Resumo: Uma das principais questões que tem impulsionado o debate sobre a Ditadura Civil-Militar (1964-1985) nessas duas primeiras décadas do século XXI, é a problematização que envolve o papel de setores sociais (indivíduos, instituições e coletividades) e suas vivências em tempos sombrios. Para além dos apoiadores e dos resistentes, dos algozes e das vítimas, dos torturadores e guerrilheiros, reivindica-se investigar como parcelas significativas, independentemente de suas posições na pirâmide social, relacionaram-se com o autoritarismo. Tendo o período da Ditadura como recorte, o futebol como tema, a Copa do Mundo de 1970 e os folhetos de cordel como objeto e fonte, este artigo analisa e exemplifica, a partir dos conceitos de consenso e consentimento, como foram complexas as relações de poetas brasileiros com o regime de exceção, particularmente no evento-chave mencionado.
Palavras-chave:DitaduraDitadura,FutebolFutebol,CordelCordel,Copa de 1970Copa de 1970.
Abstract: One of the main questions that has been boosting the debate about the Civil-Military Dictatorship (1964-1985) in these first two decades of the 21st century is the problematization that involves the role of social sectors (individuals, institutions and collectivities) and their experiences in dark times. Beyond the supporters and the resistance, the executioners and the victims, the torturers and the guerrillas, it claims to investigate how significant parcels, independently of their positions in the social pyramid, were related to the authoritarianism. With the Dictatorship as a snippet, football as the theme, the 1970 World Cup and the brazilian chapbooks leaflets as object and source, this article analyzes and exemplifies, from the concepts of consensus and consent, how complex were the relations of brazilian poets with the exception regime, particularly in the key event mentioned.
Keywords: Dictatorship, Soccer, Brazilian Chapbooks, 1970 World Cup.
Artigos
A Copa de 1970 nos folhetos de cordel: poesia, futebol e política em tempos de ditadura
Recepción: 03 Mayo 2020
Aprobación: 16 Agosto 2020
Artifício de salvação contra o esquecimento, também é lavoura, trabalho, suor, inteligência. Pede ao corpo concentração, requer das mãos alguma habilidade com a caneta e rascunhos, exige paciência para ver e rever tantas vezes quanto for necessário os mesmos versos. O cordel precisa de uma inscrição, de revisão, de impressão. Pede corte do papel, dobra de páginas, condução na bagagem, abrigo da chuva, proteção de arquivo, trabalho de pesquisa. Em troca, faz aquele a quem se entrega rir, chorar, romper com a temporalidade, se deslocar no espaço, transpor os limites do corpo que é frágil e da razão que calcina o sonho. (MELO, 2010, p. 26)
Ao pesquisar como o uso dos folhetos de cordel[2] aparece no campo historiográfico brasileiro, identifiquei inicialmente três variações. No primeiro momento, o daqueles classificados como factuais, históricos, ou jornalísticos, constatei que, em relação aos aspectos do conteúdo poético/textual, o cordel aparece identificado como sinônimo de história – ou seja, o que é apresentado é conteúdo verossímil, crível, relato confiável e não fantasioso sobre o acontecido. Uma representação do que ocorreu, pois foi escrito quase que simultaneamente ao relatado. Sobre essa característica, as estradas percorridas no campo da historiografia foram longas e tortuosas[3].
Outra constatação é que o próprio folheto como gênero literário tem uma história. Nesse caso, estamos diante da história do cordel português ou da história dos folhetos na Europa, ou, ainda, uma história do Cordel brasileiro (LUCIANO, 2012), com características e identidade próprias. Por fim, há o tipo de análise que pretendo aqui, que diz respeito à viabilidade de analisarmos essa produção como fontes, vestígios, indícios que trazem a possibilidade de interpretação de acontecimentos, processos e conjunturas dentro dos procedimentos teórico-metodológicos que caracterizam a História como uma área autônoma, mas não isolada, de produção de conhecimento.
Ao trabalharmos com os folhetos como fonte/objeto, faz-se necessário pontuarmos alguns critérios. Sempre que possível, verificar autoria, local de publicação, editora, data de publicação, características físicas e estéticas do suporte. Depois, vale a pena uma reflexão sobre as propriedades poéticas – métrica, rima, estrutura – e, por fim, a crítica do conteúdo em cruzamento com outras fontes, sempre imprescindível.
Foi a partir desses dados que optei por trabalhar com as obras poéticas que classifiquei como “factuais”, assinadas por quatro autores: Severino Manuel, Manoel D’Almeida Filho, José Soares e Carolino Leóbas. Destaco que a identificação da autoria é de suma importância visto a existência de diversos folhetos sem o nome de quem os escreveu. Nesse sentido, já indico aos leitores dois recortes de fundamental importância. Afasto-me das dezenas de categorias que cercam o universo cordelístico, tais como: romances, fantasias, religião, cangaço, sátiras, dentre outros, concentrando-me nas do campo dos “acontecimentos” e reduzo o foco interpretativo para um tempo específico, a ditadura civil-militar (1964-1985), mais precisamente no período da Copa do Mundo de 1970. Ressalto que são obras produzidas no mesmo contexto, visto que temos inúmeros folhetos sobre a ditadura que foram elaborados e publicados na redemocratização pós-1985. Portanto, adotei três tipos de recortes: temático, autoral e temporal. Por saber que nos estudos literários essa tentativa de separar a produção dos folhetos por áreas temáticas não contribuiu para sua sistematização, registro que a estratégia aqui adotada é puramente metodológica, não classificatória[4].
Por que o folheto de cordel como fonte histórica para pensar a Copa de 1970 e a ditadura? Entendo que ainda são raras as análises na historiografia sobre a ditadura no Brasil que tenham como foco os setores considerados “populares”, no sentido de se compreender como o regime autoritário foi percebido e vivenciado pelos estratos marginalizados de nossa sociedade. Não se pretende afirmar que esse tipo de impresso só é produzido e consumido pelos pobres – na perspectiva econômica – e desvalidos. Ele circula inegavelmente entre os vários grupos sociais, mas, ao marcar presença prioritariamente em feiras, praças e mercados populares e ter um preço acessível, atinge com mais intensidade os desfavorecidos. Como ressaltou a historiadora Ângela Grillo, sem perder de vista o conceito de circularidade cultural, “[...] trata-se de uma cultura produzida por populares, que mesmo alfabetizados e tendo acesso à impressão de texto, não se distanciam do público ao qual se destina sua obra” (GRILLO, 2015, p. 40).
Ressalta-se que o próprio folheto de cordel tem sido utilizado nas análises sobre a “Era Vargas” com excelentes resultados no campo historiográfico e em outras áreas (CABRAL, 2018;LESSA, 1973). Contudo, em relação à ditadura civil-militar instalada em 1964, ainda não vemos estudos sistemáticos que possam consolidar os folhetos de cordel como fonte, permeada que é de características muito particulares para a análise do período.
