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O que as pessoas comuns fazem à comunicação de marca? Uma análise de campanhas publicitárias francesas
Lorreine Beatrice Petters
Lorreine Beatrice Petters
O que as pessoas comuns fazem à comunicação de marca? Uma análise de campanhas publicitárias francesas
What do ordinary people do for brand communication? An analysis of French advertising campaigns
¿Qué hacen las personas comunes para la comunicación de marca? Un análisis de campañas publicitarias francesas
Signos do Consumo, vol. 11, núm. 1, pp. 3-12, 2019
Universidade de São Paulo
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Resumo: O emprego de pessoas comuns na comunicação publicitária de marca se difere do fato de utilizar atores, celebridades ou especialistas e exige uma mise en scène singular. Nós levantamos a hipótese de que o emprego de pessoas comuns permite aos anunciantes construir uma ficção publicitária próxima ao cotidiano dos consumidores efetivos e potenciais, estabelecendo uma promessa de autenticidade. Para verificar tal hipótese, foram realizadas uma revisão teórica e uma análise de conteúdo de um corpus composto por 145 mensagens publicitárias audiovisuais veiculadas na França entre 2010 e 2017.

Palavras-chave:Pessoas comunsPessoas comuns, Comunicação publicitária de marca Comunicação publicitária de marca, Promessa de autenticidade Promessa de autenticidade.

Abstract: The employment of ordinary people in brand advertising differs from using actors, celebrities or experts, and requires a singular mise en scène. We hypothesized that the use of ordinary people allows advertisers to construct an advertising fiction close to the daily life of consumers and potential consumers, establishing a promise of authenticity. To verify this hypothesis, a theoretical review and a content analysis of a corpus composed of 145 audiovisual advertisings messages published in France between 2010 and 2017 were carried out.

Keywords: Ordinary people, Brand advertising, Promise of authenticity.

Resumen: El empleo de personas comunes en la comunicación publicitaria de marca se diferencia del hecho de utilizar actores, celebridades o expertos, y exige una mise en scène singular. Planteamos la hipótesis de que el empleo de personas comunes permite a los anunciantes construir una ficción publicitaria cerca de la vida cotidiana de los consumidores efectivos y potenciales, estableciendo una promesa de autenticidad. Para verificar tal hipótesis, se realizaron una revisión teórica y un análisis de contenido de un corpus compuesto por 145 mensajes publicitarios audiovisuales divulgados en Francia entre 2010 y 2017.

Palabras clave: Personas comunes, Comunicación publicitaria de marca, Promesa de autenticidad.

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Artigos

O que as pessoas comuns fazem à comunicação de marca? Uma análise de campanhas publicitárias francesas

What do ordinary people do for brand communication? An analysis of French advertising campaigns

¿Qué hacen las personas comunes para la comunicación de marca? Un análisis de campañas publicitarias francesas

Lorreine Beatrice Petters
Universidade Sorbonne-Nouvelle, Francia
Signos do Consumo, vol. 11, núm. 1, pp. 3-12, 2019
Universidade de São Paulo

Recepção: 30 Setembro 2018

Aprovação: 20 Dezembro 2018

Como citar este artigo:

PETTERS, L. B. O que pessoas comuns fazem à comunicação de marca? Uma análise de campanhas publicitárias francesas. Signos do Consumo, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 3-12, jan./jun. 2019.

INTRODUÇÃO

Desde o começo dos anos 2000, a comunicação publicitária assiste a uma diversificação de formatos e de espaços ocupados pelos anunciantes, levando a uma mercantilização sem precedentes da esfera pública e a “uma hyper-afichagem das marcas como produtoras de conteúdos midiáticos e culturais” (BERTHELOT-GUIET, 2013, p. 94, tradução nossa). Por consequência, as marcas ampliam seus territórios semióticos, ocupando espaços não dedicados exclusivamente a mensagens comerciais ou ainda incrementando suas práticas discursivas, pois compartilham valores, reúnem indivíduos em torno de comunidades e tomam partido em questões sociais. As marcas são aqui consideradas como entidades simbólicas que representam organizações, produtos e serviços ao mesmo tempo em que mediam representações do mundo social.

