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Recepção: 10 Novembro 2018
Aprovação: 29 Janeiro 2019
DOI: https://doi.org/10.15175/1984-2503-201911202
Resumo: O presente artigo visa apresentar uma síntese de algumas questões chaves que dizem respeito à formação do campo intelectual latino-americano no século XX e que foram trabalhadas na pesquisa de doutorado Relações de força na passagem à modernidade na América Latina. Destacamos as questões suscitadas pela escrita ficcional e ensaística de Alejo Carpentier e pelas relações de força (política e cultural) presentes no processo de circulação e apropriação do Iluminismo na América Latina. Apresentamos uma análise daquele que consideramos o romance fundamental de Alejo Carpentier, El siglo de las luces, publicado em 1962. O escritor e ensaísta cubano pensou a relação epistemológica entre história e literatura comprometido com a renovação cultural modernista que ativou a crítica romântica em contraste ao modelo inspirado na física óptica newtoniana – confrontando, assim, o mecanicismo do entendimento da literatura como mero reflexo da realidade histórica ou social. Para Carpentier, a ficção deve ser compreendida como elemento ativo e construtivo da história. O reconhecimento da autonomia relativa, ou irredutibilidade da experiência estética (e do imaginário) em relação ao conhecimento científico da história, incidiu no reconhecimento dos saberes culturais afroamericanos e ameríndios contra o sentido civilizatório subjacente na concepção linear da história científica iluminista.
Palavras-chave: Literatura, relações de força, modernidade, América Latina, Alejo Carpentier.
Abstract: The present article aims to provide a summary of key issues in the formation of the Latin American intellectual field in the twentieth century, as considered in the doctorate entitled Relações de força na passagem à modernidade na América Latina [Relationships of power in Latin America’s passage to modernity] (2016). We highlight the questions raised by Alejo Carpentier’s fiction and essays and by the (political and cultural) relationships of power present in the process by which the concepts of the Age of Enlightenment were circulated and appropriated in Latin America. We offer an analysis of what we consider to be Alejo Carpentier’s main work, El siglo de las luces, published in 1962. The Cuban writer and essayist considered the epistemological relationship between history and literature in his commitment to the modernist cultural renewal that harnessed romantic criticism in contrast to the model inspired by Newtonian physical optics – thereby confronting the mechanism by which literature is understood as a mere reflection of historical or social reality. For Carpentier, fiction should be understood as an active, constructive element of history. The recognition of relative autonomy or the irreducible nature of aesthetic experience (and the imaginary) in terms of the scientific knowledge of history prompted a recognition of Afro-American and Amerindian cultural knowledge against the civilizing sense underpinning the linear nature of the Age of Enlightenment’s scientific concept of history.
Keywords: Literature, relationships of power, modernity, Latin America, Alejo Carpentier.
Resumen: El presente artículo busca presentar una síntesis de algunas cuestiones clave relativas a la formación del campo intelectual latinoamericano en el siglo XX y que fueron abordadas en la investigación del doctorado Relações de força en la passagem à modernidade en la América Latina ('Relaciones de fuerza en la transición a la modernidad en América Latina') (2016). Destacamos los aspectos suscitados por la escrita de ficción y ensayística de Alejo Carpentier y por las relaciones de fuerza (política y cultural) presentes en el proceso de circulación y apropiación del Iluminismo en América Latina. Presentamos un análisis de aquella que consideramos la novela fundamental de Alejo Carpentier, El siglo de las luces, publicada en 1962. El escritor y ensayista cubano reflexionó sobre la relación epistemológica entre historia y literatura, comprometido con la renovación cultural modernista que activó la crítica romántica en contraste con el modelo inspirado en la física óptica newtoniana; confrontando, de esta forma, el mecanicismo del entendimiento de la literatura como mero reflejo de la realidad histórica o social. Para Carpentier, la ficción debe ser entendida como un elemento activo y constructor de la historia. El reconocimiento de la autonomía relativa o la irreductibilidad de la experiencia estética (y del imaginario) en relación con el conocimiento científico de la historia incidió en el reconocimiento de los saberes culturales afroamericanos y amerindios contra el sentido civilizador subyacente a la concepción lineal de la historia científica iluminista.
Palabras clave: literatura, relaciones de fuerza, modernidade, América Latina, Alejo Carpentier.
Résumé: Le présent article vise à présenter une synthèse de quelques-unes des questions clés relatives à la formation du champ intellectuel latino-américain au XXe siècle, que l’on a pu analyser dans le cadre de la recherche doctorale Rapports de force lors du passage à la modernité en Amérique latine (2016). Nous y soulignerons les questions soulevées par les fictions et les essais d’Alejo Carpentier et par les rapports de force (politiques et culturels) présents dans le processus de circulation et d’appropriation des Lumières en Amérique latine. Nous présenterons une analyse du roman, à nos yeux fondamental, d’Alejo Carpentier, Le Siècle des Lumières, publié en 1962. L’écrivain et essayiste cubain a pensé la relation épistémologique entre histoire et littérature en la reliant au renouveau culturel moderniste mis en œuvre par la critique romantique en contrepoint du modèle inspiré par la physique optique newtonienne – s’attaquant ainsi au mécanisme de compréhension de la littérature comme simple reflet de la réalité historique ou sociale. Pour Carpentier, la fiction doit être entendue comme un élément actif et constructif de l’histoire. La reconnaissance de l’autonomie relative ou de l’irréductibilité de l’expérience esthétique (et de l’imaginaire) par rapport à la connaissance scientifique de l’histoire a permis la reconnaissance des savoirs culturels afro-américains et amérindiens, à l’encontre de la signification civilisatrice sous-jacente à la conception linéaire de l’histoire scientifique des Lumières.
Mots clés: Littérature , rapports de force , modernité , Amérique latine , Alejo Carpentier.
摘要: 本文旨在讨论二十世纪拉丁美洲学术界和知识领域的形成。在作者的博士论文 (《拉美现代化转型时期的力量对比》,2016) 的基础上,我们讨论一些关键问题。我们分析古巴作家阿莱霍·卡彭铁尔 (Alejo Carpentier) 的作品里提出的关于启蒙运动在拉丁美洲的传播与吸收过程中的政治与文化新旧力量消长对比的问题。阿莱霍·卡彭铁尔在其发表于1962年的小说《光明的世纪》里,就文学和历史的本体论关系,文学在文化更新过程中的作用等问题,进行了探讨。作者反对浪漫主义文学批评思想,反对将文学机械地理解为仅仅反映历史或社会现实。卡彭铁尔认为,小说应该被理解为历史的积极的和建设性元素。相对于历史与科学知识,文学的自主权﹑想象力与审美体验是不能被简单化和刻板化的。这个论断同样适用于非裔美洲人和美洲原住民的文化和知识,它们同样不能被简单化和刻板化。作者认为西方文明的启蒙主义的科学话语叙事中的线性思维定式总是趋向于把他者文化简单化,刻板化。
關鍵詞: 文学, 力量对比, 现代性, 拉美, 阿莱霍·卡彭铁尔.
Introdução
Beatriz Sarlo (2003) inicia seu livro Una modernidad periférica, publicado originalmente em 1988, afirmando que todo livro começa com o desejo de ser outro, como impulso contraditório pela cópia e roubo. Com estranha empatia, percebi que a autora se referia às obras de Marshall Berman (1986), Tudo que é sólido desmancha no ar, e de Carl Schorske (1989), Viena fin-de-siècle. Beatriz Sarlo (2003, p. 7) sublinha o valor crítico da forma livre e desprendida com que ambos os estudiosos entravam e saíam da literatura, “interrogando-a com perspicácia, mas sem demasiada cortesia”. Tal irreverência analítica não se limitava apenas à literatura, mas também a outros campos de saber das ciências humanas por onde transitavam com relativa autonomia em relação às suas fronteiras. Uma curiosa fascinação tomou conta de minhas inquietações intelectuais: o medo do duplo e a compreensão de que aquele caminho que julgava ser tão próprio não me pertencia exatamente, mas fazia parte de um complexo processo social que intercomunica diferentes experiências históricas, práticas político-ideológicas e discussões epistemológicas. Tal reconhecimento poderia ser assustador não fosse a maravilhosa garantia da falibilidade do conhecimento humano e da condição autoral. Tudo passa e morre; os caminhos da experiência humana não se completam de forma absoluta; o “roubo” nunca é igual; o impulso da cópia é motriz da diferença que enreda a vida.