Acrescento, ainda, que estamos no contexto de passagem da efeméride dos 50 anos da conquista da seleção masculina de futebol no México, o que é sempre uma oportunidade para revisitarmos o acontecimento e seu contexto, principalmente para os pesquisadores e pesquisadoras que se dedicam a estudar a ditadura civil-militar no Brasil.
A ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) tem sido objeto de importantes reflexões na nossa historiografia. Autores das diversas regiões do País e de diferentes perspectivas teóricas têm produzido e orientado relevantes trabalhos que vêm contribuindo para a necessária revisão historiográfica que marca os estudos sobre o período nessas duas primeiras décadas do século XXI[5].
Não necessariamente concordando entre si, as novas pesquisas – muitas vezes em diálogo com autores europeus e latino-americanos que se debruçaram sobre as construções sociais e produções memoriais das sociedades que passaram por regimes autoritários – trazem conceitos, estudos de caso, ensaios e provocações que movimentam, positivamente, o universo dos pesquisadores que se interessam pelo estudo acadêmico sobre a Ditadura[6].
Um dos autores mais referenciados, entre consensos e dissensos, é Daniel Aarão Reis Filho, principal responsável por chamar a atenção dos novos pesquisadores para a necessidade de estudarmos as estruturas que possibilitaram a permanência dos militares no poder para além do medo, da repressão e da propaganda. As provocações originais de Reis sobre as características do golpe de 1964 e da ditadura que se instalou, presentes em diversos escritos de sua autoria, podem ser sintetizadas na apresentação escrita pelo autor na obra de Lívia Gonçalves Magalhães,
As ditaduras, reconstruídas como regimes verticalmente impostos, aparecem como parênteses, felizmente fechados, desaparecendo como por encanto as bases sociais e históricas que lhes deram sustentação. São exatamente essas bases – fundamentos sólidos – que têm, cada vez mais, atraído a atenção dos que se interessam pela história das ditaduras – no Brasil e na América Latina. Recorrendo às referências da história política renovada e da história cultural, pesquisadoras e pesquisadores tentam investigar, compreender, explicar e interpretar as complexas relações estabelecidas entre as sociedades e os regimes ditatoriais. (REIS, 2014, p. 07)
Especificamente sobre o futebol, área que nos interessa para os objetivos deste artigo, escreveu Reis,
É interessante observar que, apesar de sua inegável centralidade na vida social brasileira e latino-americana, o futebol tenha custado tanto a entrar na ‘linha de mira’ dos que trabalham no campo das chamadas ‘ciências humanas’. Pouco a pouco, porém, e felizmente, tem ganho um lugar de destaque – merecido. (REIS, 2014, p. 07)
Do futebol como atividade cultural, esportiva e econômica, fechando o foco para a análise do maior evento da modalidade, a Copa do Mundo, temos um importante momento para analisarmos como em contextos específicos, grupos sociais heterogêneos e divididos se dão as mãos, abraçam-se e se confraternizam com ditadores, num verdadeiro carnaval em que as marchas militares dão lugar às marchinhas do apoio deliberado, da colaboração, do consenso, do consentimento, ou simplesmente da indiferença que acomoda e silencia, em jogos complexos.
Seguindo a análise de Lívia Magalhães, pesquisadora que estudou as relações entre sociedade, Copa do Mundo e Ditadura no Brasil e na Argentina, “nas Copas do Mundo, o torcer com o regime, agradecendo, por exemplo, a conquista, é uma expressão que deve ser pensada e interpretada a partir dessas relações de consentimento” (MAGALHÃES, 2014, p.15). Trabalhando o consenso a partir de diferentes contribuições (REIS, 2010;RIORDA, 2006;ROLLEMBERG; QUADRAT, 2010) a autora reflete sobre a importância de pensarmos “o consenso como a procura de um acordo político operante, que envolve, no mínimo, duas partes. [...] um consenso que, diferentemente do que induz a palavra, não significa uma unanimidade entre os diversos atores sociais envolvidos” (MAGALHÃES, 2014, p. 16). É com essa perspectiva, a do consenso em múltiplas faces, que esse texto pretende dialogar.
Ao analisarmos algumas das ditaduras mais emblemáticas do século XX na Europa e América Latina, temos vários casos da tentativa da utilização do esporte para fins políticos. De acordo com Magalhães (2014, p. 12), “Os exemplos sobre o uso político do futebol são diversos, como a Copa do Mundo de 1934, na Itália, então governada por Benito Mussolini. O evento foi utilizado como propaganda pelo regime fascista, e, a vitória da seleção anfitriã, explorada como sinônimo da superioridade do modelo italiano”. No mesmo sentido, Ricardo Serrado, estudioso das relações entre futebol e política em Portugal, destacou que “O nazismo de Hitler desenvolveu uma política desportiva claramente racial e extremamente nacionalista. Os jogadores de futebol e todos os desportistas passaram a ser, ainda antes dos Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, propriedade do Estado [...]” (SERRADO, 2012, p. 71). Ao analisar de forma comparativa os casos da Itália, Alemanha, Espanha e Portugal, Serrado reflete sobre a necessidade de diferenciarmos os usos políticos de uma possível vitória em momentos de forte mobilização social, da interferência deliberada dos regimes autoritários fazendo do futebol uma política de Estado, independentemente dos resultados em eventos internacionais.
