le lien entre totalitarisme et terrorisme, et ce principalement dans le cadre de l’analyse des types pénaux prévus dans cette loi, dont l’amplitude d’incidence est effectivement en mesure de soumettre l’individu au pouvoir absolu du souverain sans aucun recours possible à quelconque mécanisme de protection juridique. Ce contexte nous montre que la législation même peut être utilisée comme instrument extra-juridique et non pas simplement comme une forme authentique de lutte contre le terrorisme. Nous nous sommes basés sur les théories des philosophes Giorgio Agamben et Hannah Arendt, qui ont analysé sous des perspectives distinctes, mais néanmoins complémentaires, les différents aspects du totalitarisme du XXe siècle, les caractéristiques et autres mécanismes l’ayant rendu possible, ainsi que la place, l’utilité et le rôle de l’individu dans ce contexte.
Mots clés: totalitarisme , démocratie , souveraineté , Loi Antiterrorisme.
摘要: 本文旨在表明,一些极权主义的元素,比如缺乏保护个人的法律,个人对主权权力的绝对服从,仍然存活在一些被认为是民主的国家里。通过对此类民主国家的观察,我们会发现它们在逐步增强国家对公众自由的干预。巴西有关恐怖主义的问题,主题是通过第13.260/16号法,即所谓的“反恐法”来处理的。我们分析了针对恐怖犯罪采取的刑罚和其他反恐措施,证明极权主义和恐怖主义之间的关系。由于“反恐法”把国家主权放在首位,它对公民自由没有采取任何保护机制。我们认为该法本身有可能为非法律手段提供保护,而不是真正的用来打击恐怖主义。我们重读乔治奥·阿甘本(Giorgio Agamben)和汉娜·阿伦特(Hannah Arendt)的理论,他们2位哲学家从不同的角度分析,阐述了二十世纪的极权主义的特点,形成机制,运作方式,以及个人在极权统治下所处的位置,用途和所起的作用。
關鍵詞: 极权主义, 民主, 主权, 反恐法.
Artigos
Lei antiterrorismo no Brasil: releituras sobre totalitarismo a partir de Giorgio Agamben e Hannah Arendt
La Ley Antiterrorismo brasileña: reinterpretación del totalitarismo a partir de Giorgio Agamben y Hannah Arendt
Brazil’s anti-terrorism law: re-readings of totalitarianism based on Giorgio Agamben and Hannah Arendt
La loi antiterroriste au Brésil : Relectures du totalitarisme à partir de Giorgio Agamben et Hannah Arendt
巴西的反恐法:重读乔治奥·阿甘本和汉娜·阿伦特有关极权主义的著作
Recepção: 10 Setembro 2017
Aprovação: 27 Março 2018
O século XX foi marcado pela prática de atrocidades antes impensáveis. Os registros destes acontecimentos estão nos livros de história, no cinema e nos depoimentos daqueles que conseguiram sobreviver à tentativa de aniquilamento total de um povo cujas vidas foram ferozmente ceifadas em campos de extermínio. Vítima de perseguição implacável, o povo judeu representa o símbolo de uma história que não se deseja repetir. Muito se discute acerca das barbaridades ocorridas na Alemanha Nazista, contudo vale investigar se aquilo que se identifica, no primeiro momento, como nuances específicas desses regimes, pode ser observado nas políticas de governo de países do Ocidente. Assim, este trabalho verificará se é possível esboçar relação entre acontecimentos atuais e aqueles considerados pertencentes ao passado.
Desse modo, questiona-se se elementos totalitários, como a ausência de proteção legal e a total sujeição do indivíduo à vontade do poder soberano, são passíveis de materialização em regimes tidos como democráticos, e se, mais especificamente no caso do Brasil, a Lei Antiterrorismo contém dispositivos legais potencialmente acolhedores desse poder absoluto, de modo que a análise será situada no contexto maior da biopolítica, e não à luz da dogmática penal.
Ressalte-se, desde já, que, no presente artigo, o conceito de soberano deve ser entendido como qualquer entidade capaz de subjugar o indivíduo, conforme seu mando, sem que este tenha acesso a instrumento concreto de proteção dentro do ordenamento de seu país ou mesmo no âmbito do Direito Internacional. Este poder pode, portanto, poder ser protagonizado por uma instituição psiquiátrica, uma empresa privada de importante poderio econômico ou, no caso de aplicação da Lei Antiterrorismo, pode se corporificar nos próprios representantes do Estado.
A presente pesquisa supõe que o fenômeno do recrudescimento progressivo da intervenção do Estado no campo das liberdades dos indivíduos permite que se visualize a materialização, em regimes democráticos, de elementos que, à primeira vista, seriam observáveis somente em regimes totalitários, revelando entre eles proximidade inquietante. Nesse cenário, julga-se que a própria lei pode ser utilizada como instrumento para a consecução de fins alheios ao Direito, sendo que, nesses casos, o indivíduo se sujeita a um poder absoluto, sem limites.
