Resumo: Este texto é o recorte de uma pesquisa iniciada em 2009, com corpus de 126 comerciais veiculados em TV aberta que abordam a temática LGBTQIA+. A pesquisa estrutura-se entre a análise das representações em TV e as repercussões de parte desses comerciais na rede social Facebook. Aborda-se, neste momento, um recorte sobre a publicidade do comercial com a temática das minorias do anunciante Banco do Brasil que foi retirado do ar e seu desdobramento na apropriação da censura por meio de postagem de peça publicitária para o Facebook do anunciante Burger King. Para tanto, aborda-se este caso pelas temáticas de gênero, da sexualidade e de suas representações sociais no texto publicitário.
Palavras-chave:LGBTQIA+LGBTQIA+,PublicidadePublicidade,GêneroGênero,SexualidadeSexualidade,RepresentaçõesRepresentações.
Abstract: This paper is part of a research started in 2009 with a corpus of 126 commercials of public broadcasting involving LGBTQIA+. The research focuses on the analysis of representations in TV and the repercussions of part of those commercials in the social network Facebook. Here we focus on the publicity of a commercial about minorities made by Banco do Brasil that stopped being broadcast and its repercussions in the appropriation of censorship through an advertisement on Facebook made by Burger King. For such, this article utilizes gender and sexuality studies and their social representations in advertising text.
Keywords: LGBTQIA+, Publicity, Gender, Sexuality, Representations.
Resumen: Este texto es parte de una investigación iniciada en 2009, con un corpus de 126 publicidades transmitidas en televisión abierta que abordan el tema LGBTQIA+. La investigación está estructurada entre el análisis de las representaciones en la televisión y las repercusiones de parte de esas publicidades en la red social Facebook. Más específicamente, se analiza la publicidad sobre el tema de las minorías delanunciante Banco do Brasil que la sacaron del aire y su despliegue en la apropiación de la censura por medio de la publicidad para Facebook del anunciante Burger King. Por lo tanto, se aborda este caso desde las temáticas de género, sexualidad y sus representaciones sociales en el texto publicitario.
Palabras clave: LGBTQIA +, Publicidad, Género, Sexualidad, Representaciones.
Eixo Temático
UMA INTERAÇÃO ENTRE MARCAS: DA CENSURA DO COMERCIAL DO BANCO DO BRASIL NA TV ABERTA À REPRESENTAÇÃO DA DIVERSIDADE NA POSTAGEM DO BURGER KING NO FACEBOOK1
nteraction between brands: from the censorship of Banco do Brazil commercials in public broadcasting to representation of diversity in a Facebook post of Burger King
Una interacción entre marcas: desde la censura del comercial del Banco do Brasil en la TV abierta hasta la representación de la diversidad en la publicación de Facebook de Burger King
Recepção: 11 Setembro 2020
Aprovação: 21 Setembro 2020
O presente artigo é um recorte da pesquisa “Estudos de Gênero e da Sexualidade na Publicidade e Propaganda Brasileira: as representações das homossexualidades em anúncios publicitários televisivos e o engajamento com as marcas” cujos principais objetivos são: analisar de forma sincrônica e diacrônica as representações LGBTQIA+2 na publicidade veiculada em televisão aberta brasileira, ressaltar as disputas com o modelo hegemônico por meio do texto publicitário, apontar o potencial de repercussão da temática na rede social Facebook e, por fim, observar de que forma ocorre o engajamento entre público e marca.
A pesquisa conta com um corpus de mais de 120 peças publicitárias veiculadas em TV aberta em um recorte de 40 anos, quando se identificou o primeiro comercial com um personagem gay em 1979. Com a ascensão das plataformas digitais, e em específico das redes sociais, é relevante identificar que a publicidade dialoga agora com um público com ferramentas para se manifestar em relação a ações publicitárias das marcas e de seu respectivo posicionamento referente a alguma temática. Isso exige de profissionais de comunicação publicitária e gestores de marca novas estratégias de criação e veiculação, em um contexto que possibilita aos consumidores interagirem, apontando para novas métricas publicitárias – as da era dos engajamentos, como abordado por Toaldo e Rodrigues (2015). Embora, muitas marcas já tenham se posicionado sobre a temática LGBTQIA+, entre representações estereotipadas e outras mais arrojadas, as disputas de poder envolvidas nessa temática colocaram anunciantes cautelosos e tímidos ao acionar essas representações numa perspectiva de visibilidade e de representatividade. Cita-se aqui o caso emblemático da campanha do Boticário “As sete tentações de Egeo”3, que abordou a temática do Dia dos Namorados para o lançamento da linha de perfumes Egeo4
Segundo dados da Edelman de 2017 e 20185, 62% dos consumidores entrevistados acreditam que as marcas podem fazer mais do que o governo para solucionar problemas sociais; enquanto 55% deles têm seu consumo motivado pelo posicionamento da marca6. Em um primeiro momento, se posicionar frente a uma temática polêmica pode ser visto como prejudicial para uma marca por acarretar consequências negativas como protestos, ameaças de boicote ou até denúncias; contudo, diversos fatores têm mostrado que um posicionamento frente a temáticas polêmicas pode, por outro lado, angariar a simpatia e até mesmo o engajamento de públicos afeitos à temática da diversidade.
