Resumo: O presente trabalho trata de uma reflexão sobre o tema da Ditadura Militar no Brasil, buscando inquirir qual a base de Poder utilizada pelo Regime para manter-se no controle do Estado durante mais de vinte anos. Possui como objetivo geral compreender os mecanismos legais usados pelo Governo Militar para a manutenção do Poder político. Especificamente, objetiva-se comparar brevemente os sistemas autoritários do cone sul durante os anos 1960-1970, bem como quer-se analisar a produção normativa preferencial do sistema despótico, a fim de descrever os malabarismos na legislação. Por fim, pretende compreender o longo processo de transição para a Nova República. Para tais intentos, utiliza-se o método de abordagem dedutivo, e os métodos de procedimento histórico e monográfico, combinados às técnicas de pesquisa bibliográfica e documental, mediante revisão da literatura produzida sobre o tema. Como resultados esperados, constatam-se o uso do Direito segundo os interesses momentâneos dos ocupantes da alta Administração Federal, as manobras para enfraquecer as oposições e que a transição negociada durante a década de 1980 gerou uma democracia outorgada/ concedida pelos comandantes militares.
Palavras-chave:ditaduraditadura,militaresmilitares,poderpoder,regimeregime,transiçãotransição.
Resumen: El presente trabajo constituye una reflexión sobre la dictadura militar en Brasil (1964-1985) y busca determinar cuál es la base de poder utilizada por el Régimen para mantener el control del Estado durante más de veinte años. Tiene como objetivo general comprender los mecanismos legales usados por el gobierno militar para conservar el poder político. Compara brevemente los sistemas autoritarios del Cono Sur durante los años 1960-1970 y analiza la producción normativa preferente del sistema despótico, a fin de describir los malabarismos de la legislación. Por último, pretende entender el largo proceso de transición a la llamada Nueva República de Brasil. Para lograrlo, se hace uso del método de enfoque deductivo y los métodos de procedimiento histórico y monográfico, combinados con las técnicas de búsqueda bibliográfica y documental, mediante la revisión de la literatura existente sobre el tema. Como resultados esperados, se constata el uso del derecho según los intereses momentáneos de los miembros de la alta administración federal, las maniobras para debilitar a la oposición y que la transición negociada durante la década de 1980 generó una democracia otorgada/concedida por los comandantes militares.
Palabras clave: dictadura, militares, autoritarismo, transición negociada, legislación.
Abstract: The present article reflects on the military dictatorship in Brazil (1964-1985), seeking to inquire as to the basis of power used by the Regime to retain State control for over 20 years. The general aim is to understand the legal mechanisms used by the military government to maintain public power. A brief comparison is made between the authoritarian systems of the Southern Cone during the 1960s, analyzing the preferred regulatory production of the despotic system, in order to describe the juggling acts performed in the legislation. Finally, the article aims to comprehend the lengthy process of transition to the New Republic. To do so, the deductive approach method is used, along with the historic and monographic procedure methods, combining the techniques of bibliographic and documentary research by means of a review of the literature produced on the subject. As expected, the results demonstrate the harnessing of the Law according to the momentary interests of the occupants of the upper tiers of the federal administration, the maneuvers employed to weaken the opposition, and that the transition negotiated during the 1980s generated a form of democracy granted/conceded by the military commanders.
Keywords: Dictatorship, soldiers, authoritarianism, negotiated transition, legislation.
Résumé: Le présent article se veut une réflexion sur la dictature militaire au Brésil (1964-1985) pour tenter de savoir sur quelle base de pouvoir le régime a pu se maintenir à la tête de l’État pendant plus de vingt ans. L’objectif général est de comprendre les mécanismes juridiques utilisés par le gouvernement militaire pour conserver son pouvoir politique. On comparera brièvement les différents systèmes autoritaires du Cône Sud durant les années 1960-1970 avant d’analyser la production normative privilégiée par le système despotique et de décrire les jonglages opérés avec la législation. Il s’agira enfin de comprendre le long processus de transition ayant mené à la Nouvelle République. On utilisera à cette fin l’approche déductive et les méthodes de procédure historique et monographique, alliées aux techniques de recherche bibliographique et documentaire, pour passer en revue la littérature déjà produite sur le sujet. Nous avons pu ainsi constater un usage du droit en fonction des intérêts du moment des occupants de la haute administration fédérale et des manœuvres visant à affaiblir les oppositions. On verra enfin que la transition négociée durant les années 1980 a généré une démocratie octroyée/concédée par le commandement militaire.
Mots clés: dictature , militaires , autoritarisme , transition négociée , législation.
摘要: 本文对巴西军事独裁统治(1964-1985)进行了反思,试图探讨该政权得以控制国家二十多年的权力基础。本文的目标是了解军政府用于维护其政治权力的法律机制。它简要地比较了1960年至1970年期间其它南锥体国家的独裁制度,发现军事政府喜好利用立法手段,对社会进行规范化管理。本文分析了巴西新共和国的漫长的过渡进程。为此目的,我们使用演绎法和专题讨论方法,查阅有关该主题的文献。正如所预期的结果,我们看到巴西军事政府擅长利用法律手段维护其自身利益,削弱反对派。在1980年代的权力过渡的谈判中,军方以法律的形式,实现了由军事指挥官批准/授予的民主。
關鍵詞: 独裁, 军人, 权威主义, 权力过渡的谈判, 立法.
Artigos
Ditadura Militar no Brasil: dos instrumentos jurídicos ditatoriais para a democracia outorgada
La dictadura militar en Brasil: dos instrumentos jurídicos dictatoriales para la democracia otorgada
The Military Dictatorship in Brazil: From the dictatorial legal instruments to the democracy granted
La dictature militaire au Brésil : des instruments juridiques dictatoriaux à la concession de la démocratie
巴西的军事独裁:从利用法制手段的独裁到专制授予的民主

Recepção: 02 Abril 2019
Aprovação: 14 Agosto 2019
O presente trabalho versa sobre o período de exceção instaurado pelo Golpe de Estado desferido contra o então Presidente João Goulart na segunda metade do século XX, centrando seu estudo tanto na construção do aparato normativo que serviu de base de Poder ao Regime quanto no enfraquecimento do mesmo e consequente processo de redemocratização no Brasil.