No que diz respeito ao regime italiano, a constatação citada por Magalhães sobre a utilização de uma conquista como propaganda muito mais que uma interferência sistemática, é corroborada pela análise do autor português:
[...] não obstante se afirmar (não sabemos se de forma sustentada ou não) que Mussolini aproveitou o futebol no mundial de 1934 e interferiu com a arbitragem para auxiliar a squadra azurra a tornar-se campeã do mundo de futebol, o caso é mais dúbio. Parece-nos, aliás, injusto para esses futebolistas italianos de grande valia e para Vittorio Pozzo, um dos melhores treinadores de todos os tempos, que não se atribua esse título ao seu valor, mas a uma suposta politização do acontecimento. Devemos dizer que, apesar de não termos dados, não nos parecerá crível que El Duce tenha tido qualquer intervenção nesse mundial. Mussolini não tinha esse poder junto da FIFA. Para mais, a Itália volta a sagrar-se campeão (sic) do mundo quarto (sic) anos depois, em França, mais ou menos com a mesma equipa e orientada pelo mesmo seleccionador, sem a alegada intervenção de Mussolini. (SERRADO, 2012, p.71)
No segundo aspecto – o da tentativa sistemática do uso político – a ditadura franquista na Espanha é considerada emblemática. A esse respeito, Serrado esclarece:
[...] Neste caso sabemos que o desporto foi fortemente valorizado pelo franquismo, inclusive o futebol, que serviu, em certa medida, para legitimar o seu regime ainda antes do fim da guerra civil espanhola (1936/1939), em dois jogos organizados por Franco entre a selecção portuguesa e uma seleção franquista (que se auto-intitulava espanhola). Em 28 de Novembro de 1937, em plena guerra civil, a Espanha de Franco defronta Portugal em Vigo, num jogo extremamente politizado por Franco, que a equipa lusa venceu por 2-1. Um mês depois, no dia 30 de Janeiro, em Portugal, realiza-se novo jogo entre as duas equipas, saindo vencedora de novo a equipa lusa, desta feita por 1-0. (SERRADO, 2012, p. 71-72)
Outro exemplo importante vem da Alemanha. Com a chegada de Hitler ao poder, nomeado chanceler do terceiro Reich em janeiro de 1933, dá-se início a uma aproximação entre os agentes do Estado com a então Federação Alemã de Futebol (DFB), entidade privada responsável pela gestão do futebol profissional naquele país. Alternando gestões com objetivos mais comerciais e outras nas quais o nacionalismo era o foco – principalmente o período da Primeira Guerra Mundial –, a DFB foi uma das grandes beneficiárias do processo de estatização que marcou o desporto alemão na década de 1930. Segundo Nils Havemann, “ [...] Embora o futebol, como todas as áreas da vida social, estivesse sob controle do regime nazista, dispunha ainda de tanto espaço próprio que dava a impressão de gozar de uma liberdade – quando, na verdade, apenas se tratava de uma autonomia vigiada” (HAVEMANN, 2010, p. 249). Entretanto, mesmo tendo alcançado o terceiro lugar na Copa do Mundo de 1934, a DFB foi uma das principais atingidas pelo fracasso alemão nas Olimpíadas de 1936 e foi substituída pela “Associação Alemã de Futebol, sob o comando do dirigente esportivo do Reich, Von Tschammer und Osten” (HAVEMANN, 2010, p. 253).
No Brasil de 1934, o momento era de aprovação de nova Constituição, profissionalização do futebol e início da evasão de atletas brasileiros para outros centros (CARRARA, 2012). A ampliação do alcance radiofônico – mesmo sem realizar transmissões ao vivo – para as diversas regiões do país, é também um importante fator a ser destacado no processo de popularização do futebol no ano da segunda Copa do Mundo. Ressalta-se, claro, o contexto de turbulência em tempos de perseguições políticas e jogadas autoritárias sob o comando de Getúlio Vargas. O principal personagem da seleção era Leônidas da Silva, o atleta que ficaria conhecido como “Diamante Negro” e que ainda hoje é dono da maior média de gols pela seleção masculina de futebol.
Atento à popularização crescente do futebol e o seu possível uso na colheita de resultados políticos, Getúlio recebeu a comitiva no Palácio do Catete antes do embarque dos atletas para a Itália. “[...] Vargas mostrou sua preocupação com o desempenho da seleção” (CARRARA, 2012, p. 167). Na cobertura jornalística feita pelo jornal O Estado de São Paulo, consta que o presidente teria sublinhado que “a missão não era somente de caráter esportivo, mas envolvia o desempenho de um dever cívico em prol de representação brasileira no estrangeiro” (EMBARCAM..., 1934, p. 5 apud CARRARA, 2012, p. 168), e teceu elogios ao regime fascista italiano. Não adiantou. Na única partida disputada pela seleção naquela Copa, a Espanha venceu por 3x1 e nos eliminou.
Após quatro anos, agora com a Ditadura do Estado Novo (1937-1945) implantada sem maiores maquiagens, surgira mais uma chance do mesmo Vargas tentar angariar para seu governo os possíveis ganhos políticos que a vitória da competição internacional traria em termos de apoio popular. De acordo com Lívia Magalhães (2014, p. 42), Vargas não teve dúvidas ao “associar a própria seleção ao povo brasileiro [...]. Além disso, pela primeira vez os jogos seriam transmitidos pelo rádio, o que significou uma nova forma de participação do torcedor, justamente o meio de comunicação que era característico do presidente”. O aparelho, na década de 1930, paulatinamente teve seu preço popularizado e deixou de ser um privilégio das elites. Destaca-se, ainda, o fato de a filha do presidente, Alzira Vargas, ter aceito o convite para ser a “madrinha” da delegação brasileira, e enviou telegrama com o seguinte teor: “[...] desejo levar-vos, como madrinha e como brasileira, a reafirmação da minha confiança em vossos esforços. Estou certa de que o bom nome esportivo do Brasil está garantido em vossas mãos” (TELEGRAMA...,1938, p. 13 apud CARRARA, 2012, p. 172). Não é novidade para os especialistas no estudo do torneio de 1938 que, mais uma vez, no aspecto esportivo, o desejo do ditador e de sua filha não trouxe nenhum ganho. A seleção foi eliminada nas semifinais. Porém, em termos de popularidade dos atletas, ao retornar da França, país que sediou a competição, “a seleção foi recebida com grande festa no porto do Rio de Janeiro” (MAGALHÃES, 2014, p. 42).
Nos anos de 1942 e 1946, em decorrência da Segunda Guerra, não houve torneio, e Vargas, ironicamente, depois de ter sido deposto em 1945, seria um dos principais beneficiados pelo resultado do torneio seguinte. Já sob a égide do regime democrático, o desencanto popular após a derrota da seleção brasileira em casa, diante de duzentos mil torcedores, no famoso Maracanazzo de 1950[7], gerou uma comoção nacional. O general Eurico Gaspar Dutra, presidente em fim de mandato, ficaria com o ônus da derrota no campo político e viu crescer o movimento “queremos Vargas”, que seria vitorioso naquele pleito (BRENHA; SZATMARI, 2013). A vitória de Getúlio nas urnas não se deve exclusivamente à ressaca pelo trauma da derrota esportiva, mas fica o registro que o candidato de Dutra, Cristiano Machado (PSD), amargou um simplório terceiro lugar, ficando atrás de Eduardo Gomes (UDN) e o vitorioso Vargas (PTB), que foi eleito com quase 49% dos votos[8].
A próxima Copa que o Brasil jogaria sob regime ditatorial seria a de 1966. Passados 28 anos do insucesso varguista de 1938, o contexto esportivo e político era outro. Agora tínhamos dois títulos mundiais (1958/1962), conquistados sob vigência democrática – com todos os seus limites – e os fardados tinham assumido o protagonismo político após o Golpe Civil-Militar de 1964. No comando, o general cearense Humberto de Alencar Castello Branco. Na seleção nacional, os nomes mais conhecidos eram Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, e Manoel Francisco dos Santos, “Mané” Garrincha. Essa é considerada por muitos, até hoje, a maior dupla de atacantes do futebol brasileiro. Seria a última participação de Garrincha em disputas mundiais.
