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Quando Clio toca as Pandoras: os arquivos entre histórias e memórias
Sylvie Sagnes
Sylvie Sagnes
Quando Clio toca as Pandoras: os arquivos entre histórias e memórias
Revista Tempo e Argumento, vol. 5, núm. 9, pp. 203-217, 2013
Universidade do Estado de Santa Catarina
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Resumo: História e memória não são duas noções que podem sobrepor-se exatamente e isto tanto menos quanto o passado do qual elas dão conta traz a marca de um traumatismo da história. No coração das relações desarmônicas que têm Clio e Mnemósine, guarda-se o arquivo. Em semelhante caso, o tratamento do qual este é objeto constitui de modo incontestável um observatório das inumeráveis implicações que a rememoração do passado suscita. Se alguns duvidam dessa verdade, os trabalhos e ensaios franceses dos quais este artigo propõe a síntese o ilustram eloquentemente. Eles mostram, em contraposição às ambições que o arquivo suscita, o poder que nossas representações ocidentais imputam à sua posse. Alvo de uma violência de outro gênero, o arquivo negligenciado nutre polêmicas a favor das quais variam as alianças e se movem linhas de ruptura. Sobre o tabuleiro da memória, militantes, historiadores profissionais, políticos, legisladores e juízes jogam um jogo complicado, do qual, a contar dos anos 1980, participam as testemunhas assim como os historiadores provindos das fileiras das comunidades memoriais. À prova da prova, as memórias se entrechocam. Memórias dominadas e dominantes, vitimárias e heroicas, subjetivas e objetivas, memórias do coração e da razão se opõem em um estrépito cujos solavancos afetam infalivelmente a disciplina histórica.

Abstract: History and memory are not two exactly surimposable concepts and they are even less as soon as the past they describe has a traumatic history’s mark. In the heart of the struck relationships Clio and Mnemosyne then have, records are standing. In cases like these, the treatment they receive forms a special look-out post to see the innumerable issues that the recall of the past rises. If there are some who are doubtful of this, French works and essays of which this paper offers to summarize the major points, are good example of the validity of this assertion. As a counterpoint to the covetousness the records arouse, they show the power that our occidental representations attribute to their ownership. Target of another kind of abuse, the roughly handled records feed controversies, and by these ones, alliances change and the split lines move. On the memory scene, activists, professional historians, politicians, lawmakers and judges play a complicated game in that, as from the 80s, the witnesses take a part, just as the historians who came from the ranks of memory communities. To the test of proofs, memories knock together. Dominating and dominated, victimized and heroic, subjective and objective, emotional and rational memories confront each other in a crash of which the jolts inevitably affect history as a discipline.

Keywords: Records, History, Memory, Traumatic event.

Carátula del artículo

Seção Temática - Arquivos no tempo e na história

Quando Clio toca as Pandoras: os arquivos entre histórias e memórias

Sylvie Sagnes
Equipe LAHIC (EHESS, CNRS, MCC), Francia
Revista Tempo e Argumento, vol. 5, núm. 9, pp. 203-217, 2013
Universidade do Estado de Santa Catarina

Recepção: 02 Dezembro 2012

Aprovação: 01 Abril 2013

De todos os ventos de memória que varrem nosso mundo globalizado, os que se levantam na sequência dos traumatismos da história sopram nos dias de hoje com uma intensidade sem precedente. Guerras, diásporas, deportações, repressões, genocídios, internamentos, escravidões, totalitarismos nutrem outras tantas memórias da dor. Ontem ilegítimas, reprimidas, escondidas sob o silêncio imposto pela estigmatização, pela incompreensão, pela simples desatenção, ou pelo medo do mal-entendido, essas memórias rompem hoje com a negação e saem da sombra para atiçar uma efervescência memorial que as ultrapassa e ao mesmo tempo as engloba. Amplificando o eco do “elogio incondicional da memória” (Todorov, 1995, p. 13) que ressoa em todo lugar, elas participam de um culto heterogêneo em que se misturam o hedonismo da nostalgia e a exigência do dever. E isto até à sacralização.