Não obstante a fase que se seguiu a 1964 ser marcada pela truculência e pela violência perpetrada pelos agentes do Estado ditatorial com o contumaz vilipêndio a direitos humanos e arbítrios de toda sorte (prisões abusivas, violação de lares e correspondências sem autorização judicial, torturas de suspeitos de subversão e cassação do mandato de políticos opositores, por exemplo), a Ditadura brasileira alicerçou-se no Direito, utilizado segundo os interesses casuísticos dos chefes da insurreição. Nos primeiros dez anos do Regime, militares e juristas construíram uma larga estrutura jurídica destinada a atribuir legalidade às ações do Governo Militar e a permitir o seu amplo domínio sobre os setores político, econômico e social da nação.
Diante do exposto, a presente pesquisa questiona: como o Regime autoritário construiu a sua base de Poder e obteve sustentação para seus atos de exceção? Para responder a tal intento, o trabalho divide-se em três eixos: em primeiro plano, objetiva-se discorrer sobre o conceito e as tipologias dos regimes políticos existentes no intuito de desenvolver um raciocínio ordenado acerca da lógica de funcionamento dos sistemas autoritários, principalmente o vigente no Brasil na segunda metade do século passado.
Em seguida, intenta-se depreender os instrumentos jurídicos utilizados pelo ordenamento repressivo e a legalidade conferida por eles à ordem político-institucional instaurada com o golpe de 1964, conferindo-se igualmente as manipulações na legislação, sobretudo a eleitoral. Para tal desiderato, explora-se a figura dos Atos Institucionais enquanto expressões máximas da produção jurídica dos Governos Militares, com ênfase nas principais disposições dos Atos de número 1, 2, 4 e 5.
No terceiro momento, busca-se explicar a derrocada da Ditadura mediante o colapso das sucessivas tentativas dos militares em manterem-se no Poder e o fortalecimento dos setores antagonistas à tirania, a fim de se compreender as mudanças na correlação de forças entre situação e oposição que propiciaram a transição política negociada entre as elites civis e militares, com pouca atuação direta do povo neste processo.
Em relação à metodologia, adota-se uma abordagem dedutiva, partindo-se de uma análise geral da conformação dos regimes políticos existentes para se entender as pontualidades do sistema jurídico-institucional implantado com o levante de 1964 e seus mecanismos legais permitidores do exercício desmedido do Poder. Escolhem-se os métodos de procedimento histórico e monográfico, porque mais adequados à pesquisa de conotação historiográfica. A necessidade de expor as temáticas há muito estudadas pelas Ciências Jurídica, Política e Histórica exige a adoção das técnicas bibliográfica e documental, na qual utilizam, em perspectiva interdisciplinar, parte da produção normativa ditatorial e admite como referencial teórico a literatura desenvolvida por juristas, cientistas políticos e historiadores inclinados à investigação dos assuntos ora em análise.
Em primeiro horizonte, interessa neste artigo estudar as formas de se alcançar e dispor (d)o Poder. Logo, por opção metodológica, oportuno é refletir de início sobre os conceitos de regimes políticos a partir dos caracteres que lhes são ínsitos em nível geral, para, em ato contínuo, aferir sua configuração no caso brasileiro nos anos que se seguiram a 1964.
Na visão de Silva (2012, p. 125), regime político é um “complexo estrutural de princípios e forças políticas que configuram determinada concepção do Estado e da sociedade, e que inspiram seu ordenamento jurídico”. De igual forma, que “é comumente aceita a distinção entre três regimes: o democrático, o totalitário e o autoritário” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 45).
Os totalitarismos manifestaram-se em ideologias extremistas, quer sejam de esquerda como no stalinismo soviético, quer sejam de direita, a exemplo do nazismo (Alemanha) e do fascismo (Itália). Uma de suas características de maior destaque foi a centralização total do Poder nas mãos de um líder cultuado (VICENTINO, 2007) ou de um grupo, viabilizando a maximização de um aparato estatal capaz de impor a ideologia oficial apregoada pelo partido único que detinha o controle do Governo. O fim colimado era claro: homogeneizar os segmentos sociais e dominar os cidadãos pois, nesses sistemas:
[...] o Estado, ou melhor, o aparelho do poder, tende a absorver a sociedade inteira. Neles, é suprimido não apenas o pluralismo partidário, mas a própria autonomia dos grupos de pressão que são absorvidos na estrutura totalitária do poder e a ela subordinados. O poder político governa diretamente as atividades econômicas ou as dirige para seus próprios fins, monopoliza os meios de comunicação de massa e as instituições escolares, [...] penetra em todos os grupos sociais e até na vida familiar [...] (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1998, p. 101).
De outra banda, nascida com os atenienses e resgatada sob o binômio participação - representação pelas Revoluções Burguesas dos séculos XVII, XVIII e XIX, a democracia assenta-se, dentre outros, nos pilares de 1) separação de Poderes do Estado; 2) Limitação ao poder dos governantes, e 3) sufrágio periódico para escolhas de representantes. Em uma concepção formalista, Arturi (2011, p. 13) define-a como um “regime político cuja base fundamental é a livre competição pacífica pelo Poder e a garantia das liberdades civis fundamentais”. Sendo esse regime de governo um termo plurívoco que admite diferentes conotações, Bonavides (2000, p. 346) disserta:
[...] distinguem-se, na história das instituições políticas, três modalidades básicas de democracia: a democracia direta, a democracia indireta e a democracia semidireta; ou, simplesmente, a democracia não representativa ou direta, e a democracia representativa - indireta ou semidireta -, que é a democracia dos tempos modernos.
Em relação à terceira espécie de regimes políticos anteriormente enunciados, Bobbio, Matteucci e Pasquino (1998, p. 100) assim aduzem:
Em sentido generalíssimo, [...] os regimes autoritários se caracterizam pela ausência de Parlamento e de eleições populares, ou, quando tais instituições existem, pelo seu caráter meramente cerimonial, e ainda pelo indiscutível predomínio do poder executivo. No segundo aspecto, os regimes autoritários se distinguem pela ausência da liberdade dos subsistemas, tanto no aspecto real como no aspecto formal, típica da democracia. A oposição política é suprimida ou obstruída. O pluralismo partidário é proibido ou reduzido a um simulacro sem incidência real.
