Resumo: As resenhas, passagens literárias e passagens estéticas em Passagens: Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica são editadas na seção cujo título apropriado é LITURATERRA. Trata-se de um neologismo criado por Jacques Lacan,1 para dar conta dos múltiplos efeitos inscritos nos deslizamentos semânticos e jogos de palavras tomando como ponto de partida o equívoco de James Joyce quando desliza de letter (letra/carta) para litter (lixo), para não dizer das referências a Lino, litura, liturarios para falar de história política, do Papa que sucedeu ao primeiro (Pedro), da cultura da terra, de estética, direito, literatura, inclusive jurídicas – canônicas e não canônicas – ainda e quando tais expressões se pretendam distantes daquelas religiosas, dogmáticas, fundamentalistas, para significar apenas dominantes ou hegemônicas.
Resumen: Las reseñas, incursiones literarias y pasajes estéticos en Passagens: Revista Internacional de Historia Política y Cultura Jurídica son publicadas en una sección apropiadamente titulada LITURATERRA. Se trata de un neologismo creado por Jacques Lacan para dar cuenta de los múltiples efectos introducidos en los giros semánticos y juegos de palabras que toman como punto de partida el equívoco de James Joyce cuando pasa de letter (letra/carta) a litter (basura), sin olvidar las referencias a Lino, litura, liturarios para hablar de historia política, del Papa que sucedió al primero (Pedro), de la cultura dela terre (tierra), de estética, de derecho, de literatura, hasta jurídica - canónica y no canónica. Se da prioridad a las contribuciones distantes de expresiones religiosas, dogmáticas o fundamentalistas, para no decir dominantes o hegemónicas.
Abstract: The reviews, literary passages and esthetic passages in Passagens: International Journal of Political History and Legal Culture are published in a section entitled LITURATERRA [Lituraterre]. This neologism was created by Jacques Lacan, to refer to the multiple effects present in semantic slips and word plays, taking James Joyce’s slip in using letter for litter as a starting point, not to mention the references to Lino, litura and liturarius in referring to political history, to the Pope to have succeeded the first (Peter); the culture of the terra [earth], aesthetics, law, literature, as well as the legal references – both canonical and non-canonical – when such expressions are distanced from those which are religious, dogmatic or fundamentalist, merely meaning ‘dominant’ or ‘hegemonic’.
Résumé: Les comptes rendus, les incursions littéraires et les considérations esthétiques Passagens. Revue Internationale d’Histoire Politique et de Culture Juridique sont publiés dans une section au titre on ne peut plus approprié, LITURATERRA. Il s’agit d’un néologisme proposé par Jacques Lacan pour rendre compte des multiples effets inscrits dans les glissements sémantiques et les jeux de mots, avec comme point de départ l’équivoque de James Joyce lorsqu’il passe de letter (lettre) à litter (détritus), sans oublier les références à Lino, litura et liturarius pour parler d’histoire politique, du Pape qui a succédé à Pierre, de la culture de la terre, d’esthétique, de droit, de littérature, y compris juridique – canonique et non canonique. Nous privilégierons les contributions distantes des expressions religieuses, dogmatiques ou fondamentalistes, pour ne pas dire dominantes ou hégémoniques.
摘要: Passagens 电子杂志在“文字国”专栏刊登一些图书梗概和文学随笔。PASSAGENS— 国际政治历史和法学文化电子杂志开通了“文字国” 专栏。“文字国”是法国哲学家雅克﹒拉孔的发明,包涵了语义扩散,文字游戏,从爱尔兰作家詹姆斯﹒乔伊斯 的笔误开始, 乔伊斯把letter (字母/信函)写成了litter (垃圾), 拉孔举例了其他文字游戏和笔误, lino, litura, liturarios, 谈到了政治历史,关于第二个教皇(第一个教皇是耶稣的大弟子彼得),关于土地的文化 [Cultura一词多义,可翻译成文化,也可翻译成农作物],拉孔联系到美学, 法学,文学, 包括司法学— 古典法和非古典法, 然后从经典文本延伸到宗教, 教条, 原教旨主义, 意思是指那些占主导地位的或霸权地位的事物。
Resenha
LITURATERRA [Resenha: 2020, 1] Resiliência como posição política
LITURATERRA [Reseña: 2020,1]
LITURATERRA [Review: 2020,1]
LITURATERRA [Compte rendu: 2020,1]
文字国 [图书梗概: 2020,1)
Recepção: 05 Outubro 2019
Aprovação: 06 Janeiro 2020
Não por acaso, o professor Gisálio Cerqueira Filho se inspirou na versão metafórica do vocábulo “resiliência” como título e como tema de seu opúsculo - Cultura e Resiliência – publicado agora pela Editora Lúmen Juris. Sua trajetória acadêmica - mas não apenas acadêmica – foi e continua sendo uma militância crítica tanto nos conteúdos políticos ensinados como no testemunho humanista de sua vivência pedagógica. Se, no sentido literal, “resiliência” designa a capacidade de alguns corpos de resistirem e se refazerem plasticamente às deformações acidentais sofridas, na figuração política e cultural, é a resistência à submissão ao status quo da desigualdade ou às chantagens e miragens de um poder opressivo. Mais do que isto, o sentido alegórico da “resiliência” é também a capacidade equivalente ao mundo físico de não permitir que os ideais de justiça se percam ou se anulem em meio às manobras estratégicas da ideologia dominante.