Ao lado dos escritores e dos filósofos para os quais a memória é um ato de resistência, os historiadores não contribuem pouco para este aumento de poder que eles são mais ou menos capazes de controlar. É que muito frequentemente (demais), o “dever de memória” avantaja-se sobre o “dever de história”. O historiador se vê desde então suplantado, e com ele sua implícita “ética de verdade e de liberdade”, sua crença na “soberania do saber” (Duclert, 2010, p. 11) e na “função crítica da história” (Ibid., p. 36). A nobre ideia que ele faz da sua disciplina como “fundamento das consciências públicas” (Ibid., p. 19) se encontra assim problematicamente hipotecada. Ultrapassado, o historiador o é diversamente: pela justiça, pela lei, pelo Estado, e, cada vez mais na França, pelo chefe do Estado. O juiz, o legislador, o político intervêm para definir a verdade histórica, forçando o historiador a desempenhar um papel de juiz, de procurador, de testemunha ou de simples perito consultivo. Ele o é também por aquilo que François Hartog chama de presentismo, ou seja, um presente prisioneiro de si mesmo, incapaz de criar, de pensar uma ordem do tempo (Hartog, 2012).

Na nascente desta História atropelada, na sua fonte, digamos assim, para jogar com as palavras, está o arquivo. Ele oferece um ponto de vista privilegiado sobre a maneira por que nossas sociedades tratam dos males passados. Qual uma caixa preta, o arquivo, perdido, subtraído, interditado, secreto, procurado, descoberto, revelado, instruído, desencadeia as paixões que espatifam a adequação, mais que precária, dos deveres de memória e de história. Pondo em cena não somente seus leitores “naturais”, que são os historiadores, mas também seus detentores, assim como aqueles dos quais eles falam ou seus possuidores de direito, o arquivo permite uma apreensão ampliada das memórias do mal, abarcando ao mesmo tempo a comunidade memorial dos “traumatizados” e a dos “traumatizantes” dos quais o profissional do passado pode ser conduzido a obter a evidência do face-a-face. Os autores deste dossiê temático fazem disso a sua aposta. Mas antes de entrar em detalhe acerca dos resultados de suas pesquisas inéditas, cumpre situar mais precisamente nosso questionamento acerca das lições desde agora tiradas das questões, mais ou menos barulhentas, nas quais o arquivo e as implicações memoriais que ele cristaliza foram levados a desempenhar o papel principal.

Apreensão e poder

A diáspora arquivística analisada em La mémoire spoliée (2007) compreende esses dossiês que, nessas últimas décadas, desencadearam uma celeuma. A autora, Sophie Coeuré, desenvolve com minúcia a história complexa da espoliação dos arquivos franceses pelos nazistas sob a Ocupação, sua evacuação e sua dispersão nos mais de mil depósitos de fortuna a leste e depois a oeste do grande Reich, no momento da debandada, sua recuperação e sua retenção, sob o selo do segredo, pelos soviéticos, e finalmente seu retorno, primeiramente aos poucos, depois massivo, na ocasião da Perestroica. Com Sophie Coeuré, pode-se perguntar, legitimamente, como se explicam essas apreensões sucessivas. Se, por um lado, se pode compreender a pilhagem das obras de arte, considerando-se o seu valor de mercado, por outro, o confisco dos arquivos pode deixar-nos perplexos. A historiadora mostra que essas apreensões se inscrevem na longa história das guerras, em relação à qual as guerras napoleônicas marcam uma clara ruptura. De fato, nunca como então se pilharam e expropriaram os países conquistados no que diz respeito a seus arquivos. Concentrados em Paris, esses arquivos estão colocados a serviço da ideia de Império. Mas esses confiscos já inspiram um mal-estar, inclusive nos próprios espoliadores; já se exprime algo da consciência do valor patrimonial do arquivo. Os tratados que se seguiram às guerras de 1870-71 (Frankfurt, 1971) e de 1914-18 (Versalhes, 1919), vão, aliás, no sentido de uma limitação do direito de confisco. Sob o Terceiro Reich, esses regulamentos são objeto de uma interpretação extensa, em que os Alemães justificaram duplamente as espoliações perpetradas. Estas são empreendidas em nome da conduta política e militar da guerra, o que faz com que os documentos militares e diplomáticos sejam os visados primeiramente. O ocupante invoca igualmente o litígio franco-alemão, agravado pela derrota alemã de 1918, em virtude do qual as espoliações dos arquivos de outras naturezas representam uma reparação diferida e legítima dos prejuízos anteriores. Mas o direito de guerra não dá conta, senão imperfeitamente, da lógica que preside aos confiscos, quando os primeiramente visados são os arquivos de instituições tais quais a SFIO, o Grand-Orient de France, a Alliance Française, as igrejas protestantes, etc., os arquivos privados de antigos ministros, de jornalistas, de emigrados russos, de francomaçons e os arquivos dos judeus. Estes últimos confiscos, no seu essencial, em favor da “ação móvel”, operação confiada a Kurt Von Behr, que consistiu em esvaziar as residências “abandonadas” pelas famílias judias (38.000 na França). Os roubos dos arquivos servem evidentemente à ideologia nazista e sua “vontade de purificar a cultura”. Assim, a apropriação dos arquivos se faz acompanhar da reescrita da história europeia em proveito da Alemanha e o combate conduzido ao mesmo tempo contra os judeus, os comunistas e os francomaçons.