O presente artigo visa apresentar uma síntese de algumas questões chaves que dizem respeito à formação do campo intelectual latino-americano no século XX e que foram trabalhadas na pesquisa Relações de força na passagem à modernidade na América Latina(NEDER CERQUEIRA, 2016). Destacamos as questões suscitadas pela escrita ficcional e ensaística de Alejo Carpentier e pelas relações de força (política e cultural) presentes no processo de circulação e apropriação do Iluminismo na América Latina. Apresentamos uma análise daquele que consideramos o romance fundamental do autor, El siglo de las luces, publicado em 1962, no calor da Revolução Cubana (1959).
Nossa pesquisa enfoca a obra de três autores latino-americanos: Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982), Jorge Luis Borges (1899-1986) e Alejo Carpentier (1904-1980). Não são três autores quaisquer, mas três autores considerados fundamentais na consolidação do campo intelectual contemporâneo em seus referidos contextos históricos. Foi Antonio Candido (2008) quem observou o poder de síntese das interpretações de Sérgio Buarque de Holanda que dirigiram um quadro contextual para as pesquisas históricas e sociológicas subsequentes no Brasil. O mesmo poder intelectual de enquadramento do campo crítico pode ser observado na quase incontestável unanimidade autoral de Jorge Luis Borges, entre os argentinos, e de Alejo Carpentier, entre os cubanos. Tal conclamação generalizada da obra desses autores conduziu uma aceitação muitas vezes passiva de seus artifícios, transformados em ideologemas de uso cotidiano e fácil aderência nas mentalidades. Quando isso ocorre, a obra se converte em campo de disputa política e social onde todos medem força, inclusive os próprios autores e os herdeiros de suas obras.
O primeiro recurso crítico utilizado para superar o desafio imposto pela unanimidade autoral desses intelectuais foi buscar as contra narrativas existentes dentro de suas próprias obras. Fez-se necessário, portanto, identificar os “textos periféricos” que permitiriam deslocar as leituras e obras unânimes. No caso de Sérgio Buarque de Holanda, essa busca pelo periférico/marginal encontrou nos ensaios de sua interlocução crítica com o modernismo, na sua experiência de desterro intelectual em Berlim (1929-1930) e, especialmente, em sua única obra de ficção, Viagem a Nápoles (HOLANDA, 2008), os textos que permitiram uma interpretação “à contrapelo” de sua obra. No caso de Jorge Luis Borges, foram os ensaios e poesias de juventude, inclusive aqueles que o autor não quis reeditar em vida, que possibilitaram tal efeito de análise e interpretação crítica. Um tratamento metodológico semelhante foi empreendido no manejo da obra de Alejo Carpentier, seja na análise de sua primeira obra ficcional, ¡Ecué-Yamba-Ó! (1927-1933), seja na própria reconstrução de sua crítica cultural e trajetória intelectual que, a partir do final da década de 1950, se aproximou da Revolução Cubana (1959).
Nota-se que os três autores selecionados fizeram parte daquela geração intelectual que se sentia no “umbral de uma época de grandes transformações” (CARPENTIER, 1989b, p. 55). Tal entendimento garantiu algumas condições em comum que motivaram suas obras. Todos tiveram sua iniciação intelectual durante o último sopro de vida do século XIX, que durou até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), e fizeram de suas obras fragmentos móveis da transformação epistemológica ensejada pela crítica modernista. Isso significa dizer que a produção intelectual desses autores iniciou ainda referida ao pensamento do século XIX e fez uma ruptura em direção ao século XX. Essa passagem ou virada epistemológica deu forma à própria experiência moderna vivenciada em seus contextos históricos, confluindo na direção do que se acostumou chamar desde o segundo pós-guerra de nova literatura latino-americana.
Tal experiência de transformação epistemológica pode ser identificada em diferentes variantes compreensivas inscritas na dinâmica de crise e crítica do liberalismo movida pelo aceleramento das transformações modernas na virada para o século XX: no desenvolvimento da crítica culturalista e do relativismo em detrimento do positivismo científico; na atualização de avatares da crítica romântica contra a racionalidade industrial mecanicista; na interpretação da singularidade histórica (enfatizando a experiência e o relativismo) contra o conceito de história universal iluminista; no reconhecimento das inovações epistemológicas motivadas pelos estudos da subjetividade e do inconsciente, desconstruindo o ideal de indivíduo racional e autocontrolado, vigente no liberalismo vitoriano do século XIX. Observa-se que essas e outras diferentes variantes compreensivas, que visam dar forma ao que identificamos como “virada” epistemológica, transitavam pelos circuitos intelectuais modernistas que floresciam dos escombros da Guerra Mundial e da radical experiência de desencanto mobilizada pela experiência moderna – floresciam, pois, dos “escombros” do próprio ideal de progresso e civilização vigente no pensamento científico moderno.1
No que diz respeito à relação entre história e literatura, o câmbio de paradigma epistemológico confrontou as análises que submetiam o texto literário à ideia de mero reflexo da realidade histórica. A renovação cultural modernista ativou a crítica romântica em contraste ao modelo inspirado na física óptica newtoniana. A literatura não seria mais considerada apenas uma cópia infiel da realidade social, nem estaria submetida ao aval do saber científico que visa estabelecer as leis que regem essa realidade. A ficção seria então concebida como elemento ativo e construtivo da própria história e da vida. Tal entendimento incidiu no reconhecimento da autonomia relativa ou irredutibilidade da experiência estética (e do imaginário) em relação ao conhecimento científico da história, mas também incidiu no reconhecimento dos saberes culturais afro-americanos e ameríndios contra o sentido civilizatório subjacente na concepção linear da história iluminista. Há, pois, algo da condição humana que escapa ao controle consciente da razão e que mesmo assim se configura como um elemento ativo e construtivo da sociedade. Reconhecer essa condição faltosa e não plenamente determinável e consciente nas relações humanas não exclui a história, ao contrário, exige a sua interpretação responsável dentro do limite possível ou no “âmbito provável”, tal como observa Carlo Ginzburg (2002) relendo Aristóteles em seus trabalhos teórico-metodológicos.
No umbral de uma época de grandes transformações, os três autores estudados compreenderam o elemento arbitrário e irracional que se fazia (in)visível no rearranjo das modernas formas de dominação social e processo de secularização das instituições políticas. Nota-se que os três autores refletiram sobre a condição latino-americana como instrumentação de um olhar crítico capaz de enfrentar a dinâmica contraditória do capitalismo dependente e da ideologia do “atraso” das sociedades latino-americanas. O posicionamento ambíguo no lugar de passagem entre dois séculos – no trânsito entre dois paradigmas e “dois continentes” – possibilitou um olhar crítico capaz de perceber a ficção ou o artifício naquilo que era imposto como natural. O olhar ambíguo da crítica modernista que nasce desse lugar de passagem entre “dois mundos” foi vivenciado em suas obras como duplicação da condição latino-americana ou do próprio “entre-lugar do discurso latino-americano”, tal como imaginou Silviano Santiago (2000).2 Nota-se que a compreensão do elemento ativo da experiência estética contra o modelo mecanicista do reflexo ou cópia infiel incidia, pois, no reconhecimento da própria originalidade, legitimidade e autonomia da América Latina em relação aos decadentes modelos coloniais europeus. Assim, os referidos autores pensaram as particularidades históricas e culturais da América Latina a partir da relação contraditória entre identidade e modernidade.
O começo do século XX caracterizou-se como um período de grande convulsão social e crise do liberalismo. O continente europeu submergia então no absurdo da Grande Guerra, no fanatismo nacionalista, no fundamentalismo cristão antissemita e na crença de superioridade racial que tomou as massas descontentes e pessimistas quanto ao lugar social que lhe era reservado pelas instituições burguesas. Do “ocaso da Europa” (CARPENTIER, 2015) nasceu a Revolução Soviética (1917) e as utopias retrógradas de inspiração fascista. A luta de classes ganhou dimensão global que repercutiu em diferentes contextos locais, como, por exemplo, na Guerra Civil Espanhola, que incidiu de sobremaneira na intelectualidade ibero-americana. Na América Latina, tal movimento amplo e complexo de crise social do liberalismo favoreceu a renovação cultural modernista em chave crítica ao imperialismo norte-americano. Os intelectuais modernistas do começo do século XX reativaram a crítica romântica no corpo do debate sobre o conceito de identidade nacional-popular e miscigenação cultural em oposição à hegemonia do positivismo científico e do liberalismo conservador vigente no último quartel do século XIX e no começo do século XX.
A intelectualidade latino-americana do primeiro pós-guerra viu-se enredada em um sentimento geracional com poder de renovação cultural. Esse sentimento fortaleceu-se a partir de movimentos estudantis e intelectuais organizados em diferentes cidades. A Reforma Universitária de Córdoba, de 1918, conclamava a renovação cultural a nível regional. “La Juventud Argentina de Córdoba a los Hombres Libres de Sudamérica” – assim proclamava o Manifiesto Limiar, de 1918, redigido por Deodoro Rocca (1890-1942), destacada liderança da revolução educacional que logo tomaria as universidades de Buenos Aires, Tucumán e La Plata. Inspirados pelos ensaios críticos de José Ingenieros (1877-1925), logo ungido como maestro de la juventud, os estudantes cordobenses tomaram em assalto a reitoria da antiga Universidade Nacional de Córdoba, uma das mais antigas da América, fundada, em 1613, pelos jesuítas (FUNES, 2006).