Partindo desta definição, observa-se que os autoritarismos operam com hibridismos dos dois sistemas mencionados inicialmente: o grupo ocupante do Poder opta por manter as instituições liberais pré-existentes e as coloca sob seu permanente controle, incorporando aos organismos democráticos traços significativos de elementos tirânicos. Atinge-se o resultado pretendido através da positivação de regras que permitem aos mandatários valerem-se do aparato estatal para perseguir opositores, eliminar inimigos, tolher condutas e impor ordens à sociedade, desde a exaltação ufanista à pátria até o quase desaparecimento da liberdade de expressão dos cidadãos, conforme visto na implantação da censura prévia a novelas e músicas entre as décadas de 1960 e 1980 no Brasil.
Destarte, se nos sistemas democráticos a forma de ascender ao Poder acontece por intermédio da escolha popular consagrada no voto, nos totalitarismos e nos autoritarismos quase sempre ocorre um processo de ruptura institucional e desobediência aos preceitos constitucionalmente previstos, onde indivíduos ou grupos conquistam o Poder do Estado através de golpes ou revoluções de legitimidade questionável.
Foi esta a realidade vivenciada, grosso modo, por nações da zona austral da América do Sul em meados do século pretérito, no qual setores mais ou menos articulados impuseram um regime de força sobre o império da legitimidade institucional.
Posto isso, passa-se ao necessário estudo comparativo dos principais regimes autoritários que se proliferaram em décadas pretéritas na porção meridional do continente americano.
Neste subitem, realiza-se o imperioso estudo analítico dos sistemas opressores impostos no Brasil e em alguns dos seus países fronteiriços. Com isso, busca-se delinear recortes paralelos onde se vejam as similitudes e, sobremodo, ressaltem-se as peculiaridades do caso brasileiro.
A segunda metade do século passado foi marcada pela proliferação de regimes autoritários em países sul-americanos, a exemplo do Brasil (1964), Chile (1973) e Argentina (1976). Neles, respeitadas as especificidades locais, os militares deflagraram golpes de Estado que romperam com as ordens constitucional e institucional vigentes à época, num movimento de substituição das premissas basilares do Estado de Direito pela busca a todo (e qualquer) custo da segurança nacional.
Neste diapasão, Pereira (2011) traça algumas distinções entre as três ditaduras localizadas no cone sul a partir da adoção dos parâmetros “tratamento conferido aos subversivos” e “relação golpistas versus Judiciário”.
Refere o autor que, no Chile, o despotismo do General Augusto Pinochet instituiu tribunais de guerra onde opositores eram vistos como inimigos, sendo submetidos a julgamentos por crimes marciais. Usurpou-se a função judiciária à medida que se moldavam os regramentos judiciais à imagem e semelhança das tradições militares.
Na sequência de sua explanação, Pereira (2011) assinala que, no caso argentino, a delegação da missão repressiva às autoridades policiais regionais fomentou um sistema de extralegalidade a partir do abandono total dos trâmites judiciais e da abdicação dos procedimentos previstos nas leis processuais. A tradição de conflitos entre juízes e militares permitiu a escancarada atuação destes últimos à margem da Lei, sobrepondo suas ações à competência dos verdadeiros agentes jurisdicionais do Estado.
Já o caso brasileiro operou-se em sentido menos tensional. A força castrense (direita conservadora) e alguns magistrados paisanos (direita liberal) comungavam das mesmas preocupações no período pré-64, tendo por consenso que somente a “mão de ferro” de uma autoridade forte poderia salvar o país da sindicalização. Em tempos de avanço do “subversivismo bolchevique”, não havia outra forma, para eles, de defender a pátria e os valores familiares senão pela via repressiva.
Enquanto chilenos e argentinos excederam o uso da violência para esmagarem adversários sem qualquer pudor e buscaram legitimação no atributo da força, vilipendiando, assim, os direitos fundamentais inerentes a todos os seres humanos, a Ditadura Civil-Militar brasileira enveredou por caminhos de valorização procedimental: formalizou ritos, legalizou o arbítrio e manipulou constantemente a ordem normativa para adequar as leis aos seus interesses, positivando no Direito interno a censura, a repressão e os julgamentos tendenciosos à luz das pretensões verde-oliva.
Além de elaborar um engenhoso aparato jurídico manifesto em decretos, leis eleitorais, Constituição de 1967, emendas constitucionais e, de modo singular, em Atos Institucionais, cujo fim pretendido era garantir “a legalidade do Estado de Exceção”, “uma legalidade instrumental a serviço dos donos do poder” (LIMA, 2018, p. 99), preocuparam-se os militares em preservar as instituições democrático-representativas (LEMOS, 2005, p. 3) do período 1946-1964, custodiando-lhes o funcionamento por meio de ingerências no Judiciário e no Legislativo.
Assim, o sofisticado ordenamento desenhado pelos juristas ligados à insurreição de 1964 trouxe previsibilidade e embasamento no Direito Positivo interno às ações tirânicas dos militares, dentre elas o exponencial reforço na autoridade presidencial, o desrespeito aos direitos políticos de opositores e a relegação das liberdades civis a segundo plano em nome da Doutrina de Segurança Nacional.
Nessa quadra, como será visto doravante, “[...] os objetivos políticos de ocasião, baseados na doutrina de segurança nacional, sempre orientavam a utilização do Direito” (LIMA, 2018, p. 116), pensado e aplicado conforme o alvitre e os desígnios momentâneos da caserna. É o que se passa a demonstrar.
No presente tópico, analisa-se o monumento legal erigido sob os auspícios de Exército, Marinha e Aeronáutica, com ênfase nos cânones jurídicos preferenciais adotados para permitirem o exercício irrestrito do Poder.
Para obterem o comando do Estado, os oficiais recorreram aos atributos da conspiração e da intimidação (que apenas uma instituição com amplo acesso às armas pode transmitir), mas, para permanecerem no controle do Estado Brasileiro, os oficiais de alta patente e seus assessores jurisconsultos elaboraram um sistema normativo que recepcionou os ideais arbitrários e forneceu legitimação aos atos de exceção cometidos em nome do prosseguimento da chamada “Revolução de 64”. Isso porque, conforme o raciocínio de Arendt (1972, p. 31), “jamais existiu um governo exclusivamente baseado nos meios de violência. Mesmo o mandante totalitário, cujo maior instrumento de domínio é a tortura, precisa de uma base de poder [...]”.
Nesta senda, sabedores de que nenhum governo se sustenta com êxito por longo período tão somente pela força das armas, os militares brasileiros almejaram justificar suas ações de “limpeza nacional” e banimento do “perigo vermelho” atribuindo legitimidade ao levante revolucionário às expensas da lei.