Evacuados e dispersos na desordem da retirada dos Alemães, estes arquivos roubados são encontrados nos quatro cantos do Reich a partir de 1945. Se os Aliados ingleses e americanos entram num acordo para restituir à França os documentos na sua respectiva zona de ocupação, os soviéticos não veem a questão pelo mesmo prisma. Prevalecendo a lógica do troféu sobre qualquer outra, os arquivos encontrados são enviados a Moscou, e não somente os arquivos alemães, mas também os outros, entre os quais os arquivos franceses. A guerra fria que começa desde 1947 fixa por várias décadas na União Soviética todos esses arquivos, guardados em segredo, tanto no sentido próprio quanto no figurado, uma vez que eles entram no setor III do TsGOA, um centro de documentação ultrassecreto, um “gulag dos arquivos”, em suma, construído no norte da capital para abrigar todos os arquivos espoliados. Nenhuma estratégia planificada previamente presidiu a esta nova espoliação, feita ao acaso das descobertas. Esta ausência de premeditação é, para dizer a verdade, o único traço que a distingue das maneiras de fazer nazistas, pois, no que diz respeito à exploração da apropriação, os visados acabam sendo os mesmos. Espoliados, inventariados e reclassificados segundo os critérios da arquivística soviética, ou seja, sem preocupação com os documentos, os arquivos passaram por um pente fino a fim de subsidiar os relatórios especiais ordenados pelo Kremlin. Além deste objetivo de obter informações, a enorme burocracia mobilizada para pôr em execução o plano secreto de estudo dos documentos serve à política de propaganda da União Soviética.

Quem controla o arquivo, controla a história, a história contemporânea, que se está escrevendo, e a história passada, ainda por reescrever. É, ao menos, a intuição comum que parece reger a relação de vampirismo dos regimes totalitários com os arquivos. O exemplo, em duas etapas, desses arquivos espoliados é tanto mais instrutivo quanto esses arquivos não são, no início, arquivos do traumatismo, mas mais exatamente arquivos “traumatizados”. Não é, como efeito, nem seu contexto de produção, nem seu conteúdo que faz deles arquivos do traumatismo, mas os traços deixados pela história de suas transferências, de suas ocultações, de seus desmantelamentos. Seu destino atormentado testemunha o poder reconhecido ao arquivo, e o qual revela, de maneira caricatural, a instrumentalização que tentaram os ditadores.