Entende-se que os tipos penais abertos previstos na Lei Antiterrorismo, caracterizados pela indeterminação jurídica, representam solo fecundo para a realização dessa dinâmica e, portanto, para a prática de arbítrios contra qualquer cidadão brasileiro, que se vê desamparado de mecanismos legais de socorro, visto que a própria lei é usada para subjugá-lo. Compreende-se que a referida legislação não foi editada exatamente com a finalidade de combate ao terrorismo, mas como ferramenta de biopolítica.
Para investigar as hipóteses acima vislumbradas, será realizada pesquisa jurídico-sociológica, fazendo-se uso do raciocínio hipotético-dedutivo. Assim, na primeira parte, será efetuada discussão teórica e, na segunda, será analisada a Lei Antiterrorismo. Trata-se de pesquisa transdisciplinar, visto que as fronteiras do Direito são ultrapassadas para dar ensejo a abordagem múltipla. A investigação será prospectiva, posto que tem como fim último prever as consequências da aplicação da legislação antiterrorista. O método a ser utilizado será o bibliográfico, considerando que se restringirá a analisar as hipóteses do ponto de vista estritamente teórico, utilizando-se de bases de dados prontas, extraídas de livros, artigos científicos e mídias.
A discussão teórica se utiliza do trabalho de Giorgio Agamben e de Hannah Arendt. Em Origens do Totalitarismo (ARENDT, 1989), com base em investigações sobre o surgimento do antissemitismo na Europa, a filósofa alemã analisa profundamente o fenômeno totalitário, ressaltando a importância dos campos de concentração em sua estrutura, bem como a técnica do aniquilamento total do indivíduo como pressuposto para seu êxito. O escritor italiano, por sua vez, determina que a política moderna ocidental se constitui em verdadeiro estado de exceção e que o campo de concentração é hoje o paradigma político do Ocidente, o espaço onde se pratica a biopolítica do poder soberano. A integração entre as reflexões de ambos será desenvolvida no Tópico 2. No Tópico 3, será tratada a Lei Antiterrorismo brasileira.
Conforme observação de Walter Benjamin (1994, p. 223), que influenciou o trabalho de Arendt e Agamben, “O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção”, se fixa como imagem quando é reconhecido, e este reconhecimento, de que a exceção se torna regra, para justificar a implementação de características totalitárias no presente, tanto quanto ocorreu no passado, justificaria um assombro que, para Benjamin, seria insustentável.
Em matéria de soberania, Agamben desenvolveu singular estudo, trilhando por terras pouco exploradas e por vezes sombrias. Fazendo uso do método arqueológico-paradigmático, Agamben se apropria de figuras, institutos e teorias do passado e promove releitura para suas próprias conclusões. Para ele, o uso de generalizações para singularizar conceitos sempre se configura inadequado (AGAMBEN, 2008, p. 15). O exemplo, ou paradigma, é a forma de conhecimento nem indutiva nem dedutiva, mas analógica, que se move de singularidade a singularidade. Desse modo, as dicotomias entre o geral e o particular são neutralizadas pelo paradigma, que se torna suspenso no tempo, ao mesmo tempo que expõe o grupo que representa por sua singularidade. Assim, Agamben pode idealizar sua noção de “bando”.
Em Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I, Agamben (2002) inicia sua exposição pela noção de soberania em termos de “bando”. De acordo com o filósofo, a relação de “bando” é uma relação de exceção, e a exceção, a estrutura da soberania. Contudo, o que caracteriza fundamentalmente a exceção não é a exclusão do ordenamento jurídico em si, mas a relação que a própria exceção mantém com aquilo que exclui, ou seja, a relação que sustenta permanentemente o que está, ao mesmo tempo fora e dentro do sistema jurídico, por meio de uma suspensão, que vigora permanentemente em seus efeitos, incluindo o excluído. “Bando” é essa potência da lei de aplicar-se, desaplicando-se. Desse modo,
[...] aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no limiar em que vida e direito, externo e interno, se confundem (AGAMBEN, 2002, p. 36, grifo do autor).
Para explicar a relação de “bando”, Agamben (2002, p. 57) se apodera do texto Diante da lei, de Franz Kafka, ao considerá-lo como representante da estrutura do “bando” soberano. A interpretação de Agamben sobre o conto descreve o papel da lei que nada prescreve, mas que ao mesmo tempo a tudo condiciona. Neste preciso ponto, de nada regulamentar, é que a lei se revela mais incisiva, assinalando puro abandono.
A partir dessa noção de “bando”, percebe-se que, no pensamento agambiano, a fundação do poder soberano é decorrente não de uma livre renúncia de direitos por parte de súditos concordes com um pacto social, mas sim de outra circunstância, que reverbera com grande intensidade: o poder soberano provém da sua autoconservação. Esta pressupõe o poder de inclusão da exclusão da vida, de fazer qualquer coisa em relação a qualquer um, inclusive de institucionalmente abandonar a vida a uma mera vida.