O pan-americanismo intervencionista introduzido pelo Corolário Roosevelt à Doutrina Monroe foi confrontado nessa conjuntura por diferentes redes intelectuais que articularam a ação política e o pensamento numa perspectiva de autonomia nacional e emancipação crítica frente ao imperialismo norte-americano. O sentimento geracional promulgado pelo desejo de renovação tomou o continente em diferentes experiências políticas que aproximavam organizações estudantis com movimentos de trabalhadores. Victor Raúl Haya de La Torre (1895-1979), que iniciou sua trajetória política como líder estudantil no Peru, registrou sua filiação político-ideológica às bandeiras “de Córdoba” em artigo intitulado La Reforma Universitária(HAYA DE LA TORRE apud FUNES, 2006, p. 46-47), escrito em exílio durante o regime político de Augusto Leguía. O mesmo podemos dizer sobre outros intelectuais dessa geração que combinavam a renovação cultural com a ação política, tal como fizeram Alejo Carpentier e Jorge Luis Borges em sua juventude na década de 1920.3
Observa-se, entretanto, que a renovação cultural modernista favoreceu o amplo movimento de retomada tomista (a terceira escolástica) que vingou nas duas margens do Atlântico e imiscuiu-se em movimentos sociais e políticos de relevância. O tomismo incidiu no campo intelectual latino-americano, disputando os sentidos da tradição cultural ibérica e da identidade nacional-popular ensejada pela crítica modernista de acento romântico. A virada epistemológica consolidou o paradigma culturalista em detrimento do racismo científico e do positivismo spenceriano. O conceito de miscigenação passou por um contraditório processo qualificativo que enfrentou o racismo científico em voga nos anos 1930, mas se manteve vulnerável à manipulação tomista camuflada no elogio da tradição ibérica e da cultura barroca. Apesar de seus lampejos inovadores, a retomada tomista consolidou-se como recurso nostálgico-conservador que dificultou o avanço democrático na América Latina. Iniciou-se um período de grandes narrativas históricas que se propunham a reescrever a história das sociedades latino-americanas e seus mitos de formação nacional dando a feição mais ou menos comum que chega até hoje.4
As obras de Jorge Luis Borges, Alejo Carpentier e Sérgio Buarque de Holanda se inscreveram nesse conjunto de paradoxos e contradições motivadas pelo aceleramento da experiência moderna e pela consolidação da ordem burguesa no começo do século XX na América Latina. Tal experiência foi encenada em suas próprias cidades que atravessavam então um período de grande transformação urbana e social. Nota-se que esses autores de formação esmerada e poliglota iniciaram sua produção intelectual no começo da década 1920, participando ativamente da renovação cultural modernista latino-americana. As décadas de 1920 e 1930 compreendem uma conjuntura histórica fundamental, de onde podemos mirar os destroços do final do século XIX, sem deixar de identificar os motivos críticos e estético-expressivos que vão continuar repercutindo no segundo pós-guerra. A condição ambivalente identificada na crítica cultural dos referidos autores pôde, assim, ser reconstruída no interior das obras e debates intelectuais motivados por cada um dos autores em seus referidos contextos sociais.
Com a escolha dos autores selecionados pretendeu-se reunir uma amostra eclética das múltiplas tradições culturais que se encontram no espaço imaginário latino-americano, alcançando interpretações comparativas a partir da dinâmica singular de cada trajetória intelectual. Sérgio Buarque de Holanda, pela sua inscrição na cultura luso-brasileira, manejou com fluidez os debates políticos constitutivos do campo católico luso-brasileiro, se valendo das ferramentas analíticas da crítica cultural alemã. A crítica modernista de Sérgio Buarque tem sido interpretada a partir da experiência de desterro intelectual e estranhamento vivenciada pelo autor em Berlim (1929-1930). Jorge Luis Borges, pela própria história de amor e ódio da formação cultural rio-pratense com a Inglaterra, foi aquele que sintetizou os paradoxos da combinação entre a tradição cultural criolla com a crítica romântica inglesa dos estetas “vitorianos antivitorianos” da segunda metade do século XIX. Alejo Carpentier, por sua vez, desde sua aproximação com o surrealismo, reelaborou sua crítica cultural na busca pela especificidade revolucionária antilhana, circulando entre a crítica modernista francesa e a poesia afro-cubana. O escritor cubano desenvolveu o conceito de “real maravilhoso”, marcando uma diferenciação com o realismo literário, e buscou no barroco popular latino-americano os recursos culturais capazes de enfrentar o ideal de pureza e controle absoluto subjacente no processo civilizatório moderno. Observa-se que os três autores manejavam um conjunto múltiplo de tradições culturais em favor de um lugar original de crítica cultural ensaiado no entre-lugar latino-americano.
2. O turbilhão social no “mediterrâneo americano”
Explotion in a cathedral: trata-se do título da versão em inglês de El siglo de las luces, de Alejo Carpentier, possivelmente sua obra mais ousada e bem-acabada. A pintura homônima ao título figura como metáfora geral do romance, articulando diferentes intertextos. A interpretação mais evidente compreende a imagem da destruição da catedral, símbolo do Antigo Regime, como anunciação da experiência histórica moderna. Em pleno século XXI, o misterioso quadro “de autor desconhecido”, tal como é referido diversas vezes em El siglo de las luces, pode ser facilmente apreciado com um clique em sites de busca virtual. Explosão numa Catedral foi composta no começo do século XVII por Monsù Desiderio, pintor barroco da contrarreforma católica. Monsù Desiderio foi um pseudônimo autoral. Estudos recentes indicam que suas obras foram pintadas pelos artistas François de Nomé e Didier Barra, ambos originários de Metz, na França, e estabelecidos em Nápoles, na primeira metade do século XVII.5
A produção pictórica de Monsù Desiderio criou o pesadelo de uma arquitetura da destruição – a mesma “paisagem de escombros” que caracteriza o cenário desconstrutivista do conto Viaje a la semilla(CARPENTIER, 1995) e que aparece como metáfora fundamental em diversas obras de Carpentier.6 São composições apocalípticas de construções magnânimas, cidades de escombros noturnos, cenários de uma guerra sem soldados – um teatro do fim dos tempos. O pesadelo arquitetônico de Monsù Desiderio expressa o contexto histórico de guerra religiosa que dividiu a Europa na virada para o século XVII. A pintura Explosão numa catedral representa o exato momento da destruição, quando tudo parece suspenso antes de vir ruína abaixo. A imagem congela o instante do movimento impossível entre colunas eretas e destroços. Alejo Carpentier recuperou o imaginário de Monsù Desiderio e da cultura barroca napolitana como metáfora da experiência histórica moderna. Compreender o impacto que a imagem produz nos personagens de El siglo de las luces não requer muito esforço. O pesadelo paisagístico de Explosão numa catedral pode parecer estranhamente íntimo no imaginário de qualquer jovem do século XXI que cresceu sob os escombros inverossímeis das torres gêmeas do World Trade Center.7
El siglo de las luces foi o romance mais ousado e bem-sucedido de Alejo Carpentier. Com ele o autor abordou a circulação do ideário iluminista e jacobino nas “duas margens” do Atlântico na virada para o século XIX. O romance compreende o processo de transformação histórica inscrito na dinâmica da revolução burguesa entre várias cidades portuárias, passando por Cuba, Haiti, Guadalupe, Suriname, Guiana Francesa, Venezuela, França e Espanha. O oceano Atlântico é o grande cenário/espaço de El siglo de las luces que inscreve sua narrativa no processo de secularização das instituições políticas e reorganização das estruturas simbólicas de dominação. A ficção histórica de Carpentier dá forma ao choque e justaposição entre o catolicismo e o racionalismo iluminista presente na consolidação de uma nova ordem colonial “moderna” e de sua estrutura jurídico-política. Algumas cenas visam expressar esse processo, marcando claramente o interesse do escritor com a questão, tal como podemos perceber na caracterização do modelo punitivo, dito “científico”, que será adotado pela nova ordem colonial. A punição moderna será então mediada pela mão impessoal ou racional-legal da ciência, substituindo a violência praticada diretamente no interior do “antigo” modo de produção colonial. Tal representação pode ser apreendida no seguinte relato da narrativa:
Duas horas antes de levar a bagagem a bordo do Amazon, Estêvão foi ao hospital da cidade, para se certificar com o cirurgião-chefe, Greuber, da pouca importância de uma pequena inchação que o incomodava debaixo do braço esquerdo. Untada uma pomada emoliente no lugar doloroso, foi despedido pelo bom doutor numa sala onde nove negros, sob a custódia de guardas armados, fumavam calmamente um tabaco acre e fermentado, cheirando a vinagre, em cachimbos de barro tão gasto que os bojos lhe chegavam aos dentes. E o moço soube, apavorado, que aqueles escravos, culpados de uma tentativa de fuga e rebeldia, haviam sido condenados pela Corte de Justiça de Suriname à amputação da perna esquerda. E como a sentença tinha de ser executada limpamente, de modo científico, sem se usar processos arcaicos, próprios de épocas bárbaras, que causavam excessivos sofrimentos e punha em perigo a vida do réu, os nove escravos eram trazidos ao melhor cirurgião de Paramaribo, para que cumprisse, usando a serra, a decisão do Tribunal. “Também se amputa braços – Disse o Doutor Greuber – quando o escravo ergue a mão contra seu amo”. E o cirurgião voltou-se para os que esperavam. “Que venha o primeiro!” Ao ver que um negro alto, de cara enérgica e musculatura rija, levantava-se em silêncio, Estêvão, a pique de desmaiar, correu à taverna mais próxima, pedindo qualquer aguardente para fugir a seu próprio horror. E olhava para a fachada do hospital, sem poder tirar a vista de certa janela fechada, pensando no que acontecia lá (CARPENTIER, 1989b, p. 252-253).