O choque das memórias

De fato, toda apropriação de arquivo está sujeita hoje à suspeita e à acusação de “totalitarismo” (Combe, 2001, p. 26). Na França, a descoberta da “pasta dos judeus”, em 1991, e as polêmicas que se seguiram ofereceram uma caixa de ressonância a esse tipo de denúncia, da qual Sonia Combe se fez particularmente a intérprete, em Archives interdites (2001). Lembremos que esta pasta dos judeus é uma das que foram constituídas após a ordenança alemã de 27 de setembro de 1940 na zona ocupada, e à lei francesa de 2 de junho de 1941 na zona não ocupada. Esses dois textos estipulam a obrigação para os judeus de se registrarem nas delegacias de polícia e nos serviços municipais. É com base nas pastas assim constituídas que foram organizadas a prisão e a deportação dos judeus. Ora, em 1991, data em que ela é encontrada por Serge Klarsfeld a serviço dos arquivos do ministério dos ex-combatentes, a pasta do departamento do Sena é dada como perdida desde há muito tempo, a exemplo, aliás, de todas cuja existência fora revelada. Ela deveria ter sido destruída, como ordenava a circular de Edouard Depreux de 6 de dezembro de 1946, que, na sequência da ordenança de 9 de agosto de 1944, que restabeleceu a legalidade republicana, declarava nulos todos os atos que implicavam a discriminação fundada na qualidade de judeu. Da mesma maneira, com respeito à lei “informática e liberdades” aprovada em 1978, lei que proíbe a existência de pastas que guardem informações de ordem privada, como menções relativas às origens étnicas e às confissões religiosas, essas pastas não devem existir. É, aliás, em nome desta lei que os fichados ou seus parentes reclamam em 1991 a destruição das pastas que lhes dizem respeito, as quais eles consideram infamantes. De resto, às vésperas de sua descoberta, pensa-se que estão de fato suprimidas, tendo-se em vista os resultados da investigação feita pela CNIL (Comissão nacional da informática e das liberdades) em 1980. Neste ano, no mês de março, Le Canard enchaîné revela a existência da pasta dos judeus da região parisiense em um centro da polícia nacional em Rosny-sous-Bois. A CNIL investiga em vão, em escala nacional, e conclui o seu relatório surpreendendo-se de que nenhuma pasta tenha escapado à destruição e que nenhuma prova de sua destruição tenha sido encontrada. Com efeito, as pastas foram salvas da destruição em razão de uma segunda circular de Depreux, de janeiro de 1947, na qual o ministro do interior volta atrás em sua ordem precedente, mandando conservar os “documentos que podem apresentar vantagens [...] permitindo a pesquisa e o agrupamento de indivíduos desaparecidos ou dispersos, ou a entrega de certificados de deportação ou de prisão” (Ibid., p. 221-222). Nos arquivos do ministério dos Ex-combatentes, a pasta serve para verificações para o estabelecimento de pensões.

As polêmicas que a sua “descoberta” suscita versam primeiramente sobre o destino da pasta. Alguns desejam a sua destruição, outros querem sua conservação, mas não concordam sobre o lugar do depósito, uns militando pelos Arquivos Nacionais, outros pelo Memorial do Mártir Judeu. Mas a controvérsia versa também e sobretudo sobre as práticas arquivísticas na França. O debate é tanto mais virulento quanto alimentado por novos desenvolvimentos, a começar pelos resultados da nova pesquisa empreendida pela CNIL, que revela a existência de treze outras pastas judias nos serviços de arquivos franceses. As conclusões da comissão nomeada pelo ministério da cultura e presidida por René Rémond acabam ateando fogo à pólvora. Esta estabelece, com efeito, que a pasta encontrada no ministério dos Ex-combatentes não estava escondida, e que não se trata da pasta do recenseamento, mas de uma pasta criada para a indenização das vítimas. Essas tentativas de escapar não fazem senão aumentar as revelações e pôr em evidência os mecanismos de retenção que presidem à gestão dos arquivos na França.