A intenção de justificar a coerção exercida com fundamento nos textos legais construiu “um poder político sem limites, pelo qual os princípios do constitucionalismo seriam completamente desconsiderados” (LIMA, 2018, p. 102).
Assim, a “base de poder” especialmente elaborada pelos e para os militares durante os primeiros dez anos do Regime (1964-1974) manifestou-se em estatutos normativos diversos e notadamente peculiares (ARENDT, 1972, p. 31), tais como 17 Atos Institucionais, 104 Atos Complementares, Código Eleitoral, decretos e Constituição de 1967, habilidosamente pensados no intuito de enfraquecer as resistências e aumentar a capacidade de repressão sobre os setores considerados perigosos à nação.
A normatização de regras e procedimentos centrados nos interesses da nova classe dominante (política e ideologicamente) funcionou com uma “lógica liberal associada à práxis autoritária” (TRINDADE, 1994), incorporando elementos de tirania às instituições de tradição liberal-democrática no fito de controlá-las em seu interior. Na mentalidade das Forças Armadas e de seus líderes,
[...] era necessário dar aparência de Estado de Direito à Ditadura” (LIMA, 2018, p. 126), tendo em vista que, “na concepção dos governos militares, ditadura era agir fora da lei. Agir dentro da lei era sinônimo de democracia, mesmo que [...] sua construção ocorresse de maneira ad hoc” (LIMA, 2018, p. 101).
Os regramentos que o Governo castrense positivou no sistema jurídico interno foram diversos e demandariam um estudo de alta complexidade, o que não é o desiderato desta pesquisa. Então, por razões procedimentais, impõe-se a necessidade de analisar os principais instrumentos normativos moldados pelo Regime de 1964 (LIMA, 2018): os Atos Institucionais, com foco nas disposições relevantes dos Atos de número 1, 2, 4 e 5.
Chamados sinteticamente de “AIs”, os Atos Institucionais caracterizaram-se como entidades jurídicas sui generis, próprias dos regimes de exceção, meticulosamente concebidos pelos então detentores da capacidade decisória, estatutos legais munidos de força normativa e voltados à disciplinarização das ordens política, econômica e social instaurada após a deposição de Jango.
A função precípua dos referidos Atos visava ao exercício irrestrito do Poder e à formalização, por aspectos excepcionais e extraconstitucionais, do novo Governo. Por meio dessa construção legal inovadora e introduzida no ordenamento jurídico, os Atos Institucionais pareciam decretos dotados de força supraconstitucional, posto que submeteram o Direito, os Poderes constituídos, a sociedade civil, as instituições liberais e a própria Constituição vigente à vontade dos “donos do Poder” (FAORO, 2012).
Os AI’s permitiram aos agentes do Estado a realização de uma plêiade de ações voltadas à supressão das oposições, à restrição das liberdades de reunião, imprensa e opinião, à instauração da censura aos meios de comunicação, às prisões arbitrárias de suspeitos de sublevação ideológica e à perseguição implacável aos participantes de ligas, organizações e movimentos esquerdistas contrários à situação política (im)posta pelos triunfantes do levante de 1964.
Em verdade, tal invenção no ordenamento pátrio criou uma legalidade paralela à ordem constitucional legitimamente edificada pelo constituinte originário (eleito por sufrágio popular). Houve abrupta reconfiguração no agir e no existir das instituições, em diminuição drástica das competências do Legislativo e do Judiciário e consequente enfraquecimento do Princípio de Separação dos Poderes, uma das bases do Estado de Direito. E não somente isso; por estarem, de fato, acima da Constituição (BEDÊ JÚNIOR, 2013), os Atos Institucionais transferiram de direito o Poder (tradicionalmente concentrado nas mãos das elites civis) para as Forças Armadas. Silva (2011, p. 8) bem explica:
O regime dos atos institucionais constituía legalidade excepcional, ‘formada sem necessidade’, porque voltada apenas para coibir adversários políticos e ideológicos e sustentar os detentores do poder e os interesses das classes dominantes, aliados às oligarquias nacionais [...] Tudo se poderia fazer: fechar as Casas Legislativas, cassar mandatos eletivos, demitir funcionários, suspender direitos políticos, aposentar e punir magistrados e militares e outros. Mas o que ainda era pior é que não havia nada mais que impedisse a expedição de outros atos institucionais com qualquer conteúdo. O regime foi um estado de exceção permanente: pura Ditadura.
“Durante o período de Ditadura Militar vigente até [...] 1985, foram editados dezessete (17) Atos, sendo o primeiro em 09 de abril de 1964 e o último em [...] 1969. Desses, doze (12) deles foram editados num período de apenas onze (11) meses (AI-5 ao AI-17)” (BARCELLOS; SGANZERLA, 2015, p. 115). A partir disso, todo o ordenamento - constitucional ou infraconstitucional - e o próprio Congresso Nacional encontravam sua legitimidade nos AIs. O disposto no preâmbulo do Ato número 1 de abril de 1964 (BRASIL, 1964) identifica o poder revolucionário de 1964 como “poder constituinte”, fonte de onde emanou a sustentação da nova realidade político-legal. Veja-se:
[...] a revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado pelos Comandantes- em- Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica [...] se destina a [...] ditar as normas e os processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício do Poder no exclusivo interesse do país. Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da República [...] resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente Ato Institucional. Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação [...] (BRASIL, 1964, “À Nação”, par. 3).
Já o AI-2, de outubro de 1965 (BRASIL, 1965), determinou a realização de eleições indiretas para os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, sendo-lhe adicionado no mês seguinte o importante Ato Complementar número 4, responsável pela extinção das agremiações políticas em funcionamento durante a fase 1946-1964 - PTB, PSD e UDN, dentre outros menores - e pela consequente instauração do bipartidarismo (BRASIL, 1965). Os conservadores compuseram a situacionista Aliança Renovadora Nacional (ARENA), e os líderes do antigo PTB varguista migraram para o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), uma oposição consentida. “Por isso, [...] por força do Ato Institucional n. 2/65, forçou-se uma experiência bipartidária. Foram dissolvidos os partidos existentes, enquanto se propiciava a criação de apenas dois: ARENA e MDB. Sendo estes marcados pelo artificialismo [...]” (FERREIRA FILHO, 2012, p. 60).