A competição foi disputada na Inglaterra. Seguindo a tradição construída desde os anos 1930, o general presidente recebeu os jogadores, “demonstrando seu apoio de confiança no time”, relembrou Magalhães (2011). Entretanto, a participação da seleção nacional foi um desastre. Desclassificada ainda na primeira fase, vira desaparecer naquele ano a chance de conquistar definitivamente a Taça Jules Rimet, já que esta passava ao novo vencedor a cada quatro anos e só seria o seu proprietário definitivo aquele país que conquistasse a competição por três vezes. Os donos da casa sagraram-se campeões apresentando um futebol considerado “duro” e violento. O dirigente da entidade que geria o futebol brasileiro em 1966, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) era João Havelange, nome que aparecerá com mais destaque nas linhas seguintes. De acordo com Sarmento, o retorno da delegação ao país foi delicado e a decepção foi tanta entre os civis e militares no poder que “o caso chegou a ser investigado pelo Serviço Nacional de Informações” (SARMENTO, 2006 apud MAGALHÃES, 2014, p. 52). Houve também o recolhimento de assinaturas pelo deputado federal Anísio Rocha objetivando uma investigação. A pressão foi sentida por todos e dali em diante tudo deveria ser preparado nos mínimos detalhes para que na copa seguinte o vexame não se repetisse e, enfim, a Ditadura pudesse melhorar sua popularidade com o ufanismo e a euforia que um possível êxito traria.
E a vitória veio. México. 1970...
Na próxima seção nos debruçaremos sobre a análise dos impactos do tricampeonato mundial para um possível aumento da popularidade do general Garrastazu Médici, então presidente; investigaremos de que maneira os poetas situados na base da pirâmide social associaram o feito em campo com a política nacional; e, por fim, sempre a partir da análise dos folhetos de cordel como percurso metodológico, a problematização se a ditadura no Brasil foi eficiente ao utilizar a Copa do Mundo como instrumento de potencialização do orgulho nacional.
O cordelista Severino Manuel de Souza Júnior, que assinava suas obras como Palito, apresentava-se como diretor-proprietário de sua tipografia, a Serviços Gráficos em Geral, Rua João Elísio, 70, na localidade conhecida como Mangueira, em Recife. Seu folheto comemorativo à vitória da seleção brasileira de futebol na copa de 1970 (Figura 1) começou informando que o texto foi fruto de uma inspiração divina, e relatou a alegria que tinha tomado conta do País. Cabe-nos destacar que seu livreto[9] possui as indicações do local da publicação – Recife –, as páginas são numeradas, porém não é datado. A dedução de que foi publicado no contexto das comemorações do tricampeonato tem como base as informações presentes na capa e no corpus textual.
Manuel escrevia em sextilhas, estrofe composta de seis versos, cada um com sete sílabas poéticas, sendo que a forma mais utilizada – não a única – é a que rima o segundo, quarto e sexto versos, facilmente visualizados na sequência ABCBDB. Já na segunda estrofe, Severino Manuel (PALITO, 1970, p. 01, grifos nosso) apresentou alguns personagens que figuram em qualquer álbum futebolístico daquele torneio:
A Deusa da Poesia (A) me mandou neste segundo (B) Rimas para que eu verse (C) com o meu valor profundo (B) Analisando o que houve (D) na nona Copa do Mundo! (B) O Brasil está alegre por ser o tri-campeão Foi ao México e voltou trazendo a Taça na mão Na frente o Rei Pelé Jairzinho e Tostão[10]
O passo seguinte de Palito (PALITO, 1970, p. 02) foi narrar os placares das vitórias do escrete canarinho numa sequência que leva o leitor até à grande final com a seleção italiana no dia 21 de junho.
Chorou a Tchecoslováquia dos 4X1 que levou 1X0 da Inglaterra o mundo em peso gostou A rainha e seu reinado da Copa se retirou O jogo com a Romênia poderia ser fatal Mas Pelé e Jairzinho no come-come infernal Marcaram os 3X2 a vitória foi legal
Foram essas as três primeiras vitórias da seleção naquela Copa – Tchecoslováquia, Inglaterra e Romênia – e os referidos resultados. Trata-se da primeira fase do torneio e os jogos seguintes seriam eliminatórios. Até esse momento, não há menção ao contexto político brasileiro. As vitórias seguintes sobre as seleções do Peru e do Uruguai foram analisadas com mais detalhes. Sobre a primeira, a descrição da euforia de um torcedor emocionado: “A vitória do Brasil/ Guadalajara vibrou/ um torcedor nesta hora/ de emoção até chorou/ os 4X2 da derrota/ que no passado ficou” (PALITO, 1970, p. 04). Após passar pelo Uruguai, em jogo realizado no dia 17 de junho, no Estádio Jalisco, em Guadalajara – para alguns a partida mais difícil daquela competição (TOSTÃO, 2016 apud ALVES, 2020) – o time comandado pelo alagoano Mário Jorge Lobo Zagallo chegou à final como grande favorito. A decisão contra a seleção italiana e a festa que tomou conta da cidade do Recife após o fim do jogo foram descritas nas últimas doze estrofes do folheto de Severino, das quais extraímos as mais simbólicas (PALITO, 1970, p. 06):
O jogo com a Itália foi de tamanha alegria O placar foi 4X1 a vitória já se via O Brasil entrou em campo e venceu com galardia (sic) Um rapaz junto de mim olhando a televisão Deu um salto para traz meteu a cara no chão Foi abraçar um amigo pensando ser o Tostão Na cidade de Recife o carnaval começava As bandeiras se erguiam E todo povo aclamava Brasil, Brasil, meu Brasil e a copa terminava
Essa última é a estrofe de número 22 do folheto de Severino. Embora passe a ideia de fim, o leitor ainda terá muitas rimas e métricas até o desfecho de sua poesia comemorativa. O poeta pernambucano escolheu seu herói. Não foi o general Médici nem o técnico Zagallo. Aliás, a política nacional passa ao largo de sua pena como também a questão institucional que envolvia a então Confederação Brasileira de Desportos (CDB), antecessora da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e totalmente alinhada com a ditadura na figura do dirigente João Havelange[11]. E assim Palito concluiu (PALITO, 1970, p. 08, grifo nosso):
Do mundo o povo já sabe A canarinha quem é A Taça Jules Rimet símbolo de ambição e fé Hoje pertence ao Brasil E o seu nome é Pelé
Fica claro que, em nenhum momento, Palito atribui a vitória da seleção canarinho ao general que comandava o País. Seus principais personagens são os atletas. O tema central de seu folheto, que recebeu o título Brasil Tri-Campeão do Mundo, com o subtítulo “campeão dos campeões”, é a narrativa dos jogos da seleção. Silenciar sobre a repressora ditadura pode ter sido uma estratégia de Severino para não sofrer represálias. Ao mesmo tempo, é importante destacarmos que esse silêncio também possui outra face, ou seja, a de não atribuir ao general Médici o papel de principal responsável pelo feito conquistado nos estádios mexicanos. Com inegável notoriedade, o herói de sua poesia é Pelé.
