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Recepção: 01 Outubro 2018
Aprovação: 20 Dezembro 2018
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1984-5057.v11i1p73-83
Resumo: Este texto pretende analisar a narrativa da marca O Boticário no filme publicitário “Nesse dia dos pais, dê O Boticário”. Observamos sua capacidade, como narrativa, de mobilizar públicos e suscitar discussões a partir da representação de uma família afrocentrada na publicidade. Nossa proposta é refletir sobre como um elemento não verbalizado (a família afrocentrada) fez emergir o racismo brasileiro no momento em que uma parcela de sujeitos passou a desaprovar a marca por não utilizar o personagem branco, historicamente protagonista das representações midiáticas.
Palavras-chave: Narrativa publicitária, Racismo, Consumo, Identidade.
Abstract: This text intends to analyze the narrative of the brand O Boticário in the advertising film “Nesse dia dos pais, dê O Boticário”. We observe its ability, as a narrative, to mobilize publics and to incite discussions from the representation of an afrocentered family in advertising. Our proposal is to reflect on how an unspoken element (the afrocentered family) made Brazilian racism emerge when a portion of subjects started to disapprove the brand because it did not use a white character, historically protagonist of the media representations.
Keywords: Advertising Narrative, Racism, Consumption, Identity.
Resumen: Este texto pretende analizar la narrativa de la marca O Boticário en la publicidad “Nesse dia dos pais, dê O Boticário”. Observamos su capacidad, como narrativa, de movilizar públicos y suscitar discusiones a partir de la representación de una familia afrocentrada en la publicidad. Nuestra propuesta es reflejar sobre cómo un elemento no verbalizado (la familia afrocentrada) hizo emerger el racismo brasileño en el momento en que una parcela de sujetos pasó a desaprovechar la marca por no utilizar el personaje blanco, históricamente protagonista de las representaciones mediáticas.
Palabras clave: Narrativa publicitaria, Racismo, Consumo, Identidad.
Como citar este artigo:
VIANE, P. M. F.; BELMIRO, D. M. M. O racismo brasileiro ou… quando o protagonista não é branco: a narrativa publicitária em “Nesse dia dos pais, dê O Boticário”. Signos do Consumo, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 73-83, jan./jun. 2019.
INTRODUÇÃO
O racismo brasileiro possui características peculiares: ideias de democracia racial, povo cordial e miscigenação pacífica foram tidas historicamente como verdades e criaram a noção de que não havia tensões raciais no país. Atualmente, emergem movimentos que lutam pelo reconhecimento das identidades negras por meio de ações que requerem mais representatividade e representações menos estereotipantes, assim como esforços no resgate das ancestralidades apagadas nos processos de escravização e de miscigenação.
A partir de um recorte que considera a publicidade como instrumento de transferência de significado (MCCRACKEN, 2003), pretendemos refletir como ela atua no reforço de uma identidade legitimadora (CASTELLS, 2008) branca representada nas narrativas do consumo. A fuga desses padrões gera estranhamento, pois “a clareza ou brancura da pele [..], persiste como marca simbólica de uma superioridade imaginária atuante em estratégias de distinção social” (SODRÉ, 2015, p. 266). A nossa proposta é analisar o filme publicitário para o dia dos pais do ano de 2018, da marca O Boticário, observando como acontecimentos não verbais foram suficientes para uma campanha de ódio direcionada à peça, no âmbito de sua circulação nos ambientes midiáticos, especificamente no YouTube.
O filme “Nesse dia dos pais, dê O Boticário” constrói uma cena de consumo que representa uma família de classe média formada por pai, mãe, dois filhos e uma filha caçula. A história contada traz a locução do homem, que se afirma um pai perfeito. No entanto, ao longo da trama, percebe-se que a relação – ainda que não seja conflituosa – não é perfeita como o pai imagina, em razão das diferenças de gerações entre ele e seus filhos. No encerramento da peça, a locução de uma criança assume a fala e afirma que nem sempre os pais acertam, embora suas tentativas sejam válidas, e convida o espectador a presentear seus pais com produtos O Boticário.
A intenção é propor reflexões sobre o racismo brasileiro. Para isso, daremos início à análise discutindo sobre a narrativa publicitária, observando: como a narração constrói a história e de que forma a experiência compartilhada coletivamente pelo filme é composta na cena de consumo (CARRASCOZA, 2012).