Dentre os aspectos positivos desse posicionamento, destaca-se o festival Cannes Lion 2019, no qual nas 28 categorias de prêmios, 20 peças trouxeram pautas de caráter sociopolítico e que contaram com a representatividade de igualdade de gênero, sustentabilidade, inclusão social, críticas ao racismo, entre outros temas (ALVES, 2019). Essa temática não se limita apenas a peças da publicidade, pois, segunda uma reportagem da Folha de S. Paulo empresas têm se engajado também em suas gestões internas, como em ações que auxiliam em uma melhor qualidade de vida para seus funcionários, oferecendo, por exemplo, licença-paternidade e auxílio-creche para colaboradores homossexuais (OLIVEIRA, 2019).
A publicidade vem dialogando com um contexto em que as minorias adquirem representatividade e acesso a direitos civis. Essas transformações se devem às conquistas e lutas do movimento político organizado pela sociedade civil e individualmente por cidadãos que tensionam o Estado para que haja mudanças permanentes e condizentes com os direitos humanos e civis dessas pessoas. Ainda que grupos conservadores tendam a questionar essas conquistas como forma de reafirmar o modelo do padrão heterossexual, ao se completar 50 anos da Revolta de Stonewall7 – marco da luta LGBTQIA+ por direitos – devemos admitir que uma transformação social se configura.
Portanto, com esse cenário, os objetivos deste texto se inserem dentro do recorte da pesquisa apresentada, a fim de analisar um fenômeno no qual a publicidade de uma marca, postada na rede social Facebook, surge como estratégia publicitária a partir de um comercial de outra marca, censurada ao ser veiculada em TV aberta. Especificamente, será analisado o comercial do Burger King postado no Facebook como um desdobramento do comercial “Capriche na Selfie” do Banco do Brasil, veiculado em TV aberta e retirado do ar. Além disso, interessa identificar que elementos atravessam essa estratégia, em que as representações LGBTQIA+, parte da noção de diversidade do comercial do Banco do Brasil, se desdobram no comercial postado em rede social pela marca Burger King, e como ocorre a repercussão na rede social da marca.
Como referencial teórico e metodológico a produção está baseada nos estudos de gênero e da sexualidade em uma perspectiva queer (Scott, 1995; Louro, 1997, 2001; Nicholson, 2000, 2005; Butler, 2003), nas representações sociais dos estudos culturais (Williams, 1980; Hall, 1995, 1997) e da psicologia social (Moscovici, 2003) e, no contexto da publicidade, na análise de conteúdo das representações, tanto na TV aberta quanto na rede social Facebook e nos estudos dos processos de hibridização publicitária e da cultura da convergência (Primo, 2000; Recuero, 2014).
Os novos caminhos que as marcas tendem a seguir na atualidade dialogam com transformações culturais da sociedade. Além disso, as plataformas digitais potencializam a polarização no meio social na qual a publicidade se insere ao produzir e reproduzir significados em suas práticas.
É por meio do posicionamento que a publicidade é capaz de atribuir os significados do mundo a uma marca. Segundo McCracken (2003, p. 21), “a revolução do consumo é encarada agora como tendo modificado os conceitos ocidentais de tempo, espaço, sociedade, indivíduo, família e estado”. Portanto, ainda segundo o autor, “[...] os novos bens e hábitos de consumo ingressam na fabricação da sociedade ocidental como agentes decisivos de mudança e de sociabilidade”. Se considerarmos que, dentro de uma nova lógica digital, esse processo torna-se ainda mais complexo, não há como se entender o fenômeno da publicidade sem identificar seu potencial de dialogar com um ambiente social demarcado por uma mudança radical de uma lógica de produção fordista e unívoca das agências de publicidade (Iribure, 2003; Rodrigues; Jacks, 2015) para uma prática pós-fordista e dialógica, em que consumidores também se tornam produtores de conteúdo (Toaldo; Rodrigues, 2015).