A segunda obra que analisamos é assinada por um dos grandes poetas de sua geração. Manoel D’Almeida Filho, paraibano que fixou residência em Sergipe, foi revisor de uma das mais conceituadas editoras de folhetos do país, a Luzeiro, de São Paulo, fundada em 1952 com o nome de Prelúdio. Vivendo em Aracaju entre 1940 e 1995, ano do seu falecimento, foi provavelmente nessa cidade que escreveu Brasil Tri-Campeão do Mundo[12]. Na capa (Figura 2), a fotografia do capitão Carlos Alberto Torres erguendo a taça, o nome do autor e o preço de venda, Cr$ 0,50 (50 centavos de cruzeiro). Se levarmos em conta que o salário mínimo vigente em 1970 era de Cr$ 187, 20 (cento e oitenta e sete cruzeiros e 20 centavos)[13], o cordel tinha um preço que podemos chamar de popular. O que não quer dizer que só pessoas de baixa renda liam os poemas, mas sim, que estavam acessíveis a todos, inclusive aos assalariados. Registre-se que o objetivo principal de todo escritor é vender suas obras para o maior número possível de leitores. Para o poeta profissional, sua arte é seu sustento. Manoel não era diferente. Certamente, ao publicar seu folheto sobre a Copa, sua meta era que ele atingisse o grande público.
E começou assim suas sextilhas (D’ALMEIDA FILHO, 1970, p. 01):
O Brasil no futebol sempre foi senhor de si Na Suécia Campeão Depois no Chile foi Bi Para somente em setenta Partir em busca do Tri
Na construção de seu texto, o autor paraibano volta à fase das eliminatórias da Copa e passa pela convocação, citando um a um os 22 escolhidos. Conhecido por sua rigorosidade na métrica e na rima, D’Almeida Filho desfila toda sua criatividade e domínio preciso da técnica cordelista ao longo de 39 estrofes distribuídas em oito páginas. Cada jogo é narrado em detalhes. Na final contra a Itália, o autor apresenta a partida gol a gol (D’ALMEIDA FILHO, 1970, p. 06-07, grifo do autor),
Pelo REI DO FUTEBOL Foi feito o primeiro tento Mas a Itália empatou Aumentou nosso tormento Findou-se a primeira etapa Sem passar o sofrimento Porém no segundo tempo Gérson desencabulou Chutou de fora da área O jereré balançou No grito do locutor o Brasil todo vibrou Daí para a frente nós Só pensávamos na glória Jairzinho fez mais um... Para aumentar nossa História E depois Carlos Alberto Selou a nossa vitória
De maneira semelhante ao vate Palito, as comemorações compõem o enredo das estrofes finais. Registre-se que, nesse livreto específico, o autor silencia sobre o fato de a Copa ter sido vencida num tempo marcado pela repressão, perseguição e autoritarismo amparado pelo Ato Institucional número 5 que vigia desde dezembro de 1968, o AI-5, instrumento jurídico de exceção que, na prática, fechou o Congresso Nacional, suspendeu o habeas corpus, estabeleceu a censura prévia e deu poderes supremos aos generais que ocuparam a presidência da República. Parece que, para esses poetas e, provavelmente, seu público-leitor, o tempo era mesmo de euforia e de comemorações. “O placar com quatro a um/ Veio o apito final/ A Taça já era nossa/ Feito Sensacional/ O Brasil vibrou em peso/ No mais lindo carnaval”, escreveu Filho (D’ALMEIDA FILHO, 1970, p. 07), completando em seguida:
Fogos subiram nos ares Acompanhando os balões Muitas bombas espocaram No prazer dos foliões Os copos se levantaram Saudando os Tri-Campeões Enquanto isso acontecia Quando o Brasil festejava Carlos Alberto no México A linda Taça beijava Já nossa definitiva Todo o povo delirava
Essa não foi a única obra de Manoel D’Almeida Filho sobre o torneio. Em uma publicação de 33 páginas – a mais densa e bem elaborada a que tive acesso –, com capa colorida e selo da editora Prelúdio (Figura 3), o menestrel nordestino produziu uma longa narrativa sobre as três competições mundiais vencidas pelo Brasil.
O que chamou a atenção, no que diz respeito ao conteúdo, foi que, diferente da publicação anterior, na qual o silêncio sobre Médici foi sintomático, agora o ditador-presidente ganhou destaque. Depois de longas descrições em sextilhas de cada jogo vencido pela seleção brasileira nas duas primeiras Copas, o bardo paraibano republicou alguns trechos do folheto anterior e fez acréscimos significativos. Assim registrou D’Almeida Filho ([1970?], p. 27-28, grifos nosso),
Recebidos em Brasília Pelo nosso Presidente Emílio Garrastazu Uma figura eminente, E demais autoridades, No mais festivo ambiente. Num cortejo de triunfo Ao Alvorada levados Onde pelo Presidente, Os recepcionados, Numa emoção incontida, Foram todos abraçados. Nosso grande Presidente, Falando como profeta Disse que a nossa vitória, Para a glória ser completa, Seria de quatro a um... Acertou dentro da meta.
Nosso terceiro autor a escrever sobre a conquista no México também nasceu na Paraíba, curiosamente na mesma cidade de Manoel D’Almeida Filho, Alagoa Grande, terra do não menos famoso Jackson do Pandeiro. Nascido em 1914, José Francisco Soares já era escritor experiente em 1970. Aos 56 anos havia publicado centenas de livretos, visto que, segundo seus dados biográficos, rabiscou as primeiras sextilhas em 1928. Depois de passar um tempo morando no Rio Janeiro, fixou residência em Pernambuco, na cidade de Timbaúba, onde faleceu em 1981 (SOARES, M., [20--])[14]. Na capa do folheto Brasil Campeão do Mundo – 1970 (Figura 4), a mesma característica dos dois anteriores, ou seja, a xilogravura ainda não aparece como um componente obrigatório da estética dos livretos, questão já levantada com muita pertinência por pesquisadores do tema (CABRAL, 2014, p. 148-162). A taça Jules Rimet dividiu o protagonismo com o nome do País.
José Soares também escreveu em sextilhas. A estratégia de introdução é a mesma do poeta Severino, o Palito, que inicia seu folheto com o êxtase das comemorações: “No Estádio El Jalisco (sic)/ No México, Guadalajara/ O Brasil ganhou a Copa/ Coisa que está na cara/ Trouxe o Canecão de ouro/ Uma coisa muito rara” (SOARES, 1970, p. 01)[15].