Com efeito, segundo Freire (2014), o Governo Ditatorial não atuou para criar um regime de partido único (igual ao Stalinismo e aos Fascismos) ou tampouco apartidário (qual o Estado Novo). Na tentativa de ludibriar a opinião pública com a aparência de pleno funcionamento das instituições democráticas, imperou a já mencionada “lógica liberal associada à práxis autoritária” (TRINDADE, 1994), ao passo que o regramento político-partidário foi adaptado aos objetivos da caserna.
Na imposição do AI-4, os militares empreenderam manobras a fim de assegurar a aprovação de uma nova Constituição, desta vez elaborada pelos juristas ligados ao Regime, inflando as competências administrativas e legiferantes do Executivo - a esta altura já dotado de maiores prerrogativas de ingerência no processo legislativo, de instituição do regime de urgência para votação de projetos e de monopólio na formulação do orçamento da União. Permitiu-se igualmente a intervenção nos Estados-membros e a centralização político-administrativa a cargo da União. Assim, em que pese haver divergência na doutrina sobre o Texto Constitucional de 1967, parece mais adequado tratá-lo como uma Carta outorgada, porquanto sua elaboração não se deu por representantes do povo eleitos para tal finalidade, mas sim por aqueles que, num “processo usurpatório do poder” (BONAVIDES, 2016, p. 172), se “autoinvestiram na condição de poder constituinte permanente” (LIMA, 2018, p. 106).
A Lei Fundamental de 1967 tratou de unir duas ordens latentemente conflitantes: liberdades civis e arbítrio; direitos fundamentais e doutrina de segurança nacional; prerrogativas de juízes e parlamentares e possibilidades de ingerência do Executivo em todos os órgãos e instituições do Estado. Vê-se que o Texto Constitucional cotejou os Atos Institucionais anteriores, não obstou a edição de Atos posteriores e ainda manteve determinados elementos da fase democrática do pós-Estado Novo. Na lição de Kinzo (2001, p. 3), a Constituição da Ditadura, datada do Governo Castelo Branco:
[...] manteve em funcionamento os mecanismos e os procedimentos de uma democracia representativa: o Congresso e o Judiciário continuaram em funcionamento, a despeito de terem seus poderes drasticamente reduzidos e de vários de seus membros serem expurgados; manteve-se a alternância na Presidência da República; permaneceram as eleições periódicas, embora mantidas sob controles de várias naturezas; e os partidos políticos continuaram em funcionamento, apesar de a atividade partidária ser drasticamente limitada. Em síntese, era um arranjo que combinava traços característicos de um regime militar autoritário com outros típicos de um regime democrático.
A gradativa escalada autoritária e de concentração de Poder, entretanto, não cessou com a Carta de 1967. Embora o documento organizasse e legitimasse a atuação despótica em plano macro, fazia-se necessário responder com mão de ferro à proliferação de manifestações populares contra o novo estado de coisas imposto em 1964, e essa resposta não poderia residir em uma Constituição, moldada (ao menos na justificativa ideológica) para manter a democracia e os postulados liberais indispensáveis à essência do Estado de Direito.
Então, após a proliferação das manifestações populares no ano de 1968 clamando pelo fim do autoritarismo, sobreveio o Ato Institucional de número 5, símbolo-mor da produção jurídica elaborada pelas armas insurretas (BEDÊ JÚNIOR, 2013). O revide oficial aos protestos pelo fim da Ditadura Civil-Militar foi uma resposta dos comandantes militares às manifestações contra o Regime. Mais do que isso, representou o triunfo definitivo da Linha Dura1no Poder (já instalada nas altas esferas da Administração do país desde a posse de Costa e Silva), inaugurando, em referência à obra de Gaspari (2002), uma era de ditadura escancarada.
Oficializou-se o Estado permanente de Exceção por intermédio de um terrorismo perpetrado por agentes de Estado incumbidos da missão de esmagar a luta armada e “caçar” os suspeitos de conspiração comunista; centralizou-se enormemente o Poder na figura do Presidente da República, que podia determinar a qualquer tempo o fechamento do Congresso Nacional, suspender as garantias da magistratura, prender sumariamente os envolvidos com práticas subversivas e cassar os mandatos de políticos oposicionistas. Responsável pela fase mais sombria do Regime, o AI-5 esmagou os poucos direitos fundamentais que ainda restavam à população, a exemplo do Habeas corpus e da inviolabilidade do lar e do sigilo das correspondências dos cidadãos.
A consequência mais sensível, todavia, foi a vigorosa hipertrofia do Poder Executivo, que não hesitou em lançar mãos das prerrogativas postas à sua disposição para subjugar o Legislativo e limitar a atuação do Judiciário. Por meio do Ato de número 5, a Ditadura brasileira inverteu o raciocínio rousseauniano presente em Do contrato social (ROUSSEAU, 2006): desde aquela sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, todo Poder emanava não mais do povo, mas sim do General-Presidente, transformado em autoridade plenipotenciária da nação.
A outorga de 17 Atos Institucionais (seguidos por centenas de Atos Complementares) permitiu a consolidação da insurreição de 1964 e o reforço descomunal no Poder conquistado pelas Forças Armadas.
Contudo, não bastava alcançar o Poder; era preciso mantê-lo. Seguindo uma lógica genuinamente maquiavélica, os militares tutelaram o sistema político-eleitoral (FREIRE, 2014) para isolar cada vez mais a oposição e assegurar as vitórias arenistas no Legislativo federal e nos Estados-membros. As constantes manobras nos estatutos normativos revelam o exercício dessa tutela, como se pôde observar no Código Eleitoral de 1965 e na Emenda Constitucional número 1, de 1969, que diminuiu consideravelmente o número cadeiras na Câmara dos Deputados e instituiu um Colégio Eleitoral para sufragar as eleições ao Executivo. O estratagema proporcionou consideráveis vitórias da ARENA sobretudo em 1966 e em 1970, fato que permitiu à agremiação o predomínio nas duas Casas Legislativas.
Nessa conjuntura, o Poder Executivo e a ARENA aproximaram-se em uma estratégia de mútuos auxílios: em troca do apoio parlamentar, os arenistas ocuparam espaços na Administração Pública e conquistaram por diversas vezes as Presidências da Câmara e do Senado, oferecendo sustentação retórica e votos para os projetos do Governo. Não obstante, relevante destacar que a ARENA não se constituiu em partido do Governo, mas sim no Governo (FREIRE, 2014), porquanto o efetivo controle do Estado residia absolutamente nas mãos das Forças Armadas.
