Resumo: Este artigo objetiva, em geral, caracterizar o regime jurídico da Lei Geral de Proteção de Dados sob os conceitos apresentados pelo capitalismo de vigilância, tendo como objetivos específicos: (I) descrever a economia política da vigilância e o papel do titular de dados/ usuário de serviços digitais e (II) identificar a inserção da LGPD no contexto da exploração econômica dos dados pessoais por meio do instrumento do consentimento do titular. Resultados: (I) A LGPD pode ser considerada um suporte jurídico para a acumulação capitalista na era informacional, possibilitando a condição de um titular de direitos relativos aos dados que pode negociar os seus dados com as empresas capazes de lidar com o contexto do Big Data e extrair desses dados comportamentos a serem vendidos em um mercado de dados que vende previsões de consumo e de vida cotidiana; (II) O grande mecanismo econômico identificado com a exploração é a extração de mais-valia comportamental, que é o processo que extrai das experiências da vida cotidiana dos usuários dados relevantes que são transformados em mercadoria; (III) Da mesma forma que o trabalhador assalariado do capitalismo é aquele que tem parte de sua produção extraída como mais-valor pelo capitalista, na era digital, os usuários conectados ao serem considerados titulares de dados tem sua vida cotidiana transformada em dados rentáveis, expandindo os limites da acumulação capitalista. O método de procedimento utilizado é o dialético-materialista, com abordagem qualitativa e técnica de pesquisa bibliográfica com revisão da literatura em um estudo exploratório.
Palavras-chave: Lei Geral de Proteção de DadosLei Geral de Proteção de Dados,Capitalismo de vigilânciaCapitalismo de vigilância,Mais-valia comportamentalMais-valia comportamental.
Abstract: This article aims, in general, to characterize the legal regime of the General Data Protection Act (LGPD) under the concepts presented by surveillance capitalism, having as specific objectives: (I) describe the political economy of surveillance and the role of the data owner / user of digital services and (II) identify the insertion of LGPD in the context of the economic exploitation of personal data through the instrument of consent of the holder. Results: (I) LGPD can be considered a legal support for capitalist accumulation in the information age, enabling the condition of a data rights holder who can negotiate his data with companies capable of dealing with the Big Data context and extract from these data behaviors to be sold in a data market that sells forecasts of consumption and daily life; (II) The great economic mechanism identified with exploitation is the extraction of behavioral surplus value, which is the process that extracts relevant data from the users' daily life experiences that are transformed into merchandise; (III) In the same way that capitalist salaried workers are those who have part of their production extracted as more-value by the capitalist, in the digital age, users connected to being considered data holders have their daily lives transformed into profitable data, expanding the limits of capitalist accumulation. The method of procedure used is the dialectical-materialist, with a qualitative and technical approach of bibliographic research with literature review.
Keywords: General Data Protection Act, Surveillance capitalism, Behavioral added value.
Artigo
O titular de dados como sujeito de direito no capitalismo de vigilância e mercantilização dos dados na Lei Geral de Proteção de Dados
The data holder as the subject of law in capitalism of surveillance and data commercialization in the General Data Protection Law
Recepção: 05 Dezembro 2019
Aprovação: 25 Maio 2020
O capitalismo de vigilância é um termo cunhado e popularizado pela autora norte-americana Shoshana Zuboff, ao buscar definir a transformação na ordem da economia política que constitui e expande uma nova forma de capitalismo pautada na exploração do comportamento das pessoas, ou seja, em todos os aspectos da vida cotidiana — para além do paradigma do trabalho. A vigilância no capitalismo é paradigmaticamente marcante, e se transformou ao longo dos processos de acumulação, constituindo um instrumento da produção capitalista; todavia, atualmente toda essa estrutura criada para vigiar possui um novo fim: a mercantilização dos dados obtidos por meio dela, como fim em si mesmo.
A regulação dos dados no Brasil se expressa na recente aprovação da Lei Geral de Produção de Dados (LGPD), que, baseada nas regulações europeias, constitui um marco normativo atinente aos processos sociais e econômicos dos dados digitais. Tal ato tem como marca distintiva a utilização do consentimento do usuário para garantir a defesa de direitos privados e fundamentais. Porém, é identificável uma ambiguidade nessa proteção, pois o texto da lei reconhece uma (hiper) vulnerabilidade dos usuários (titulares dos dados) ao mesmo tempo em que dá condições para que a entrega de dados ocorra. A condição de titular de dados pessoais é definida pela lei em seu artigo 5º, V, como: “pessoa natural a quem se referem os dados pessoais que são objeto de tratamento”, ou seja, é o sujeito de direito que cede dados ao controlador e ao operador — e essa condição de disponibilidade só é possível por meio do consentimento, definido no art. 5º, XII, como “manifestação livre, informada e inequívoca no qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada”.