Neste artigo, nós analisaremos um fenômeno específico: o emprego de pessoas comuns na comunicação publicitária de marca, emprego que é expresso e declarado, o que se difere do fato de utilizar atores, celebridades ou especialistas. Mesmo que esse fenômeno não seja novo[1], levantamos a hipótese de que ele permite aos anunciantes construir uma ficção publicitária mais próxima do cotidiano dos consumidores efetivos e potenciais, estabelecendo uma promessa de autenticidade. Essa promessa nada mais é que um efeito de sentido visando fornecer condições para que os interlocutores (público que tenha tomado conhecimento das mensagens) possam aderir e acreditar nas experiências e percepções compartilhadas por pessoas comuns em contexto publicitário:

O “efeito de autenticidade” está mais ligado ao fato de “se acreditar no que é verdadeiro” do que ao fato de “ser verdadeiro”. Ele surge na subjetividade da relação do sujeito com o mundo, quando o sujeito cria uma adesão com o que pode ser julgado verdadeiro, com o que é compartilhável com outros sujeitos que se assemelham a ele e com o que se inscreve em suas normas de reconhecimento do mundo. (CHARAUDEAU, 2005, p. 37, tradução nossa)

Baseando-se num quadro teórico composto especialmente por trabalhos em sociologia das mídias e em ciências da linguagem, nós realizamos uma análise de conteúdo de um corpus formado por 144 vídeos (divulgados em diferentes meios, como televisão, internet e cinema) oriundos de 27 campanhas publicitárias figuradas por pessoas comuns e veiculadas na França entre 2010 e 2017[2]. No momento de selecionar as campanhas publicitárias que fariam parte do corpus, observamos essencialmente uma característica: o fato dos participantes serem apresentados como pessoas comuns (“de vrais gens”, em francês) nos próprios vídeos ou ainda no “paratexto” das campanhas (websites, comunicados de imprensa etc.). É assim manifesto o objetivo dos anunciantes de apresentarem os indivíduos participando das campanhas como pessoas comuns. As campanhas compondo o corpus não se associam a uma categoria de marca específica (alimentícia, cosméticos, serviços etc.) ou a um suposto público-alvo almejado.

Para realizar a análise de conteúdo dos vídeos publicitários selecionados foram observados especialmente os seguintes aspectos: os procedimentos de seleção das pessoas comuns participando às campanhas quando esses são apresentados (casting, sorteio etc.); as características das pessoas comuns evidenciadas nos vídeos publicitários selecionados para análise; assim como a utilização discursiva das vivências de pessoas comuns. Essas vivências podem ser anteriores ou “provocadas” no contexto da campanha, quando propõe uma experiência inédita aos participantes (visitas, viagens, encontro com pessoas não esperadas etc.).

Nosso artigo é organizado em dois tempos. Primeiramente, apresentaremos as características do emprego de pessoas comuns em campanhas de comunicação publicitária de marca, identificadas com a análise de conteúdo; traremos assim exemplos do corpus para ilustrar as constatações realizadas. Em seguida, questionaremos a maneira com a qual esse emprego estimula um processo performativo (AUSTIN, 1990) de acreditação, encorajando a adesão dos interlocutores às mensagens publicitárias, bem como aproximando de maneira simbólica a marca do cotidiano dos consumidores. Isso porque adotamos uma abordagem pragmática da comunicação, que se concentra menos no emissor ou no receptor do discurso para se concentrar sobretudo na relação enunciativa que une os diferentes interlocutores e na coprodução de sentidos em uma situação comunicacional (WATZLAWICK; HELMICK-BEAVIN; JACKSON, 1992).

PESSOAS COMUNS NA PUBLICIDADE: UMA MISE EN SCÈNE SINGULAR

Desde o final do século XIX, quando a comunicação publicitária começa a adotar estratégias persuasivas que não se limitam ao simples reclame apresentando um estabelecimento comercial ou um artigo à venda, o uso da primeira pessoa do singular se torna um dos modelos enunciativos “mais empregados pelos anunciantes” (ADAM; BONHOMME, 2012). De fato, o uso do “eu” permite, em contexto publicitário, representar a figura de um consumidor ideal e sua suposta fala, com a ajuda de uma ilustração, de uma fotografia ou ainda, no caso de mensagens audiovisuais, da encenação de um ator ou de uma atriz. O consumidor ideal é, nesses casos, aquele ou aquela que incarna as características sociodemográficas ou, ainda, que representa o modo de vida do público-alvo definido pelo anunciante.