Importante consignar que, à semelhança da maioria dos sistemas tirânicos no curso da história humana, a Ditadura brasileira teve início, meio e fim. O seu começo deu-se com o golpe desferido contra Jango; o apogeu teve duração de uma década, marcada por censura, milagre econômico e poderio inquestionável dos militares; a sua decadência seguiu-se paulatinamente na segunda grande fase do despotismo verde-oliva. É sobre este período que se passa a inquirir.
Traçados os principais pontos para o desenvolvimento do tema, resta-nos, agora, relacionar o colapso do ordenamento repressivo nos últimos dez anos da Ditadura (1974-1984) à prolongada abertura política, cujo ápice ocorreu em 1985.
Os estudiosos do autoritarismo brasileiro nem sempre convergem quanto ao conjunto de fatores que culminaram na bancarrota da República militarizada. Entretanto, impende destacar aqui o que é consenso entre os pesquisadores deste período relativamente recente da história nacional: a abertura foi um processo demasiado longo, “em que se transcorreram 11 anos para que os civis retomassem o poder e outros cinco anos para que o presidente da República fosse eleito por voto popular” (KINZO, 2011, p. 4).
Nessa lógica, a literatura tradicional sobre a Ditadura (ARTURI, 2001; CARVALHO, 2005; FREIRE, 2014) atribui a 1974 o marco inicial do processo de “liberalização” do Regime, simbolizada pela paulatina derrocada da era de generais no Palácio do Planalto. As surpreendentes vitórias dos candidatos emedebistas nas eleições parlamentares do supracitado ano confirmam a tese dos cientistas políticos, pois as conquistas da oposição na Câmara e, sobretudo no Senado, promoveram mudanças no arranjo de forças políticas, fato gerador de óbvio descontentamento no lado opressor.
No sentir de Inácio (2013, p. 38): “[...] a partir do Governo Geisel, alguns direitos civis são devolvidos a título de aproximar o regime de aspectos mais liberais, mantendo, contudo, os principais mecanismos do Governo Autoritário”. A cada triunfo do MDB, o Executivo Militar decretava novas ordens com vistas a tolher a expansão dos parlamentares de orientação democrática.
Desta maneira, se nos períodos finais de seu mandato o Presidente Ernesto Geisel revogou o AI-5 em 1978 como forma de arrefecer o arcabouço dos mecanismos de violência estatal (caminho inexorável para a liberalização do Regime), ele, paradoxalmente, lançou o Pacote de Abril2, uma série de regras político-eleitorais para driblar a oposição e preservar a maioria governista no Congresso Nacional nas eleições de 1978.
Por meio desta manobra no ordenamento legal, aumentou-se o mandato presidencial e retomou-se o número de 420 deputados na Câmara baixa a partir do incremento de representação dos estados de Norte e Nordeste, de notório predomínio das lideranças arenistas. Sobre isso, Fleischer (1980, p. 73) afirma que:
[...] o "pacote de abril" havia sido adotado por se prever uma derrota para a Arena nas eleições de 1978 frente aos resultados das eleições municipais de 1976, onde entendeu-se que o MDB havia crescido muito, principalmente no Centro-Sul. Assim, seguindo este raciocínio crítico, as novas regras do jogo aumentariam as bancadas estaduais no Norte e Nordeste onde a Arena era mais forte e diminuiriam as do Centro-Sul onde o MDB levava mais vantagem. [...] preservando [...] uma ligeira maioria arenista na Câmara Federal. Por outro lado, a adoção das eleições indiretas para uma das duas vagas para o Senado Federal evitaria a composição de uma maioria emedebista, haja vista a eleição de 16 senadores em 22 pelo MDB em 1974.
Os malabarismos na legislação eleitoral asseguraram a maioria governista no Parlamento, mas não impediram o crescimento do MDB, cuja maior expressão de musculatura aconteceu no pleito aos governos estaduais de 1982, que pela primeira vez em muitos anos realizou-se pelo voto direto do povo. O resultado foi avassalador: os candidatos peemedebistas conquistaram nove estados, ante onze da Arena. A partir de então a abertura, embora “lenta e gradual”,3 tornou-se irreversível.
Nesta senda, Arturi (2001) pontua que a redemocratização no Brasil aconteceu em três sucessivas etapas, a saber: início da dissolução do regime autoritário (1974-1985), representada sobremaneira pela revogação do AI-5 em 1978; (re)criação da democracia (1985-1989) e consolidação do novo sistema democrático (eleições de 1989). Inácio (2013, p. 38-39) comunga parcialmente desta linha de raciocínio quando esclarece que:
[...] o processo de transição se coordenou em diversas etapas. É possível citar a normalização da atividade parlamentar, conservação das eleições, revogação de algumas medidas de exceção, a anistia política, reforma partidária, eleições, constituição de uma Assembleia Geral Constituinte, promulgação Constituição de 1988, eleições presidenciais diretas e posse do presidente eleito.
As sequenciais conquistas do MDB nas disputas parlamentares puseram os setores situacionistas em alerta, levando-os a outra manobra: em 1979, o Governo Figueiredo extinguiu as duas legendas existentes desde o AI-2 e permitiu o retorno do pluripartidarismo. A permissão para o funcionamento de vários partidos teve por escopo dividir a oposição em siglas fragmentadas e manter a coesão na base aliada numa legenda única. As finalidades eram óbvias: impedir o predomínio emedebista no Congresso e eleger, num futuro próximo, o sucessor de Figueiredo alinhado à grei governista.
Os mandatários da República novamente erraram a estratégia. Com a proliferação de partidos, surgiram maiores e mais articuladas manifestações populares pelo retorno da democracia. No ABC Paulista, as greves dos metalúrgicos liderados por Luiz Inácio Lula da Silva insuflaram os ânimos dos operários; o Trabalhismo à esquerda de Brizola subiu o tom nas críticas contra o despotismo.
A principal movimentação, contudo, veio do Partido do Movimento Democrático Brasileiro, que se aproximou da sociedade civil e construiu uma agenda progressista (FREIRE, 2014), avessa à tirania e garantidora de direitos básicos à população, além de defender a justiça social e o combate às desigualdades. O alinhamento com o pulsar das ruas permitiu que o PMDB liderasse a luta pela abertura política e colocasse-se como alternativa para resolver os graves problemas surgidos na gestão Geisel (1974-1979) e aprofundados no turbulento Governo de João Figueiredo (1979-1985), a citar o descontrole da inflação e o aumento no custo de vida da população, fomentadores da sensação de que os outrora “revolucionários” haviam perdido a capacidade de dirigir o país, sendo chegada a hora de transmitir o Poder aos civis. Assim,
A crescente insatisfação com a ditadura [...] deixava claro o esgotamento do regime militar. A abertura política e a necessidade de restabelecer a democracia impunham-se ao [...] governo. Os militares, entretanto, pretendiam fazer a transição a seu modo e sob o seu total controle [...] (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 552).