El siglo de las luces aborda outras questões fundamentais que implicam diferentes aspectos que podemos relacionar à experiência moderna nas Américas, como a perseguição inquisitorial espanhola, a circulação do ideário iluminista pelas lojas maçônicas, as intercessões culturais entre maçonaria e o espiritismo afro-cubano, ou a inquietude existencial de personagens sintonizados com a busca por liberdade e autoconhecimento. O romance se estrutura em torno do “Decreto 16 Pluvioso” (1794) que abolia a escravidão nas possessões ultramarinas francesas. Os personagens centrais do romance, os primos Estêvão, Sofia e Carlos, moram em Cuba e veem-se de repente arrastados pelo turbilhão revolucionário como atores involuntários do curso inesperado da história. A vida confortável dos jovens criollos se transforma desde a súbita morte do pai e com a aproximação “mefística” do colono francês de Saint-Domingue, o franco-maçom Victor Hugues.
Estêvão estabelece uma relação transferencial com Victor Hugues que o inicia na maçonaria. Sofia, por sua vez, se apaixona pela atitude libertária do colono de Saint-Domingue. O novo fluxo de ideias transforma a educação sentimental dos jovens criollos. Estoura a Revolta de Saint-Domingue, de 1791, dando início a Revolução Haitiana. A perseguição colonial espanhola contra a maçonaria leva Estêvão e Victor Hugues a uma fuga improvisada rumo à Paris do final do século XVIII. A capital francesa vive a festa revolucionária com pessoas ocupando as ruas. Victor Hugues se transforma em um homem de ação e disciplina jacobina, se afastando da maçonaria, repelindo-a como tendência contrarrevolucionária. Agora ele ostenta o severo retrato de Robespierre, “O Incorruptível”. Victor Hugues será o encarregado em levar o decreto abolicionista de Paris para Guadalupe, junto com duas Máquinas: a guilhotina e a tipografia. “Pela primeira vez uma esquadra avança para a América sem levar cruzes no alto” (CARPENTIER, 1989b, p. 133). Estêvão acabará se tornando o tradutor do “Decreto 16 Pluvioso” para o espanhol e tripulante de um corsário pirata em um mar deflagrado por conflitos entre potências coloniais escravistas.
Victor Hugues foi um personagem histórico real, romanceado pela ficção de Alejo Carpentier. Nomeado Comissário Geral de Guadalupe pela Convenção Nacional jacobina, Hugues expulsou os ingleses que ocupavam a ilha francesa, compondo suas tropas com escravos libertos. O estrategista militar organizou frotas de corsários piratas que saqueavam navios ingleses, holandeses e norte-americanos, trazendo prosperidade a Guadalupe e quase levando os EUA a entrarem em guerra com a França. Na metade final do romance, Sofia sai em busca de Victor Hugues em Caiena, na Guiana Francesa, mas o idealista e libertário franco-maçom já não é mais a pessoa que conhecera. Este se transformou numa figura autoritária que conduziu com virulência o Terror jacobino nas possessões ultramarinas francesas. O paradoxo é que a escravidão será, ao fim, restaurada pelo novo Império Francês e os velhos jacobinos, considerados traidores da pátria, vivem então deportados na Guiana como senhores decadentes. Billaud-Varennes, o inveterado político da Primeira República Francesa, “já está comprando escravos”, observa Victor Hugues que já não mais ostenta o severo quadro de Robespierre e, como Comissário Geral de Caiena, aplica com autoritarismo despótico a “nova” ordem colonial napoleônica.
El siglo de las luces inicia a narrativa com falecimento de um rico negociante em Cuba, viúvo, pai dos irmãos Sofia e Marcos, e tio de Estêvão. Os três jovens, órfãos, se veem subitamente obrigados a assumir as reponsabilidades da casa, do armazém comercial geminado e de outras propriedades da família. Em meio à radical condição de orfandade e abandono, os adolescentes percebem-se estranhamente livres, em um ambiente atemporal de luto e permissividade.
Muito lhes havia afetado a morte do pai, certamente. E, no entanto, quando se viram a sós, à luz do dia, na vasta sala de jantar das naturezas-mortas a óleo – faisões e lebres entre uvas, lampreias com garrafas de vinho, um pastelão tão dourado que dava vontade de meter-lhe os dentes – tinham podido confessar que uma quase deleitosa sensação de liberdade os amolentava em torno a um jantar encomendado no hotel próximo – por não terem pensado em mandar alguém ao mercado. Remídio havia trazido bandejas cobertas de guardanapos, sob os quais apareceram pargos com amêndoas, marzipãs, borrachos àla crapaudine, coisas trufadas e confeitadas, muito diferentes das sopas, ensopados e carnes lardeadas que compunham o trivial da mesa. Sofia descera de roupão, divertida em provar de tudo, enquanto Estêvão renascia ao calor de um vinho tinto que Carlos proclamava excelente. A casa, que sempre haviam contemplado com olhos afeitos à realidade, como algo ao mesmo tempo familiar e estranho, adquiria singular importância, povoada de requisições, agora que se sabiam responsáveis por sua conservação e permanência (CARPENTIER, 1989b, p. 23-24).
A casa familiar colonial sem lei e ordem configura um espaço atemporal de permissividade. Alejo Carpentier desenvolve em El siglo de las luces o modelo alegórico da casa barroca acumuladora de bens culturais. Os irmãos Sofia e Marcos e o primo Estêvão vivem a representação do luto infinito e abandono cotidiano dentro do labiríntico espaço familiar. Apenas os escravos domésticos Rosaura e Remídio e o testamenteiro Dom Cosme travam contato com os jovens, satisfazendo seus pedidos sem qualquer medida. A relação senhorial escravocrata, narrada no romance com naturalidade pela intimidade da casa-grande, anula a sentimentos de exotismo ou desconforto que poderiam tomar o leitor contemporâneo. A relação senhor-escravo sucede na narrativa com uma naturalidade assustadora. A orfandade no interior da casa-grande é o prenúncio da explosão na catedral, compondo uma importante imagem de força contraditória na narrativa. Em meio ao ambiente de estranha permissividade mediado pela morte do pai, os adolescentes se entregam ao self-service normativo dispondo de toda sorte de bens culturais.8
Às vésperas do Natal, começaram a chegar caixas e embrulhos que foram colocados, à medida que chegavam, em salas do primeiro andar. Do Grande Salão às cocheiras era uma invasão de coisas que se deixavam ficar meio guardadas entre tábuas, cobertas de palha e de serragem, à espera de uma arrumação final. Assim, um pesado aparador, trazido por seis carregadores negros, descansava no vestíbulo, enquanto um biombo de laca, encostado numa parede, não saía das tampas pregadas. As xícaras chinesas permaneciam ainda na serradura da viagem, enquanto os livros destinados a formar uma biblioteca de ideias novas e novas poesias, iam saindo, uma dúzia aqui, outra dúzia acolá, empilhando-se como se podia, nas poltronas e mezinhas que ainda cheiravam a verniz seco. [...] Certa noite ouviram estalos dentro de uma caixa: a harpa, que Sofia tinha encomendado a um fabricante napolitano, rebentara as cordas tensas com a umidade do clima. Como os ratos da vizinhança deram de se entocar em toda a parte, vieram gatos que afiavam unhas nos primores da marcenaria e desfiavam os tapetes habitados por unicórnios, cacatuas e lebréis. Mas a desordem atingiu o auge quando chegaram os aparelhos de um Laboratório de Física, que Estêvão encomendara para substituir os fantoches e caixas de música por distrações que instruem divertindo. Eram telescópios, balanças hidrostáticas, pedaços de âmbar, bússolas, imãs, parafusos de Arquimedes, modelos de cápreas, vasos comunicantes, garrafas de Leyden, pêndulos e balanças, guindastes em miniatura, aos quais o fabricante havia juntado, para suprir a falta de certos objetos, um estojo de matemática com o mais adiantado da matéria (CARPENTIER, 1989b, p. 30-31).
