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Existe uma cultura jurídica moderna?
Is there a modern legal culture?
¿Existe una cultura jurídica moderna?
Existe-t-il une culture juridique moderne ?
现代法律文化存在吗?
Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, vol. 11, núm. 1, pp. 4-23, 2019
Universidade Federal Fluminense

Artigos



Recepção: 20 Dezembro 2018

Aprovação: 02 Janeiro 2019

DOI: https://doi.org/10.15175/1984-2503-201911101

Resumo: Este ensaio objetiva apresentar o conceito de cultura jurídica e explorar a ideia de uma cultura jurídica do direito moderno, isto é, o direito do nosso tempo. Este ensaio segue a tradição do movimento law and society. Faz parte do objeto desta tradição, o estudo do papel dos sistemas jurídicos na sociedade. Por papel dos sistemas jurídicos na sociedade deve se inferir que há um ponto de vista particular, uma maneira particular de observarmos o direito e os sistemas jurídicos. Significa dizer que estamos observando a maneira como estes sistemas, de fato, funcionam; o que eles fazem e como eles fazem. Almejamos explicar estes sistemas e queremos explorar sua essência; mas através da observação, e não de uma perspectiva normativa ou dogmática.

Palavras-chave: Cultura jurídica moderna, movimento law and society, sistemas jurídicos.

Abstract: The following essay aims to delineate the concept of legal culture and explore the idea of a legal culture in modern law, i.e. that of our times, in the tradition of the Law and Society movement. Part of the tradition involves studying the role legal systems play in society, with this “in” reflecting a particular point of view, or a particular means of observing how law and legal systems do, in fact, function; what they do and how they do it. Our aim is to provide explanations, exploring their very essence, not so much by means of a prescriptive or dogmatic perspective, but rather based on observation.

Keywords: Modern legal culture, law and society movement, legal systems.

Resumen: Este ensayo busca presentar el concepto de cultura jurídica y ahondar en la idea de una cultura jurídica del derecho moderno, es decir, del derecho de nuestro tiempo. Se trata de un ensayo que sigue la tradición del movimiento Law and Society. El estudio del papel de los sistemas jurídicos en la sociedad forma parte del objeto de esta tradición. Cabe concluir que, cuando hablamos del papel de los sistemas jurídicos en la sociedad, estamos diciendo que existe una forma particular de observar el derecho y los sistemas jurídicos. En este análisis, observamos la manera en que funcionan estos sistemas, qué es lo que hacen y cómo lo hacen. Nuestro objetivo es explicar dichos sistemas y explorar su esencia, pero queremos hacerlo a través de la observación, no desde una perspectiva normativa o dogmatica.

Palabras clave: Cultura jurídica moderna, movimiento Law and Society, sistemas jurídicos.

Résumé: Cet article a pour but de présenter le concept de culture juridique et d'explorer l'idée d'une culture juridique du droit moderne, c'est-à-dire le droit de notre temps. Nous suivrons ici la tradition du mouvement Law and Society, qui a entre autres pour objet d'analyser le rôle des systèmes juridiques dans la société. Parler de rôle des systèmes juridiques dans la société implique qu'il existe un point de vue particulier, une manière spécifique d'observer le droit et les systèmes juridiques, qui revient à s’intéresser à la manière dont ces systèmes fonctionnent de fait, ce qu'ils font et comment ils le font. Notre but est ici d'expliquer ces systèmes et d'analyser leur essence à travers l'observation plutôt que sous une perspective normative ou dogmatique.

Mots clés: culture juridique moderne, mouvement Law and Society, systèmes juridiques.

摘要: 本文旨在介绍法律文化的概念,探讨我们现代法制中的法律文化。本文遵循美国 “法律和社会”运动中所形成的传统,用以分析法律制度对社会所产生的作用。我们从法律社会学视角讨论法律 和法律制度在社会生活中所起的作用。本文观察这些系统实际工作的方式,它们做了什么以及它们是如何做到 这一点。我们的目标是解释这些系统,我们希望通过观察,而不是通过分析规范或教条来探索法律制度的实质 。

關鍵詞: 现代法律文化, “法律与社会”运动, 司法制度.

I.Introdução

O objetivo deste ensaio consiste em apresentar o conceito de cultura jurídica e explorar a ideia uma cultura jurídica do direito moderno, isto é, o direito do nosso tempo. Este ensaio segue a tradição do movimento law and society. Faz parte do objeto desta tradição o estudo do papel dos sistemas jurídicos na sociedade. Quando mencionamos o papel dos sistemas jurídicos na sociedade, deve se inferir que há um ponto de vista particular, uma maneira particular de observarmos o direito e os sistemas jurídicos. Significa dizer que estamos observando a maneira como estes sistemas, de fato, funcionam; o que eles fazem e como eles fazem. Nós queremos explicar estes sistemas e queremos explorar sua essência; mas através de observação, não de uma perspectiva normativa ou dogmática.

Estudos jurídicos ortodoxos tendem a ser fortemente normativos; a ideia é rotular uma prática ou doutrina como certa ou errada, válida ou inválida. Tais julgamentos podem ter importância prática (com previsões de como advogados, juízes e outros funcionários irão reagir); eles também são importantes para o próprio direito. A escola law and society é mais restrita em suas aferições; ela está, esclareça-se, interessada em julgamentos sobre certo ou errado, validade e invalidade; mas como categorias de julgamento social, ou seja, como fatos sociais, não como ato autorreferente.

A diferença entre os dois prismas é equivalente à diferença entre crítica de arte e sociologia da arte. O crítico de arte discute se a obra de arte é boa ou ruim, rica ou profunda; ele tenta desenvolver maneiras de fazer estes julgamentos, maneiras de treinar o seu olho. A socióloga está interessada em saber por que as pessoas pensam que a arte é grande, bela ou tocante. Ela está interessada em compreender como estes julgamentos mudam, que forças sociais provocam o desenvolvimento deste ou daquele tipo de arte, como a arte se relaciona com a estrutura social em uma sociedade e por aí adiante.