Na distinção entre zoe e bios,1 descritos por Aristóteles, Agamben introduz uma terceira classificação, adaptada do ensaio Para uma Crítica da Violência de Walter Benjamin (1978), a “vida nua”, que se constitui no novo corpo biopolítico da modernidade, em termos influenciados por Foucault. A “vida nua” se dissimula no modelo jurídico-institucional no qual o exercício do poder soberano se consolida, aparecendo, invariavelmente, quando zoe e bios são separadas, ou por meio da desconsideração da bios ou da mera preservação da zoe. A relação exclusiva-inclusiva proporcionada pela linguagem no âmbito das relações intersubjetivas capaz de manter a reflexão sobre o viver dá lugar a um espaço de mera vida, que retira qualquer possibilidade de existência de singularidades em meio a um simulacro de sacralidade da vida.
Para Agamben, a relação política originária é o “bando” e não o “contrato social”. Consequentemente, pode-se dizer que o poder soberano não foi estabelecido em um evento pontual e definitivo. Pelo contrário, sua fundação se dá hodiernamente, de forma contínua, e, dentro da esfera do poder soberano, aquilo que é nela capturado se apresenta sob o paradigma do homo sacer. Esta figura, resgatada por Agamben (2002, p. 79; 91; 115-116) do direito romano arcaico, ocupa papel central em sua obra, minuciosamente estudada com o intuito de perscrutar-se o conteúdo primeiro do poder soberano, que vem a ser a “vida nua”. É a essa vida desprovida que o poder soberano se vincula por meio do “bando” e não à livre vontade dos cidadãos consubstanciada num suposto pacto social.
Em Roma, o sentenciado a homo sacer2 era excluído da sociedade, por ter sido condenado em consequência da prática de um delito. Em virtude de sua condição, poderia ser assassinado sem que, todavia, se configurasse homicídio, já que, em relação a esse sacralizado, a aplicação da lei era suspensa (impune occidi). Ao mesmo tempo, ele também não poderia ser sacrificado aos deuses por meio das purificações rituais, por estar igualmente excluído do direito divino (neque fas est eum immolari). O homo sacer era, portanto, figura excluída do ordenamento jurídico dos homens e, ao mesmo tempo, indigno de passagem para a jurisdição divina (AGAMBEN, 2002, p. 80).
Na arqueologia paradigmática de Agamben, o homo sacer representa estrutura de dupla exclusão. Trata-se de conceito-limite, que somente existe em uma relação de exceção e, nesse sentido, aproxima-se da estrutura da soberania, à qual também é inerente o elemento exceção. Na figura do homo sacer é percebida sua íntima relação com o poder soberano. O que a relação de “bando” mantém unidos, destarte, é justamente o poder soberano e essa “vida nua”.
Nesse fluxo de ideias, a “vida nua” é produção política realizada pelo poder soberano. Em outras palavras, o poder soberano se funda não em um pacto social, mas sim nessa vida desamparada. Assim, “autenticamente política é somente a vida nua”, sendo ela o elemento político originário, e o “campo” “[...] o espaço desta absoluta impossibilidade de decidir entre fato e direito, entre norma e aplicação, entre exceção e regra, que, entretanto, decide incessantemente sobre eles” (AGAMBEN, 2002, p. 113; 180).
Agamben defende que essa simbiose permanente entre poder soberano e “vida nua” permitiu o surgimento dos campos de extermínio e de concentração dos Estados totalitários do Novecentos. Isto é, o apropriar-se dessa “vida nua” pelo soberano, ao longo dos séculos, desembocou no fenômeno extremo observável na Alemanha Nazista (AGAMBEN, 2002, p. 175-186).
Em suas investigações, o escritor italiano, servindo-se da noção de biopolítica desenvolvida por Foucault, analisa eventos históricos fundamentais, tais como a Déclaration des droits de l´homme et du citoyen de 1789, o aparecimento do conceito de eutanásia e de morte cerebral, bem como o desenvolver da política eugenética do Terceiro Reich, que revelam a progressiva inclusão da vida biológica dos indivíduos nos cálculos do poder soberano (AGAMBEN, 2002, p. 133-135; 143-150; 151-160; 167-172). Essa inclusão chega ao seu ápice na política nacional-socialista de Hitler, ponto em que a tutela da vida se absolutiza, fazendo surgir o campo e trazendo à luz o evidente nexo entre essa política de total apropriação da vida pelo soberano e o totalitarismo (CASTRO, 2012, p. 46).
Nesse lugar, as investigações de Agamben e Arendt se entrecruzam e se integram. Enquanto o filósofo italiano analisa fatos históricos a partir de perspectiva biopolítica, dando especial ênfase às leis que dispunham acerca da política eugenética nazista, tais como a lei de prevenção da descendência hereditariamente doente de 1933 e de proteção da saúde hereditária do povo alemão, também de 1933 (AGAMBEN, 2002, p. 156); a filósofa alemã centrou suas pesquisas na análise direta do totalitarismo a partir da perspectiva do campo.