Por meio dessas etapas, interpretaremos o que afetou os sujeitos que recebem a peça publicitária, a partir da repercussão dos comentários no YouTube, na lógica da circulação. Esse percurso pretende analisar as manifestações de racismo contra a peça, uma vez que a representação de uma identidade de resistência, historicamente excluída dos discursos de promoção do consumo em uma peça publicitária não faz dessa racista por excluir os grupos hegemônicos. Pelo contrário, dá um pequeno passo rumo a uma publicidade mais diversa.
NARRATIVA EM PUBLICIDADE E CIRCULAÇÃO
Os filmes publicitários contornam um universo ficcional da marca, no qual a narrativa se desenvolve (CARRASCOZA, 2012). Nesse universo, a marca, como narradora, aparece manifestada pelos elementos de construção de seu objeto semiótico (PEREZ, 2017), que está inserido em uma cultura. A marca ganha forma humanizada na contemporaneidade, por meio das estratégias de construção de imagem.
O sujeito que acessa a história narrada tem como função memoriza-la e dar circulação a essa narrativa. Esse processo vai ser afetado pelos contextos culturais em que a mensagem é veiculada. Carrascoza (2012) recorre à compreensão da publicidade como motor semiótico para explicar que ela, “por meio de suas narrativas, ‘cria’ um ‘mundo possível’”, associando-o ao produto. Um mundo que objetiva, obviamente, o pathos, a adesão do público” (CARRASCOZA, 2012, p. 105). Podemos afirmar, então, que o processo de enunciação publicitária considera um contexto de recepção que constrói um mundo idealizado no qual o produto se insere e que a narrativa construída traz elementos que facilitam a adesão do produto/serviço anunciado a ela. Por meio de processos de identificação do público pretendido com a mensagem, este torna-se também responsável pela mensagem, a partir da circulação.
Na contemporaneidade, os processos de comunicação passam a considerar os lugares de produção e recepção dos discursos, assim como sua subordinação a novos regimes de discursividades que os prendem, considerando a circulação como novo elemento nos processos comunicativos. Atuando como dispositivo, a circulação gera múltiplas possibilidades para o processo de produção de sentido. Isso torna o processo comunicacional mais heterogêneo, ampliando o potencial de não fechamento de significação (FAUSTO NETO, 2010).
Configurada como espaço de enunciação, a circulação compreende, portanto, a emissão, a recepção e toda a complexidade que se insere no intervalo entre essas duas esferas e no processo de trocas simbólicas que são estabelecidas:
a circulação – transformada em lugar no qual produtores e receptores se encontram em “jogos complexos” de oferta e de reconhecimento – é nomeada como dispositivo em que se realiza trabalho de negociação e de apropriação de sentidos, regidos por divergências e, não por linearidades. (FAUSTO NETO, 2010, p. 63)
Trindade e Perez (2016) explicam que, em virtude da centralidade dos processos de midiatização, as marcas também se inserem nesse contexto circulatório. Isso se dá por meio do compartilhamento de conteúdos como uma das características da relação marca-consumidores.
Quer por reivindicação dos consumidores, quer por disposição deliberada dos gestores das marcas, o compartilhamento de conhecimentos, expertises, metodologias ou simplesmente de informações sobre processos, produtos, origem de ingredientes ou componentes, etc., põe fim a autoridade e obscurantismo das marcas. (TRINDADE; PEREZ, 2016, p. 12)
Na perspectiva sobre a circulação, os autores sugerem o termo “vínculos de sentido” para utilizar no lugar de “relação entre marcas e consumidores”. O termo vai em sentido contrário ao que propõe sugerir, pois “a comunicação em marketing sempre buscou construir relações entre consumidores e marcas, mas essas relações precisam ganhar sentidos de pertencimento, de pertinência, e de afetividades nas vidas das pessoas” (TRINDADE; PEREZ, 2014, p. 167). Os vínculos de sentido entre marcas e consumidores, portanto, consideram, além dos pontos de contato (DI NALLO, 1999), a multiplicidade midiática que viabiliza a convivência entre marcas e pessoas.
O espaço do leitor deixa de ser simplesmente o da recepção e passa a ter um poder de agência maior na construção, organização e circulação de conteúdos (PRIMO; VALIATI; LUPINACCI; BARROS, 2017). Isso passa a ser manifestado pelas possibilidades de interação por meio de comentários, avaliações de conteúdos por meio de curtidas, reações, sinalizações “gostei” e “não gostei” etc. (COVALESKI, 2014). A partir desse potencial de circulação, consumidores estreitam vínculos com as marcas, que passam a se preocupar cada vez mais com a opinião manifestada por eles nas plataformas de comunicação.