Cada personagem no romance possui uma complexa caracterização que aqui tentaremos simplificar. Marcos tem inclinação para a música, mas como filho homem tem a obrigação de assumir a direção dos negócios do pai. “A morte do pai iria privá-lo de tudo quanto amava, mudando seus propósitos, tirando-o dos sonhos” (CARPENTIER, 1989b, p. 19). Ao longo do romance, Marcos assume a liderança das obrigações da casa e abandona sua paixão espontânea pela música. “O adolescente padecia como nunca, àquele instante, da sensação de aprisionamento que é o viver numa ilha” (CARPENTTIER, 1989b, p. 21). Marcos desempenha no romance um papel secundário em relação aos primos Sofia e Estêvão. A narrativa se aproxima em diversos momentos do olhar desses dois personagens. Sofia e Estêvão tipificam duas perspectivas diferentes – a feminina e a masculina – em relação à experiência de transformação histórica e existencial que vivenciam. Essa dinâmica de dupla perspectiva será repetida pelo autor de forma mais radical posteriormente em La consagración da primavera (1978) através dos personagens Enrique e Vera (CARPENTIER, 1987).
Com a morte do pai, Sofia logo é cercada por monjas e conselheiras religiosas que desejam sua devoção para o convento com visível interesse financeiro nas propriedades da família. O destino de Sofia, entretanto, estaria voltado para outra vida. A personagem sentencia: “não voltarei ao convento [...], aqui é onde devo estar” (CARPENTTIER, 1989b, p. 23). Sofia é movida pela genuína inquietação de quem busca uma forma de vida livre e independente: “Sofia sentia-se estranha, fora de si mesma, como que situada no umbral de uma época de transformações” (CARPENTTIER, 1989b, p. 55). A personagem enseja a busca por liberdade, autoconhecimento e compreensão do próprio desejo, tal como insinua a sabedoria que carrega no próprio nome. O narrador, entretanto, não idealiza a personagem, mas registra sua inquietude existencial em busca de algo que ela não sabe bem o que é.
O primo Estêvão, por sua vez, o mais novo dos três jovens, ocupa o lugar ambíguo na estrutura familiar. O rapaz asmático, sempre adoecido, duvidoso e questionador, cumpre a caracterização alegórica do intelectual ou “polemista”. Em casa, Estêvão veste um roupão sobre o corpo nu, um “traje de bispo” (CARPENTTIER, 1989b, p. 55), como referido diversas vezes pelo narrador, em alusão ao Santo Estêvão. O quadro Explosão na Catedral, que repousa na grande sala de jantar de naturezas-mortas, exerce sobre Estêvão uma estranha fascinação. O destino desse quadro estaria relacionado diretamente ao destino do personagem.
Estêvão gostava do imaginário, do fantástico, sonhando desperto ante pinturas de autores recentes, que mostravam criaturas, cavalos espectrais, perspectivas impossíveis – um homem-árvore, com dedos que brotavam, um homem-armário com gavetas saindo do ventre [...] Mas seu quadro predileto era uma grande tela, vinda de Nápoles, de autor desconhecido, que, contrariando todas as leis da plástica, era a apocalíptica imobilização de uma catástrofe. Explosão numa catedral se intitulava aquela visão de uma colunata espalhando-se no ar em pedaços – demorando um pouco em perder o alinhamento, em flutuar para cair melhor – antes de lançar as toneladas de pedra sobre pessoas espavoridas. “Não sei como podem olhar isso”, dizia sua prima, estranhamente fascinada, na verdade, pelo terremoto estático, tumulto silencioso, ilustração do fim dos tempos, posto dali, ao alcance das mãos em terrível suspense. “É para ir se acostumando”, respondia Estêvão sem saber porque, com automática insistência, que pode nos levar a um jogo de palavras que não tem graça, nem faz rir ninguém, durante anos, nas mesmas circunstâncias (CARPENTTIER, 1989b, p. 25).
O quadro Explosão na Catedral é o prenúncio do turbilhão que vai arrastar Sofia e Estêvão ao longo do romance. O “terremoto estático” ou “tumulto silencioso” é causador de estranho fascínio em Sofia; o quadro produz atração e repulsa nos personagens. Essas imagens contraditórias e paradoxais são cuidadosamente construídas por Alejo Carpentier – são imagens que procuram expressar o paradoxo da experiência moderna. Estêvão gosta do fantástico e sonha desperto com “homens-árvore” e “homens-armário com gavetas saindo do ventre”. Alejo Carpentier articula referências contemporâneas do surrealismo na experiência de personagens do começo do século XIX. A narrativa maneja, assim, uma concepção circular do tempo histórico. As ruínas fantásticas de Monsù Desiderio dividem a mesma temporalidade dos homens-gaveta, típicos do imobiliário paranoico surrealista, num jogo simultâneo onde se perde a noção de causa e efeito. Na narrativa de Carpentier, o surrealismo pode ter influenciado a compreensão da produção barroca napolitana tanto quanto ter se inspirado nela como ideal estético-expressivo.
Há ainda outro efeito produzido pela narrativa que deve ser observado: as primeiras oitenta páginas do romance podem ser lidas quase sem datação. Surpreende a fruição da narrativa que não assume uma perspectiva exotizante do passado, mas se aproxima de sua intimidade com naturalidade. Os dilemas afetivos dos personagens podem soar estranhamente íntimos ao leitor contemporâneo. O espaço infinito de luto e permissividade na casa-grande produz um efeito de inebriante atemporalidade. Ao negar um olhar civilizatório e exotizante em relação ao passado, o narrador de El siglo de las luces não se coloca distante no tempo histórico ou superior a ele. Ao contrário, o narrador penetra na mentalidade e nos conflitos subjetivos dos personagens. O romance tem o mérito, assim, de proporcionar um efeito de “viagem” na história que relativiza a crença na evolução ou superioridade do século XX em relação ao passado. Seriam as contradições humanas do começo do século XIX tão diferentes das contradições do século XX?
A rotina sem-fim dos jovens criollos é somente interrompida pela chegada do “intruso” e “estrangeiro” Victor Hugues que se aproxima do velho armazém com interesses comerciais. Com o passar do tempo, o sedutor negociante de Porto Príncipe, capital da antiga Saint-Domingue, conquista a confiança dos órfãos que passam a convidá-lo para visitas e jantares. Hugues desempenha uma influência “mefística” sobre os jovens: “Seu aparecimento, acompanhado de um tom de aldravas, havia tido algo de diabólico – com aquele aprumo de se apoderar da casa, em sentar-se à cabeceira, em mexer nos armários” (CARPENTTIER, 1989b, p. 80-81). Victor Hugues consuma uma verdadeira revolução na velha casa barroca acumuladora, organizando caixas, arrumando o quintal abandonado, limpando o pequeno estábulo, desempenhando uma função de “amigo”, líder e referência paterna.9
A aparição de Victor Hugues é vista com desconfiança pelo testamenteiro Dom Cosme – quem de fato administra e manipula as finanças da casa. Estêvão, mais uma vez enfermo, acaba sendo socorrido por um amigo de Victor Hugues, um feiticeiro médico, maçom e mestiço, chamado Ogê, que empreende um novo tratamento espiritual “ilegal” no rapaz. Estêvão renasce de sua condição de adolescente frágil e sente o mundo como se fosse pela primeira vez. A influência de Victor Hugues e da “medicina ilegal” (CARPENTTIER, 1989b, p. 60) de Ogê fazem a casa dos jovens se tornar alvo da perseguição política colonial. Como em outras ficções de Alejo Carpentier, a virada abrupta da narrativa vem por meio de uma tempestade que assola a cidade. Victor Hugues, “com prática de marinheiro, provou a água da chuva: ‘Salgada. Do mar. Pas de doute’” (CARPENTTIER, 1989b, p. 62).