Arendt (1989, p. 461-462) considera que os nazistas sabiam que os alemães não eram uma raça superior, visto que este entendimento poderia se tornar verdadeiro obstáculo à progressiva seleção e eliminação de grupos indesejados, ao ponto de, em 9 de agosto de 1941, Hitler proibir o uso da expressão “raça alemã”. O que estava em jogo era o domínio total do homem como indivíduo e de todos os homens por meio da anulação completa da pluralidade humana. Tal experiência somente era possível de ser concretizada nos campos de concentração e de extermínio, laboratórios onde a verdadeira essência da ideologia totalitária poderia ser colocada em prática. Nota-se que, mais do que a busca da eliminação em si, o campo tinha, como função primordial, experimentar a eliminação das características humanas em condições controladas, representando o campo a “instituição que caracteriza mais especificamente o governo totalitário” (ARENDT, 1989, p. 488-491).
O aniquilamento de grupos cada vez maiores de maneira arbitrária e o planejamento para se criar uma Lei de Saúde Nacional, que selecionaria alemães portadores de moléstias do pulmão e do coração, demonstram que o objetivo final do Führer não se limitaria ao extermínio dos judeus (ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA DO NORTE, 1946, p. 175-176).
Mas o caminho para o total domínio do indivíduo em direção a uma “sociedade de campos de concentração” (ARENDT, 1989, p. 498) perpassa por estágios de gradual aniquilamento do humano. Arendt aponta que o primeiro passo é fazer desaparecer a pessoa no âmbito jurídico. O regime ambiciona destruir os direitos civis de todos os habitantes do Estado totalitário. Na Alemanha nazista, isto se deu por meio da exclusão do homem da proteção da lei, notadamente por meio de maciça desnacionalização. Fora da proteção do sistema jurídico vigente, tais pessoas não poderiam cometer crimes, nem serem remanejadas para o sistema penal comum, motivo pelo qual foram utilizados instrumentos como a “custódia protetiva”, e criaram-se os campos de concentração, que delimitaram o indivíduo numa esfera de absoluta arbitrariedade: “logo perceberão que não lhes faltam motivos para invejar o mais vil ladrão ou assassino” (ARENDT, 1989, p. 498).
Na segunda fase deste processo de aniquilamento, para Arendt, é necessário matar a pessoa em sua esfera moral, roubando a própria lembrança de que o indivíduo algum dia existiu. O terceiro e o mais atroz passo se constitui na destruição da singularidade do indivíduo, sua “identidade única” (ARENDT, 1989, p. 504). A finalidade precípua do tratamento de terror dado aos prisioneiros era, ao fim e ao cabo, destruir a pessoa humana. O regime totalitário criou um modelo em que o domínio completo do homem em todos os aspectos de sua vida é possível, um sistema que destrói completamente o indivíduo, e seu maior feito foi justamente a concretização de algo antes impensável.
Assim, de acordo com Arendt, os regimes totalitários não desejavam propriamente e tão somente conquistar o mundo não-totalitário, mas precipuamente transformar a própria natureza humana, criando outra espécie de ser, supérfluo em sua essência, cuja dignidade tenha sido totalmente destruída dentro de uma instituição específica que funciona como verdadeiro laboratório de experimento desse novo animal humano.
A pensadora alemã alerta para o constante perigo de que o aumento de massas populacionais consideradas dispensáveis, do ponto de vista utilitário, possa ser o ingrediente perfeito para a silenciosa introdução de instrumentos totalitários, “sob a forma de forte tentação que surgirá sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno do homem” (ARENDT, 1989, p. 511).
Observa-se assim, que, para Arendt, o campo de concentração é o próprio fundamento do governo totalitário. Dito de outra maneira, o totalitarismo tem como objetivo último justamente a produção do campo, o domínio total da vida do homem. Noutro giro, de acordo com o pensamento agambiano, o processo é inverso: foi a absoluta tutela da vida que permitiu o surgimento do totalitarismo do século XX.
Em suas pesquisas, Arendt verificou que a destruição total do indivíduo e a utilização do terror como políticas de governo foram medidas essenciais para o nascimento da Alemanha Nazista de Hitler. Interessante é que, em estudos posteriores e fora do contexto do totalitarismo, em A condição humana (ARENDT, 2007), a filósofa alemã, ao tratar da politização da zoe grega, chegou à conclusão de que, com a modernidade, a vida biológica passou a ocupar progressivamente o centro da vida política. Entretanto, para Castro (2012, p. 39), Hannah Arendt não estabeleceu em suas reflexões um nexo entre o totalitarismo do século XX e a politização da vida biológica.