RACISMO BRASILEIRO
O Brasil é um país que, historicamente, tem sua forma de organização social e sua economia forjados em um dos processos mais longos de escravidão da história. Porém, este passado, tão presente nas relações observadas hoje, é constantemente negado e subjugado por uma estrutura de opressões construídas para naturalizar o sofrimento da população negra.
A força e a persistência do racismo, nos dias atuais, permite que desassociemos seu surgimento ou seu fim do período escravocrata, pois, hoje, a liberdade de todos os indivíduos se apresenta como um valor ideal da sociedade, o que nos leva ao primeiro impasse de dois ordenadores teóricos do termo racismo: a diferença e a desigualdade. Barros (2012) afirma que, em linhas gerais, “a diferença se coloca na ordem do ‘ser’, enquanto a desigualdade pertence ao mundo do ‘estar’, os das circunstâncias” (BARROS, 2012, p. 24).
Se considerarmos somente a cor da pele, preta ou branca, para categorizar o racismo, chegamos a outro impasse do termo, aumentando sua complexidade. A diversidade humana é infinita, e temos inúmeras cores de pele, o que não sustentaria a noção de “raças” presente no racismo entendido como uma ideologia de superioridade.
Campos (2017) propõe uma compreensão do racismo como “um fenômeno social constituído pelas relações ontológicas entre: discursos, ideologias, doutrinas ou conjuntos de ideais (cultura); ações, atitudes, práticas ou comportamentos (agência); estruturas, sistemas ou instituições (estrutura)” (Idem, p. 14). Essa forma de olhar para o racismo resulta em uma percepção tridimensional, na qual “uma dimensão não possui precedência causal e teórica sobre as outras” (Ibidem, p. 11).
Ao explicar o caráter ideológico do racismo, o autor afirma que ele pode ser entendido como um dogma, que não tem necessariamente uma fundamentação teórica, ou biológica latente, mas que se sustenta sob um ideal de superioridade de uma raça sobre a outra, o que já diferencia o termo de outras terminologias como o preconceito, que seria uma preconcepção de algo, ou a discriminação, que caracterizaria um tratamento diferencial. Para o autor, o racismo tem uma herança mais profunda justamente por esta dimensão, que estrutura e orienta ações de pessoas que acreditam na divisão racial da espécie humana.
Além disso, “tratar o racismo como um fenômeno eminentemente ideológico, ou conceder uma proeminência causal às crenças, também possui algumas consequências para a política e para a militância antirracistas.” (CAMPOS, 2017, p. 5). Segundo ele, ao tratarmos o racismo como uma ideologia, conseguimos defini-lo e, ao fazermos isso, temos a possibilidade de combatê-lo com mais rigor.
Ao abordar a dimensão prática do racismo, o autor afirma que uma ideologia racista só vigora através da reprodução de práticas racistas. Assim, as duas dimensões estão diretamente interligadas, pois, por mais “completo que um estudo de ideologias racistas seja, ele nunca seria capaz de elucidar os mecanismos interacionais que constituem a discriminação em si.” (Idem, p. 6). Nesta perspectiva, podemos afirmar que o racismo é uma ideologia que só se manifesta através de ações racistas que, segundo o autor, são mais “emotivas, irracionais e reativas” (Ibidem, p. 6), justamente por não terem uma fundamentação definida em ideais racionais, aproximando-se muito mais de uma crença religiosa fanática.
Ao discutir sobre a dimensão estrutural do racismo, ele afirma que “as teorias do racismo que enfocam estruturas, […] enxergam tais mecanismos, não apenas como incentivos potenciais de conflitos entre grupos raciais, mas como os princípios causais que engendram o racismo em si” (CAMPOS, 2017, p. 10). Nesta visão, o racismo seria resultado de uma estrutura opressora construída ao longo dos anos e perpetuada através de instituições, como a mídia. Ao nos debruçarmos sobre essa dimensão, observamos o racismo como uma construção intrincada à cultura de nosso país, que veio se sofisticando ao decorrer da história.