Sobre o produto da publicidade – suas representações – são colocadas em xeque as práticas tradicionais do texto publicitário. Existe uma negociação entre um modelo conservador, que se utiliza de estereótipos e procura a manutenção do modelo hegemônico, e uma vanguarda que exige um tensionamento do padrão vigente Essas negociações são marcadas por uma nova cultura midiática, perpassada pelo potencial de maior engajamento com o público nos espaços de socialização digitais.
Em relação às novas práticas, este texto versa sobre um atravessamento sem precedentes entre as marcas numa lógica transmidiática (Covaleski, 2012) que, neste momento e diante dos desafios encarados pelas práticas publicitárias, chama atenção. O caso do comercial do Banco do Brasil, tirado do ar e censurado, e o desdobramento da campanha como uma publicidade ou campanha de oportunidade pela marca Burger King numa plataforma digital – no Facebook – exemplifica possibilidades para a publicidade dialogar e gerar engajamento. No que tange às pesquisas sobre as representações LGBTQIA+ na publicidade veiculada em TV aberta no Brasil e sua repercussão no Facebook, é a primeira vez que se identifica uma estratégia entre marcas, gerada “espontaneamente” a partir de um contexto específico. Houve um atravessamento entre meios, da TV aberta para o Facebook, contudo não foi seguida uma lógica estratégica definida previamente, como acontece com os cases já analisados.
Sabe-se que a polêmica temática LGBTQIA+ ainda chama atenção na TV aberta e gera engajamento no Facebook, e para as marcas em geral o engajamento analisado sempre é positivo, como se pode perceber em publicações relativas ao tema (Rodrigues, 2018a, 2018b). A novidade é identificar o que ocorre quando há um atravessamento entre marcas. No contexto da publicidade, as possibilidades de integração entre marcas sempre foram possíveis a partir de estratégias previamente planejadase identificadas. Segundo Lupetti (2002), as estratégias que aproximam marcas são categorizadas como: estratégias de comparação – não ataca o concorrente, apenas faz comparações; ofensiva – compreende o ataque ao concorrente, visando atingir suas vulnerabilidades; e de defesa – busca repelir um ataque, reforçando as forças empresariais. Uma vez definida a estratégia, sabe-se que outro elemento relevante em muitos casos é a identificação do tipo de campanha. Também segundo a autora citada, a possibilidade de aproximação de dois anunciantes ocorre com a campanha cooperada, “[...] típica das empresas de varejo que veiculam os produtos de seus fornecedores, em geral as indústrias” (Lupetti, 2002, p. 119).
Sob o ponto de vista da mídia, historicamente quando se atravessa de uma tecnologia para outra, dialogando com uma mesma mensagem de um mesmo anunciante, costuma-se nomear de crossmedia –em português, crossmídia. É importante enfatizar que uma ação de crossmídia parte de uma estratégia definida de apresentar um mote de campanha a ser desdobrada em diferentes meios que dialogam entre si e oferecem diferentes experiências a partir de um mesmo conceito criativo. Isso difere crossmídia de transmídia, a qual, segundo Jenkins (2009), ocorre entre partes de uma narrativa que se complementam muitas vezes em diferentes plataformas, como o storytelling ao contar uma história, a publicidade atravessa diferentes fases dessa narrativa em diferentes meios.
Aliado a isso, a gestão de uma conta publicitária parte de um acompanhamento constante, buscando monitorar o macroambiente, avaliar desafios e identificar oportunidades. Não por acaso, é comum se nomear algumas campanhas como campanhas de oportunidade. Dessa forma, os ambientes políticos, econômicos, tecnológicos e socioculturais sempre apresentam oportunidades para que as marcas dialoguem e, mais do que isso, se posicionem diante de fenômenos ou fatos contemporâneos. Se aliarmos a isso o redimensionamento das repercussões desses fatos no âmbito digital, a publicidade tem sido desafiada a buscar oportunidades e ser arrojada ao se colocar no meio de temáticas recém insurgidas e muitas vezes polêmicas.
Se, como apresentamos, os consumidores esperam posicionamento das marcas, as estratégias que se apropriam da temática LGBTQIA+, apesar de gerarem repúdio de parte conservadora da sociedade, também provocam engajamento de públicos aliados a um quadro de diversidade e de respeito a direitos civis e humanos. Assim, parece que, pelo contexto estruturado, a proposta do Burger King não surpreenda, embora tenha arrojo, rapidez e perspicácia na ação. Então, ainda de forma empírica e preliminar, temos elementos para sugerir que a estratégia de atravessamento de meios que dialogam com uma mesma temática – no caso, a LGBTQIA+– pode reivindicar o prefixo cross. E, como se trata da publicidade de marcas distintas ligadas por um mesmo contexto e facilitado pela dinâmica de hibridização da mídia e da publicidade, se apresenta o termo crossadvertising (ou crosspublicidade), ainda como uma provocação. Justamente por isso, ainda, se abordará rapidamente o contexto da hibridização.