Outra característica do texto de Soares que se aproxima muito das sextilhas de Severino e Manoel D’Almeida é o ufanismo, porém, há uma peculiar diferença. Nas folhas escritas por Soares, aparecem outros personagens que não atuaram em campo. Depois de mencionar os atletas Jairzinho, Rivelino, Pelé e Didi, o poeta sublinha o polêmico jornalista e técnico João Saldanha, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), conhecido pelo epíteto de “João sem medo”, que tinha classificado a seleção para o mundial e conduziu a equipe até março de 1970 quando foi demitido pelos dirigentes da CBD (AS 24 HORAS..., 1970, p. 18). Seis dias depois, a seleção embarcou para o México e Soares (1970, p. 02, grifo nosso) registrou:
Veio o time de Didi Todo vestido de azú (sic) João Saldanha ia chegando E perguntou a Edú (sic) Parece que vai ter festa Tem aí tanto Perú (sic)
Percebe-se que, mesmo não sendo mais o treinador, João Saldanha está presente na narrativa. É que, embora afastado, ele foi assistir à final contra a Itália. A saída de Saldanha foi tema de especulações sobre a interferência de Emílio Garrastazu Médici na comissão técnica da seleção brasileira. O motivo principal, além de questões ideológicas incontornáveis, foi a resposta dada por “João sem medo” à imprensa quando questionado sobre a sugestão do general para que o treinador convocasse o atacante Dario, o Dadá Maravilha, que jogava no Atlético de Minas Gerais. A resposta, carregada de ironia, foi direta:
O Brasil tem 80 ou 90 milhões de torcedores, de gente que gosta de futebol. É um direito que todos têm. Aliás, eu e o presidente, ou o presidente e eu, temos muitas coisas em comum. Somos gaúchos, somos gremistas e gostamos de futebol...e nem eu escalo o ministério, nem o presidente escala time. Você tá vendo que nos entendemos muito bem. (VICTOR, [201-])[16]
A não submissão à vontade do ditador teria sido o principal motivo de sua demissão. Durante anos, a saída do técnico ficou no campo das especulações ou apenas com a versão de Saldanha nas diversas entrevistas que concedeu nos anos seguintes. Mas, felizmente, jornalistas esportivos e pesquisadores da história do nosso futebol contribuíram para que cada vez mais as dúvidas fossem superadas.
Lívia Magalhães, em incontornável artigo sobre as disputas memoriais que envolvem a Copa, esclarece-nos que a demissão de Saldanha não foi decorrência de um fato isolado, mas por uma sucessão de atitudes do treinador, não atribuindo a saída do técnico exclusivamente em função de suas posições políticas. Todavia, aceita-se “que elas podem ter sido uma influência [...], porém não são capazes de justificar por si só a polêmica atitude que expôs tanto a CBD como o próprio Ministério” (MAGALHÃES, 2014, p. 124).
Em reportagem reveladora publicada pelo jornal O Globo, em abril de 2004, assinada por Fellipe Awi, Pedro Gueiros e Tadeu de Aguiar, foram lançadas mais luzes sobre o caso:
[...] a interferência gerencial do governo militar na seleção brasileira é um fato, como relata o coronel Ronaldo Coutinho, irmão do falecido Cláudio Coutinho, supervisor em 1970 e técnico em 1978. [...] Houve realmente intervenção. O então ministro da Educação, Jarbas Passarinho, chamou o meu irmão para uma reunião em Brasília e pediu que assumisse a supervisão da seleção, dizendo que a comissão ia ser trocada, que já tinha acertado tudo com o Havelange (João, então presidente da CBD) – revela Ronaldo, integrante das tropas vindas de Juiz de Fora, que precipitaram a queda do presidente João Goulart. (GOVERNO..., 2004, p. 54)
Entrevistado para a mesma reportagem, o coronel Wenceslau Malta, ex-instrutor da Escola de Educação Física do Exército (EsEFEx) – instituição que tinha fortes ligações com a CBD – afirmou que não foi necessária uma ordem expressa de Médici. Segundo ele, “[...] Foi como no governo de Itamar Franco, em que o presidente falava de sua paixão pelo fusquinha e, para lhe agradar, decidiram remontá-lo. Todos querem adular o homem lá de cima” (GOVERNO..., 2004, p. 54).
Consideramos que a entrevista de João Saldanha sobre a polêmica que envolveu Dadá Maravilha foi mesmo a gota d´água de um processo mais lento. Fica claro que o coronel Wenceslau Malta não desmente a afirmação do oficial Ronaldo Coutinho sobre a interferência do ministro Jarbas Passarinho, muito mais próximo hierarquicamente do general Médici que ele. Não cairia bem para a liturgia do cargo o próprio chefe do executivo nacional reunir-se com cartolas do futebol para interferir diretamente na troca do comando técnico. Contudo, é plausível e lógico que o ministro tenha sido o mensageiro, visto que, na pirâmide militar, fazia parte do mesmo círculo hierárquico dos fardados da Comissão Técnica da seleção, os coronéis. No centro dessas decisões figurava o dirigente civil João Havelange[17].
José Soares (1970, p. 08, grifos nosso), ao encerrar seu folheto composto por 29 estrofes, não deixou Havelange de fora. Ele aparece ao lado de mais dois nomes emblemáticos daquela conquista e dos anos posteriores, Zagalo – o substituto de João Saldanha – e o general-presidente.
Um torcedor do Botafogo Aproveitou o embalo Quando Zagalo chegou Correu logo p’ra beijá-lo Aí beijou João Saldanha Pensando que era Zagalo Na casa de Everaldo No Rio Grande do Sú (sic) Houve farra de cerveja Vinho do Porto e Pitú Dando viva a Havelange Zagalo e Garrastazú
Soares conseguiu reunir nos dois últimos versos três símbolos que compõem as memórias daquela conquista. Médici, como o poder político; Havelange, o poder institucional; e Zagallo, como o líder esportista. Se, ao longo do folheto, os atletas – com destaque para Pelé – foram exaltados, o desfecho ficou reservado para a cúpula. Seria um sintoma de que o público leitor dos folhetos concordava com o autor? Outro vate nos ajuda na busca dessa resposta.