O direito é fenômeno social de importância crítica; e os usos do direito levantam questões fundamentais de política pública, filosofia e teoria política. Há vasta literatura sobre quase todos os aspectos do sistema jurídico. Mas não sobre o estudo da cultura jurídica – ou o estudo da vida do direito. Não surpreende que a maioria da produção literária seja prática e profissional. Porém, mesmo os trabalhos acadêmicos mais teóricos costumam estar voltados para questões paroquiais. A vocação da pesquisa jurídica deveria ser (em minha opinião) voltada para a compreensão de como o sistema jurídico, um sistema operacional, realmente funciona; o que o fez ser assim; e como isso afeta a ordem social em que ele está baseado.

Somente assim nós podemos ter esperança de compreender Leviathan; e compreendendo-o, controlá-lo ou domesticá-lo. Portanto, apesar de o movimento law and society não ser por si só normativo, ele pode ser a base sob a qual se ergue um sistema normativo; e providencia matéria-prima para programas de reforma ou de transformação social.

Para cumprir sua tarefa, acadêmicos do law and society têm que ser capazes de descrever e medir sistemas jurídicos em operação. Eles têm que identificar os dois sentidos de fluxos de influência: da sociedade para o sistema jurídico; para a sociedade a partir do sistema jurídico. Eles têm que encontrar, em outras palavras, as fontes do direito, ou seja, como as forças sociais são traduzidas e transmutadas no direito; e também o impacto do direito, comportamento jurídico, instituições jurídicas, ou seja, como estes reverberam na sociedade que lhes deu origem.

O conceito de cultura jurídica ocupa lugar central em relação a ambas estas tarefas. Por cultura jurídica, refiro-me a ideias, valores, atitudes e opiniões que as pessoas em alguma sociedade possuem com relação ao direito e ao sistema jurídico (FRIEDMAN, 1990, p. 4). Toda pessoa possui uma “cultura jurídica”, assim como toda pessoa possui uma cultura geral e uma cultura social: cada pessoa possui traços individuais únicos, tão distintos quanto suas impressões digitais; mas cada pessoa é ao mesmo tempo parte de uma coletividade, de um grupo, uma entidade social e compartilha ideias e hábitos com o grupo.

A cultura jurídica é fonte do direito – suas normas criam normas jurídicas; e é o que determina o impacto das normas jurídicas na sociedade. Afinal de contas, os “sujeitos” de direito, pessoas que o direito afeta, não são robôs ou um pedaço inerte de carne. São seres humanos vivos, dotados de pensamentos, ideias, mente, hábitos e comportamento; eles reagem a ordens e instituições jurídicas e suas reações determinam o efeito destas ordens e instituições. Em síntese, a cultura jurídica é uma espécie de variável interveniente. Forças sociais produzem o direito, mas não o fazem diretamente. Uma guerra ou uma depressão, uma transformação tecnológica (o computador, o telefone) – estes não resultam automaticamente em mudanças da ordem jurídica. O que eles fazem, ao invés, é mudar a configuração social, as coisas que estão no mundo ou em uma sociedade; isto, a seu turno, muda a maneira com que as pessoas observam a sociedade, as coisas que esperam dela. E isso, então, muda sua orientação com relação ao direito também.

Cultura jurídica é termo abrangente para atitudes e opiniões; o fenômeno aparece na literatura às vezes como “consciência jurídica” (LUCKE; SCHWENK, 1992), ou como conhecimento e opinião sobre direito (veja, por exemplo, PODGÓRECKI et al., 1973). Cultura jurídica, a princípio, pode ser medida; não é uma substância misteriosa, invisível. Nós podemos medi-la diretamente, fazendo perguntas às pessoas; ou indiretamente, observando o que as pessoas fazem e inferindo suas atitudes do que a gente observa. Provavelmente, se fizermos ambas simultaneamente, poderemos obter um quadro preciso. Nós podemos, por exemplo, perguntar pessoas sobre o que pensam sobre limites de velocidade e leis de trânsito; ou observar como dirigem nas estradas; ou ambos. O que as pessoas dizem e o que elas fazem pode ser difícil e complicado de interpretar; mas são o melhor que há a nossa disposição.

Este ensaio é sobre a cultura jurídica moderna: a cultura das sociedades modernas, industriais, “avançadas”. Minha exposição deste tema, francamente, é menos uma explicação de dados do que adivinhação sobre o que os dados poderiam mostrar, caso houvesse dados, mas não há. Isto não significa que, a princípio, minhas sugestões estejam além de prova empírica ou contraprova.1Na maioria dos sistemas jurídicos, porém, nem os fatos e figuras mais básicos têm sido compilados, colhidos ou sintetizados. Nem nós sabemos muito sobre cultura jurídica. O pouco que sabemos é sobre algumas sociedades em particular – um estudo aqui e outro ali. Há ainda menos sobre cultura jurídica comparada e a maioria é bem especulativa. Não surpreende: estudos de cultura jurídica comparada são em princípio e na prática extremamente difíceis de realizar.

Mas é óbvio que, no mundo moderno, os dados sobre cultura jurídica terão que ser muito mais cross-cultural; dados terão que transcender as fronteiras e explorar assuntos relativos à equivalência e diferença entre variadas culturas jurídicas. Cultura jurídica hoje atravessa fronteiras muito facilmente. Este é um mundo de comunicação instantânea; ideias, modismos, novidades, modos de pensar e de comportamento, se movem de uma sociedade para outra com a velocidade da luz. E assim se inicia uma literatura sobre o assunto de culturas jurídicas comparadas (COHEN-TANUGI, 1985; BLANKENBURG, 1985; UPHAM, 1987; FITZGERALD, 1983) e a questão possui, a rigor, pedigree longo e respeitável. O trabalho clássico de Max Weber sobre direito e sociedade é, afinal, essencialmente sobre cultura jurídica comparada. Alguém dificilmente poderia esperar o surgimento de uma nova geração de Webers; mas a tradição que ele fundou poderia servir de base para se produzir novos trabalhos.

II. O direito nos anos 1990: algumas características.

Cultura jurídica, assim como cultura geral, é um corpo de ideias, valores e atitudes. Nós podemos falar sobre a cultura jurídica de uma comunidade; isto não significa, é claro, que todos compartilham as mesmas ideias – ao que nos referimos são padrões e tendências. Afinal de contas, podemos falar sobre a altura média das pessoas em uma comunidade; nós podemos dizer que homens tendem a ser mais altos do que as mulheres – sabendo que há, obviamente, exceções à regra geral e mulheres altas e homens baixos.