A repercussão negativa do filme publicitário em questão, traz à tona as três dimensões do racismo aqui exemplificadas quando, dentro da narrativa publicitária, o personagem branco não está presente. Percebemos aqui uma ideologia de superioridade que se mostra através do homem universal – branco, europeu, civilizado e heterossexual. Almeida (2018), explica que desde o Renascimento, o ideário filosófico do homem universalizante vem sendo construído e perpetuado. O autor também discute que após as revoluções inglesa e francesa, as grandes navegações iniciaram um período no qual este homem universal, busca levar a ideia de civilização mundo afora. Para o autor, “esse foi o movimento de levar a civilização para onde ela não existia, o que redundou em um processo de destruição e morte, de espoliação e aviltamento, feito em nome da razão e a que se denominou de colonialismo” (ALMEIDA, 2018, p. 21).
Quando O Boticário propõe um filme publicitário no qual esse sujeito universal não está presente, ocorre uma quebra na estrutura lógica das narrativas e representações que foram construídas ao longo da história. Kilomba (2016) afirma que “as pessoas brancas não se veem como brancas, se veem como pessoas” e, segundo a autora, essa estrutura, observada tão claramente nos comentários contrários ao filme de dia dos pais, mantém a estrutura colonial e o racismo.
Durante muito tempo, os negros não foram representados em propagandas como sujeitos, por não serem considerados público consumidor. Foi a partir de 1997, como afirma Sodré (2015), que o mercado negro foi considerado segmento pelas marcas, principalmente no setor de cosméticos, com produtos destinados aos cuidados com os cabelos. Ao longo da primeira década do século XXI, o Brasil entra em um processo de crescimento, sustentado por políticas afirmativas e de transferência de renda que visam combater a desigualdade, ancoradas em práticas de consumo.
Tais políticas resultam em processos que tiram o negro de um contexto de invisibilidade, uma vez que começam a chegar às universidades, ao mercado de trabalho e passam a atuar no motor da sociedade, afetando também a economia como sujeitos ativos em tempos de hiperconsumo. Isso, dentre outros atributos – considerando a militância histórica de movimentos sociais que lutam contra as desigualdades do povo negro – resulta em um processo de empoderamento, compreendido aqui como “uma gama de atividades, da assertividade individual até a resistência, protesto e mobilização coletivas, que questionam as bases das relações de poder” (SARDENBERG, apud BERTH, 2018, p. 16).
DIA DOS PAIS O BOTICÁRIO 2018
Como emissora de um discurso, a marca O Boticário tem adotado um posicionamento que propõe a desconstrução de narrativas hegemônicas em suas campanhas de comunicação. O Grupo Boticário – detentor das marcas “O Boticário”, “Eudora”, “Quem disse, Berenice?” e “Beauty Box” – afirma que sua missão é “transformar a vida das pessoas por meio da beleza” (GRUPO BOTICÁRIO, 2018). O Boticário tem como slogan, que sintetiza a comunicação da marca, a frase “acredite na beleza”. A transformação se apresenta como uma proposta constante da marca, que desde a formação da holding em 2010, vem articulando em seu discurso os ideais de beleza e diversidade. Em seu relatório institucional (GRUPO BOTICÁRIO, 2016), a marca afirma ter “atitude para transformar o mundo”. A missão de O Boticário consiste em “ser lembrada pelos clientes como referência em produtos de beleza, buscando a fidelidade para garantir a continuidade do negócio” (GRUPO BOTICÁRIO, 2016). A partir daí já se percebe o interesse da marca em fidelizar um grupo específico de audiência, a partir da identificação com a mensagem veiculada em suas campanhas. Os valores da marca defendem “integridade, paixão pela evolução e desafios, comprometimento com resultados, valorização das pessoas e das relações” (GRUPO BOTICÁRIO, 2016).
Em 2015, O Boticário lançou o filme “Dia dos namorados O Boticário”, em comemoração à data, e recebeu duras críticas de movimentos conservadores nas redes sociais, com alguns internautas propondo o boicote aos produtos da marca, por representar casais homoafetivos. Mesmo assim, O Boticário manteve a campanha no ar, mostrando-se aberta ao diálogo e coerente com a proposta de inserir questões sociais ao discurso da marca, que chegou a ser julgada e absolvida pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) por suposto desrespeito à família brasileira. Em outras ocasiões, a marca tocou em questões tabu, como na constituição de famílias não tradicionais, em “Natal O Boticário: a beleza pode unir as pessoas”, veiculado em 2017, que exibia uma família em que pai e mãe são divorciados, ou no filme “Linda Ex”, veiculado em 2016, que mostrava mulheres se embelezando para assinar os documentos de seu divórcio.