Quando anunciantes mostram pessoas comuns em suas campanhas, há uma intenção explícita de diferenciar essas pessoas de atores que representam consumidores-tipo ou ainda de celebridades e de especialistas. Dessa forma, o uso de pessoas comuns na comunicação publicitária modifica o processo enunciativo polifônico das mensagens veiculadas. Segundo a teoria da enunciação proposta por Oswald Ducrot (1985), o anunciante e sua equipe (agências e profissionais de comunicação que trabalham na elaboração da campanha) são o sujeito falante do discurso publicitário, produtores efetivos dos enunciados e dos signos que compõem as mensagens comerciais. São locutores a marca, locutora simbólica, e os personagens presentes nos anúncios, pois correspondem a “seres discursivos” que podem empregar a primeira pessoa do singular e que tomam a responsabilidade dos atos de linguagem presentes na mensagem. O sujeito falante é, para Ducrot, como um autor, enquanto o locutor representa o narrador nas histórias literárias. O desafio enunciativo dos anúncios figurados por pessoas comuns é o de fazer acreditar que essas pessoas não são meras locutoras de um discurso já produzido, mas que elas são “sujeitos falantes”. Ou seja, o desafio é criar um contexto discursivo em que as pessoas comuns sejam identificadas como produtoras dos enunciados que pronunciam, baseando-se em suas próprias experiências e se expressando de maneira pessoal e sincera.

De fato, em nossa análise, nós constatamos que as campanhas publicitárias que empregam pessoas comuns possuem certas características discursivas que visam estimular os interlocutores a atribuir a essas pessoas comuns o papel de sujeitos falantes. Essas características são chamadas de “operadores factuais” (DULONG, 1997), ou seja, trata-se de elementos capazes, ao mesmo tempo, de ligar o que é dito pelo indivíduo a uma determinada realidade e de estabelecer pontes com o(s) mundo(s) do(s) interlocutor(es). Qualquer narrativa, publicitária ou não, “[...] só é inteligível se o mundo descrito estabelecer pelo menos algumas passarelas com o mundo do leitor [interlocutor]” (DULONG, 1997, p. 94, tradução nossa). A “factualização” consiste em contar uma experiência pessoal da maneira mais plausível, mais próxima possível do que realmente aconteceu ou do que poderia ter acontecido: isso só pode ser definido pelos interlocutores da mensagem publicitária, que aderem ou não ao relato produzido.

Nas campanhas analisadas, não apenas o nome do indivíduo (frequentemente sem o sobrenome) é citado, sugerindo uma relação estreita entre ele e os interlocutores, mas também são apresentadas certas informações biográficas, como a idade, a cidade em que mora, a profissão que exerce, entre outros. Esse é o caso da campanha da marca de alimentação infantil Blédina, na qual mães e pais são apresentados nos vídeos por seus nomes acompanhados dos nomes e das idades de seus filhos; ou ainda da campanha da marca Danone, na qual fazendeiros fornecedores de leite são apresentados pelos seus nomes, mas também por características relativas ao seu domínio agrícola (tamanho, região etc.). Divulgar tais informações permite acionar um procedimento de categorização social[3], ou seja, acentuar as diferenças e as semelhanças entre o indivíduo comum presente na publicidade e o consumidor-tipo do produto ou da marca anunciada. Esse procedimento de categorização social estimula os interlocutores a assimilá-lo a grupos socialmente conhecidos, autentificando seu papel num contexto comercial (“é preciso” ser mãe para poder testemunhar sobre a alimentação de crianças, ou ainda ser um fazendeiro para falar sobre a produção de leite). O procedimento de categorização social estimula igualmente os interlocutores a perceberem de maneira mais ou menos consciente semelhanças entre vivências próprias e as declaradas pelos indivíduos presentes nos anúncios.