Em seus Archives interdites, Sonia Combe sustenta diversamente a sua denúncia. No banco dos acusados, figura em boa posição a instituição dos arquivos, em que ela vê uma outra “grande muette[1] (Ibid., p. 72). A historiadora denuncia uma administração submissa, sua submissão explicando-se pela falta de reconhecimento social. Ela também põe em questão a Ecole des Chartes, que forma os arquivistas no seu ofício e cujo ensino garante, na atualidade, apenas um salário de subsistência, sem relação com o volume dos arquivos contemporâneos que são levados para ser tratados nos serviços de hoje. A legislação não é muito bem vista, à medida que, desde o século XIX, diminui cada vez mais a noção de arquivos públicos. Ao exonerar algumas instituições da obrigação de depósitos, não prevendo sanções para aquelas que, devendo fazê-lo, não depositam, ao impor atrasos de comunicabilidade, ao instituir a arbitrariedade da dispensa, o legislador esvazia cada vez mais de sentido a ideia, introduzida na Revolução Francesa, de que o arquivo é um bem comum. A lei, modificada desde a primeira publicação de Archives interdites em 1994, sobretudo em 2008, introduz um pouco mais de liberalismo em matéria de comunicação, mas cria também um estatuto de incomunicabilidade (para os documentos relativos às armas nucleares, biológicas e químicas), o que não deixa de ser percebido como um precedente inquietante. Assim, o sentido do Estado da arquivística e a vontade política concordam – ou concordavam ainda no início dos anos 1990 – em reduzir os arquivos ao silêncio. Enfim, os historiadores, cúmplices mais ou menos voluntários, estão também sob os olhos de Sonia Combe. Ela surpreende-se também com a submissão generalizada da comunidade científica ao “poder total do Estado sobre seus arquivos” (Ibid., p. 23), mas sobretudo ela censura os que se beneficiam das dispensas, uns em virtude de sua notoriedade, outros em razão de pertencimento institucional, de jogar o jogo deste sistema arbitrário, que exclui uns e oferece aos outros monopólios. Segundo a historiadora, o problema colocado é duplo: moral à medida que há desigualdade em face do arquivo; científico, uma vez que são “[recolocadas] em questão as condições democráticas de escrita da história e do indispensável pluralismo da historiografia” (Ibid., 64).

Contrariamente, os historiadores críticos, da qualidade de Sonia Combe, desenvolvem um ponto de vista que os aproxima dos militantes das memórias da dor. Eles também questionam os argumentos contrários ao livre acesso, a saber, a razão de Estado (ou segurança do Estado) e o respeito à vida privada. Eles opõem a sua concepção do dever da história ou de memória à do estado-nação, que, tanto na França quanto alhures, é mais “naturalmente” levado ao esquecimento, senão à negação, do que à introspecção. Por isso, estar-se-ia enganado ao acreditar que as aproximações e os antagonismos que a luta pela abertura dos arquivos põe em cena valem sempre e em todo lugar. Eventualmente, o Estado se torna até mesmo um precioso aliado do militante da memória, enquanto instância de recurso que faz justiça e pela qual pode ser obtida reparação do passado. E quando ele mesmo é posto em causa, o Estado sacrifica, eventualmente, a integridade da memória nacional no altar do arrependimento. Assim, em 1995, na ocasião das comemorações da Rafle du Vel’ d’Hiv’, o presidente Jacques Chirac reconheceu a responsabilidade da França nas prisões coletivas e no genocídio dos judeus. Da mesma maneira, os fatos nos dão todo o lazer de constatar que historiadores e comunidades memoriais nem sempre estão na mesma frequência.