O surgimento de novas mídias interativas culminou numa readequação do paradigma comunicacional a fim de interagir, dialogar e estimular a mediação. Estamos diante de uma publicidade hibridizada que mantém seu discurso persuasivo através de práticas que, juntamente ao entretenimento, facilitam a disseminação e o compartilhamento – isto implica numa adaptação de narrativas para cenários transmidiáticos (COVALESKI, 2012). De acordo com cenários diversos que tensionam as práticas publicitárias para além de seus limites, Casaqui (2011) compreende esses processos tendo como referência o caráter persuasivo da publicidade e seu reordenamento num cenário de transformação tecnológica que enviesa os atores sociais e suas práticas em formas mais complexas ao proporem a interlocução com os consumidores, identificados com o potencial de serem interagentes.
Mais do que a transformação, podemos dizer que situações inusitadas se somam a esses contextos e forçam ou abrem a oportunidade para que marcas possam se utilizar de alternativas inovadoras como estratégia de comunicação – e de visibilidade, no caso de representação da temática LGBTQIA+ – em um ambiente digital. No ambiente da cultura da convergência, da narrativa transmídia, do crossmídia, nos propomos a pensar a partir do crossadvertising. Contudo, ainda temos receio de uma definição deste acabada deste termo em um cenário mutante em que o crossbrand (ou crossmarca) poderia ser até uma alternativa. O que se pode ainda inferir é uma rede de possibilidades que apresentam alguns desafios, como o caso do Banco do Brasil e do Burger King.
Dentro das representações analisadas em 40 anos de recorte, a metodologia da pesquisa aborda uma análise diacrônica dos comerciais de televisão por serem suportes relevantes de visualização do caráter histórico das relações de poder e de suas consequências políticas e sociais. Dentro de 126 peças analisadas, 23 comerciais contemplam a letra L da sigla LGBTQIA+, 86 da letra G, apenas 1 da letra B, 15 da letra T e nenhum comercial com representações QIA+.

Em uma primeira etapa, a pesquisa tem como suporte o levantamento e mapeamento dos comerciais, pois a partir deles produz-se um panorama geral das representações não normativas de gênero e da sexualidade contemplados nessas quatro décadas (de 19798 até 2019). O corpus da pesquisa é composto por 126 peças publicitárias veiculadas em TV aberta, com exceção da peça do Burger King inclusa neste texto, pois é um desdobramento do comercial do Banco do Brasil censurado – este sim, veiculado em televisão aberta – que aborda a temática LGBTQIA+. A fim de sistematizar mais concretamente o corpus da pesquisa para uma primeira análise das representações, adotou-se a estratégia metodológica de categorizar em dois grupos as peças publicitárias: “estereotipados”, que reafirmam o modelo hegemônico e “desconstrucionistas”, que tensionam o padrão vigente (RODRIGUES, 2008).
Dentro da categoria “estereotipados”, constam os comerciais que, por meio de estereótipos, tendem a inserir uma parcela da sociedade em uma relação de poder que a inferioriza e desvaloriza, estigmatizando esses indivíduos. A norma heterossexual não entra em conflito com o que foge da norma, pois a desvalorização ou redução de atributo dos indivíduos LGBTQIA+ segue uma lógica de reafirmação do padrão heteronormativo hegemônico. Dessa forma, os personagens-mote são incorporados aos comerciais sob a regulação do que dizem, pensam, vestem, pelo cenário, locução, sons e pela interpretação, reduzindo-os a essas unidades discursivas para reafirmar o que se considera normal dentro da lógica do padrão vigente.
Os comerciais “desconstrucionistas” sugerem novas experiências de gênero e sexualidade que tensionam o modelo heteronormativo por sugerir alternativas e superar expectativas do que se é concebido por personagens tradicionais. O tensionamento acontece por essas representações LGBTQIA+, ainda que necessite de uma negociação do que pode, ou não, se tornar público daquilo que foge à norma. Sendo assim, a criação de uma diversidade de personagens-mote se sustenta nas mudanças sociais ocasionadas pela parcela que reivindica sua inserção social.