Além disso, no caso das mensagens audiovisuais analisadas, as falas de pessoas comuns são marcadas por signos de espontaneidade, como hesitações, enunciados aparentemente improvisados e expressões de linguagem familiar ou gírias. De fato, as falas marcadas por espontaneidade possuem uma sintaxe peculiar, diferente da linguagem escrita: é a ideia nascente que regula a sequência dos enunciados, às vezes com rupturas, pausas ou cortes: “o locutor está sempre atualizando o pensamento, procurando pelo mais adequado, substituindo uma primeira afirmação por outra melhor formulada” (CAELEN-HAUMONT; BEL, 2000, p. 256, tradução nossa). A justaposição de formas sintáticas mais ou menos interrompidas ou incompletas, às vezes acompanhadas de signos fáticos, confere um caráter dinâmico às falas espontâneas. Na campanha da marca de cosméticos Vichy, cuja proposta é apresentar o depoimento de pessoas comuns que sofrem de doenças dermatológicas, as hesitações são remarcáveis: “Olá, meu nome é Jade, eu tenho 19 anos e sofro de vitiligo que é... é uma falta de melanina nas células da pele e... o que faz com que a gente, a gente não tem mais cores em certas zonas da pele e não pode bronzear essas zonas [...] A gente se diz que talvez, talvez a gente não é bonita ou agradável a olhar [...] Isso me encorajou a... a procurar soluções pra camuflar um pouco, um pouco mais essa despigmentação” (tradução e grifos nossos).

François Brune afirma que a hesitação na formulação de uma declaração é um sinal indiscutível da plausibilidade da experiência que é narrada pelo locutor:

Cuidado com a frase intelectual demais, lúcida demais ou literária demais: o que os outros querem de mim não são ideias, mas o compartilhamento de reações e sentimentos baseados na vivência, no qual eles reconhecerão mais facilmente uma ausência de estrutura próxima à deles. (BRUNE, 1993, p. 46, tradução nossa)

Em outras palavras, falas hesitantes, tom informal, gírias e expressões familiares são sinais que representam a falta de preparo própria a relatos pessoais, o que sugere que os participantes da campanha não estão encenando nem aprenderam de cor suas falas: suas histórias e observações podem ser consideradas autênticas apesar do contexto publicitário. Os signos de espontaneidade são operadores factuais, na medida em que a ausência de hesitação é constantemente associada a profissionais da comunicação, como jornalistas ou atores, e não a indivíduos ordinários, não acostumados com a câmera e com as técnicas de comunicação midiática.

Acentuando as falas espontâneas de pessoas comuns, as produções audiovisuais das campanhas publicitárias analisadas usam com frequência o reaction cut, “um tipo de montagem que consiste em tornar visível o efeito que um evento, uma atitude ou uma situação produz em quem testemunha esse evento, atitude ou situação” (JOST, 2007, p. 101, tradução nossa). Tratando-se de um processo típico usado por reality shows na televisão, o reaction cut acentua a externalização da emoção do indivíduo depois de uma determinada situação vivida. Essa situação pode ser associada à uma experiência passada na vida do indivíduo (como o exemplo de Jade falando de sua vida com vitiligo, na campanha da marca Vichy) ou ainda associada ao próprio dispositivo publicitário (quando a marca organiza visitas, viagens ou ainda outras experiências inéditas aos participantes da campanha). Assim, o reaction cut permite estabelecer uma narração intercalada, como ela é definida por Gerard Genette (1972), em que a narrativa é composta por etapas, misturando tempos passado ​​e presente. Enquanto as legendas dos vídeos publicitários e a voz off de um narrador contam o que as pessoas comuns vivem como experiência (a literariedade do audiovisual funcionando como uma prova, mostrando o que acontece), as pessoas comuns exprimem suas reações no presente. As falas desses indivíduos ordinários são valorizadas como uma fonte primária, como a expressão de uma experiência ainda não mediada, editada ou manipulada. Por exemplo, no caso da campanha da marca de alimentos Fleury Michon, indivíduos comuns são levados ao Alasca para conhecer o processo de pesca dos peixes que são utilizados em suas receitas. Os vídeos da campanha mostram esses consumidores no barco discutindo com os pescadores e, em seguida, eles dão seus depoimentos face à câmera, como esse de uma das participantes: “Vou poder dizer pra todo mundo que não é fake, a matéria-prima é top e, se há uma marca para escolher, essa marca é Fleury Michon” (tradução e grifos nossos).