A pressão da testemunha

O arquivo pode também ser o lugar e no não lugar desta dessolidarização. Comecemos pelo não lugar. Entendamos com isso o desafeiçoar-se do arquivo, em proveito do testemunho, esta outra fonte da história e da memória. Annette Wieviorka (1998) data dos anos 1980 a entrada no que se convencionou chamar desde então de “a era da testemunha”. Na história da memória da Shoá, que se tornou o “modelo e [o] quadro de referência” (Lapierre, 2007, p. 475) de toda memória do mal, duas fases que precederam esta mobilização massiva da testemunha. Aquela, em primeiro lugar, de uma irreprimível necessidade de testemunhar, diversamente motivada. Tratava-se de fazer renascer um mundo aniquilado, salvar os mortos do nada, vingar-se, lutar contra o negacionismo e retomar posse de sua identidade roubada. Ora, a esta imperiosa necessidade não respondeu senão a mais perfeita indiferença. É do processo Eichmann (Jerusalém, 1961) que o historiador data precisamente o advento da testemunha. Respondendo a imperativos de política interior e exterior, este processo-espetáculo se desenvolveu segundo uma cenografia construída a partir dos testemunhos. As testemunhas (não menos do que 111) desempenharam o papel principal, a ponto de fazer esquecer o acusado, Eichmann. Elas foram convocadas, não para trazer a prova da culpabilidade do réu, com o qual, na maior parte, elas não tinham nenhuma ligação, mas para evocar os que morreram, dizer como eles pereceram e contar a sua própria sobrevivência. Agora ouvida, a testemunha se faz portadora de história, portadora de uma história de vítimas que não têm nada mais a ver com a dos culpados que foi imposta com o processo de Nuremberg.

Os anos 1980 banalizam a sua presença no campo da memória e da história. As cenas nas quais evolui agora a testemunha se multiplicam: as audiências ainda e sempre (na França, na ocasião dos processos Barbie, Touvier e Papon), as mídias, as salas de aula. É verdade que o momento se apresta. Na hora em que a ideologia dos Direitos do Homem triunfa, os talk-shows, esses programas de televisão nos quais as pessoas comuns vão expor sua vida, batem recordes de audiência, enquanto as ciências humanas conhecem um entusiasmo sem precedente para as narrativas de vida. Pesquisado, escutado, gravado, filmado, o testemunho evolui com o passar do tempo. Os primeiros, suscitados pela série americana Holocauste, são motivados pelo cuidado de corrigir a imagem, julgada inexata, dada pela ficção. Os vinte mil testemunhos, dos quais três mil franceses, que estão gravados pela Fundação Spielberg, na sequência do sucesso de A Lista de Schindler, ligam-se a uma vontade de transmissão e tencionam dar a prova viva do fracasso do mal. Obedecendo ao imperativo otimista, o testemunho se faz então “apóstolo e [...] profeta” (Wieviorka, 1998, p. 171). Sua experiência do mal o credita de uma sabedoria, dando-lhe autoridade para indicar a direção que a marcha dos séculos deve tomar.

Suas relações com a história estão de fato longe de ser simples. Porque “o testemunho se endereça ao coração e não à razão”, porque ele “suscita a compaixão, a piedade, a indignação, a revolta mesma às vezes” (Ibid., p. 179), ele faz correr o risco de “uma renúncia do pensamento e da inteligência em proveito do sentimento e da emoção” (Ibid., p. 124). Aos olhos do historiador, ele tem igualmente o defeito de abordar o passado de um só ponto de vista, o das vítimas. E uma história que não repousasse senão sobre testemunhos agravaria o seu caso à medida que ela seria fragmentada, parcelada, em tantas testemunhas do acontecimento histórico responsável pela desgraça. Longe de ser gratuita, a desconfiança com respeito às construções-reconstruções da lembrança da qual o testemunho é o quadro se funda ademais no fato de que estas coincidem dificilmente com o “imperativo do ofício de historiador, o da busca obstinada da verdade” (Ibid., p. 167). Sendo assim, não cabe apenas à testemunha separar o historiador e o militante da memória.

A História é humana

Como o historiador não se contenta com o arquivo e recorre à testemunha, embora ele desconfie dela, o militante não se contenta com a testemunha, e recorre ao arquivo, por intermédio do historiador interno. Véronique Moulinié (2001) mostrou, no que diz respeito à memória da Retirada[2], a relação ambígua dos historiadores e dos arautos da memória. Se o olhar dirigido ao passado pelo historiador é bem-vindo, uma vez que é exterior e portanto legitimador, ele pode também acabar sendo um incômodo, a partir do momento em que vem de encontro a certas inflexões da memória. Tratando-se da memória dos Republicanos espanhóis, a inteligência se choca com pelo menos dois pontos: as dissensões no coração do campo republicano que a segunda e terceira gerações se esforçam por calar, em proveito de uma visão unitária do passado republicado; o termo “concentração”, termo oficialmente empregado pela administração francesa em 1939 para denominar os campos. Quando os historiadores, preocupados em evitar qualquer amálgama inoportuno, preferem falar de campos de “internamento” ou “de retenção”, tendo-se em conta o sentido que tomou a expressão com a solução final, os militantes da memória defendem, por sua vez, o retorno à terminologia oficial, cultivando, ao contrário, o amálgama e com ele os tons plangentes da memória. Sendo que ninguém nunca é melhor servido do que por si mesmo, as associações fazem, por conseguinte, emergir no seu seio seus historiadores, que não hesitam em dar lições aos profissionais, como aquele a quem se devem os desenvolvimentos que seguem:

Com razão, em nosso meio de militantes da memória republicana e resistente, amamos os livros, amamos a História, respeitamos os autores. Então leiamos, estudemos, reflitamos. E, naturalmente, se for necessário, retifiquemos, completemos, ajustemos as cronologias, as análises e as sínteses... Eis aqui, por exemplo, algumas citações de historiadores conhecidos que comportam inexatidões. É sem dúvida uma pena, mas: ninguém é infalível. A crítica, rigorosa e construtiva, é indispensável.

Antony BEEVOR, La guerre d’Espagne (2006, Livre de Poche) p. 15 : “(PSUC) O Partido socialista unificado da Catalunha era um amálgama de partidos socialistas catalães na primavera de 1936”

Erro: o PSUC foi criado em 23 de julho de 1936 pela fusão de quatro grupos: as federações catalãs do PSOE e do PCE, a Unio Socialista de Catalunya e o Partit Catala Proletari. O autor confunde talvez com a Jeunesse Socialiste Unifiée (JSU), criada em abril de 1936, pela fusão da Juventud Socialista e da Juventud Comunista, em toda a Espanha. Página 225: “O campo de Vernet-les-Bains… Sob a administração de Vichy, o campo passou aos Alemães que o reconstruíram segundo planos de seus próprios campos de concentração”.

Erros: 1) trata-se do Vernet d’Ariège (Vernet-les-Bains: Pireneus Orientais), 2) os Alemães não o ocuparam senão em junho de 44, alguns dias após o desembarque na Normandia e 3) os grandes trabalhos no campo aconteceram em fevereiro e março de 1939.

Bartolomé BENNASSAR, La guerre d’Espagne (2004, Éditions Perrin) p. 425: “Na URSS a Pasionaria, à distância da comunidade espanhola, desfilava num automóvel de luxo. Seu marido Julian, exilado em Rostov, e seu filho Ruben, que morreu como herói diante de Stalingrado, foram sacrificados pelo partido.”

A aproximiação entre um julgamento de valor (negativo) contra uma mãe viste-me (uma vez que ela “desfilava”) e um fato (honroso) relativo a um filho heroico (uma vez que ele “morreu... diante de Stalingrado” me parece muito inoportuno. O marido foi “exilado em Rostov... sacrificado”? Em realidade: Julián Ruiz Gabina morreu aos 88 anos, em 1978, na sua vila natal de Somorrostro (Biscaia). Para que servem tais detalhes, sobretudo se eles são incorretos?

Paul PRESTON, La guerra civil española (2ª ed., 2004, DeBolsillo) p. 209 : “Negrin, Prieto y otros dirigentes republicanos escaparon a México, y pasaron alli el resto de sus vidas enzarzados en polémicas esteriles sobre a quien correspondia la responsabilidad de la derrota”.

Erro: Negrin viveu e agiu em Londres em 40-44; morreu em Paris em 1956. O autor coloca lado a lado Prieto e Negrín, com exagero (“el resto de su vida” e uma duração rápida (“polémicas esteriles”). Sólidos trabalhos contemporâneos (Enrique Moradiellos, Ángel Viñas) discernem significativamente as trajetórias, os papéis e as responsabilidades de Negrín e Prieto. Teria sido melhor que o autor discutisse o título redutor e conformista: “guerra civil española”: ver boletim n. 115, p. 5.