O uso de categorias ampara uma leitura das peças publicitárias e estas são utilizadas apenas como uma estratégia metodológica, já que é admitido que um mesmo comercial pode transitar entre os dois tipos estabelecidos. Nessa primeira etapa, para estudos dos comerciais, é empregado também como técnica de tratamento dos dados um fichamento, descrição, decupagem e análise de cada peça. Através das fichas, é possível identificar os profissionais envolvidos na produção dos filmes publicitários; seguidas da descrição das peças; acompanhado de decupagem, que reforça e ilustra a descrição, e finalizada com a análise propriamente dita dos comerciais (Rodrigues, 2008).
A partir de um número significativo de peças analisadas, foi relevante considerar o engajamentodos consumidores e das marcas na rede social Facebook. Compreende-se engajamentocomo o resultado de interações mútuas (Primo, 2000) entre duas ou mais pessoas, em ambiente digital, seguidas da criação de laços fortesque gerem capital socialentre as mesmas, ou seja, a troca de informações sobre assuntos de interesse em comum aos envolvidos (Recuero, 2014; TOALDO; RODRIGUES, 2015).
Para poder analisar o engajamento, é necessário uma segunda etapa com a finalidade de mapear os desdobramentos das peças publicitárias em ambiente digital, neste caso, a repercussão das peças publicitárias que abordam a temática LGBTQIA+ na rede social Facebook. Nessa fase, considera-se o número de visualizações, curtidas e comentários da peça na página da marca onde foi postado o comercial, acompanhando-se o engajamento durante sete dias após a postagem. Realizou-se a identificação de como as marcas interagem numa plataforma digital considerando o microcontexto, as curtidas e os compartilhamentos, assim como quais são as categorias que mais se relacionam com a marca. Para os engajamentos, foi necessário incluir uma terceira categoria: “no armário”, que diz respeito aos engajamentos que não tensionam e nem reafirmam o modelo hegemônico. Com base nestes dados avançamos para a montagem da matriz de interagentes e para o gráfico comparativo de dados.
É importante ressaltar que para uma análise do comercial “Capricha na Selfie” do Banco do Brasil não foi possível realizar a análise dos engajamentos, pois o comercial referido foi excluído de todas suas redes sociais. Contudo, o desdobramento da campanha pelo Burger King em seu Facebook estrutura-se no contexto de crossadvertising apresentado anteriormente, permitindo-nos dar seguimento à segunda etapa metodológica da pesquisa, inédita até o momento
Com 210 anos no Brasil, o Banco do Brasil é uma instituição financeira com 54% de participação do governo federal em suas ações (CASTRO, 2016). A filosofia da empresa se baseia em “ser um banco de mercado, competitivo e rentável, atuando com espírito público em cada uma de suas ações junto à sociedade” (BB SEGUROS, 2011), com a visão de contribuir com o desenvolvimento do país. Essa postura, agora, dialoga com uma cultura da convergência, na qual a comunicação das marcas precisa adequar seu posicionamento frente a temáticas socioculturais contemporâneas. Nesse contexto, o presidente da instituição orientou para que os profissionais de marketing direcionassem as suas campanhas a um público mais jovem, utilizando-se de linguagem moderna e se aproximando com os novos modelos de instituições financeiras.
A campanha “Capricha na Selfie” do Banco do Brasil convidava o público a abrir uma conta no aplicativo da instituição se apropriando de termos comuns na internet como selfie (foto que uma pessoa tira de si mesma), incentivando que o cliente coloque sua foto no perfil do aplicativo do banco. A campanha contava com a participação de influenciadores digitais e teria um esquete de humor no canal Porta dos Fundos, até a veiculação do comercial “Capriche na Selfie” em televisão aberta, quando sua censura culminou no cancelamento de toda a campanha. O comercial contava com catorze personagens de diversas etnias e usava uma linguagem jovem e divertida, se apropriando de termos que envolvem o selfie – como “faz carão”, “vira o pescoço pro lado”, “biquinho de vem cá me beijar” entre outros. A narrativa do comercial se baseia nos personagens-mote que rompem com um modelo heteronormativo, tirando selfies para colocarem nos aplicativos em suas contas do Banco do Brasil e ao fim exprimia um caráter explicativo do que é preciso fazer para abrir uma conta na plataforma digital da instituição.
Ao se analisar as representações, num primeiro momento, parte-se para um fichamento dos dados do comercial para que possamos ter as informações técnicas sobre a produção do filme publicitário, em que se identifica o ano da peça, produto, duração, categoria, agência, anunciante, direção de criação, redação, direção de arte, produtora, direção de comercial, atendimento, aprovação e prêmios, se houver.

A seguir, é realizada uma descrição geral do comercial, incluindo como base as notícias que repercutiram após sua veiculação. Após a descrição, aplicamos o processo de decupagem, no qual todas as cenas do vídeo são separadas, descrevendo na coluna da direita os diálogos, locuções, e comentários adicionais necessários, como efeitos, e na coluna da esquerda são apresentados os frames que melhor representam a cena, necessárias para um bom entendimento das representações, incluindo enquadramento, cenário e efeitos especiais.