Se há padrões de cultura jurídica, eles certamente variam de maneira sistemática. Isto significa que, a princípio, nós deveríamos poder falar sobre a cultura jurídica dos italianos e dos alemães; das mulheres em oposição aos homens; das mulheres italianas em oposição aos homens italianos ou alemães; das mulheres italianas mais velhas em oposição às mulheres italianas mais jovens ou homens alemães mais velhos e por aí adiante. Deveria ser possível isolar um padrão para cada grupo específico que possamos selecionar. Isso iria incluir nacionalidades também e grupos ou tipos de nações. Assim, deveria ser possível encontrar uma cultura jurídica geral da modernidade; ou seja, uma cultura jurídica das sociedades modernas, em oposição às sociedades mais antigas de outros períodos históricos.

Este é, de fato, o objeto deste ensaio: cultura jurídica moderna, ou a cultura jurídica da modernidade. Por “moderna”, eu me refiro tanto a um elemento de tempo (sociedades contemporâneas), tanto quanto a um outro traço mais vago e mais difícil de definir. Dentre sociedades contemporâneas, há um grupo de Estados industriais ricos, na Europa, América do Norte e (crescente) no extremo oriente. Este grupo de Estados é o assunto principal do ensaio. As conclusões talvez se apliquem a outras sociedades também, mas de maneira menos marcante. A tese é de que os países ricos do mundo desenvolvido compartilham aspectos da cultura jurídica. Seus sistemas jurídicos também compartilham traços que refletem a cultura jurídica moderna. Estes traços, do sistema jurídico e da cultura jurídica, são, como sugiro, a princípio, mensuráveis; mas eles não têm, de fato, sido medidos. A tese que discuto, então, deveria ser aceita como uma formulação de hipóteses, nada além disso.

Seis traços me parecem especialmente característicos dos sistemas jurídicos dos anos 1990. Eles não são as únicas características destes sistemas jurídicos neste momento em que caminhamos na direção do século XXI; mas são certamente muito salientes e importantes. Eu irei brevemente descrever e explicar os seis. Cada um pressupõe ou está interligado a algum aspecto da cultura jurídica moderna.

1. Primeiro, estes sistemas, assim como suas sociedades, estão em processo de rápida transformação. Sistemas jurídicos dos anos 90 são sistemas jurídicos em movimento. Muito pouco sobre o direito moderno é estático; cada sistema jurídico, é claro, tem sua própria tradição, sua história, seus elementos de estabilidade; mas se eu não estiver enganado, estes aspectos estáveis, históricos, herdados, importam cada vez menos e menos. Os costumes antiquados da academia jurídica e as maneiras com que os advogados são treinados tendem a obscurecer este ponto. Juristas positivamente transitam por poucos pontos de interesse teórico e histórico. Em parte, isto é natural: um bom advogado é alguém com uma compreensão clara e precisa de pequenos detalhes. Porém o que conduz o ensino jurídico não é tanto substância e conteúdo, mas assuntos que por uma ou outra razão os juristas acham interessantes. Se nós deixarmos de lado as preocupações acadêmicas o sistema jurídico real em sociedades reais, eu acho que o ponto é óbvio: estes são sistemas em evolução, com pouco respeito pelo que é herdado e à moda antiga.

O mundo moderno é um lugar muito complicado e suscetível a muitas transformações. Todo aspecto da sociedade humana está em estado de fluxo. Nada na história humana pode ser comparado à velocidade fulminante da transformação social em nosso tempo. Nenhuma sociedade, é claro, foi completamente estática; mesmo as sociedades “tradicionais” mudam muito mais do que as pessoas percebem (CHANOCK, 1985). Mas sociedades do passado, especialmente sociedades antigas e tradicionais, mudaram em uma frequência incomensuravelmente mais lenta, comparada à que experimentamos em nossas vidas. Transformação social em nosso tempo, comparada ao passado, é como a diferença entre viajar em uma charrete e viajar em um Boeing 747.

No curso de uma vida longa, uma pessoa ainda viva poderia ter testemunhado o nascimento da sociedade automotiva, o surgimento do rádio, televisão, ar-condicionado, computadores; na virada do século, não havia antibióticos, nem nenhum remédio maravilhoso; pouco ou nada se sabia sobre genética humana e a ideia de andar na lua ou se comunicar da China para a Itália em menos de um segundo via satélite era ficção científica ou conto de fadas.

A velocidade da transformação social, e o fato da transformação social, têm um impacto fundamental na cultura moderna; no modo como as pessoas pensam assim como no modo em que elas vivem. Tem havido uma revolução em expectativas sociais. O público moderno está acostumado com mudança. Todo mundo sabe que o mundo não permanece parado. As pessoas veem jornais e assistem televisão; elas absorvem as notícias (“news”) do dia, a cada dia. “News” inclui notícias à moda antiga – guerras e fomes, fogos e desastres, crime e castigo. Há também notícias de invenções surpreendentes, cura de doenças, avanços na medicina e na ciência e transformações em arranjos sociais. Mais importante de tudo é o próprio fato de existirem “news”; a expectativa de que cada dia traz novidades, alterações de padrão e mudanças na maneira de ver e ser.

A própria personalidade dos cidadãos modernos, eu acredito, difere de maneira fundamental da personalidade do homem e da mulher nas sociedades tradicionais. Tecnologia é, ao menos em parte, responsável por estas mudanças. Tecnologia transforma o mundo; ela trabalha e retrabalha o contexto em que vivemos. Parcialmente porque a mudança faz parte de seu próprio ambiente, homens e mulheres modernos não são fatalistas ou submissos; eles não aceitam simplesmente o que é; eles não abraçam o passado; eles sabem que você não pode abraçar o passado. O passado e seus hábitos se dissolvem diante de seus olhos.

Os resultados fantásticos da ciência e tecnologia levam as pessoas a achar que tudo é possível; eles veem sonhos ao seu alcance e milagres em suas mãos; as possibilidades ilimitadas ampliam suas aspirações. Isto leva, eu creio, a um ciclo de demanda e resposta, que desestabiliza os regimes sociais de todos os países do mundo (FRIEDMAN, 1985). As massas da classe média nas sociedades ocidentais possuem, de fato, infinitas demandas – não apenas por novos brinquedos, mas novos benefícios e programas; eles querem o que está na moda, as novidades na arte e na cultura popular; eles também esperam que o governo lide, de maneira bem-sucedida, com seus problemas.