Ademais, as campanhas analisadas ganham frequentemente making-ofs ou vídeos que apresentam os bastidores das gravações, permitindo apresentar os procedimentos de casting dos participantes, reforçando seu caráter ordinário e mostrando uma suposta ausência de roteiro. O making-of é definido como um produto audiovisual, cujo objetivo principal é descrever e comentar o processo de criação de uma obra cinematográfica, televisiva ou publicitária. Três tipos principais de imagens são utilizados na criação de um making-of: trechos da obra original, imagens da produção dessa obra original (filmagem, pós-produção, entre outros), bem como entrevistas com indivíduos que participaram da criação da obra. Ao fazê-lo, as marcas não encorajam os interlocutores a questionarem a construção do dispositivo publicitário ou os assuntos que são tratados; elas tentam dispersar qualquer desconfiança. A semiótica da desconfiança, segundo Yves Jeanneret, ligada em princípio a todos os tipos de comunicação midiática, seria “[...] uma relação com as mensagens fortemente marcada pela mediação da ideia de que essas mensagens foram retrabalhadas, elaboradas a partir de intenções nem sempre explícitas [...]” (JEANNERET, 2008, p. 176, tradução nossa), daí a necessidade de autenticar as mensagens no sentido de torná-las credíveis, fiáveis. De fato, as marcas parecem impor aos interlocutores um distanciamento da Darstellung publicitária, decriptando sua própria imagem e rompendo com a “quarta parede”, ao mesmo tempo em que constroem uma representação dos bastidores de suas campanhas e se mostram como entidades credíveis. A sensação de proximidade provocada pela exposição dos bastidores de campanha torna-se a ilusão de uma visão total, dissimulando o fato que os anunciantes só mostram o que eles realmente querem que seja visto.

ANONIMATO E ACREDITAÇÃO

Os operadores factuais identificados neste estudo – os usados na apresentação de pessoas comuns e ligados a categorias sociais, os associados às falas de pessoas comuns (hesitações, enunciados não-estruturados, utilização de gírias...) ou ainda os próprios ao dispositivo publicitário (making of, reaction cut) – permitem a validação das enunciações produzidas por pessoas comuns em contexto publicitário e estimulam um processo performativo (AUSTIN, 1990) de acreditação. A acreditação refere-se, por um lado, à relação que as pessoas comuns têm com as experiências relatadas na comunicação publicitária, experiências estas, sempre apresentadas como pessoais e únicas; por outro lado, à relação entre as pessoas comuns e seus interlocutores, reforçando a capacidade dessas pessoas comuns serem reconhecidas como representantes fiáveis dos consumidores potenciais e efetivos da marca anunciada.

O processo de acreditação é reforçado pelo anonimato, característica intrínseca aos indivíduos ordinários participando às campanhas publicitárias. Mesmo quando os nomes das pessoas comuns presentes em um anúncio publicitário são citados, elas continuam sendo anônimas: “[...] vamos considerar o anonimato como um modo de ser da fala, caracterizado menos pelo desaparecimento ou pela ausência de um nome, e mais por uma oposição ancorada no nome de um autor” (JOST, 2001, p. 132, tradução nossa). Em outras palavras, os nomes das pessoas comuns, mesmo quando apresentados ou mencionados, não são memoráveis, não têm valor de citação como os de uma celebridade, de um especialista ou de um personagem político reconhecido. Isso acontece porque as falas de pessoas comuns, quando midiatizadas, pertencem a uma lógica evanescente, a “[...] uma fala cotidiana e indiferente, fala que vai e vem, que flutua e passa, uma fala imediatamente consumível” (FOUCAULT, 1994, tradução nossa). Em termos foucaldianos, é uma fala sem “função de autor”.

O anonimato é ainda, segundo Dominique Mehl, uma representação discursiva apropriada a uma sociedade em perda de grandes autoridades e em busca de novos parâmetros; autonomia dos indivíduos levando à perda de legitimidade das instâncias hierárquicas (Estado, Igreja, escola); e concordância das individualidades subsistindo na arbitrariedade das subjetividades: “A sociedade hoje se vê tanto através de experiências como através de apologias, ela se pensa tanto através de exemplos personalizados quanto através de abordagens abstratas e globalizantes” (MEHL, 1994, p. 110, tradução nossa). De acordo com o filósofo Gilles Lipovetsky (1983), nossa época é assim marcada por um desinvestimento da esfera pública, por uma perda de sentido em relação às grandes instituições coletivas, sociais e políticas e por uma cultura com mais tolerância, mas também com mais narcisismo. Trata-se de uma época em que, graças à comunicação midiática e ao consumo, triunfam o bem-estar e a auto-realização, o gosto pelas novidades, a promoção dos prazeres da vida, elementos que contribuem para fazer do individualismo hedonista um dos principais valores das sociedades contemporâneas. A “era do vazio” se manifesta também na intimidade dos indivíduos que, tendo mais possibilidades de encontros, se sentem mais sozinhos, pois, quanto mais os laços humanos se tornam livres, mais a possibilidade de experimentar um relacionamento intenso é rara. O contexto atual poderia então ser resumido da seguinte forma: “Estamos vendo a expansão do individualismo acontecer; diversificando as possibilidades de escolha, liquefazendo marcos, minando os significados únicos e os valores mais elevados da modernidade, [o vazio ideológico] organiza uma cultura personalizada e sob medida” (Lipovetsky, 1983, p. 14, tradução nossa).