Por fim, realizamos uma análise do que identificamos no comercial após a decupagem. Isso nos permite investigar o que é relevante a partir do que fora analisado do conteúdo publicitário, sintetizado em produto/ano; personagem-mote; áudio; cenário; enquadramento predominante; efeito; chamada; valor simbólico e público.

Embora o comercial não explicite a sexualidade ou as expressões de gênero dos seus personagens-mote, entendemos que ele se enquadra na categoria “desconstrucionista”, ou seja, tensiona padrões do modelo hegemônico heteronormativo, considerando a personagem trans, que pode ser inferida tacitamente pelo seu fenótipo. Isso é muito comum na publicidade, que coloca de forma sutil certos personagens para que o público LGBTQIA+ logo se identifique, mas chamando pouca ou quase nenhuma atenção de um público conservador. A peça tensiona padrões hegemônicos por colocar personagens negros, principalmente mulheres, como protagonistas, os quais apresentam dois marcadores sociais que fogem do estereótipo, o cruzamento de gênero com o de raça (Rodrigues, 2018). Mulheres negras ainda são raridade na publicidade, e, se adicionarmos um corte de identidade de gênero ou sexual, torna-se ainda mais difícil de serem representadas em campanhas. Na pesquisa citada, em quase 40 anos de análise, a única personagem LGBTQIA+ negra identificada foi uma mulher trans em comercial de 2017
Foi somente no ano de 2017 que o primeiro comercial estrelado pela personagem trans, para a Avon, foi ao ar na televisão aberta em rede nacional. […] ela apareceu para um público massivo que não estava esperando em horário nobre uma mulher trans usando maquiagem de uma das maiores marcas de cosméticos.
No primeiro comercial que aparece em TV aberta da Avon intitulado Avon True Base Líquida Matte – Cara e Coragem, Candy Mel está ao lado de outras cinco mulheres todas de diferentes idades e tom de pele, aparentemente todas cis (quando o gênero está em acordo com o sexo biológico, numa perspectiva heteronormativa), para mostrar as características de uma base matte que confere à cliente uniformidade e tonalidade independente do tom de pele, pois a base se adapta e chega ao tom exato da cor da pessoa que a está usando.
O comercial representa todos os personagens realizando a mesma ação –tirar uma selfie – com exceção de uma personagem-mote negra, que está deitada no chão com a câmera a enquadrando num plano de cima para baixo. Não cabe aqui extrapolar nestas poucas páginas as motivações que levaram ao veto do comercial, que já estava em veiculação – o que demonstra um grave desrespeito a uma prática publicitária, pois, uma vez aprovado um anúncio, ele vai à veiculação sem restrições; afinal, por trás da peça publicitária, existem profissionais responsáveis, com formação e que mereceriam o reconhecimento, principalmente por estarem atentos a expectativas de públicos diversos que querem se ver representados pela publicidade também. Portanto, iremos para a etapa da investigação dos engajamentos a partir dos interagentes com a peça do Burger King. A partir do desdobramento da campanha do Banco do Brasil no Facebook do Burger King, foi possível fazer uma análise dos engajamentos através das perspectivas de crossadvertising apresentadas neste artigo.Figura 3. Frame da postagem do Burger King.Fonte: Burger King Brasil (2019).
A peça “Recrutamento” na página oficial do Burger King Brasil constitui-se de apenas uma tela amarela com um texto convidando pessoas a se inscreverem para participar do próximo comercial. Na chamada, a marca convida:
Para participar, basta se encaixar nos seguintes requisitos: ter participado de um comercial de banco que tenha sido vetado e censurado nas últimas semanas, pode ser homem, mulher, negro, branco, gay, hétero, trans, jovem, idoso. Curtir fazer selfie é opcional. (BURGER KING BRASIL, 2019)
O texto sugere de forma quase explícita que está convidando todo o elenco do comercial “Capriche na Selfie”do Banco do Brasil a participar do seu próximo comercial. Seguindo o protocolo da pesquisa por um critério de viabilidade, levantou-se e analisou-se a repercussão da postagem na primeira semana de publicação do comercial. Do dia 3 de maio de 2019 – data que a postagem foi ao ar – ao dia 9 de maio de 2019, a peça teve mais de 746 mil visualizações, 10 mil compartilhamentos, 27 mil comentários e 43 mil reações, dentro delas 13.113 likes, 22.406 corações, 855 espantos, 6.013 “grr” (raiva) e 449 risadas. É importante ressaltar, para um melhor entendimento da análise dos engajamentos numa perspectiva do crossadvertising, que a peça do Burger King se enquadra na categoria “desconstrucionista”, por dar visibilidade a um outro comercial que teve sua censura motivada por representações que tensionavam o modelo hegemônico.