Cabe destacar que, de todas as campanhas com temas polêmicos veiculados pela marca, só houve reação conservadora em relação ao vídeo com casais homoafetivos e ao filme publicitário em análise, do dia dos pais 2018. A adoção das formas de representação de minorias políticas é uma forma que a marca encontrou de fidelizar públicos invisibilizados, revelando também como a sociedade mudou – ao representar esses sujeitos: mulheres divorciadas, filhos de pais separados, casais homoafetivos, famílias afrocentradas.
A descrição de “Nesse dia dos pais, dê O Boticário” indica se tratar de uma propaganda tradicional do dia dos pais, que se diferencia apenas pela abordagem do humor, ao invés de tons mais emocionais, que normalmente se vê em campanhas de datas comemorativas. No entanto, no âmbito da recepção, um detalhe expressivo (CARRASCOZA, 2012) não verbalizado chamou mais atenção às audiências: a cor da pele da família. Trata-se de uma família afrocentrada, na qual o pai é negro, a mulher é negra e os filhos também.
A cor da pele das pessoas não é mencionada no texto, mas esse fato incomodou algumas pessoas da audiência, que se manifestaram por meio dos comentários. Aqui cabe destacar a ousadia da marca, que conseguiu levantar o debate racial, sem verbalizar em nenhum momento da narrativa questões raciais. O incômodo foi em razão de um personagem branco, historicamente acostumado a se ver representado e protagonista, não estar presente no filme.

A inexistência de atores brancos fez com que muitas pessoas acusassem a marca de racismo (reverso) e de não representar a diversidade brasileira. Tanto é que ao chegar a 110 mil visualizações, em suas primeiras horas no ar, o vídeo chegou a ter 16 mil sinalizações “Não Gostei”, que superavam as sinalizações “Gostei”.

Esses comentários[1]revelam a dificuldade da sociedade brasileira em aceitar pessoas negras em papel de destaque e protagonismo, em razão das ideologias, práticas e estruturas racistas. Como já afirmamos, somos culturalmente acostumados a ver negros em segundo plano, em papéis secundários, de servidão, e de não os ver na mídia. O filme exemplifica a reação racista à representação da família afrocentrada: incomodada, a audiência dá circulação ao elemento não verbalizado na narrativa por meio dos comentários.
A reação reflete o racismo brasileiro, negado pela branquitude, por meio de uma atitude que integra uma das dimensões de análise exposta por Campos (2017). Aqui, o termo branquitude é utilizado para dar nome às práticas realizadas por portadores da brancura com o objetivo de manter o privilégio que a cor de pele branca possui nas sociedades estruturadas pela hierarquia racial. O branco assume a postura de ser humano ideal e universal, criando condições para que o status seja mantido (CARDOSO, 2010). Ainda que sejam maioria da população, 54%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2011) no Censo Demográfico 2010, os negros são invisibilizados na mídia nacional, que deveria ser espelho do país: nas telenovelas brasileiras, raros foram os protagonistas negros (ARAÚJO, 2008; LEÃO et. al, 2017). Nos telejornais brasileiros, há poucos casos de âncoras negros. Nas capas de revistas, ainda há poucos negros. E o mesmo se percebe na publicidade, ainda que se possa comemorar avanços pontuais.
Os dados da 6ª onda do relatório Todxs por elas, produzidos pela agência Heads, disponibilizado em 2018, indicam que do total de protagonistas homens na publicidade brasileira veiculada na TV (que correspondem a 21%), 11% são negros e 14% são diversos[2], a maioria é de brancos. Dentre as mulheres protagonistas (que correspondem a 20% do total), 16% são negras e 11% são diversas, novamente a maioria é branca. O relatório sinaliza para um crescimento significativo em relação à primeira onda de levantamento, realizada em 2015. Dentre os coadjuvantes, os homens correspondem a um total de 7%, no qual os brancos são 41%, negros 59%, sem representações diversas. Acerca das mulheres coadjuvantes, 30% são brancas, 46% são negras e 24% são diversas. Como o próprio relatório explicita, “as minorias são representadas como contexto, ainda com pouca voz na sociedade” (HEADS, 2018).