O primeiro pilar de sustentação de seu elogio à posição resiliente na política contemporânea é, como ninguém deixaria de esperar, a teoria e a prática de Antônio Gramsci. Nada mais justificado. E é justificado não ao apenas pelo seu lema existencial – “viver é tomar partido” – como pelo empenho em sua reflexão política num momento histórico da luta operária e revolucionária. Detrás das grades, sofrendo um “exílio” imposto pela punição fascista, mexe corajosamente nas entranhas da dialética marxista para, no mínimo, amadurecer uma conceituação da luta de classes que ficara pouco esclarecida a partir do tipo de movimento que levou à vitória soviética na Rússia de 1917. Gramsci compreendeu que, a partir do desenvolvimento do capitalismo na Itália e nos países socialmente mais avançados da Europa, não seria mais historicamente possível a tomada revolucionária do poder contra a hegemonia burguesa instalada nos aparelhos repressivos do estado e sua dominação ideológica sobre a sociedade civil: a luta revolucionária não poderia mais ser travada “exclusivamente” no interior da infraestrutura produtiva entre o capital e o trabalho. Haveria de se pensar e relevar o papel da superestrutura na eficácia transformativa da sociedade e na construção de uma contra-hegemonia ao poder dominante. A superestrutura ideológica e todo o complexo de suas instituições - família, Igreja, sindicatos, incluindo a comunicação de massa tão importante na atualidade, etc. – teria que ganhar um relevo não inteiramente reconhecido até então como estratégia transformativa. Gramsci inova e “amplia” a concepção de estado como o conjunto da sociedade política (aparelhos repressivos) e sociedade civil (aparelhos de transmissão e formação culturais), tudo, enfim, que rege a vida cotidiana de indivíduos, em princípio, consentidores.
Acontece que esta mexida conceitual na práxis revolucionária coloca no proscênio da luta política, como sujeito e como objeto, dois novos personagens como agentes possivelmente decisivos no processo da contra-hegemonia cultural: o intelectual orgânico do movimento e o homem comum cuja existência é o alvo que dá sentido a toda luta pela justiça social. O intelectual engajado deixa de ser um nefelibata e passa a ser um militante; o homem comum deixa de ser uma retaguarda para sempre alienada e passa a ser interpretado como um agente histórico capaz de consciência autônoma e ação libertária. Qual o sentido mais profundo da resiliência na vida e no pensamento de Antônio Gramsci? Ele evitou que a teoria e a prática revolucionárias do marxismo-leninismo fossem desatualizadas historicamente pelas mudanças ocorridas na evolução de um capitalismo monopolista e estrategicamente “distributivista”, além de restaurar o vigor da luta de classes na dimensão operária ao reconhecer a crucialidade da superestrutura na transformação da vida. Gramsci é um paradigma filosófico e político da resiliência.
Na sua concepção de resiliência como posição crítica e resistente ao massacre imperial e etnocêntrico da sociedade tecnocrática, o professor Gisálio Cerqueira Filho invoca muito apropriadamente a memória de Edward Said, um dos intelectuais mais esclarecidos sobre a situação vivida por este mundo da “globalização” divisionista. Said, como sabemos, exerceu, antes de tudo, uma militância contra o barbarismo etno-cultural do Ocidente em relação ao mundo árabe e à religião muçulmana. Num de seus livros mais combatentes – O Orientalismo(SAID, 1978) -, denuncia a construção, liderada pelos Estados Unidos, de uma imagem irrisória, violenta e pré-moderna do Oriente, tudo contra uma região que deveria ser trazida diuturnamente sob vigilância estratégica e bombardeio pesado, sempre que se fizesse necessário. Tal configuração primitivista e terrorista da cultura árabe é montada pelos aparelhos superestruturais do cinema, do jornalismo e do entretenimento na sociedade americana, o que remete novamente ao conceito gramsciano da hegemonia política montada, entre outras instâncias, pela comunicação de massa e mais recentemente também pela comunicação digital. Hoje, não apenas os intelectuais da resiliência, mas vastas áreas da opinião pública mundial reconhecem que tal etnocentrismo não é um afloramento espontâneo da cultura ocidental como sempre aconteceu entre as diferentes culturas na história humana, mas uma construção altamente artificial como pretexto belicoso, exploratório e lucrativo, tudo na contramão dos princípios da solidariedade e da coexistência pacífica.