Hugh THOMAS, La guerre d’Espagne (1985, Robert Laffont) p. 734 : “Franz Dahlem foi liquidado na ocasião da limpeza que se seguiu à insurreição de Berlim em junho de 1953Erro: o n° 2, anterior à guerra, do PC alemão, foi vice-ministro do Ensino na RDA em 1967; ele voltou algumas vezes ao campo de Vernet em que tinha sido prisioneiro; morreu em 1981 em Berlim aos 90 anos.

In: Bulletin d’information de l’Amicale des Anciens Guerilleros Espagnols en France (FFI), 31de março de 2010, p. 2.

Dito isto, ao percorrer estas linhas, não se deve prejulgar a unanimidade da memória contra a história, não mais do que não se deve imaginar uma e outra unas e indivisíveis. As memórias são percorridas por divergências, e da mesma maneira a comunidade dos historiadores não é necessariamente um bloco, sempre e em todo lugar unida na fidelidade sem falhar à sua ética. Há também no seu seio linhas de fratura que, por mais discretas que elas sejam, não são por isso menos reais. As críticas de Sonia Combe referidas rapidamente anteriormente pertencem a essas divergências possíveis, que se poderiam ilustrar, aliás, abudantemente, ao referir a crônica das teses e contrateses que opõem os discípulos de Clio. Fornece disso um bom exemplo a historiografia da Ocupação, campo de batalha sobre o qual se enfrentam as interpretações resistencialistas, as hipóteses “imunitárias” e suas recusas (Dobry, 2003), as leituras oportunistas e sua denúncia (Laborie, 2011). Seu caráter de cientificidade não coloca a história ao abrigo dos ventos de memória, aos quais ela cede, levada num sentido ou em outro, a menos que acabe resistindo. O arquivo do mal, para voltar a ele, sua seleção, seu tratamento, se oferecem, portanto, também como um observatório privilegiado desta disciplina que é a história, do que funda a autoridade na matéria, da sua contestação e da possibilidade ou não de fazer coincidir postura científica e engajamento político.

Material suplementar
Referências
Cœuré, Sophie.; Duclert, Vincent. Les archives. Paris: La Découverte, 2011.
Cœuré, Sophie. La mémoire spoliée. Les archives des Français, butin de guerre nazi puis soviétique. Paris: Payot, 2007.
Combe, Sonia. Archives interdites. L’histoire confisquée. Paris: La Découverte, 2001.
Dobry, Michel (Org.). Le Mythe de l’allergie française au fascisme. Paris: Albin Michel, 2003.
Duclert, Vincent. L’avenir de l’histoire. Paris: Armand Colin, 2010.
Fassin, Didier.; Rechtman, Richard. L’empire du traumatisme. Enquête sur la condition de victime. Paris : Flammarion, 2007.
Hartog, François. Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris: Le Seuil, Coll Points Histoire, 2012.
Laborie, Pierre. Le chagrin et le venin. La France sous l’Occupation, mémoire et idées reçues. Paris: Bayard, 2011.
Lapierre, Nicole. Le cadre référentiel de la Shoah. Ethnologie française, XXXVII, 3, p. 475-482, 2007.
LAURENT, Sébastien (Org). Archives « secrètes », secrets d’archives? Historiens et archivistes face aux archives sensibles. Paris: CNRS Editions, 2003.
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TODOROV, Tzvetan. Les abus de mémoire. Paris: Arléa, 1995.
Wieviorka, Annette. L’ère du témoin. Paris: Hachette, 1998.
Notas
Notas
[1] Na França, a expressão “grande muette” designa o exército ativo, em razão das restrições feitas por lei às liberdades individuais dos militares (direito de voto, de expressão, de associação, etc.).
[2] A Retirada designa o êxodo dos 465.000 republicanos, guerrilleros e civis (170.000) que, em pleno inverno de 1939, passaram os Pirineus, logo após a queda da Segunda República espanhola e a vitória do general Franco. Diante deste fluxo, a França improvisou campos nos quais 350.000 desses republicanos foram internados em condições particularmente precárias.
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