Na esfera da circulação, ocorre um fenômeno marcante: diante da onda de comentários negativos, as pessoas se mobilizam para repercutir os comentários e avaliações negativas nas redes sociais. Isso fez com que a imprensa (APÓS..., 2018; LAGÔA, 2019; PRADO, 2018) promovesse visibilidade ao tema, e levou os sujeitos nas redes sociais a iniciarem uma nova campanha, pedindo que as pessoas respondessem à iniciativa da marca de dar protagonismo às pessoas negras. Com isso, as sinalizações “gostei” chegaram a 129 mil, ultrapassando as avaliações negativas, que chegaram a 18 mil[3].
Esse fenômeno tira a circulação do conteúdo da esfera da promoção do consumo e começa a construir cadeias de histórias que transcendem o sentido da narrativa para além de sua origem. Notamos aí o atributo de contágio, que contribui e facilita para a construção e reafirmação dos valores da marca.
Observamos como um discurso de promoção do consumo passa a afetar e a ser afetado pela construção de zonas de contato (FAUSTO NETO; SGORLA, 2013), relativas às discussões sobre racismo e representatividade. O processo de circulação torna-se complexo, nesse caso, compreendendo: a veiculação da mensagem; a recepção ao vídeo e a manifestação por meio dos comentários e avaliações negativas; a repercussão dos comentários negativos nas redes sociais e na imprensa; uma nova etapa de recepção/interação por meio de comentários e avaliações positivas; finalizando com uma nova repercussão na imprensa, destacando dessa vez os comentários positivos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse trabalho colocamos em discussão os traços do racismo na sociedade brasileira, contemplando sua observação em uma peça publicitária de trinta segundos veiculada pela marca de produtos de beleza O Boticário. “Nesse dia dos pais, dê O Boticário” foi alvo de uma campanha na internet cuja intenção era aumentar o nível de avaliações negativas e questionar a falta de representatividade de pessoas brancas, pelo fato de trazer uma família afrocentrada.
O que mais chama a atenção no acontecimento é o fato de o atributo racial ser elemento não verbalizado e, ao mesmo tempo, tão incômodo. Chama a atenção também o aspecto de circulação da mensagem, que repercute nas redes, mobiliza a imprensa e cria uma segunda onda de reação nas quais as pessoas vão apoiar a marca pela oportunidade de representatividade criada.
Cabe destacar que O Boticário, como empresa, em uma sociedade capitalista, tem como intenção vender produtos e gerar lucro. Assim, compreendemos que o apoio da marca às causas das minorias políticas é estratégico, calculado e visa ganhar a simpatia do público, que passa a ser simpático a ela e aumenta o potencial de venda de produtos. No entanto, há de se reconhecer também a dimensão social do consumo na contemporaneidade. Instrumento construtor de identidade, ele mobiliza as pessoas a se afirmarem e a questionarem organizações, que adotam discursos mais representativos, que construam melhores representações e que respeitem a diversidade.
Como instrumento de transferência de significado (MCCRACKEN, 2003), a publicidade representa o mundo constituído. Historicamente, o discurso da publicidade construiu representações de mulheres em situação de objetificação, tratou negros como inferiores ou os apagou de suas mensagens, não abriu espaço para pessoas LGBT. Esse processo fortaleceu as identidades legitimadoras, que dominaram as narrativas protagonizando-as e excluindo as identidades de resistência. Quando O Boticário abre espaço para essas identidades, visa – em longo prazo – contribuir para sua transformação em identidades de projeto. Além disso, para a marca, contribui para a construção de sentidos de pertencimento, de pertinência, e de afetividades nas vidas das pessoas, criando vínculos. No entanto, quem historicamente foi hegemônico não cede o protagonismo com facilidade. Com isso surgem tensionamentos, que resultam em discursos de ódio, como observado em “Nesse dia dos pais, dê O Boticário”.
As reações ao filme publicitário explicitam o racismo corrente no país e demonstram o quanto a ideia da democracia racial é uma das falácias que mais perduram na cultura midiática brasileira. Se um filme publicitário de 30 segundos é capaz de expor tamanhas desigualdades, uma análise de outros produtos de comunicação sob essa perspectiva pode revelar resultados escandalosos acerca dos conflitos raciais no país.
Somos um país racista, que tenta esconder ou insiste em não enxergar a estrutura opressora criada ao decorrer dos anos. Preferimos tangenciar o olhar para questões de preconceito, tratando o racismo apenas como uma diferença entre os indivíduos, quando, na verdade, o que ocorre é uma desigualdade complexa e bem edificada que insiste em localizar o sujeito negro em um lugar de inferioridade.
Referências
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Notas