Nesse contexto, Guillaume Soulez (2001) identifica um paradoxo: as falas de pessoas comuns, quando presentes na comunicação publicitária, são certamente anônimas e singulares, mas também devem interessar por sua capacidade de se abrir a uma certa universalidade, tocando emocionalmente os interlocutores. Em outras palavras, a fala de cada pessoa comum permanece individual, subjetiva, mas só se torna midiática quando tem vocação a mencionar uma situação ou um problema geral, ou ainda a provocar percepções ou sentimentos que podem ser compartilhados:

Ao ouvir essas falas singulares, o espectador pode dizer “ele também” ou “eu também”. Assim, o anonimato representa uma das fontes que leva à universalidade. Ele evita a identificação estrita a uma personalidade e sugere que se trata de uma individualidade intercambiável. (MEHL, 2001, p. 127, tradução nossa)

François Jost (2003) acredita que o anonimato, enquanto recurso discursivo, incentiva um “deslizamento simbólico”, concretizado na passagem do “eu” presente nas falas dos indivíduos ordinários para o “a gente” interpretado pelos interlocutores das mensagens publicitárias. O autor se baseia na teoria de Kate Hamburger (1986), que se interessa pelos gêneros literários e explica que a narrativa em primeira pessoa tem um status particular, menos fictício que quando outros pronomes são empregados, pois convoca inevitavelmente “um sujeito de enunciação determinado, individual e histórico”. Analisando enunciados em primeira pessoa, Hamburger opõe a enunciação histórica à enunciação teórica. Se observarmos essa distinção a partir da afirmação “eu escrevo”, pronunciada por um professor dando aula, o sujeito da afirmação pode se referir a uma situação efetiva, quando o “eu”, no caso, faz referência ao próprio professor que está escrevendo no quadro. Nesse caso, estamos diante de um sujeito de enunciação dito “histórico”. No entanto, se o professor usa essa frase como um exemplo para explicar uma regra gramatical, o sujeito da enunciação é denominado “teórico”. Em uma ocorrência do eu-histórico, a individualidade do sujeito da enunciação é fundamentalmente levada em conta. No caso do eu-teórico, no entanto, a individualidade da pessoa que realiza a enunciação não é questionada, pois é imediatamente generalizada: “O leitor [ou o ouvinte] está interessado apenas no conteúdo, sem colocá-lo em relação com a individualidade do autor” (HAMBURGER, 1986, p. 64, tradução nossa). Em resumo, o eu-histórico é nomeado, enquanto o eu-teórico é abstrato, anônimo. O “deslizamento simbólico” do eu-histórico ao eu-teórico, do “eu” ao “a gente”, é o que explicaria, enquanto procedimento discursivo, o fato que os interlocutores possam se identificar com as falas e comportamentos das pessoas comuns na publicidade:

Embora essas intervenções verbais sejam apresentadas como experiências singulares, como testemunhos históricos; embora elas possam, a partir de certo ponto de vista, ser intercambiáveis, seu objetivo é menos de nos apresentar as sutilezas de uma personalidade e mais de nos mostrar uma situação geral capaz de provocar uma emoção [...]. (JOST, 2003, p. 69, tradução nossa)

Quando um indivíduo comum fala sobre um assunto específico ou sobre uma experiência pessoal no âmbito de uma mensagem publicitária, impõe-se uma questão de valor: esse discurso pertence quase sempre a um registro emocional. Assim, o que importa não é a informação fornecida pelo indivíduo comum, muitas vezes redundante quando comparada àquela que pode ser obtida em outros documentos publicitários ou não. O que importa são suas manifestações subjetivas, pois elas permitem aos interlocutores do anúncio experimentar, por procuração, as experiências relatadas pelo indivíduo ordinário e vê-lo como um semelhante. O valor de empregar pessoas comuns no âmbito de um discurso estratégico como a comunicação publicitária reside no fato de que suas afirmações podem ser subjetivas e singulares, mas devem permitir que os interlocutores se apropriem das percepções e sentimentos compartilhados assim como que se identifiquem com as situações descritas.