Contudo, como demonstrado, essa lacuna deixada pela escritora alemã foi explorada pelos trabalhos de Agamben. Partindo do pressuposto de que a total tutela da vida biológica pelo soberano, característica inerente aos regimes totalitários, tornou-se a própria política moderna ocidental; pode-se afirmar, seguindo as reflexões do filósofo italiano, que a estrutura do campo pode emergir em qualquer espaço em que se manifeste uma vida totalmente desprovida de direitos, como aquela detectável nos governos totalitários. Se é assim, se essa “vida nua” tem aptidão para surgir em qualquer espaço e a qualquer tempo, então o totalitarismo está sempre à espreita de um novo emergir, inclusive em países democráticos.
A lei brasileira antiterrorista foi editada em contexto no qual países recrudescem suas legislações em nome da segurança de seus cidadãos, notadamente depois do atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, e, mais ainda, após o surgimento do grupo radical islâmico denominado “Estado Islâmico”.
Para Agamben, a indeterminação das fórmulas legislativas é deliberadamente instrumentalizada em tema de terrorismo (AGAMBEN, 2016). a Esse estado de incerteza jurídica ao qual alude o escritor italiano parece ser realmente a palavra de ordem das legislações que tratam do terrorismo.
Como bem salientou o Ministro Celso de Mello, na PPE 730 QO/DF (BRASIL, 2014), a complexidade em tipificar-se o crime de terrorismo é uma constante no cenário internacional, ao ponto de já terem sido elaborados treze documentos internacionais sobre a questão, sem que, contudo, se chegasse a um consenso a respeito dos elementos que constituem o dito delito. Na esteira dessa dificuldade, os Estados que tipificaram o crime de terrorismo mergulharam em expressões absolutamente genéricas e autorizações demasiadamente abertas.
No Brasil, a Lei nº 13.260/16 (BRASIL, 2016a) regulamentou o art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal e passou a prever que pratica crime de terrorismo o agente que incide em qualquer das condutas previstas no caput do seu art. 2º, desde que tenha a finalidade de causar “terror social ou generalizado, seja praticado por motivos de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião e exponha a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”.
Surgem dúvidas acerca da forma como a Lei nº 13.260/16 será aplicada pelas autoridades. Editada por motivos obscuros, num instante conturbado em que a democracia brasileira sofre pressões de diversos grupos, pergunta-se se a mais alta Corte do país estará preparada para sanar eventuais ilegalidade e abusos praticados a partir de sua aplicação.
No âmbito do Poder Legislativo, chama a atenção o fato de que o projeto de lei, apoiado pelo G20 (grupo composto por dezenove países e pela União Europeia, criado em 1999 e fórum central de cooperação econômica internacional) e enviado à Câmara dos Deputados pelo Poder Executivo Federal, foi assinado não só pelo Ministro da Justiça, mas também pelo Ministro da Fazenda.
Dentre outras considerações, os Ministros afirmaram, sem rodeios, que, aprovando-a, o país estaria “cumprindo com isso diversos acordos internacionais firmados pelo Brasil, principalmente em relação a organismos como o do Grupo de Ação Financeira (GAFI)” (BRASIL, 2015). Tal entidade tem como funções o combate ao financiamento do terrorismo e a proteção do sistema financeiro internacional contra crimes dessa natureza (BENITES, 2016). Se o Brasil não obedecer às orientações do GAFI, corre o risco de entrar para sua “lista negra”, o que acarretaria prejuízos econômicos ao país, já que poderia ser considerado um local não seguro para transações financeiras (SCHREIBER, 2015).
Durante as discussões do projeto no Senado Federal, chegou-se a propor a retirada do §2º do art. 2º, que exclui a aplicação da lei de manifestações sociais e políticas. Logo após a publicação, inclusive, foi proposto outro projeto, em nova tentativa para revogar o aludido parágrafo, modificação essa considerada necessária pelo autor para a “salvaguarda da segurança do corpo social” e para extirpar “da norma a autorização legal ao ‘terror do bem’, ‘terrorismo virtuoso’ ou ‘terror includente’”.3 Ainda, tentou-se incluir, na definição de ato terrorista, o termo “extremismo político” (BRAGON, 2016) e quis-se prever a obrigatoriedade do regime fechado como o regime inicial de cumprimento de pena para os que incidirem nas condutas constantes do art. 2º da lei (MENDANHA, 2015).
É possível qualificar tais justificativas e discussões, no mínimo, como inquietantes, principalmente sendo o Brasil um país sem histórico de atentados terroristas. Supõe-se que a aludida lei tenha sido aprovada não com o único objetivo de resguardar a segurança dos indivíduos, mas com propósitos alheios às funções do Direito Penal. Estes propósitos seriam utilitários a um sistema financeiro que deseja ser resguardado ou a um Estado que ambiciona exercer controle social sobre seus cidadãos, característica que sempre esteve presente em Estados totalitários.
Em outras palavras, se, de um lado, visualiza-se o atropelo de direitos fundamentais, de outro, detecta-se que a fonte material que legitimou esse avanço não é acolhida pelo ordenamento jurídico brasileiro e nem deveria sê-lo em qualquer democracia substancial (FERRAJOLI, 2002, p. 693). A instrumentalização da lei, pior, da lei penal, pelo Estado para fins extralegais perfura o regime democrático e deposita, sorrateiramente, elementos totalitários que comumente passam despercebidos em ambiente democrático. Nesse contexto, a lei que deveria proteger é usada, ao contrário, para controlar.