Pouco depois de meia-noite, o grosso do furacão entrou na cidade. Soou um bramido enorme, arrastando demolições e estrondos. Rodavam coisas pelas ruas. Voavam outras por cima dos campanários. Do céu, caíam pedaços de vigas, tabuletas de lojas, telhas, vidros, ramos quebrados, lampiões, tonéis, mastros de navios. Todas as portas eram batidas por inimagináveis aldravas. As janelas trepidavam entre golpe e golpe. As casas tremiam dos alicerces aos tetos, gemendo pelas madeiras. Nesse instante, uma torrente de água suja, lamacenta, saída das cocheiras, do segundo pátio, da cozinha, vinda da rua, se derramou no pátio, entupindo os bueiros com lodo de bostas, cinzas, lixo e folhas velhas (CARPENTTIER, 1989b, p. 62-63).
A tempestade invade a casa-grande numa duplicação do quadro Explosão numa catedral. O espaço familiar transforma-se numa paisagem de escombros. O velho armazém da família é tomado pela lama fétida, devastando móveis e especiarias. Victor Hugues, com habilidade de estrategista militar, coordena a operação de salvamento do que há de mais valioso na casa e no armazém. O furacão ou tempestade desempenham um papel estruturante na obra de Carpentier. Trata-se da mais importante metáfora da obra do escritor. A quantidade de significados que se multiplicam dentro da sua unidade é surpreendente. Tal como sucede em ¡Ecué-Yamba-Ó! (CARPENTIER, 1989a) a tempestade antilhana replica a metáfora do turbilhão da experiência moderna que arrasta seus personagens. “O diabo na rua, no meio do redemunho”, tal como escreveu Guimarães Rosa (1986).
A metáfora do furacão se repete em diversos romances de Alejo Carpentier: em Los pasos perdidos (1954), o destino do personagem principal também se transforma a partir de uma poderosa tempestade. Como um chamado vindo do interior da natureza, a tempestade conduzirá o protagonista numa viagem utópica ao coração da floresta amazônica e de si mesmo (CARPENTIER, 2002). Em La consagración de la primavera(CARPENTIER, 1987), por sua vez, o movimento do turbilhão moderno, como um espiral, alude à dança do balé de Stravisnky, ao rodopio do corpo em cena, mas também à sinistra máquina-torvelinho de Alfred Jerry. O cubano Enrique, exilado na Europa durante a ditadura machadista, vê-se involuntariamente metido na guerra civil espanhola.
Eu, que havia achado possível subtrair-me por um tempo às contingências da época, me via arrancado de meu retiro, de minha marginalidade, para ser projetado brutalmente no grande torvelinho do mundo – torvelinho que para mim começava a se parecer demais à sinistra machine à décerveler de Alfred Jerry (CARPENTIER, 1987, p. 85).10
Para Marshal Berman, o turbilhão social rouseeauniano se expressa paradigmaticamente na célebre expressão do Manifesto do Partido Comunista, de Marx: “tudo que é sólido desmancha no ar”. Berman pensa a fragmentação do sujeito na sociedade moderna, a experiência de desencanto do mundo, a alienação do trabalho ou a morte de Deus nietzschiana como variações de assertiva crítica de Marx que, inspirada pelos avanços da química e física, visava dar forma à experiência de transformação social radical das estruturas sociais na passagem à modernidade. Para Marshal Berman (1986, p. 9), a experiência moderna deve ser compreendida como
uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx, tudo o que é sólido desmancha no ar.
O turbilhão revolucionário de Alejo Carpentier, essa unidade múltipla em torvelinho, subverte a dicotomia entre centro e periferia, pois o centro do ciclone é um vazio insubstancial, uma ausência fundamental impossível de fixar, que está no movimento circular contraditório que se espraia pelas extremidades. Os personagens de El siglo de las luces compartilham o sentimento de estar no olho do furacão, no umbral da desintegração do tempo. Ao mesmo tempo, o turbilhão de Alejo Carpentier faz do mar antilhano um espaço intersubjetivo de crítica cultural sobre a miscigenação, a pluralidade social e a história. Assim, Estêvão será arrastado pelo “universo das simbioses” que tem no mar caribenho ou Oceano Atlântico sua metáfora fundamental. “Estêvão maravilhava-se em observar como a linguagem nessas ilhas havia tido que usar a aglutinação, o amálgama verbal e a metáfora, para traduzir a ambiguidade formal de coisas que participavam de várias essências” (CARPENTIER, 1989b, p. 187). A metáfora do “universo das simbioses” duplica a experiência do turbilhão social revolucionário através do embaralhamento das fronteiras das estruturas sociais, da combinação heterodoxa de diferentes tradições culturais, da rebeldia humana frente à naturalização da ordem e no imaginário em movimento na linguagem. “Muitas criaturas marinhas recebiam nomes que, para fixar uma imagem, criavam equívocos verbais, originando uma fantástica zoologia de peixes-cachorros, peixes-bois, peixes-tigres, roncadores, sopradores, voadores [...]” (CARPENTIER, 1989b, p. 187). Alejo Carpentier representa o mar antilhano como um “Auto ao grande Teatro da Devoração Universal, onde todos eram comidos por todos, consubstanciados, imbricados de antemão, dentro da unicidade do fluido” (CARPENTIER, 1989b, p. 188).
A tempestade e a destruição da velha casa criolla desperta a narrativa de El siglo de las luces de sua anestesia atemporal. Os conflitos políticos tornam-se cada vez mais evidentes. A cena de discussão entre Victor Huges e o testamenteiro Dom Cosme define campos políticos opostos. A descoberta que Victor Hugues é franco-maçom soa aos ouvidos de Sofia como uma explosão numa catedral:
Dom Cosme estava como que encolhido, enrolado, obrado no fundo da poltrona, larga demais para servir de moldura à sua exígua pessoa. Um tremor de ira mantinha-lhe os lábios em silenciosa agitação, enquanto suas unhas arranhavam o veludo do assento. Porém se ergueu repentinamente ladrando a Victor uma só palavra que soou feito uma explosão em catedral aos ouvidos de Sofia: “Franco-maçom!” Inflamava-se a palavra rebentando de novo com tremenda repercussão: “Franco-maçom!” e a palavra se repetia cada vez mais alta e alterada, como se bastasse para desqualificar qualquer acusador, para lançar por terra qualquer alegação, para limpar de toda a culpa quem a proferia. Vendo que o outro só replicava com um sorriso desafiante, falou o Testamenteiro daquele carregamento de farinha de trigo, de Boston, que não chegava, nem chegaria nunca: mero pretexto para ocultar as atividades de quem era agente da franco-maçonaria de São Domingos, com o outro, o mulato Ogê, magnetizador e bruxo, a quem denunciara à Junta Médica por haver enganado aqueles jovens com extravagantes truques de cuja inutilidade se convenceria Estêvão, qualquer dia, quando a doença voltasse a se manifestar. E agora passava Dom Cosme à ofensiva, girando em torno do francês como um moscardo enfurecido: “Estes são os homens que rezam a Lúcifer; estes são os homens que insultam Cristo em hebreu; estes são os homens que cospem no crucifixo; [...]. Era ralé que se infiltrava em toda a parte, combatendo a fé cristã e a autoridade dos governos legítimos, em nome de uma “filantropia”, de uma aspiração à felicidade e à democracia, que só ocultavam uma conjura internacional para destruir a ordem estabelecida”. E, encarando Victor, gritou-lhe tantas vezes a palavra “Conspirador”, que, esgotado pelo esforço, ficou de voz interrompida por um acesso de tosse. [...] “Tenho conhecimento que em breve haverá uma busca policial contra franco-maçons e estrangeiros indesejáveis. Terminaram as estúpidas tolerâncias de outros dias.” E pegando o chapéu: “Enxotem este aventureiro desta casa antes que todos aqui sejam presos!” (CARPENTIER, 1989b, p. 71-72)
O conflito entre Victor Hugues e Dom Cosme desvela os reais interesses de ambos os personagens nas propriedades da família dos órfãos. Os jovens criollos se veem perplexos diante da escandalosa revelação e agora se interessam em descobrir quem realmente é Victor Hugues. Em paralelo aos conflitos entre a administração colonial espanhola e a franco-maçonaria, a narrativa pontua o choque entre a Junta Médica oficial e a “medicina ilegal” do feiticeiro Ogê. A revelação da identidade política de Victor Hugues instaura um momento de aceleração da narrativa que conduzirá a “conversão” dos jovens ao ideário revolucionário franco-maçom.