Ainda inspirado na posição intelectual e resistente de Said, o professor-titular da Universidade Federal Fluminense (UFF) remete à onda tecnocrática que devasta a cultura mundial a partir do capitalismo pós-liberal e que foi, e continua sendo, objeto de uma das investidas mais consistentes e demolidoras da teoria crítica frankfurteana. Uma tal tendência tecnicista invade mais patologicamente o ethos acadêmico, burocratizando o sistema de avaliação do conhecimento, a alocação de verbas orçamentárias para ensino e pesquisa, além de espicaçar a instintividade humana para o poder e o dinheiro: na cultura tecnocrática, o especialista desqualifica o “amador”, a expertise acantona a interdisciplinaridade e a competência destrona a sabedoria. Finalmente, para Said, a noção de “exílio” define mais do que um possível desterro literal imposto pelos sistemas políticos dominantes aos que resistem ao enquadramento, mas também o possível isolamento sofrido por um sujeito resiliente, ainda que dentro dos limites de sua própria pátria.
Mas a resiliência como valor político da vida humana não se realiza, nem de longe, apenas como enfrentamento, por vezes encarniçado, ao status quo hegemônico e poderoso. Os meandros da “prudência” são a outra face da resistência para o alcance de seus fins. Na Ética a Nicômaco, Aristóteles (1991, VI 5, 1140b 4) já definia a prudência ou sabedoria como “o âmbito prático racional que concerne àquilo que é bom ou mal para o homem” e via na prudência a forma sensata de garantir o sucesso de um projeto. Gisálio Cerqueira Filho vai buscar em Baltasar Gracián, um jesuíta dos Seiscentos, uma versão mais recente da velha sabedoria grega. A prudência se coloca estrategicamente entre o excesso e a falta, entre a fala gongórica e o silêncio consentidor, entre a presença afrontosa e a ausência desertora, enfim, em termos helênicos, entre a hybris e a sophrosyne. Para Baltasar Gracián, são três os artifícios ou as sutilezas do desempenho resiliente: o “silêncio”, a “ausência” e o “parecer”. Mas não o silêncio como consentimento, a ausência como deserção ou o parecer como contrafação. A fala enquanto mensagem, quer dizer, a troca semântica, não se esgota necessariamente numa pletora de gestos e palavras: fazer-se entender não é expor-se ao perigo de todo confronto. Estar no mundo é estar em tensões conflituosas e conflitos se dão na diferença de forças que podem aniquilar o projeto resiliente: daí que silenciar não é calar a boca desistentemente, mas editar a fala nos pontos de suficiência semântica. A ausência sábia, por outro lado, segue a mesma ética da fala prudente: sua palavra-chave é a “discrição”. O mundo monárquico das cortes, dos poderes e dos personagens imperiais é a cultura das presenças feéricas e impositivas onde a ausência é sinônimo de plebe e de subalternidade. Gisálio nos lembra que Gracián se refere, no avanço histórico, ao novo mundo do homem comum reconhecido na sua dignidade civil, na sua mediania universal, num iluminismo setecentista que já vai nascer e que, ao mesmo tempo, condiciona e valoriza o indivíduo como um ser discreto entre outros indivíduos. Além dos sábios “silêncios” e “ausências”, expor o parecer em lugar do ser é outra estratégia que livra a resiliência da inveja malfazeja e comprometedora. Um aforismo da Arte da Prudência nos informa desta lição de Gracián (1998, aforismo 240):
Até a pessoa mais sábia às vezes lança mão dessa peça e há ocasiões em que o melhor saber está em aparentar em não ter nenhum. Não se deve ser ignorante, só fingir sê-lo. A sabedoria não tem importância para os tolos e a sensatez, para os loucos. Sendo assim, fale com cada um na sua linguagem. Tolo não é aquele que finge sê-lo, mas aquele que disso padece, pois não existe insensatez verdadeira onde chega o artifício. A fim de ser admirado pelos outros, use uma pele de asno.