2. O segundo traço é claramente relacionado ao primeiro. O direito dos estados modernos é denso e ubíquo. Nós vivemos em um mundo complexo, mutante e que nos deixa perplexos; um mundo de população enorme e de enormes demandas coletivas e individuais; regimes, governos e estados enormes; sistemas jurídicos enormes. Isto é verdadeiro para as grandes nações ocidentais, os países ricos do mundo; isto também é, mais ou menos verdadeiro para os Estados que emergiram do colapso dos impérios coloniais; em maior ou menor grau, isto é verdadeiro para todos os mundos, o primeiro, o segundo e o terceiro.

Há ainda, como mencionamos, uma inflação de expectativas. Em sociedades abertas – sociedades não controladas estritamente do topo, sociedades com eleitorados, grupos de pressão, lobbies – expectativas são transformadas em demandas; e demandas são transformadas em leis. Qualquer que seja a causa, é óbvio que o governo, ao longo do último século, inflou em um grau enorme. Sua densidade e tamanho são suas mais importantes características. O Estado, nas sociedades ocidentais, é um Leviathan além dos sonhos mais selvagens e dos piores pesadelos do século XIX. O Estado mais aberto, livre e democrático faz mais, governa mais, tem mais funções e tarefas do que o mais completo déspota do mundo antigo, o monarca mais soberano, um Khan, um tirano ou ditador. Na medida em que o Estado moderno atua através, por e com o uso de leis, isto significa que os sistemas jurídicos também tiveram seu escopo enormemente expandido. Eles têm gerado uma massa enorme de regras e regulamentações, estatutos, portarias, decisões em cada matéria concebível da vida moderna (GALANTER, 1992).

Sistemas jurídicos modernos não são apenas grandes e densos; eles também são ubíquos. Por isso, quero dizer que há menos “lacunas” no sistema – eles cobrem um espectro muito mais amplo do espaço social do que antes. Isto é verdadeiro com relação a cortes, ao legislativo, às agências administrativas e tribunais. Cada faceta da vida moderna tem seu correspondente ramo do direito. Vastas áreas outrora inexistentes foram abertas, tal como o direito ambiental, por exemplo. O direito também tem penetrado em zonas que antes eram imunes ou quase imunes – no âmbito da família e da vida pessoal; relações entre pais e filhos, e por aí adiante.2 Praticamente toda matéria pode ser trazida diante de uma corte em muitos países; há muito menos tipos de ações judiciais em que uma corte está atualmente inclinada a dizer “isso não é trabalho nosso”. O fenômeno tem sido chamado de “legalização” ou “juridificação”; e tem gerado uma literatura de preocupação, crítica e alarme (veja, por exemplo, VOIGT, 1980).

É importante compreender este ponto. Cortes modernas e, de fato, sistemas jurídicos em geral, não entram normalmente nas zonas da vida pessoal. Muito raramente, de fato, uma questão relativa ao direito de os pais disciplinarem seus filhos chega à sala de audiências. Muito raramente um prisioneiro tem sucesso quando processa um carcereiro; muito raramente pode um trabalhador questionar o mérito de uma decisão relativa à contratação e à dispensa. Porém, nenhuma área da vida social está positivamente e totalmente isolada da intervenção jurídica. A intervenção está sempre potencialmente presente (FRIEDMAN,1985).

A maioria dos exemplos até o momento foi retirada da chamada área do direito privado. Porém, a vida comercial,3 também, tem se tornado mais densamente e, por completo, legalizada. Isto decorre, é claro, primariamente do trabalho do legislativo. Há também uma densa rede de regras administrativas e regulamentos. Um tecido pesado de regulamentos cobre quase toda forma de negócio e quase todo aspecto da vida empresarial – regras trabalhistas, saúde e segurança no trabalho, normas tributárias e financeiras, uso de terra e proteção do meio-ambiente. A lista é quase infinita. Setores industriais específicos – bancos, seguradoras, empresas aéreas – podem ter seus próprios códigos normativos.

A densidade da regulamentação dos negócios também é, claramente, um reflexo da cultura jurídica moderna – um ponto ao qual nós iremos retornar. A regulação responde ao senso de que o mundo está interconectado; de que nós dependemos um do outro em assuntos ligados a saúde, bem-estar, segurança e mesmo vida. Dependência de outras pessoas não é algo novo; é tão antigo quanto a raça humana; nós somos, afinal, animais sociais. Mas a dependência de estranhos é relativamente nova. Quando nós estamos em um avião, há 30.000 pés da terra, temos a expectativa de que o avião esteja funcionando e de que o piloto saiba como voar. O piloto é um estranho, uma voz através do sistema de comunicação; nós sabemos ainda menos sobre os engenheiros que projetaram o avião ou os trabalhadores que o montaram. Nós confiamos nas regras, nos regulamentos, nas inspeções – em resumo, no direito – para manter-nos seguros. Se o “costume” ou “regras costumeiras” é o que rege relacionamentos íntimos, face a face, então é o direito que governa situações de interdependência entre estranhos.

3. Um terceiro traço do direito moderno é o mais abertamente cultural. Está ligado à base em que a legitimidade do direito repousa no mundo moderno. Toda sociedade, e todo sistema jurídico, pressupõe alguma teoria de legitimidade – uma ideia vigente que justifica a existência da ordem jurídica, tornando-a direita e apropriada para ser obedecida. Legitimidade é questão normativa, questão filosófica, muito debatida entre cientistas políticos. Porém, uso “legitimidade” aqui em seu sentido empírico, como um traço da cultura, isto é, uma atitude concreta ou opinião que as pessoas carregam em suas cabeças.

A teoria básica da legitimidade, no direito moderno, é instrumental. Por isso, quero dizer que pessoas, grupos, classes, ocupações, extratos sociais, todos concebem o direito e usam o direito como uma arma, um instrumento, uma ferramenta para atingir fins econômicos e sociais; mais ainda, eles acham que fazer isso é algo perfeitamente apropriado. Grupos de interesse fazem lobby por leis que os dará o que eles querem obter: isenções tributárias, menos regulação, mais regulação para outros, regras decisórias melhores, etc. Ninguém pensa que o direito é (em sua totalidade) atemporal, presente-divino, imutável, além do alcance dos atores humanos.