Victor, de repente, assumindo um tom sério, começou a falar sem ênfase do motivo que o trouxera à terra: negócios, antes de tudo [...]. “E é muito honesto este negócio?” perguntou Sofia, intencionalmente. “É um meio de lutar contra a tirania dos monopólios” – disse o outro – a tirania deve ser combatida sob todas as suas formas.” E urgia começar-se por algo, porque ali as pessoas estavam como que adormecidas, inertes, vivendo num mundo intemporal, à margem de tudo, suspenso entre o fumo e o açúcar. A “filantropia”, ao contrário, era poderosíssima em Sant-Domingue, onde se estava a par do que acontecia no mundo. [...] A revolução está a caminho e ninguém poderá detê-la”, disse Ogê, com a impressionante nobreza de inflexão que sabia por em certas afirmativas. Revolução, pensava Estêvão, que se limitava às notícias de quatro linhas, relativas à França, publicadas no jornal do lugar, entre um programa de comédias e um anúncio de vendas de guitarras. [...] “Para começar – dizia Ogê –, um decreto recente autoriza um homem da minha cor (e com o dedo mostrava as faces, mais escuras que a testa) a desempenhar, lá, qualquer cargo público. [...] E continuamos sem notícias porque os governos têm medo, um terror pânico ao fantasma que percorre a Europa” – concluiu Ogê em tom profético. – “Chegaram os tempos, amigos, chegaram os tempos”. [...] Dois dias se passaram com falas de revoluções, assombrando-se Sofia do apaixonante que era o novo tema de conversa. Falar de revoluções, imaginar revoluções, situar-se mentalmente no seio de uma revolução é se tornar um pouco dono do mundo. Os que falam de revolução são levados a fazê-la. É tão evidente que tal ou qual privilégio deve ser abolido, que se trata de aboli-lo; é tão certo que tal opressão é odiosa, que se ditam medidas contra ela; é tão claro que tal personagem é um miserável, que se é levado a condená-lo à morte, por unanimidade. E, uma vez saneado o terreno, começa-se a construir a Cidade do Futuro. Estêvão se pronunciava sobre a supressão do catolicismo, com a instituição de castigos exemplares para aquele que rendesse culto aos ídolos (CARPENTIER, 1989b, p. 71-80).
Em tom profético, o feiticeiro-maçom Ogê anuncia que um “fantasma ronda a Europa”, em clara alusão ao Manifesto Comunista. Curioso imaginar que a afirmativa de Ogê não se configura, de fato, como uma anacronia histórica, mas como uma proposital intromissão afroamericana no pensamento crítico europeu. Alejo Carpentier registra, assim, na imaginação literária, a influência do jacobinismo antilhano no próprio desenvolvimento da luta de classes na França. Ogê tem a capacidade de enxergar o “fantasma” que ronda a Europa e, de fato, tal afirmação soaria completamente verossímil ao feiticeiro não fosse o fato de sabermos que se trata de uma alusão ao Manifesto Comunista, de Karl Marx. Para um leitor que não conhece o texto de Marx e Engels, a frase de Ogê poderia ser tomada como uma expressão original ou “autêntica” de sua religiosidade africana. Alejo Carpentier estava preocupado em identificar a produção cultural antilhana de forma ativa na dinâmica dos conflitos políticos que constituem a experiência moderna no mundo. Essas e outras “brincadeiras” são características das narrativas de Alejo Carpentier.
A perseguição colonial determina o destino dos personagens. Victor Hugues e Estêvão partem em fuga para Paris. Na capital francesa, Estêvão vivencia a agitação cultural e política de um povo livre que tomara a rua em festa. “A revolução havia comunicado uma nova vida à rua – a rua de imensa importância à Estêvão, já que nela vivia e dela contemplava a revolução” (CARPENTIER, 1989b, p. 100). O romance concentra-se, então, na relação entre Victor Hugues e o jovem Estêvão, narrando a aproximação do primeiro com o ideário jacobino de Robespierre e a iniciação intelectual do segundo com a maçonaria. Estêvão passa a ser reconhecido como “estrangeiro amigo da liberdade” pela filantropia maçônica; tudo na capital francesa parece-lhe exótico e pitoresco.
Tirado de repente das modorras tropicais, tinha a sensação de estar em um ambiente exótico – essa era a palavra –, de um exotismo muito mais pitoresco do que sua terra de coqueiros e açúcar, onde havia crescido sem nunca pensar que o visto pudesse ser exótico para alguém(CARPENTIER, 1989b, p. 100).
Para o jovem, os símbolos, as bandeiras e a indumentária nacionalista republicana se apresentavam como algo inteiramente diferente. “Exóticos – exóticos de verdade – lhe pareciam os mastros e bandeirolas, as alegorias e flâmulas; os cavalões de ancas largas, como que saídos de um carrossel imaginado por Paolo Ucello” (CARPENTIER, 1989b, p. 101).
Nos círculos revolucionários, Estêvão se destaca como estrangeiro amante da liberdade, aceito pela sociedade francesa republicana. Assim, o jovem formula uma ideia disparatada, mas que não nos parece inocente na narrativa: “um dia tomou a palavra no clube dos jacobinos, deixando atônitos os presentes com a ideia de que, para levar a revolução ao Novo Mundo, bastava incutir o ideal de liberdade nos jesuítas que, expulsos dos Reinos do Ultramar, andavam errantes pela Itália e Polônia” (CARPENTIER, 1989b, p. 103). Ao sugerir que a revolução seria levada ao Novo Mundo a partir da combinação heterodoxa do jesuitismo com o jacobinismo francês, Alejo Carpentier, através dos olhos de Estêvão, observa tal combinação em movimentos políticos e sociais na América Latina do século XX. Seria correto afirmar que o escritor cubano não só estava a par do desenvolvimento da Teologia da Libertação nas décadas de 1950 e 1960 na América Latina, como estava a par, observando as bases sociais do próprio movimento revolucionário cubano 26 de Julho, da combinação cultural heterodoxa entre as raízes tomistas com o liberalismo radical no curso da Revolução Cubana.11 Essas análises e chistes com o tempo histórico são recorrentes na narrativa de Alejo Carpentier. Atuam como artifícios críticos que enredam o leitor em uma reflexão sobre a particularidade histórica da experiência moderna na América Latina.
A fissura e divergência entre as posições políticas de Victor Hugues e Estevão aumenta na medida em que o primeiro se aproxima da “moral jacobina” e se afasta da maçonaria, classificando-a como contrarrevolucionária. A cosmogonia espiritualista maçônica passa a ser classificada por Hugues como “especulações esotéricas”. Alejo Carpentier se preocupa em relatar o processo revolucionário em sua dinâmica e contradição, demonstrando avanços e recuos sociais que muitas vezes se confundem em “uma política em constante mutação, contraditória, paroxística, devoradora de si mesma” (CARPENTIER, 1989b, p. 115). A imagem da “política devoradora de si mesma” replica a metáfora do engendramento cultural que conduz o “universo de simbioses” no “Mediterrâneo americano”. Dessa forma, a narrativa desenvolve o caráter muitas vezes inverossímil (ou “real maravilhoso”) no interior da própria experiência revolucionária francesa. El siglo de las luces articula fatos históricos que soam insólitos e absurdos na contemporaneidade, produzindo uma dada experiência de estranhamento que se apresenta como uma característica de sua narrativa. Tal é o assombro de Estêvão quando descobre que: “a Revolução havia forjado homens sublimes, [...] mas dera asas, também a uma multidão de fracassados e de ressentidos, exploradores do Terror que, para dar mostras de alto civismo, haviam encadernado textos da Constituição com pele humana” (CARPENTIER, 1989b, p. 131). Em seguida conclui: “não eram lendas; ele havia visto esses horríveis livrinhos cobertos com um couro pardo, poroso demais – com algo de pétala murcha, de papel grosso, de camurça e de lagarto – que mãos enojadas se negavam a tocar” (CARPENTIER, 1989b, p. 131).
A representação da moral jacobina de Victor Hugues, guiada pela idealização da imagem do “Incorruptível”, tal como sublinha diversas vezes a narrativa referindo-se ao apelido popular de Robespierre, vai aos poucos demarcando as feições autoritárias na caracterização do personagem que assume, enfim, a empresa jacobina nas Américas levando consigo o Decreto 16 Pluvioso e duas máquinas: a guilhotina e a tipografia. “Com qualquer coisa de rito” (CARPENTIER, 1989b, p. 132), a guilhotina é montada na proa da embarcação, pondo-se no lugar simbólico ocupado no passado pelo crucifixo. Em Guadalupe, após vencer uma terrível guerra contra os ingleses, garantida pelo recrutamento militar de africanos libertos pelo Decreto 16 Pluvioso, Victor Hugues traz a guilhotina para o centro da principal praça da ilha, renomeada como Praça da Vitória. A vitória francesa incide na renomeação de todos os lugares e monumentos da cidade, que a narrativa faz questão de enfatizar, apontando o caráter voluntarioso ou artificial do processo de nomeação e construção da memória. Em sentido análogo, em pouco tempo “seria derrubada a Igreja [...], para apagar o rastro de idolatria” (CARPENTIER, 1989b, p. 150). Ao longo de El siglo de las luces é possível observar diversas descrições do maquinário “científico” e geométrico, da guilhotina jacobina, “como um teorema”. A guilhotina passa a ocupar o centro da vida pública de Guadalupe. Destacamos um trecho abaixo que consideramos representativo da narrativa. Interessa-nos observar como o autor enfatiza a dominação simbólica ou mesmo “mágica” (o fetiche) que a Máquina exerce sobre os homens, como um ídolo moderno que estrutura todas as relações sociais.