A propósito, o risco de inserção desses elementos por meio de lei em uma democracia pode se revestir de real perigo, justamente porque, nessas circunstâncias, a população se encontra desatenta e as garantias individuais podem ser, paulatinamente, afetadas sem que ninguém apresente resistência. Deste modo, para Agamben (2004, p. 21), a exceção se tornou a regra. A característica temporalidade dos instrumentos utilizados em situações de excepcionalidade perdeu força na conjuntura da política moderna. De outra banda, ganhou espaço uma permanente situação de anormalidade em que se observa o progressivo enfraquecimento das liberdades individuais. Agamben (2004, p. 16) lembra que o instituto do estado de sítio surgiu originalmente como recurso para gerir situações de guerras, mas, ao longo do tempo, tal pressuposto fático foi se tornando secundário, cenário em que se agregaram os conflitos internos, os quais passaram a ser fatos suficientes a desencadear situação de excepcionalidade.
Ferrajoli (2002, p. 649; 653; 657), ao tratar do que ele denomina “Direito penal de exceção”, lembra que, na Itália, houve uma mudança de paradigma nas décadas de 70 e 80, especialmente a partir de 1979, quando a fonte material de legitimação do Estado passou a ser a prática da exceção e a cultura da emergência antiterrorista, antimafiosa e anticamorra.4 A “razão de Estado” e não mais a “razão jurídica” subordinada à lei passou a ser o princípio norteador da legislação penal italiana, validando a intervenção estatal “não mais jurídica, mas imediatamente normativa”, pois a “salvaguarda, ou apenas o bem do Estado, é a norma principal do ‘direito de emergência’” (FERRAJOLI, 2002, p. 650).
No Brasil, em que pese ter sido o projeto da Lei Antiterrorismo sancionado com vetos, fato é que seu teor permaneceu com tipos excessivamente abertos (OHCHR, 2015) e penas extremamente severas e desproporcionais, comportando perigosa intervenção do poder soberano nas liberdades dos indivíduos.
O caput do artigo 2° traz expressões com alto grau de subjetivismo, tais como “terror social ou generalizado, paz pública” e “incolumidade pública”, de modo que, para que um cidadão seja considerado terrorista, basta que a autoridade pública assim entenda. De acordo com o art. 2º, §1º, inciso IV, um agente que incida na conduta de sabotar o funcionamento de agência bancária pode ser condenado à pena privativa de liberdade de doze a trinta anos. É certo que se trata de conduta reprovável, mas seria tal ato merecedor da qualificação de ato terrorista e punível com tamanha reprimenda?
O caput do art. 5º, por sua vez, incrimina a prática de atos preparatórios ao ato terrorista. Contudo pode-se questionar qual seria, por exemplo, o ato preparatório em relação à conduta prevista no art. 2º, §1º, inciso I, de “ameaçar usar [...] meios capazes de causar danos”. É dizer, o alcance dessas normas em relação à cadeia de atos precedentes ao ato terrorista é quase infinito.
Ferrajoli lembra que fórmulas elásticas, indeterminação empírica e conotação subjetiva e valorativa prestigiam a personificação do crime na figura do réu em detrimento do fato, o que é apontado por ele como um dos aspectos que contribuem para a alteração do modelo clássico de legalidade penal para o de emergência (FERRAJOLI, 2002, p. 659).
Não há dúvida de que, com fundamento na Lei Antiterrorismo, a autoridade policial, no momento de abordar um suspeito na rua, assim como a autoridade judiciária, quando decidir condenar um acusado pela prática de ato terrorista, pode agir livremente. Isto porque tais atos se encontram numa ampla zona incerta, na qual a palavra final é dada não propriamente com fundamento na lei, tão grande é o seu espectro de alcance, mas sim numa singela decisão política, dada a imprecisão dos termos legalmente previstos. A exceção não exclui o indivíduo do alcance da lei, todavia o inclui por meio da exclusão, ou seja, o inclui, mantendo uma relação com ele, situando-lhe numa zona de espera, onde aguarda a tomada de decisão pelo soberano, cujo poder é ilimitado.
Para Agamben, nesses espaços em que o poder soberano decide sobre quem está dentro e quem está fora da ordem jurídica, reside o paradoxo da soberania. A própria lei que protegeria os cidadãos é o mecanismo por meio do qual se revela o poder soberano e é por ele suspensa de forma permanente, não apenas em uma situação de excepcionalidade. Essa decisão se encontra numa zona de absoluta indeterminação, que não se situa no interior nem no exterior do ordenamento (AGAMBEN, 2004, p. 89).