Neste aspecto, o direito moderno difere profundamente do direito antigo e do direito medieval; mesmo do direito do iluminismo. Teorias do direito natural ou teorias sobre a origem divina do direito já dominaram concepções sobre a legitimidade do direito (FRIEDMAN, 1969, p. 11). Não é mais o caso. Por que as teorias de legitimidade mudaram é uma questão interessante e difícil. Usos instrumentais do direito são óbvios em nossos dias e era; portanto, uma teoria instrumental do direito parece natural. O maquinário da elaboração das leis, ao menos na esfera legislativa, está exposto ao mundo. Cada pessoa pode observar seu funcionamento, enquanto grupos de interesse, lobistas e cidadãos comuns tentam influenciar o direito. Seria difícil argumentar que inspiração divina ou razão pura está por detrás da lei de imposto de renda, do direito ambiental ou do controle de imigração. Uma teoria instrumental, noutras palavras, se encaixa a um sistema jurídico ubíquo, denso e em constante mutação – que é, óbvio, o que temos.

4. O quarto ponto pode parecer relativamente inconsistente com o último ponto. Teorias instrumentais do direito emergiram, em linhas gerais, por ocasião da Revolução Industrial, enquanto teorias e elementos da cultura jurídica popular. Porém, havia outras correntes da cultura jurídica popular; tais correntes têm permanecido intactas. Na verdade, elas parecem ter se tornado ainda mais fortes com o passar do tempo. Eu me refiro ao lado não-instrumental do direito: a crença apaixonada em direitos fundamentais.

O direito moderno é repleto de direitos e prerrogativas. Alguns destes direitos – os “básicos” ou “fundamentais” – frequentemente são assegurados em um documento escrito, uma constituição formal, como o Bill of Rights do Canadá ou o Grundrechte alemão.4 Constituições escritas, contendo listas de direitos básicos adjudicáveis,5 estão muito em voga. “Constitucionalização” tem sido um elemento crucial do direito norte-americano do século XX e de muitas outras nações também.

Constitucionalismo, não é necessário lembrar, possui história longa e honrável nos Estados Unidos (para um sumário da história, veja UROFSKY, 1988). É fácil exagerar a ênfase em seus elementos de continuidade. De fato, o caráter da judicial review tem se transformado dramaticamente ao longo da última geração. O constitucionalismo e a judicial review, no período desde o fim da segunda guerra mundial, passaram a ter caráter fundamentalmente diferente. Neste período, a judicial review entrou na história jurídica de muitas nações pela primeira vez: Alemanha, Japão e Canadá são exemplos. O uso da judicial review para fazer, “às vezes, dramáticas políticas públicas [...] é característica crescente dos judiciários ao redor do mundo” (TATE, 1990, 78).

5. A ligação entre o quarto traço e o quinto traço é, na verdade, o quinto traço, que é o seguinte: a base dos modernos sistemas jurídicos e da cultura jurídica moderna é um profundo individualismo, apesar de uma forte dose de regulação econômica, da burocracia massiva do Estado do bem-estar social e do vertiginoso tamanho do sistema jurídico. O direito moderno pressupõe uma sociedade livre, formada por indivíduos autônomos. Muitos sistemas jurídicos do passado eram fortemente comunitários; a unidade de análise jurídica era a família, o clã, o grupo. O direito socialista, também, tinha, ao menos em teoria, um ingrediente comunitário. No ocidente moderno, o indivíduo é a unidade básica da análise jurídica. A base familiar do direito está em plena decadência. O edifício jurídico socialista está se desintegrando e já desapareceu, em sua maioria, no leste europeu. O direito europeu e, gradualmente, o direito da maioria dos países tem se voltado radicalmente para o campo dos direitos individuais.

Eu escrevi alhures sobre o impacto do individualismo para o direito ocidental do século XX (FRIEDMAN, 1990). Conceito central do individualismo é a noção de direito (“right”). Todo ser humano deveria ter uma oportunidade de ir além da mera liberdade (significando ausência de restrição) e escolher um estilo, um modo de vida, selecionando livremente dentre as possíveis opções, desenvolvendo sua personalidade única, um ser distinto de todos os outros.

Esta forma de individualismo, na minha visão, está conectada à vida no ocidente moderno de uma maneira fundamental e básica; e é espécie diferente das clássicas formas de individualismo político e econômico, do liberalismo de Adam Smith ou John Locke. Tem tido um impacto profundo na cultura jurídica e, logo, no próprio desenvolvimento do direito. Um dos impactos mais impressionantes diz respeito à consciência jurídica (“rights-consciousness”). Em vários países – não apenas nos Estados Unidos –, ouvimos reclamações sobre uma “explosão de litígios” ou uma “avalanche de casos” (GALANTER, 1983; BLANKENBURG, 1989). Saber se estas reclamações são quantitativamente justificáveis não é uma questão fácil de responder. Não há muita dúvida sobre as transformações qualitativas. Nestes países, minorias, grupos de vítimas e pessoas em geral revelam um novo entusiasmo para lutar contra injustiças; e nova disposição para tomar todas as medidas que sejam necessárias para que justiça, de acordo com sua visão, seja feita.

6. Um sexto elemento dos sistemas jurídicos modernos é a globalização. À medida em que o mundo se torna menor, unido por milagres nos transportes e telecomunicações, a prática do direito e, eu acredito, a cultura jurídica estão rapidamente se internacionalizando. Fronteiras nacionais se tornam cada vez menos relevantes em termos econômicos. Não há mais reinos longínquos e isolados. Relações econômicas unem países. Relações jurídicas seguem as econômicas. Relações jurídicas globalizadas estimulam planos, esquemas e arranjos que transcendem as fronteiras jurídicas – harmonização das leis, uniformização do direitos e estruturas tais como a Comunidade Européia.

Mais fundamentalmente, há uma era de convergência de culturas jurídicas. Isto é, os sistemas jurídicos se tornam mais idênticos na medida em que o tempo passa (MERRYMAN, 1981). O mesmo deve ser verdadeiro com relação à cultura jurídica, isto é, as atitudes públicas em relação ao direito em vários países. Convergência reflete interdependência econômica; mas vai além disso. Em um mundo unido pela televisão, satélites e aeroportos, há uma certa fusão das culturas mundiais; e a cultura jurídica dificilmente poderia ficar imune. Quando sociedades têm experiências similares e são expostas a um mesmo mundo de transporte e de comunicação, seus sistemas jurídicos também necessariamente se aproximam.