Sob o título de A nossa copa do mundo e o abraço da vitória, Carolino Leóbas, poeta baiano que passou parte de sua vida em Mato Grosso e Brasília, prestou sua homenagem aos tricampeões. A capa também não apresenta xilogravura, mas uma grande fotografia de Pelé com o agasalho da seleção (Figura 5). O folheto custava Cr$ 1,00 e a contracapa trazia uma dedicatória ao pesquisador francês Raimond Cantel: “ofereço este livrinho de minha autoria ao ilustre professor Cantel Raimond (sic) em sinal de admiração e estímulo. Carolino Leóbas. Rua da Poeira, 63. Salvador, 22-7-70. Estado Bahia”. Nota-se que seu nome não aparece na arte visual de abertura. Sua opção foi assinar apenas no fim do folheto e inserir sua fotografia na última folha. Como os casos de plágio eram comuns, incluir a fotografia foi um recurso utilizado por vários autores para assegurar seus direitos autorais. A gráfica ou editora não aparece no exemplar a que tive acesso.
Diferente dos três autores anteriores, Leóbas apresentou seu livreto em septilhas, ou seja, em estrofes compostas de sete versos, com característica musical, pois a rima deve aparecer em dois momentos. Os segundo e quarto versos devem rimar com o sétimo, e o quinto com o sexto, na estrutura ABCBDDB. É aí que está o segredo para a fácil memorização e sua peculiar musicalidade. Nunca é demais ressaltarmos que os folhetos eram escritos para serem lidos, mas, sobretudo, declamados para um grande público nas feiras e praças do País, não apenas no Nordeste, registre-se. Muitas vezes, a venda diária dependia da desenvoltura do escritor em recitar ou declamar sua arte e atrair a atenção do maior número de curiosos. Essa performance poderia seduzir tanto analfabetos como letrados. Leóbas (1970, p. 01, grifos nosso) escreveu e certamente declamou:
Sei que todo brasileiro (A) De conhecimento profundo (B) Do que é prazer na vida (C) Nascido mesmo no fundo (B) Do coração de quem diz (D) Muito contente e feliz (D) É nossa a Copa do Mundo (B)
Ao todo, são 16 páginas e 64 estrofes. Foi o segundo maior livreto que consultei sobre a Copa de 1970, visto que o mais comum é o formato de 8 páginas e 32 estrofes, com variações. Carolino dobrou esse número. Ele tinha muita tinta na pena. Principalmente para elogiar a quem chamava de “grande presidente”. A popularidade de Médici parecia mesmo estar em alta após a conquista, e o bardo registrou (LEÓBAS, 1970, p. 04-05, grifos nosso):
Os jogadores chegaram Em Brasília ao meio dia O Rei Pelé sorridente Na mão a Taça trazia E o nosso Presidente Que vibrava de contente Nesta hora recebia Nosso Presidente Médici Chegou chorar de emoção Abraçando os jogadores Na maior satisfação Oferecendo-lhes um almoço Aquela turma colosso Lá mesmo no seu salão Nosso grande Presidente Profetisou (sic) a vitória Dizendo ser 4 a 1 Contava por certo a gloria Deu no Jornal da Bahia Esta sua professia (sic) Conforme lhe conto agora
Nota-se que todas as vezes que faz referência a Médici, o pronome possessivo “nosso” o antecede. E nessa última estrofe citada, Carolino o adjetiva como “grande Presidente” com poder de profetizar não apenas a vitória do time canarinho, mas cravando o placar. Muito semelhante aos versos de Manoel D’Almeida Filho no segundo livro. Nesse exemplo emblemático, a figura do ditador em nada lembra as memórias que vários setores das esquerdas guardariam, com razão, do militar gaúcho e torcedor do grêmio. O próprio João Saldanha – também nascido no Rio Grande do Sul –, referiu-se ao general, dezessete anos depois, da seguinte forma:
Eu considero o Médici o maior assassino da história do Brasil [...]. O cara matou amigos meus. Eu levei para o México uma pilha de documentos de 3 mil e poucos presos, trezentos e tantos mortos e não sei quantos torturados. Então eu vou pactuar com um sujeito desse? Eu tenho um nome a zelar. Já tinha e tenho ainda. (SALDANHA, 1987)
Mas o bardo experiente, Carolino, tinha apego à ordem – independente se democrática ou não –, e revelou sua simpatia não só ao presidente, mas também a políticos baianos alinhados ao regime autoritário. Seu folheto também homenageia notórios civis da cúpula política baiana, especialmente Antônio Carlos Magalhães. Sem nenhuma cerimônia, escreveu Leóbas (1970, p. 08-15, grifo nosso):
O Dr. Antonio Carlos Governador da Bahia Pulava no meio do povo Vibrando de alegria Dando viva aos jogadores No meio dos torcedores Festejava o grande dia O prestígio dêste môço Podem prestar atenção É hoje nosso govêrno Sem precisar votação Do pôvo é muito querido Por isto foi escolhido Pelo Chefe da Nação E o Dr. Antonio Carlos Este môço inteligente Que tive o prazer e honra De conhecer pessoalmente Notei suas qualidades Sua popularidade E sua bondade excelente
Antônio Carlos Peixoto de Magalhães, que ficaria conhecido pelas iniciais ACM, foi médico de formação, atuou como jornalista e fez carreira política na Bahia a partir de 1954. No período da ditadura civil-militar, foi Deputado Federal, Prefeito de Salvador e Governador da Bahia, sempre aliado aos fardados. Chegou aos dois últimos cargos através de nomeação dos militares, visto sua filiação à Aliança Renovadora Nacional (ARENA), partido que dava sustentação à ditadura (LEMOS, [20--]). Fica evidente a simpatia de Carolino para com o aliado do regime, que, com a redemocratização, foi ministro das comunicações do governo José Sarney e, posteriormente, eleito senador pela Bahia, sendo um quadro político de destaque nacional no campo conservador.
Para além das intenções estatais da propaganda, ufanismo e possível manipulação em prol de um patriotismo que esconderia as mazelas sociais, o resultado pode não ser o esperado. O Uruguai serve-nos como ilustração. Pensado pela ditadura civil-militar uruguaia como um evento propagandístico, o Mundialito de 1981, organizado pela FIFA “[...] tornou-se um caso do futebol como espaço de manifestações contrárias ao regime. [...] Na final do torneio, após a vitória da seleção uruguaia, nas arquibancadas a torcida gritava eufórica: ‘Vai acabar, vai acabar, a ditadura militar [...]” (MAGALHÃES, 2014, p. 13). Esse exemplo revela, segundo Lívia Gonçalves Magalhães que
Permanece a ideia de que o futebol e os esportes de uma maneira geral são usados, manipulados, pelos regimes autoritários. Da mesma forma com os torcedores, que participam supostamente sem o conhecimento da realidade em que vivem, o conhecido ‘nós não sabíamos’. Porém, atitudes com a da torcida uruguaia naquela final ajudam a problematizar essas memórias. (MAGALHÃES, 2014, p. 13)
Numa comparação entre as copas vencidas pelo Brasil (1970), e pela Argentina (1978), ressalta-se que, ao contrário da seleção brasileira que conquistou o título fora do seu território, os argentinos triunfaram “dentro de casa”, sob olhares e gritos de seu povo, fator que, sem dúvida, mexe com as emoções em diversas direções. Reforça o espírito nacionalista, eleva a autoestima patriótica e inspira a criação de mitos, dentro e fora dos campos, a partir da heroificação gestada pela vitória.