O campo é o próprio paradigma da política moderna ocidental, de modo que sua estrutura pode emergir em qualquer lugar e a qualquer tempo. É dizer, essa estrutura de exceção que floresceu no campo é sempre observável nos espaços em que se opera uma decisão sobre a “vida nua”. Esse espaço, essa zona de indeterminação, que não se encontra dentro nem fora da ordem jurídica, pode ser um campo de extermínio ou um campo de refugiados, uma sala de espera em um aeroporto internacional ou mesmo um território de um Estado em que é possível decidir, com ampla margem de possibilidades, com fundamento em leis antiterroristas, sobre a vida de um cidadão. Desse modo, “[...] se cometam ou não atrocidades não depende do direito, mas somente da civilidade e do senso ético da polícia que age provisoriamente como soberana” (AGAMBEN, 2002, p. 181).
Importante lembrar que a primeira sentença que aplicou a Lei Antiterrorismo foi proferida, em 04/05/2017, nos autos da Ação Penal nº 5046863-67.2016.4.04.7000 (BRASIL, 2016c), pelo Juízo da 14ª Vara Federal de Curitiba, fruto da Operação Hashtag, e seu conteúdo chama a atenção.
As condenações se fundamentaram basicamente em trocas de mensagens entre os acionados e em emissões de opiniões, sem ter sido encontrado, contudo, qualquer artefato (explosivos ou armas de fogo) em poder dos denunciados e sem ter sido praticado qualquer ato concreto por eles. Afinal, qual seria exatamente o limite da liberdade de expressão em matéria de apoio a grupos fundamentalistas? Até que ponto o cidadão brasileiro pode expressar-se favoravelmente a esses grupos? Qual é o limiar entre a inocência e a culpa em matéria de terrorismo? A Lei Antiterrorismo não responde, mas o magistrado condenou, aplicando-a.
Nesse contexto de indeterminação e de incerteza, a lei relegou o destino dos acusados fundamentalmente ao entendimento do aplicador da lei, o qual decidiu no caso que seria suficiente condenar à pena de 15 (quinze) anos, 10 (dez) meses e 5 (cinco) dias de reclusão,5 com base em meras manifestações de opiniões.
O que se vê é que a larga extensão do conteúdo previsto nos tipos penais deslocou a certeza para fora da norma (SCHMITT, 1933, p. 227-229 apud AGAMBEN, 2002, p. 179) e permitiu a total sujeição do cidadão ao subjetivismo do julgador, produzindo a “vida nua” a que alude Agamben, visto que, nela mesma, não há limites delineados. A intervenção estatal ganha corpo e avança livremente na esfera do indivíduo.
Em situações-limite, esse vínculo entre soberano e “vida nua” proporcionou o aparecimento dos campos na Alemanha Nazista. No Brasil democrático, o surgimento de lei antiterrorista usurpa as garantias individuais e situa o cidadão em um espaço no qual não só a legislação ordinária, como também a própria norma constitucional não tem condições de acudir-lhe. Assim, embora não se vislumbrem propriamente campos de concentração e de extermínio, constatam-se espaços em que o indivíduo é manejado, conforme os cálculos do poder soberano, numa esfera de absoluta arbitrariedade.
O interessante é que nem o próprio Direito Penal protege os réus sujeitos à Lei Antiterrorismo, posto que sua incidência depende essencialmente do entendimento particular da autoridade judiciária, a quem a aludida norma concedeu poder incondicional. Assim, a absoluta força da Lei nº 13.260/16 (BRASIL, 2016a) se encontra justamente em suas expressões vagas. É com fundamento nesses termos abertos que o Estado brasileiro pode agir livremente e enquadrar, a seu bel-prazer, manifestações sociais e políticas como atos de terrorismo.
Fato é que os termos genéricos presentes na Lei Antiterrorismo são constantes nas legislações de Estados que pretenderam ou que pretendem obter controle ilimitado sobre seus cidadãos, seja na Alemanha Nazista, seja na jovem democracia brasileira. Pode-se afirmar que a amplitude dessas expressões legislativas, essa incerteza jurídica, não é acidental. Ao contrário, cumpre uma função para o poder estatal, e assustador é que esse elemento, o controle absoluto como política de governo, que só faria sentido em um Estado Totalitário, emerge naturalmente num regime chamado de democrático. Contudo, para muitos, não há o que temer, pois tudo é realizado em nome da segurança da população.
O presente trabalho demonstrou que a relação entre totalitarismo e democracia é mais próxima do que normalmente se imagina. Aliás, a roupagem democrática pode inclusive servir de camuflagem para que elementos totalitários se insiram no ordenamento sem reações por parte da comunidade. A recrudescência progressiva da interferência estatal nos direitos de liberdade dos cidadãos é observável no cenário internacional e no Brasil e, em tema de terrorismo, esse processo chega a ser aplaudido por grande parte dos políticos e juristas, os quais acreditam que a implementação de legislações especiais de combate ao terrorismo está justificada face a situações emergenciais.