Gracián é sábio, entre outras coisas, porque soube provar e reverberar a ironia socrática.
É, com certeza, num dos argumentos mais nobres e persuasivos sobre a “resiliência” e sua relação com o “exílio” - agora não mais em nível exclusivamente político, mas na extensão mais ampla da vida em geral – que Gisálio vai buscar na trilogia tebana, e mais diretamente em Édipo em Colono (SOPHOCLE, 1967), a representação dramática de superação resiliente vivida na trajetória dos grandes personagens da tragédia e da mitologia. Édipo perdeu a luta contra o destino, não vivesse ele na atmosfera fatalista da cultura grega. Suas tentativas malogradas de evitar o parricídio e o incesto vaticinados pelo oráculo foram engenhosamente neutralizadas pelos deuses: matou Laio, seu pai, desposou Jocasta, sua mãe e, a seguir, cegou-se punitivamente. Sem a proteção dos filhos gananciosos e encarniçados na luta pelo poder, é expulso de Tebas onde fora rei, peregrinando por terras estranhas, miserável e sem teto, amparado apenas pelas duas filhas abnegadas. Chega a Colono, um arrabalde de Atenas, e solicita a seu rei, filho de Egeu, uma hospedagem humanitária. Aí ocorre o refazimento resiliente de sua grandeza. Não lhe interessa mais invocar e insistir na inocência com que perpetrara seus crimes nem apoiar nenhum dos dois filhos na luta fratricida pelo poder em Tebas: se o fizesse, não estaria se superando, continuaria chafurdado nas disputas mundanas. Recupera sua grandeza, não mais tentando fugir da dor, mas assumindo-o e vivenciando-o na profundidade com que a vida e a velhice lhe impuseram. Segundo Jaeger na Paidéia, é esta relação com o sofrimento, uma espécie de amor fati nietzschiano, que torna Édipo venerável: “Os deuses que te feriram, de novo te porão de pé”. O exílio foi seu refazimento. Teseu, rei de Colono, finalmente recepciona Édipo como um cidadão ilustre.
Finalmente, o professor Gisálio narra, como experiência resiliente, sua inserção biográfica no atuante Centro de Formação Intercultural (CenFI), em Petrópolis, instituição fundada desde a tão significativa década de sessenta no Brasil e no mundo, não apenas pela irrupção de movimentos críticos como pelo advento de sinistros políticos. A militância política do professor Gisálio, e amplamente de sua geração, coincide com um dos momentos mais dramáticos da conjuntura nacional e latino-americana. Os chamados anos de chumbo surpreenderam o autor, como a milhares de outros jovens, em plena vigência de seus anos dourados: a ditadura militar, o fechamento das instituições representativas, a censura às vozes do protesto, a perseguição implacável da segurança nacional seguida de tortura e até assassinatos feriram, às vezes de morte, praticamente todos os focos de resistência ao obscurantismo. No entanto, o tecido resiliente da vida e dos corpos, a têmpera da alma que se reconstrói nos interstícios clandestinos do sistema intolerante sabe resistir política e existencialmente. Gisálio, no último capítulo, dá apenas uma vaga noção de sua convivência com a intensidade e a nobreza da resistência ao horror. Aproveita para dar uma idéia, ainda que resumida, de movimentos como a Teologia da Libertação, organizações católicas como o própria CenFI, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a cooperação internacional do Centro de Documentação (CEDOC) em Guernavaca, no México, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento (IBRADES), além da participação autenticamente missionária de personalidades magnânimas como Monsenhor Ivan Illich, Pe. Pedro Arrupe, S.J., Dom Helder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, a encíclica Pacem in Terris de João XXIII e outros. Seu testemunho do assassinato covarde do missionário Pe. Henrique coroa a homenagem de Gisálio à posição resiliente: o Pe. Henrique deixou gravado na memória dos outros o sofrimento e a morte pela causa da liberdade e da justiça, quer dizer, encontrou a forma mais nobre de continuar vivendo; uma resiliência moral.
Recomendo finalmente este livro do professor Gisálio Cerqueira Filho no intuito de que seus leitores adquiram, através dele, a mesma consciência que adquiri: a de que o ideal e a prática da resiliência não possuem apenas uma face heroica – aquela do enfrentamento político ante a envergadura monstruosa e opressiva dos poderes estabelecidos -, mas também a face da autoregeneração moral e corajosa ante eventuais derrotas e desilusões no anonimato do cotidiano e na simples passagem de um dia para o outro.
http://www.revistapassagens.uff.br/index.php/Passagens/article/view/308/263 (pdf)