Em 2020, ano em que os amantes do futebol no Brasil comemoram e relembram os 50 anos da conquista em campos mexicanos, sabemos hoje, com base em importantes pesquisas historiográficas (CORDEIRO, 2009;2014;2015;MAGALHÃES, 2014) que o ditador-presidente aproveitou muito bem aquele momento de euforia e admiração recíproca. Em matéria publicada no ano de 2004 pelo jornal O Globo, consta que “Em seu primeiro discurso após o tri, Médici cunhou a frase que viraria slogan do seu governo: “Ninguém segura este país (GOVERNO..., 2004, p. 54) De acordo com Carlos Fico, consultado na reportagem especial“[...] A propaganda, sobretudo pós 70, serviu para a popularização de Médici. Além do hábito de assistir aos jogos com o radinho de pilha, duas cenas foram marcantes nesse período: o presidente jogando bola na rua após o tri e ele enrolado na bandeira brasileira” (GOVERNO..., 2004, p. 54),
As análises dos cinco folhetos à luz das novas abordagens historiográficas revelam que para grande parte da sociedade brasileira, a conquista da seleção confundia-se, sim, com a vitória do regime. Mas não era só isso. Ditadura, seleção e torcedores dos diversos segmentos sociais – milhões – inebriados pela conquista dos atletas que “honraram a amarelinha” ao som dos mariachis mexicanos, fizeram festa em todo o País, independente se com forró, frevo ou fanfarras.
A partir de um levantamento semântico das principais palavras que aparecem nos cinco folhetos analisados, temos o seguinte conjunto de expressões: emoção, vibração, alegria, abraços, baile, festa, carnaval, glória, coragem, sentimento, raça e coração. É óbvio que estamos falando de um evento específico, a Copa do Mundo, e esses limites não podem deixar de ser mencionados. Entretanto, ressalva-se, não estamos fazendo referência a uma elite econômica ou empresarial que teria comemorado isoladamente uma vitória responsável por alavancar ainda mais a popularidade de um presidente-ditador. Nossas fontes têm características peculiares não apenas a partir de quem produz. Mesmo sendo comum que grande parte dos cordelistas vivesse apenas do seu ganho, em condições precárias, eles não necessariamente estavam nos estratos economicamente marginalizados da sociedade brasileira. Não é raro encontrarmos cordelistas que tinham excelente domínio da escrita e de todo processo produtivo da edição de suas obras e com boas condições materiais de existência (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013), o que vai de encontro a alguns mitos – o do poeta semianalfabeto, quase miserável, desvalido. Porém, o público a que se destina, pelo preço de venda de seus produtos literários, é, inegavelmente muito amplo, significativamente das camadas mais pobres da sociedade. Ter sucesso nas vendas era a meta a ser alcançada. Agradar seu leitor era, e continua sendo, uma premissa vital para o poeta profissional.
Nesse sentido, as estratégias para a confecção da capa, do texto, da escolha dos pontos bem localizados nos mercados, praças e feiras, andavam juntas com o cuidado em não contrariar os agentes do Estado. Produzir e fazer circular aquilo que o sustentava financeiramente era um ato de sobrevivência. Para alguns, silenciar sobre a ditadura, a repressão, as perseguições, as torturas e mortes, o AI-5, poderia ser uma tática. Ao mesmo tempo, não fazer elogios aos dirigentes alinhados ao regime, como também aos ditadores, evitaria afastar um possível leitor descontente com a política nacional. Esses são os exemplos dos dois primeiros autores que citamos, Severino Manuel – o Palito – e Manoel D’Almeida Filho, na primeira obra. Ambos focaram suas sextilhas festivas exclusivamente nos atletas. Um silêncio de dupla face, nem de apoio, nem de crítica. Atitude que, no caso de Manoel D’Almeida, seria subvertida no segundo livro, quando deliberadamente homenageou Médici.
Já no exemplo de José Soares, embora também tenha dado mais destaque aos jogadores campeões, não se esqueceu de sublinhar os dirigentes. Sabendo, provavelmente, da popularidade de João Saldanha, não o deixou de fora. Como militante, cronista e desportista conhecido nacionalmente, o posicionamento político de Saldanha – ao chamar Médici de “o maior assassino da história do Brasil” –, já na redemocratização, é coerente coma sua trajetória aliada ao PCB. Sua saída da seleção às vésperas da Copa de 1970 é uma marca importante de como a cúpula militar que governava o País impunha limites à atuação daqueles que não se curvavam às suas vontades e determinações, não necessariamente por divergências apenas políticas, como destacamos. Entretanto, esse fato não foi obstáculo para que o poeta José Soares silenciasse sobre João Saldanha em seu folheto. Como vimos, Saldanha está ao lado de João Havelange e Médici. Nesse momento, a camisa da ambivalência veste seu texto. Soares reúne atores separados pela política, mas unidos no imaginário social como arquitetos de uma conquista que elevou o nacionalismo e ampliou, certamente, as bases sociais de apoio ao presidente, contribuindo, através do consentimento, para a construção de um consenso.
O exemplo de Carolino é muito diferente. Ele não apenas comemorou a glória, mas atribuiu a Médici o feito da conquista. É simpatizante declarado do “grande presidente”. Garrastazu é o seu camisa 10, humanizado pelo abraço nos jogadores. Um ídolo que “chora de emoção”. Já sobre seu ícone baiano, Antônio Carlos Magalhães, refere-se como um doutor que “pulava no meio do povo”, vibrando de alegria entre os torcedores. Tinha tanto prestígio, segundo Carolino, que era muito querido pelo povo, mesmo “sem precisar de votação”. Era um moço inteligente, de “bondade excelente”, completou. Fica a impressão que o poeta transfere para ACM as mesmas características elogiosas que enxergava no militar-presidente.
Temos então, poetas, atletas, militares, elite política e torcedores comemorando juntos, no “Abraço da Vitória”, subtítulo do poema de Leóbas. Carolino não é ambivalente. Não silencia sobre sua simpatia e apoio. O seu exemplo é mais do que consenso e consentimento. É um entusiasta que escreve sabendo que tem um público que compartilha seus valores, sua alegria nacionalista.
Quatro bardos retratando um acontecimento e nos ensinando quão complexas são as relações entre indivíduos, coletividades e regimes autoritários. Ajudando-nos a perceber como o ofício do historiador é cercado de encantos e desencantos, com resultados imprevisíveis, indeterminados, imponderáveis... como numa partida de futebol.
Talvez esteja aí sua magia.