Eu penso que este ponto sobre a convergência é verdadeiro para os países ocidentais industrializados e para os países se desenvolvendo em linhas semelhantes. É difícil saber o quanto de convergência há nos países subdesenvolvidos. Eu suspeito que haja bastante; mas temos muito menos informações sobre estes sistemas. Claramente, o choque com a modernidade desloca, erode e altera as tradições jurídicas herdadas. Mesmo formas indígenas de casamento e sucessão dificilmente sobrevivem ao mundo moderno.

Esclareço que ninguém seria suficientemente tolo para alegar que o mundo forma uma única entidade homogênea. Amplas lacunas separam culturas jurídicas, interna e externamente, como (digamos) do Japão, México, Estados Unidos e França. Também há sinais de retrocesso e contracultura. O direito do Irã, desde a queda do Xá, dificilmente nos mostra alguma evidência de convergência; e uma rica Arábia Saudita luta contra o veneno da convergência. A Arábia Saudita deve, necessariamente, se armar para funcionar no mercado internacional. Mas ao mesmo tempo, a família real e as elites religiosas lutam contra a influência nociva da cultura ocidental; censores semioficiais vigiam as ruas e se intrometem em assuntos privados, procurando por mulheres em roupas indecentes e fitas cassetes com conteúdo impróprio.

No longo prazo, pode a Arábia Saudita ser bem-sucedida? Assim como os exploradores e conquistadores trouxeram consigo suas doenças, quando chegaram à América, também o cinema e a TV carregam consigo os vírus culturais e os espalham por todo o mundo. Predominantemente, é claro, a viagem é de mão única: do mundo desenvolvido para o subdesenvolvido; e, claro, entre os próprios países desenvolvidos. Defensores dos modos tradicionais de vida reclamam do imperialismo cultural; mas qualquer que seja o rótulo anexado ao processo, é bem difícil de resistir.

Os seis traços listados são, eu penso, ligados uns aos outros. Eles formam um único sistema. A exposição, eu espero, tenha deixado isso claro. Eu gostaria de expandir um pouco a minha tese geral.

Vamos começar com individualismo: o indivíduo nas sociedades democráticas é muito mais intransigente, de muitas maneiras, do que eram seus tataravôs, que viviam em uma sociedade que era, objetivamente, muito menos “livre”. A densidade do direito moderno é exemplificada pelo Estado do bem-estar social; e o Estado do bem-estar social é simultaneamente causa e efeito da intransigência. O Estado do bem-estar social fornece um tipo de piso ou “campo de base” para os direitos. Isto encoraja um tipo de individualismo, na medida em que protege homens e mulheres de entrarem em brusca queda livre – cria-se a chamada “rede de segurança social” (FRIEDMAN, 1990, p. 98, 105). Ninguém ousaria vestir-se de maneira pitoresca em uma época em que o patrão tinha o pleno direito de contratar e demitir seu pessoal, sem que houvesse qualquer possibilidade de recurso ou retaliação. Ninguém poderia alegar um direito à improvisação, quando o líder da banda tinha poder absoluto sobre a maneira de o músico ganhar seu pão.

A rede de segurança social alimenta um ciclo de demandas e de expectativas: quanto mais o Estado faz – mais serviço ele fornece – maior o número de pessoas que vem a pensar que estes direitos são como presentes divinos. Daí o paradoxo em nossa lista: um aumento de instrumentalismo; um aumento em direitos fundamentais.

Há outro paradoxo na sociedade moderna; por todos os cantos, grupos organizados se aglomeram nas arenas econômicas, políticas e sociais: grupos ligados por status, grupos raciais, pessoas que trabalham em uma indústria em particular ou que compartilham uma mesma preferência sexual, que adoram ou odeiam armas, que querem mais natureza selvagem ou menos, e por aí ad infinitum. Simultaneamente, nós encontramos um crescente e estridente individualismo. É plausível a hipótese que parte deste individualismo seja uma resposta ao crescimento de grupos; é uma luta para evitar ser esmagado por eles. Porém, há grupos e grupos.

Particularmente significantes, na sociedade moderna, são os grupos que poderíamos chamar de grupos “horizontais” – grupos difusos, nem sempre econômicos, unidos pelo milagre da comunicação de massa, ao invés da geografia ou outros arranjos para viverem de forma compacta. Estes “grupos” são a verdadeira expressão de um individualismo extremo. Grupos feministas, por exemplo, representam (dentre outras coisas) uma tentativa passional de quebrarem estereótipos e padrões herdados, que aprisionaram as mulheres em certos papéis sociais; elas estão tentando defender os direitos de as mulheres serem indivíduos, cujo gênero (e as consequências do gênero) são aquelas e apenas aquelas que elas escolhem livremente para elas mesmas.

Grupos feministas são grupos “horizontais” – compostos por mulheres que pensam parecido e têm opiniões similares, onde quer que elas estejam. Sociedades tradicionais distribuem o poder verticalmente; a autoridade era em primeira instância face a face e hierárquica – pais, líder local, chefes, anciões e sacerdotes. A personalidade da criança era formada dentro de uma poderosa comunidade local, uma espécie de santuário psicológico e social. Não havia mensagens rivais de um mundo maior; sem TV e sem a cultura das “tribos” (“peer groups”).

De qualquer modo, a avidez das pessoas por direitos é fator característico deste século. Este é definitivamente o século do “Grundrechte”; estes direitos fundamentais são a base, o mínimo, o substrato necessário sobre o qual tudo o mais no Estado e no sistema jurídico se constrói. Não me refiro aqui aos debates de teoria política. Refiro-me ao sentido subjetivo de direito, que o grande público possui, e se expressa em comportamentos concretos. Não há dúvida de que o século XIX foi período de preocupação com direitos; mas tais direitos eram primariamente econômicos e políticos; eles eram (como tem sido notado repetidamente) intimamente ligados com a ideia de mercados livres e os direitos clássicos não pressupunham ou antecipavam o moderno Estado do bem-estar social, com seu enorme apetite por regulação econômica e segurança social. A rigor, a noção de “direitos” burgueses prevalente no século XIX pode muito bem ser inconsistente com este tipo de Estado (PREUSS, 1986).