A percepção da relação de intimidade entre totalitarismo e democracia é inquietante, porém compreensível. Como afirma Agamben, tal ligação de proximidade explica como foi possível que regimes totalitários se transmudassem, sem solução de continuidade, em Estados Democráticos e vice-versa. Também demonstra quão importante é detectar-se quais mecanismos possibilitaram a passagem de um regime ao outro sem que houvesse grandes obstáculos. Para o filósofo italiano, a progressiva politização da vida biológica e sua relação com o poder soberano tornaram possível o surgimento dos Estados totalitários dos Novecentos. Por seu turno, Arendt, em suas investigações, constatou que, com a modernidade, a vida biológica passou a ocupar cada vez mais o centro da política. Ao esmiuçar a questão do totalitarismo, ressaltou que, nesse processo, o aniquilamento da esfera política e individual do cidadão e a instrumentalização do terror realizaram papel fundamental para a formação desses Estados. O Estado, criado para tirar os “homens lobos” do estado de selvageria, agora se volta contra esses mesmos homens, e se mostra um Estado delinquente, revelando-se violento e fora de controle (FERRAJOLI, 2002, p. 749).
Conclui-se que o estado de exceção não é uma relação existente exclusivamente nos regimes totalitários e que a estrutura do campo pode manifestar-se em qualquer tempo e lugar, inclusive em países democráticos. Basta que sejam incorporados elementos totalitários, ou seja, que a lei não sirva como trincheira de proteção e que nos deparemos com uma estrutura em que o poder soberano tenha domínio total sobre os que a ele estão sujeitos ou que, pelo menos, exista essa possibilidade.
Presentemente, a ocorrência de atos terroristas no mundo tem servido como justificativa para a edição de legislações autoritárias, as quais têm cumprido função para a consecução dos mais diversos propósitos. Na esteira dessa política de controle, as leis que tratam da matéria são recheadas de expressões genéricas e criam desejada insegurança jurídica.
No Brasil, a Lei Antiterrorismo foi adotada envolta em muita polêmica, tendo em vista a dificuldade que a comunidade internacional encontra em conceituar crimes de tal natureza, a inexistência de histórico terrorista no país, os excêntricos motivos pelos quais foi proposta, as tentativas de recrudescê-la durante o processo legislativo, a aprovação de expressões demasiadamente amplas e imprecisas e a existência de tipos penais que já abarcam suficientemente as condutas referidas na aludida lei.
Verifica-se que a própria legislação está sendo utilizada para finalidades que não cabem ao Direito, sendo notório que não almeja genuinamente a segurança dos cidadãos, mas sim controle ilimitado sobre eles, notadamente sobre aqueles que devem sofrer maior controle pelo Estado brasileiro. A inexistência de ocorrências de atentados terroristas durante os Jogos Olímpicos de 2016 e a aplicação isolada (FRANCE, 2017) da Lei Antiterrorismo robustecem a tese de que sua criação não visou à segurança social. A Operação Hashtag parece ter sido apenas uma “demonstração de eficácia” da lei, e a prisão e a condenação dos acusados cumpriram o papel de demonstrar a suposta “necessidade” de existência da referida norma.
Nesse contexto, reveste-se de importância a primeira sentença condenatória que aplicou a Lei Antiterrorismo. O reconhecimento pelo juízo de que não foram praticados atos concretos pelos réus, vislumbrando-se no caso tão somente emissão de opiniões, e a consequente decisão de que mesmo assim a condenação é devida confirmam o poder absoluto contido nas mãos dos órgãos jurisdicionais, aos quais foi conferida força ilimitada para decidir o destino de quem ousou manifestar-se em desacordo com os ditames do Estado. Nesse lugar, termina a jurisdição e se eleva o puro arbítrio.
Os tipos penais abertos previstos na Lei Antiterrorismo oferecem às autoridades públicas ampla margem de discricionariedade. Ao fim e ao cabo, a decisão acerca de sua aplicação se cingirá a uma mera decisão política, e não a uma decisão propriamente albergada pela lei, ao considerarmos que qualquer conduta pode se subsumir nas largas descrições presentes nos tipos penais.
Nesse cenário, produz-se a “vida nua”. O indivíduo é abandonado ao arbítrio do poder estatal e a lei é instrumentalizada não para protegê-lo, mas para submetê-lo. O terreno do abandono é aquele no qual não existe intermediação entre o indivíduo e o soberano por meio da lei. O soberano é a própria lei. Na ponta oposta, está a “vida nua”, e é dela que o soberano se alimenta.
Conclui-se, portanto, ser fundamental extirpar dos ordenamentos legislações dessa natureza, cuja linguagem obscura permite a introdução de elementos totalitários em regimes democráticos de forma insidiosa. O resultado é que tal característica de indeterminação sujeita toda a população ao abandono da lei ao qual alude Agamben e é, justamente nesse limbo, nessa potência, que a lei se revela mais absoluta e severa. Se o estado de exceção é a própria política moderna e se todo cidadão é um potencial terrorista, então, no dizer de Agamben, a lupificação do homem é um fenômeno possível a qualquer momento e em qualquer lugar.