Já os comentários da categoria “estereotipados” se enquadram nos que reforçam o modelo hegemônico vigente. Em um dos comentários, por exemplo, não há uma alusão crítica direta às representações do comercial e sugere um boicote à marca por ter se posicionado contra a censura – por parte do presidente eleito – à diversidade, sugerida pelo comercial. Neste caso, para além do microcontexto das redes sociais, é necessário recorrer ao macrocontexto (TOALDO; RODRIGUES, 2015). Como a repercussão na mídia demonstrou, o descontentamento que levou à censura foi decorrente da representação da diversidade, tendo o presidente a justificado em sua conta no Twitter dizendo ser um ato em respeito à população, pois empresas privadas poderiam promover ideologias que bem entenderem, o que não se justificaria no caso do Banco do Brasil por ser uma empresa administrada pelo governo. Portanto, o teor tácito do termo “ideologias” pode até ser sugerido pelo termo “ideologia de gênero”, uma estratégia utilizada para criticar, por parte dos setores conservadores, as políticas das minorias sexuais que reivindicam inclusão e visibilidade social.
A categoria “no armário”, por sua vez, consta de comentários que não tensionam o paradigma heteronormativo e nem desaprovam a censura. Durante a análise, fomos deparados com diversos comentários que seguiam num tom de crítica ao posicionamento do Burger King. O fato de o Banco do Brasil ser um dos cinco bancos estatais do governo potencializa que os engajamentos referentes a sua publicidade tomem um caráter mais político. Há, muitas vezes, uma abordagem reivindicando a transparência de uso dos recursos dos recursos públicos para a realização dos comerciais de forma a justificar que a censura fora motivada por uma demanda de aplicação “coerente” de dinheiro público e não por preconceito. Como o comentário coloca a temática LGBTQIA+ num segundo plano, e pauta sua crítica aos gastos do governo com publicidade, os categorizamos também como “no armário”.
Por outro lado, enquadram-se como “desconstrucionistas” os comentários que apoiaram a proposta do Burger King. Através dos resultados da análise dos engajamentos é possível perceber uma grande repercussão no geral e principalmente uma grande quantidade de manifestações em prol da temática da diversidade. A partir do crossadvertising, a peça, ao se utilizar da censura contra o comercial do Banco do Brasil, faz questão de expressar uma crítica à posição do governo em relação ao veto da diversidade como mote criativo. Em uma primeira análise, a peça “Recrutamento” teve mais comentários “no armário”, seguido de “desconstrucionistas” e por fim menos comentários “estereotipados”.
Devido à grande quantidade de comentários, a amostra analisada nesse artigo foi de cerca de 10%, totalizando 2.951 comentários. Contudo, a pesquisa continua a análise para uma maior compreensão do fenômeno abordado anteriormente. Nesse primeiro levantamento de dados, categorizaram-se 2.031 comentários “no armário”, 400 “estereotipados”e 520 “desconstrucionistas”. Foram notados alguns comentários que tangenciam de forma superficial o tema da diversidade, não se demonstrando explicitamente contra ou a favor. Muitos comentários apresentam uma abordagem que se relacionava mais com o aspecto racial do comercial do Banco do Brasil do que com a temática LGBTQIA+ e grande parte dos comentários tinham como temática principal um viés político, utilizando-se do argumento de que a crítica ao comercial não recaía sobre retratar a diversidade, mas sim ao fato do governo desperdiçar dinheiro para produzir um vídeo de apenas 30 segundos. A análise dos comentários foi realizada através da Zeeng9, uma plataforma digital para análise e coleta de dados acerca das redes sociais de uma empresa. A empresa fechou uma parceria em 2018 com a pesquisa para disponibilizar a plataforma.

Como a análise notou uma repetição constante de certos casos, foi considerado como estratégia de análise traçar um perfil de subcategorias dentro do grupo “no armário”, como por exemplo a subcategoria “perversa”, para os comentários que tangenciam a causa LGBTQIA+ para sustentar uma crítica à marca e alegando que suas motivações são por outros motivos, mas que, nos desdobramentos das interações, demonstram que sua intenção é motivada, de fato, pela questão da diversidade; “contraditória”,para os casos que, ao mesmo tempo que apoiam a abordagem da marca, constroem a sua defesa a partir de termos ou argumentos ofensivos e apoiados em estereótipos que historicamente desqualificam as minorias; e os “críticos à marca”, que não apoiam a estratégia da marca ao colocar em questionamento as outras ações da própria empresa que menosprezam as minorias. Contudo, notou-se que grande parte dos comentários foram sobrepostos pela polarização política, deixando a questão da diversidade em segundo plano.