O novo impulso por direitos – direitos econômicos; direitos de estilo-de-vida; direitos à personalidade e à privacidade – trazem uma constelação de produção legislativa nova; e transforma o trabalho das instituições jurídicas. Uma dramática e repentina onda de poder alimenta as cortes. Por que cortes? Cortes decidem disputas; uma parte do seu trabalho é transformar “direitos” abstratos em realidade concreta. Obviamente, o sistema das cortes varia de sociedade para sociedade. O que é mais impressionante é o que eu posso chamar de aumento no que podemos chamar de estilo Americano de corte: uma corte ativista, que define políticas públicas, corajosa e que tem a vontade e o poder de satisfazer a crescente sede por direitos.

Estas cortes ativistas não são (na cabeça das pessoas) abertamente políticas. É claro que cortes são políticas; elas elaboram o direito e políticas públicas (“policy”). Isto é banal para cientistas políticos, mas, ainda assim, é novidade (e seria uma novidade não tão bem-vinda) para o grande público. Na literatura jurídica, há um debate interminável sobre a legitimidade das cortes e sobre se as cortes ativistas são antidemocráticas, se elas frustram a vontade majoritária, tal como expressa pelo legislativo propriamente eleito, etc. Porém tudo isto, eu suspeito, passa ao largo das preocupações do grande público. Afinal, a vontade majoritária não tem nada a ver com direitos fundamentais. Um direito fundamental é somente isso: fundamental. Ninguém – e nenhuma instituição – deve ter autorização para tocar nele.

Obviamente, a ideia de direitos básicos e inalienáveis não é algo novo. É tão antiga quanto o Iluminismo, se não for mais antiga. O que é novo é o profundo poder revolucionário desta ideia e sua incrível musculatura. O que também é novo é o conteúdo dos direitos. Afinal, grandes pensadores do século XVIII não sentiram, de modo geral, que mulheres eram iguais a homens, ou tinham o direito de ser; eles nunca pensaram sobre direitos reprodutivos, direitos a tratamento básico de saúde, educação ou trabalho; ou o direito a ter um estilo de vida alternativo e tantas outras concepções modernas que nós encaramos como platitudes.

Estilo de vida e assuntos similares chegam frequentemente às cortes nos Estados Unidos antes que qualquer legislativo possa seriamente considerá-los. As cortes também possuem outra importante função, funcionalmente relacionada. Elas podem agir como uma espécie de agência de controle, monitorando (a pedido) o que os burocratas fazem e como eles tratam o povo. As cortes “revisam” as ações do governo em todos os níveis; e o comportamento de grandes e poderosas instituições, com um olho na proteção (às vezes) de direitos individuais. O inimigo natural, a oposição, é a “administração”; não meramente o Estado, mas os cabeças de todas as burocracias, líderes de sindicatos assim como de gigantescas empresas.

Obviamente, é uma questão empírica saber se as cortes fazem isso bem, fazem frequentemente e mesmo saber se o que elas fazem é efetivo.6 Alguns acadêmicos simplesmente acreditam que as cortes fabricam desastres quando se imiscuem em assuntos de Estado ou questões relativas a instituições mais amplas. Alguns pensam que o papel das cortes como agentes ou catalisadores de transformação social tem sido largamente exagerado. Claramente uma das tarefas da tradição Law and society deve ser explorar estas questões e aferir se sim ou se não.

Teóricos do direito gastam cada vez menos tempo, me parece, se preocupando sobre o impacto ou a consequência das ações jurídicas, comparado ao quanto se preocupam com legitimidade. Como podemos justificar cortes que definem política pública (“policy”)? Ninguém elege estes juízes. Eles estão situados a margem do regular processo democrático. Qual é o direito que eles têm de criar normas e direitos?

Curiosamente, o público não parece se importar, sendo que a opinião pública é, em última instância, a fonte de legitimidade. Apesar de toda a discussão sobre crise, a legitimidade das cortes nos países ocidentais pode, de fato, estar mais alta do que nunca. E isto em razão do que as cortes têm feito; dos resultados concretos de suas decisões. Legitimidade é conceito processual. E há evidências de que as pessoas valorizam um procedimento justo por si só (TYLER, 1990). Mas elas dão valor maior à substância; e as cortes, quando entregam os bens, vão gozar da alta estima do público. O próprio princípio eleitoral ou majoritário não está totalmente isento de críticas ou discussão (OFFE, 1984). A rigor, o conceito de direitos como um todo representa uma negação ao princípio majoritário. Uma “revolução de direitos” inegavelmente significa que o domínio da regra majoritária deverá diminuir.

III. Conclusão.

O trabalho da tradição Law and Society é compreender como funcionam os sistemas jurídicos e qual é o seu lugar na sociedade. Ninguém tende a discordar deste objetivo simples e banal. Porém, na prática, muitos acadêmicos, inclusive alguns que se consideram parte da tradição Law and Society parecem muito mais interessados em “teoria”, isto é, ideias sobre direito na sociedade, atitudes filosóficas sobre a disciplina, exposição do pensamento de grandes pensadores e, em suma, a história intelectual da disciplina, ao invés de se dedicarem à própria tarefa da disciplina.

Talvez atrás destas atividades esteja implícita uma premissa de que as grandes ideias possam ter um impacto enorme no modo como os sistemas jurídicos funcionam na prática; as ideias seriam filtradas e moldariam o comportamento de juristas, advogados e cidadãos. Francamente, eu duvido disso. Eu acho que as grandes ideias têm pouco ou nada a ver com o modo como o sistema jurídico opera diariamente. Minha visão é de que a direção de influência, na verdade, corre em outra direção. Grandes ideias são destiladas a partir de noções simples, que são cotidianamente construídas. Não se retira o mérito das grandes mentes insistir que eles, também, são prisioneiros das ideias de seu tempo e lugar, muito mais do que eles ou nós temos consciência. Talvez eu esteja errado quanto a isso. Porém devemos certamente debater e explorar o papel da alta cultura jurídica na sociedade, não pressupor ele.

Se estiver certo sobre meu ponto de vista geral, então nós devemos estudar o direito de baixo para cima, por assim dizer. Nós devemos coletar dados empíricos e devemos estar preocupados com fatos, medições e tendências. Seria o primeiro a admitir que nada pode ser medido sem uma teoria, ideia ou hipótese para guiar a pesquisa. Porém a teoria deveria ser um guia, um modo de organizar a pesquisa e explicar o que a pesquisa acha; não deveria ser um substituto.