Neste contexto de esfacelamento de apoios à Ditadura, iniciou-se no Brasil um longo processo de abertura política que ocorreu de modo verticalizado mediante intensas negociações entre oposição e Governo. O enfraquecimento dos grupos simpáticos à tirania contrastava com os segmentos populares democratizantes, cujas manifestações pela mudança de regime tornaram-se maciças e frequentes durante o mandato do Presidente Figueiredo.
Mesmo encurralados, os comandantes miliares resolveram subvencionar qualquer modificação no sistema institucional então vigente. Na sua acepção, enquanto defensores da nação, era seu dever participar proativamente das novas configurações políticas e sociais pensadas para o Brasil.
De outro lado, aproveitando-se da expressiva vitória oposicionista nos governos estaduais em 1982 e da propagação dos manifestos pelo fim da fase de exceção, “o inofensivo MDB, criado para ser parceiro da Arena no bipartidarismo de fachada instituído pelo Regime, havia se tornado um instrumento efetivo de oposição democrática, a ser utilizado não apenas na arena eleitoral, mas também no processo político mais amplo” (KINZO, 2001, p. 5). Nesta conjuntura, o deputado federal Dante de Oliveira (PMDB) apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição cujo teor propugnava pela realização de eleições diretas para a Presidência da República já em 1985, PEC originária do movimento das “Diretas Já”.
A mobilização em todos os cantos do país em defesa desta Proposta unificou os mais diversos segmentos ideológicos e sociais para que o povo pudesse escolher seu governante máximo. Embora derrotada no Congresso, a PEC das Diretas manteve a oposição (ou melhor, as muitas oposições, situadas em diferentes partidos desde 1979) articulada em torno do enfrentamento a uma ditadura inerte frente às reivindicações dos cidadãos. Pela primeira vez em muito tempo os setores progressistas da política nacional acreditaram que poderiam ser uma alternativa viável ao militarismo no Governo. A alternativa, porém, só produziria os efeitos desejados caso se levasse a cabo uma simbiose de elementos que combinassem a união do lado oposicionista e o diálogo com os (ainda) detentores do Poder.
A partir disso, correta é a interpretação de Freire (2014) quando descreve a redemocratização brasileira da primeira metade da década de 1980 como sendo um momento marcado por exaustivas articulações entre os membros do Regime e os expoentes da oposição (notadamente Tancredo Neves e Ulysses Guimarães, dentre outros), coordenadores de uma travessia amplamente negociada e lastreada no consenso, verdadeiro “recurso que compatibiliza a evolução-mudança da sociedade política e da consciência cautelar e complexa neste processo” (RAMOS, 1998, p. 78).
As crises internas no PDS favoreceram os segmentos oposicionistas, os quais lançaram a candidatura de Tancredo Neves à Presidência (FREIRE, 2014). No lado governista, “havia dois pré-candidatos disputando a indicação: Paulo Maluf e Mário Andreazza. A obstinação com que o primeiro se lançou na campanha contra o adversário, impondo-lhe uma humilhante derrota partidária, acabou minando a unidade do PDS” (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 557). A dissolução da coesão intrapartidária na sigla do Governo promoveu a fragmentação da base situacionista, cujo maior exemplo pôde ser visto na deserção da ala intitulada “Frente Liberal”,4 responsável por congregar
[...] os mais expressivos chefes políticos do PDS, dispostos a apoiar a candidatura de Tancredo Neves. O acordo entre PMDB e a Frente Liberal deu origem à Aliança Democrática, que tinha por base as candidaturas de Tancredo Neves à Presidência e José Sarney à Vice-presidência (KOSHIBA; PEREIRA, 2003, p. 557).
Da união da oposição (na figura de Tancredo Neves) com ex-aliados do Regime (mormente José Sarney) nasceu a “Aliança Democrática” que disputou a eleição presidencial em 15 de janeiro de 1985. O resultado foi o tiro de misericórdia para a caserna: o Colégio Eleitoral elegeu (pela última vez de forma indireta) um civil para a Presidência da República, encerrando o ciclo de Generais no Poder.
Dito isso, passa-se ao desdobramento do tema, na tentativa de descrever a transição à Nova República, bem como a configuração inicial do Governo civil emergido da eleição indireta de 1985.
Aqui, o escopo é compreender que a restauração da democracia no Brasil ocorreu mediante a permissão (ou concessão) dos comandantes militares que, na fase de colapso da institucionalidade repressiva, resolveram aderir ao diálogo para negociarem uma transição pacífica, não se eximindo, porém, de custodiar as tratativas de mudança de regime político e tampouco abdicando da função de subvencionar o funcionamento da recém instaurada Nova República.
Nessa linha, Ramos (1998, p. 108) cita que “o consenso foi a chave” do complexo processo que possibilitou, no Brasil, “[...] a transição pacífica de um regime autoritário à democracia [...] pluralista”. As articulações entre renomados nomes da política nacional, principalmente (e não as pressões advindas das ruas, necessariamente) viabilizaram a mudança da tirania para o Estado de Direito, caracterizadoras de uma abertura por cima realizada pelas lideranças pró-democracia e, a todo tempo, “patrocinada pelos militares para que acontecesse de forma ‘lenta, gradual e segura’” (PIRES JÚNIOR; TORELLY, 2010, p. 198).
Diante disso, “[...] o acordo das forças políticas majoritárias na sociedade” fora o “fio condutor” (RAMOS, 1998, p. 78-79) que proporcionou a transação convencionada entre as elites civis e castrense, cuja consequência maior residiu no advento de uma “democracia outorgada” (NAPOLITANO, 2014) e tutelada pelas Forças Armadas.
Outorgada, dado que não fora conquistada pela legitimidade das urnas ou por uma drástica ruptura promovida por revoltas ou levantes populares, haja vista ter o povo assistido a esse longo processo em posição coadjuvante, onde as cenas foram protagonizadas pelos líderes de grupos adversários - os que ocupavam o Poder e os que intentavam alcançá-lo.