Nesse dia iniciou-se o Grande Terror na ilha. A Máquina já não parava de funcionar na Praça da Vitória, aprestando o ritmo dos cortes. [...] A guilhotina começou a centralizar a vida da cidade. O gênio do Mercado foi-se mudando para a bela praça portuária, com tendas ao sol, apregoando-se, a qualquer hora, entre quedas de cabeças ontem respeitadas e aduladas, o filhó, o pimentão, a fruta-do-conde e a massa folhada, a graviola e o pargo fresco. E como o lugar era muito apropriado para tratar de negócios, transformou-se numa bolsa de valores móvel, de escombros e coisas abandonadas pelos donos, onde se podia comprar, em leilão, uma grade, um pássaro mecânico, um resto de aparelho de jantar chinês. E trocavam-se arreios por caçarolas; baralhos por lenha; relógios de grande estilo por pérolas da Ilha Margarita. [...] O patíbulo se convertera no centro de uma banca, de um foro, de uma perene almoeda. As execuções já não interrompiam nem regateios, porfias ou discussões. A guilhotina passara a ser parte do habitual e do cotidiano. Vendiam-se entre salas e orégano, guilhotinas minúsculas, de enfeite, que muitos levavam pra casa. Os meninos, aguçando o engenho, construíam pequenas máquinas destinadas a decapitar gatos. Uma parda bonita, muito distinguida por um Lugartenente de De Leyssegues, oferecia licores aos convidados em frascos de madeira de forma humana, que ao serem colocados em uma balança atiravam as tampas – com grandes rostos pintados, é claro – graças à uma lâmina de brinquedo, movida por um pequeno carrasco automático. Mas, apesar das muitas novidades e diversões trazidas naqueles dias à vida pastoril e pacata da ilha, alguns podiam observar que o Terror começava a descer os degraus da condição social, chegando já aos rés-do-chão. Sabedor que inúmeros negros, na comarca de Abysses, se negavam a trabalhar no cultivo de fazendas expropriadas, alegando que eram homens livres, Victor Hugues fez prender os mais indóceis, condenando-os à guilhotina. Estêvão observava com certa estranheza que o Comissário, depois de haver apregoado tanto a sublimidade do Decreto 16 Pluvioso do Ano II, não demonstrava a maior simpatia pelos negros. “Já é bastante que o consideremos cidadãos franceses”, dizia em tom ríspido. [...] Os soldados da República, por outro lado, muito atraídos à carne parda, quando se tratava de mulheres, não perdiam a oportunidade de dar pauladas e açoitar os negros a qualquer pretexto, reconhecendo, no entanto, que alguns, como um leproso corpulento chamado Vulcano, chegavam a ser magníficos artilheiros. Irmanados na guerra, negros e brancos se dividiam na paz. No momento, Victor Hugues decretara trabalho obrigatório. Todo o negro, acusado de preguiçoso e desobediente, discutidor ou rebelde, era condenado à morte. E como se tinha que estender o escarmento a toda a ilha, a guilhotina, tirada da Praça da Vitória, começou a viajar, a ter itinerários, a excursionar (CARPENTIER, 1989b, p. 161-162).
Na alegoria de Alejo Carpentier, a guilhotina passa a mediar todas as relações sociais na ilha. Em torno dela estrutura-se uma “bolsa de valores móvel” e vende-se todo o tipo de mercadorias. A guilhotina representa a constituição da autoridade política em Guadalupe. Para Victor Hugues já não importa mais exatamente seu antigo ideário libertário ou uma reflexão ética sobre sua conduta política. Para Estêvão, Victor Hugues deixou-se embriagar pelo poder e a “indumentária subiu-lhe à cabeça”. “Luzindo todos os distintivos de sua Autoridade, imóvel, pétreo, com a mão direita apoiada nos montantes da Máquina, Victor Hugues se havia transformado, repentinamente, numa Alegoria” (CARPENTIER, 1989b, p. 139). Tornado homem de poder e de ação, Hugues cumpre sua missão política e, em nome da manutenção da ordem, exerce sua autoridade instituída, independentemente de qualquer coisa. Estêvão, por sua vez, embora subordinado a Hugues, atuando nos corsários jacobinos como tradutor e tipógrafo do Decreto 16, vivencia o recrudescimento autoritário da revolução francesa e suas contradições práticas através de ambivalentes conflitos interiores. Como um intelectual, o personagem observa: “Sou um polemista (...). Polemista, porém, comigo mesmo, o que é pior” (CARPENTIER, 1989b, p. 136).
A condição intelectual de Estêvão implica o personagem na vivência da indecidibilidade e contradição entre “dois mundos”. No curso do processo histórico, o clima inicial de confraternização geral promulgado pela Revolução Francesa cede espaço ao empoderamento nacionalista do maquinário terrorífico. A condição de “estrangeiro amigo da liberdade” é substituída pela condição de estrangeiro propriamente dito, ou até inimigo da Revolução. O viver entre “dois mundos” implica a condição latino-americana diante da Europa, mas também a indecidibilidade de Estêvão diante do processo de secularização que media os conflitos entre o poder secular e o poder religioso. Desterrado de sua condição criolla original, e não exatamente reconhecido em sua condição revolucionária, o personagem ocupa um entre-lugar de difícil classificação; um lugar que não respeita as dicotomias entre “novo” e “velho”, nem as definições de “nacional” e “estrangeiro” impostas pela repressão colonial espanhola e pela Revolução Francesa. Estêvão vivencia sua condição como se estivesse em constante exílio. “Fazia tanto tempo que Estêvão não se encontrava com Cristo que tinha a impressão de cometer um ato intimamente fraudulento, ao olhá-lo agora, de bem perto, [...] sem permissão das autoridades, [como se voltasse] a uma pátria comum, onde fora desterrado” (CARPENTIER, 1989b, p. 233). Alejo Carpentier está preocupado em expressar, através das contradições vivenciadas pelo personagem “polemista”, uma imagem verossímil da condição particular do intelectual latino-americano.
A última parte do romance El siglo das luces narra a fantasia absolutista de Victor Hugues na Guiana Francesa, para onde foram deportados inconvenientes revolucionários jacobinos e onde será, enfim, reestabelecida a escravidão africana, processo que será acompanhado de perto por Sofia. As descrições de Alejo Carpentier sobre os jacobinos franceses deportados são permeadas de imagens contraditórias e violentas. “Dava-se o caso que os últimos jacobinos, perseguidos na França, levantavam a cabeça na América, inexplicavelmente favorecidos pela outorga de poderes e nomeações oficiais” (CARPENTIER, 1989b, p. 231). Em outra passagem, a narrativa contempla algumas imagens paradoxais que expressam a especificidade da experiência histórica americana: “Quatro grandes rios da Guiana haviam emprestado os nomes índios a vastos cemitérios de homens brancos – muitos deles mortos por terem se conservado fiéis a uma religião que o homem branco se esforçava em inculcar nos índios da América, há quase três séculos” (CARPENTIER, 1989b, p. 248). Ao fim da narrativa, os próprios jacobinos decadentes vivem absolutamente inseridos na lógica colonial escravista e em fantasias de poder e mando alimentadas pela nostalgia de tempos passados quando estes lideravam exércitos e inflamavam as massas. Para Alejo Carpentier, a restauração da escravidão faz parte da própria dinâmica revolucionária francesa. A mesma metáfora do furacão anuncia a restauração escravista.
Como um grande e tremendo trovejar de verão, anunciador dos furacões que enegrecem o céu e derrubam cidades, a bárbara notícia repercutiu em todo o mundo do Caribe, levantando clamores e incendiando tochas; era promulgada a Lei de 30 floreal do Ano X, pela qual se restaurava a escravidão nas colônias francesas da América, ficando sem efeito o Decreto de 16 Pluvioso do Ano II. Houve um imenso regozijo de proprietários, fazendeiros, terratenentes, depressa inteirados dos que lhe interessava (CARPENTIER, 1989b, p. 333).
Circundados por uma natureza tropical violenta que não favorece adaptação, agora os jacobinos franceses se encarregam da empresa escravista. Victor Hugues já não mais ostenta o retrato de Robespierre e sua “Indumentária” ritualística do poder serve a França Napoleônica.
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Notas
Autor notes
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