A complexidade e sutilezas presentes nesse fenômeno não são contempladas pelas categorias. No entanto. a recorrência das subcategorias não teve uma quantidade significativa para adotá-las como estratégia metodológica. Para este caso, optou-se por categorizar os comentários apenas nas três categorias estipuladas anteriormente, já que as subcategorias poderiam acabar desviando o foco da temática LGBTQIA+ e se afastar dos objetivos desta pesquisa. Contudo, neste momento, também questionamos os limites das variáveis escolhidas, já que elas não permitem categorizar as subjetividades evidenciadas nas subcategorias apresentadas.
Tendo em vista esse cenário, percebe-se avanços significativos nas conquistas históricas que ampliaram a percepção da sexualidade na perspectiva da inclusão social e respeito à diversidade. Portanto, a pesquisa sobre como tem se dado as representações do público LGBTQIA+ em comerciais de televisão aberta que transitam entre o tensionamento de modelos heteronormativos e o reforço de estereótipos desse padrão hegemônico se amplificar ao se considerar o potencial de repercussão e de engajamento em redes sociais.
Uma nova ordem parece pairar sobre os desafios impostos às práticas publicitárias, as quais têm sido convidadas a dialogar, cada vez mais, com a complexidade que a contemporaneidade impõe em um contexto de convergência midiática. Neste texto foi possível trazer um desses elementos, ao versar sobre um diálogo, forçado por um contexto de censura, ou espontâneo, se pensado como uma estratégia publicitária de oportunidade, em que houve um atravessamento sem precedentes entre marcas numa lógica transmidiática.
Neste momento, diante de tais desafios encarados pela publicidade, chama atenção que temáticas polêmicas, como LGBTQIA+, repercutem, ao mesmo tempo que exigem da publicidade um reordenamento do texto persuasivo, ao convidar seus interlocutores a dialogarem a partir de um posicionamento. Se, por um lado, foi possível visualizar uma prática de censura a uma determinada marca que utilizava o mote da diversidade, por outro, se identificou que as marcas também estão atentas a dialogarem e se posicionarem de forma arrojada, mesmo correndo o risco de serem rechaçadas por um discurso conservad
Sob o ponto de vista da estratégia publicitária, pode-se vislumbrar uma nova possibilidade de aproveitamento de uma temática de uma marca para outra, atravessando-se de um veículo massivo para uma plataforma digital ao se propor para este fenômeno o termo crossadvertising, ainda de forma bastante preliminar. Mais do que isso, uma interlocução que ressignifica o que havia sido postado em dois aspectos: o do contexto e o do texto. Do contexto, a censura não definiu o fechamento de uma história que dialoga com a perspectiva de um movimento social que busca a inclusão social. Se o Estado, por seu representante máximo e num espaço democrático, parece reprovar a diversidade, as marcas, como demonstrado por pesquisas, estão atendendo a uma expectativa dos consumidores em se posicionarem política e socialmente.
Pode-se dizer, metaforicamente, que a marca Burguer King, no contexto das práticas publicitárias, resgatou a visibilidade dessas minorias, censuradas com a retirada abrupta do comercial do Banco do Brasil do ar. E, nas redes sociais, foi possível repercutir para uma outra dimensão, a partir do texto. A peça do Burger King explicita e dá nome às minorias, que estavam na peça do Banco do Brasil apenas sugeridas. Essa explicitação escancara o que foi censurado, ao mesmo tempo que permite a um grande grupo de interagentes se manifestarem. Ainda temos poucos dados, mas em uma amostra foi possível identificar um maior número de apoiadores à proposta da Burger King de resgatar a publicidade da celeuma de uma censura. Se a personagem trans, por exemplo, parecia sutil no comercial de TV aberta, na peça do Facebook ela ganha nome e visibilidade de fato, sem subterfúgios publicitários.
Então, ainda temos muito o que avançar no que tange às representações LGBTQIA+, e a publicidade tem se mostrado um espaço profícuo para analisarmos estas tensões e relações de poder. Ao mesmo tempo, se coloca nas práticas da publicidade uma dimensão que, historicamente, não lhe era cara: a de se posicionar política e socialmente, estando atenta às disputas de poder num contexto de conquistas de direitos civis e humanos de uma parcela da sociedade que ainda busca visibilidade e representatividade em um Estado democrático de direito.