Os seis traços do direito moderno e da cultura jurídica que discuti neste ensaio estão interligados; eles formam um conjunto de traços que descreve o que identifica os modernos sistemas jurídicos ocidentais. Por que deveríamos nos preocupar com estes traços? Acadêmicos estão interessados em compreender o direito por si só, mas será que há alguma outra utilidade? Eu penso que sim. Em minha opinião, uma reforma jurídica está condenada ao fracasso se não leva a cultura jurídica em consideração. Reformadores, tradicionalmente, não se preocupam em entender porque algo deu errado; eles agem como se erros, inconsistências e lacunas do sistema jurídico fossem algum tipo de erro ou falha técnica, como se o sistema fosse um tipo de computador “fora do ar” e a assistência técnica (juristas, operadores do direito, redatores de contratos) devessem simplesmente entrar em casa, trazer suas ferramentas e consertar o sistema. Porém, sistemas jurídicos são produtos da sociedade – mais especificamente da cultura jurídica; logo, reforma é tarefa sutil e complexa. Devem se levar em conta os limites impostos pela cultura; deve se reexaminar se as “falhas” do direito são falhas reais ou se estamos negligenciando algum aspecto da cultura jurídica.

A tradição Law and society é uma tentativa de arrebentar a caixa preta de segredos jurídicos. A tradição não é “crítica” ou radical em si própria – seus praticantes podem ser oriundos de qualquer convicção política – mas é em um certo sentido muito mais subversiva do que inúmeras teorias críticas ou radicais. É muito mais destrutiva da ortodoxia legal. Isto decorre do modo pelo qual ela observa o direito. Ela expõe o direito a intensos raios de luz que vêm de fora; uma vez que você observa o direito através desta luz, ele nunca mais parecerá o mesmo.

Referências

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Notas

1 O leitor deve entender os termos “prova” e “contraprova”, de uma maneira temperada. Julgamentos sobre cultura jurídica, sociedades inteiras, e coisas assim são extremamente difíceis. É árdua a tarefa de definir modos de testar as hipóteses subjacentes; e os fatos evidenciados são raramente tão potentes que possam matar a hipótese ou confirmá-la além de uma dúvida razoável. Mas dados frequentemente podem jogar água fria nesta ou naquela ideia; fazê-la parecer mais ou menos plausível.
2 Pode-se argumentar, por outro lado, que há novas formas de imunidade – novas formas de desregulamentação e descriminalização. Por exemplo, em muitos países, leis antigas sobre conduta sexual foram descartadas e praticamente tudo o que adultos consentirem em fazer um com o outro é legal. é legal. Regras sobre privacidade e liberdade de estilo de vida, entretanto, carregam consigo os direitos que sustentam estas liberdades. E no balanço final – apesar de ser ponto difícil de demonstrar – há provavelmente mais áreas de intrusão recente do que áreas de nova imunidade.
3 Nota do tradutor. Ao leitor brasileiro, que provavelmente aprendeu em “Introdução ao direito” que direito civil e direito comercial são ramos do direito privado, a distinção pode parecer estranha. É importante compreender que a definição de ramos do direito e a distinção entre o que seja público e privado decorrem de uma construção social. Assim, a vida comercial, na leitura do Professor Friedman, não se inclui entre as relações jurídicas privadas. Assim também a expressão “civil rights” na cultura jurídica norte-americana se refere aos direitos de cidadania e não a direitos civis. A expressão “civil law” se refere à tradição jurídica de inspiração romano-germânica, característica da Europa continental e da América Latina. A importância, aliás, da leitura e estudo de autores estrangeiros decorre em parte da conscientização de que o direito não é fenômeno natural (ou absolutamente lógico), mas social (e fruto de construção social). O contato com ideias produzidas em outras sociedades torna isso bastante claro.
4 Este não é, obviamente, sempre o caso – a Grã-Bretanha é um exemplo notável de Estado moderno com constituição não-escrita (e uma doutrina de supremacia parlamentar).
5 Nota do tradutor. No texto original, foi usado o termo “enforceable”. Significa, em síntese, que o direito pode, por força da iniciativa de alguém, ser efetivamente aplicado e concretizado. Assim, o termo “adjudicável” não possui sentido equivalente, por ser incompleto e relativamente impreciso. Seria conveniente criar palavras novas na língua portuguesa que significassem “enforceable” e “enforcement”. Enquanto o neologismo "enforçamento" não surge na língua portuguesa, o tradutor, conforme o provérbio italiano ("traduttore, traditore"), acaba sendo traidor do sentido original.
6 Sobre efetividade e impacto, há críticas (com relação aos Estados Unidos) por Horowitz (1977) e Rosenberg (1991), dentre outros; Carl Baar (1990, p. 147-148), que chamou as cortes da Índia de “judiciário mais ativo do mundo”, concluiu que “mesmo um judiciário cuja energia e ativismo iria espantar estrangeiros não é páreo para a energia e o ativismo do Estado indiano e seus líderes políticos”.

Autor notes

* Lawrence Friedman é Professor titular na Stanford Law School, como ‘Marion Rice Kirkwood Professor of Law’. É o mais proeminente historiador do direito americano, tendo publicado o livro mais citado a respeito do assunto e escrito dezenas de artigos acadêmicos sobre o assunto. É ainda um dos grandes precursores do movimento Law and Society nos Estados Unidos, tendo cunhado e sido o grande expositor do conceito de “cultura jurídica”, que hoje faz parte do vocabulário de professores de direito, alunos e profissionais em todo o mundo. Lawrence Friedman é ainda o diretor do programa de mestrado acadêmico da Stanford Law School (SPILS). Dentre suas obras mais significativas estão A history of American Law (1973), The legal system: a social science perspective (1975), Total Justice (1985), The Republic of Choice: Law, Authority, and Culture (1990), Crime and Punishment in American History (1993), The horizontal society (1999), American law in the 20th century (2002), The Human Rights Culture: A Study in History and Context (2011) e Impact: How Law Affects Behavior (2016). E-mail a/c: pfortes@stanfordalumni.org. Orcid ID: https://orcid.org/0000-0003-3778-9239

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