CONCLUSÃO: O QUE PESSOAS COMUNS FAZEM À COMUNICAÇÃO DE MARCA?

Se a ficção publicitária é acusada de afastar os consumidores de suas preocupações cotidianas levando-os a sonhar com o que não podem possuir, a presença de pessoas comuns e seus relatos podem ser vistos como um antídoto para esta ficção considerada como alienante ou impessoal. Desta forma, o emprego de “pessoas reais” na comunicação de marca é baseado em uma promessa dupla de autenticidade. Por um lado, por trás da afirmação repetida de filmar sem atores, existe a ideia, já presente no cinema neorrealista italiano[4], de que há mais autenticidade no anonimato e no improviso do que na atuação de atores profissionais. Por outro lado, a promessa de autenticidade é feita não apenas pelo indivíduo comum que parece “oferecer” seu ponto de vida e compartilhar suas experiências nos anúncios, mas também por sua capacidade de representar os problemas e as expectativas dos consumidores visados pelos esforços comunicacionais.

Graças à presença de pessoas comuns em suas campanhas, as marcas estabelecem uma “representação construída e fictícia, mas com um coeficiente de vivências e emoções” (MEHL, 2001, p. 128, tradução nossa), a qual é mais próxima dos consumidores e, portanto, melhor aceita por eles; aparentemente mais fiável porque é supostamente livre de interesses puramente comerciais. As marcas se aproximam do cotidiano dos consumidores e compensam “[...] o fenômeno da dissolução dos laços sociais, proporcionando relações que nutrem (simbolicamente ao menos) o ‘eu vazio’ que predispõe o abandono da tradição e da comunidade numa sociedade moderna marcada pela dissolução e pela transformação dos vínculos sociais” (HEILBRUNN, 2003, p. 135, tradução nossa). As marcas exercem assim um poder unificador entre os consumidores, que direcionam suas preferências e influencia seus modos de viver, mas também representa comportamentos e valores propagados pelos próprios consumidores, incentivando a criação de comunidades em torno de interesses compartilhados e de práticas de consumo.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
[1] Por exemplo, as campanhas da marca General Motors do começo dos anos 1980 contavam a “[...] história de pessoas que dirigiam os caminhões da marca, por exemplo o padre, o farmacêutico ou ainda o médico da zona rural que, graças ao seu GM fiel, chegava ‘à beira do leito de uma criança desfalecida’ apenas a tempo ‘de trazê-la de volta à vida’” (KLEIN, 2001, p. 34).
[2] As marcas cujas campanhas compõem o corpus são: Always (higiene), Biocoop (alimentação, distribuição) Blédina (alimentação infantil), BNP Paribas (serviços, banco), Cilit Bang (limpeza), Crédit Agricole (serviços, banco), Danone (alimentação), Dove (higiene), Fleury Michon (alimentação), Kinder (alimentação), Knorr (alimentação), Monabanq (serviços, banco), Nescafé (bebidas), Nutella (alimentação), Pages Jaunes (serviços, lista telefônica), Sarenza (moda, calçados), Signal (higiene, cosméticos), Société Générale (serviços, banco), Sosh (serviços, telefonia), SuperU (alimentação, distribuição), Tige (puericultura), Vichy (cosméticos). Uma parte do corpus de análise é oriunda de nossa pesquisa de doutorado, realizada entre 2012 e 2016.
[3] Noção estudada em psicologia social, especialmente a partir dos trabalhos de Henri Tajfel (1919-1982), a categorização social compreende o conjunto de atividades cognitivas que permitem considerar os indivíduos como elementos que compõem uma categoria.
[4] O neorrealismo no cinema, especialmente no cinema italiano, se constitui no período pós-segunda guerra mundial. Ele espreita a realidade das ruas, mostra indivíduos nos filmes desempenhando o papel que lhes cabe na vida cotidiana e confirma o interesse pelo mundo “como ele é”, sem ornamentos ou efeitos especiais.
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