Em um quadro de desconfianças e apreensões que se seguiram ao pleito de janeiro de 1985, os eventos inesperados que culminaram na morte do Presidente eleito transmitiram ao seu Vice o dever de concluir a mudança do autoritarismo para a Nova República. Houve o efetivo retorno à normalidade democrática muito mais por uma concessão dos antigos mandatários da nação do que pelas lutas da manifestação popular.
A passagem de regime foi conturbada: a falta de legitimidade de Sarney perante a opinião do povo e sua relação conflituosa com o PMDB puseram em risco a estabilidade do Governo Civil e o próprio desenrolar da Redemocratização, fato ensejador de múltiplas pressões oriundas dos homens das Armas. Mesmo fora das esferas decisórias, demonstraram estes capacidade de influência e ingerência na ordem política redemocratizada, conforme esclarecem Koshiba e Pereira (2003, p. 576):
Embora afastados formalmente do centro do Poder, os militares continuaram suficientemente poderosos [...] e foram vitoriosos num ponto particularmente delicado: [...] estes defenderam e conseguiram manter sua posição de guardiões da ordem interna: as Forças Armadas poderiam intervir para manter a ordem social, desde que solicitadas por qualquer um dos Poderes constituídos.
Os militares lograram êxito em seu pleito, uma vez que, nos termos do Artigo 142, caput, da atual Carta Política: “As Forças Armadas [...] destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (BRASIL, 1988). Por meio deste dispositivo, conseguiu o Exército permanecer na posição de guardião do país, com possibilidade de atuação para garantir a ordem constitucional e o funcionamento das instituições - desde que convocado por algum dos Poderes da República.
A promulgação da Constituição Cidadã em 5 de outubro de 1988 e a primeira eleição direta para a Presidência da República no ano seguinte concluíram, nas visões de Arturi (2001) e Kinzo (2001), o intrincado processo de Redemocratização e solaparam os principais aspectos da Ditadura Civil-Militar, mas não romperam com todos os elementos caracterizadores do autoritarismo outrora vigente.
Resquícios da legalidade autoritária (PEREIRA, 2011) - dentre eles alguns elementos já presentes na Constituição de 1967 - foram incorporados à ordem jurídico-institucional do pós-1988 a partir da adoção de instrumentos normativos que ampliaram as atribuições do Presidente da República e conferiram-lhe a possibilidade de intervir no processo legislativo das seguintes formas: i) utilização de Medidas Provisórias como ferramentas recorrentes de governabilidade (BRASIL, 1988, art. 62, caput); ii) solicitação de tramitação em regime urgência para os projetos enviados pelo Presidente às Casas Legislativas (BRASIL, 1988, art. 64, § 1°); iii) prerrogativa de veto parcial ou total sobre leis aprovadas pelo Congresso Nacional (BRASIL, 1988, art. 66, § 1°; Art. 84, V); iv) propositura de Emendas à Constituição, nos termos do artigos 60, inciso II e 84, inciso III, todos da Constituição Federal (BRASIL, 1988).
Ante o exposto, o artigo intentou, a priori, verificar e conceituar noções sobre os regimes políticos (sobremaneira traçando distinções entre o autoritarismo e a democracia), o que permitiu analisar a conformação jurídico-institucional da Ditadura Civil-Militar brasileira de 1964 a 1985.
Em breves linhas, o trabalho pôs-se a responder ao problema de pesquisa, verificando qual a base de poder utilizada pelo Regime para manter-se no controle do Estado e qual o modus operandi empregado para conferir juridicidade ao exercício irrestrito do Poder político. Assim, restou demonstrado que o Governo de Exceção buscou sustentação não somente pelo atributo da força (qual Chile e Argentina, onde os governos despóticos seguiram o caminho da extralegalidade), mas sim pela positivação dos atos tirânicos em textos e estatutos normativos, visando à atribuição de ares de legalidade às ações repressivas.
De acordo com o constatado, os principais instrumentos legais utilizados pela Ditadura de 1964 foram os Atos Institucionais, responsáveis por criarem no próprio Estado duas ordens jurídicas- uma legítima e outra paralela. A primeira erigiu-se de baixo para cima pelos representantes do povo, revestidos da autoridade legislativa delegada diretamente pelos cidadãos. A segunda, a seu turno, construiu-se em sentido inverso, de cima para baixo, imposta por aqueles que se autoinvestiram da função legiferante e moldaram o ordenamento normativo à luz das pretensões momentâneas dos ocupantes do Palácio do Planalto.
As manobras meticulosamente engendradas para viabilizar a conquista e a manutenção do Poder lograram êxito nos pleitos parlamentares de 1966 e 1970, com triunfo de aliados da ordem castrense, mas começaram a solapar a partir de 1974, marco associado ao início da liberalização que conduziria à abertura política.
As alterações decisivas nos rumos da política nesta fase promoveram nítida reformulação na correlação de forças entre situação e oposição, em gradual fortalecimento desta e sucessiva derrocada daquela. O esfacelamento dos setores pró-autoritarismo viabilizaram o processo de distensão iniciado no Governo Geisel e concluído na Gestão Figueiredo, época em que ocorreu a vitória de Tancredo Neves na eleição à Presidência da República após longo processo de transição negociada.
Nesta linha, esclareceu-se também que o retorno à normalidade democrática ocorreu mais por uma concessão, ou melhor, por uma outorga da Ditadura (decadente àquela altura) do que por uma conquista advinda da luta do povo. Aliás, conforme ser visto, não foi a organização popular a força motriz a impulsionar a redemocratização; ao revés, as manifestações dos cidadãos ocuparam mero espaço coadjuvante em um cenário protagonizado por experientes lideranças políticas civis que realizaram amplas articulações com o Governo Ditatorial a fim de permitir a transmissão de Poder aos civis.
Por derradeiro, constatou-se que a transição negociada entre o Exército e os expoentes da política tradicional teve por fio condutor o consenso, onde o diálogo e a negociação entre a oposição e os ex-aliados do Regime foram os responsáveis por criarem uma “democracia outorgada” no qual o Poder retornou aos civis, mas não sem a guarida atenta dos militares, sempre dispostos a tutelar o funcionamento das instituições e do sistema político brasileiro, isso em nome da ordem e da prevalência dos valores nacionais.
http://www.revistapassagens.uff.br/index.php/Passagens/article/view/256/243 (pdf)