A controvérsia acerca da figura jurídica do titular na LGPD suscita sua posição dúplice, ou contraditória, de sujeito digno de proteção de seus dados pessoais, mas como figura livre para contratar sobre a cessão de tais dados. Nesse cenário teórico se situam pesquisas1 que identificam os limites do consentimento do titular e a necessidade de sua complexificação. Todavia, a LGPD não trata de formas específicas, melhores ou piores condições de consentimento juridicamente eficazes, pois compreende essa questão de forma abrangente, noutra escala, expondo limites históricos e sociais para qualquer forma de cessão de dados pessoais, independente de seus adjetivos.2 Por mais que a vigência dessa lei venha a significar um marco jurídico para a proteção de dados pessoais no Brasil, ela precisa ser visto no contexto da economia política que lhe recebe, que é da mercantilização dos dados em uma economia da vigilância. Dessa controvérsia se expressa o problema de pesquisa deste artigo: quais os limites do consentimento do titular consagrado na LGPD impostos pela economia política da vigilância?
Para buscar resposta a tal questionamento é preciso identificar como essa lei se manifesta frente a tal forma político-econômica, tendo em vista sua essência normativa ambígua, que pode ser tanto de resistência jurídica aos processos de mercantilização dos dados — relativa à “proteção” dos dados pessoais, como a norma que dá condições jurídicas, do ponto de vista regulatório, para a constituição de um mercado de dados no Brasil — quanto como mediadora normativa dessas novas relações comerciais, traçando um caminho legalizado para sua expansão. Assim, como hipótese a tal questionamento, apresenta-se que a LGPD tende a permitir a criação de maiores condições para implementação de um mercado de dados no Brasil, sendo o consentimento do titular o instrumento de regulação e legitimidade que a lei entrega a esse novo mercado, tornando a exploração de dados nada além de uma contratação.
A justificativa e importância da pesquisa se dão na emergência da vigência da LGPD (em 2020),3pois suas consequências serão importantes e expressas imediatamente. Por mais que as grandes empresas do mercado de dados global já trabalhem com os dados dos brasileiros, justamente porque se regulam por normas que fogem à ordem jurídica estatal, a lei nacional pode servir de sustento para expansão desse mercado e da criação de características próprias de ampliação do cenário de exploração. A ampliação dos requisitos para o consentimento dos usuários e a integração de valores como o da autodeterminação informativa consagram a proteção dos dados pessoais como tarefa do Estado e da responsabilidade das empresas que praticam gestão de dados. No entanto, cada vez mais a assimetria informacional entre cidadãos e big tech se amplia, consolidando a extração de dados no nível estrutural.
O objetivo geral deste artigo é caracterizar o regime jurídico do titular de dados pessoais na LGPD sob os conceitos apresentados pelo capitalismo de vigilância, tendo como objetivos específicos: (I) descrever a economia política da vigilância, ou seja, a transformação do capitalismo a esse ponto e o papel do titular de dados/ usuário de serviços digitais e (II) identificar a inserção da LGPD no contexto da exploração econômica dos dados pessoais pelo instrumento do consentimento do titular. Em razão de tais objetivos, a organização estrutural do texto se dá da seguinte maneira: na sua primeira parte será tratada a definição da Economia Política da Vigilância — ou seja, do que é o capitalismo da vigilância sob as condições históricas do modo de produção capitalista e a ascensão de um novo mercado relativo aos dados — como exploração das experiências humanas e ativo financeiro no mercado; já na segunda parte será abordada a LGPD sob o contexto abordado na primeira, ou seja, como a lei se identifica e se expressa no contexto dessa nova economia política.
O método de procedimento utilizado é de estudo exploratório, com abordagem qualitativa e técnica de pesquisa utilizada é a pesquisa bibliográfica com revisão da literatura, adotando uma lógica dialética-materialista a ao compreender a teoria acerca do capitalismo da vigilância e a LGPD como dinâmicas de um mesmo contexto, buscando uma síntese teórica que conclua pela exposição das contradições e necessidade da regulação dos dados no Brasil. O marco referencial adotado para definir o capitalismo de vigilância é a obra de Shoshana Zuboff (2019) e textos de Christian Fuchs, ao mesmo tempo com o aporte de outros autores que os irão confrontar, buscando responder o problema de pesquisa a partir da conexão desses autores de proeminência, o marco legislativo da LGPD como literatura, juntamente com a doutrina jurídica brasileira relativa à lei em questão. Também, ao ponto de conectar a economia política do capitalismo do trabalho ao capitalismo dos dados, é utilizada a teoria marxista do Direito como crítica ao sujeito de Direito e a legalidade.
Shoshana Zuboff (2019) define o termo “capitalismo de vigilância” a partir: (I) das fundações de tal sistema de produção; (II) do avanço do mundo digital ao mundo real; e (III) de sua instrumentalização. Ou seja, busca definir e identificar dinâmicas de mercado de como o capitalismo se transforma na determinação que todo comportamento humano pode ser traduzido em dados. Assim, mesmo que parte dela seja usada para aprimoramento de serviços, a grande parcela remanescente é uma “mais-valia” de comportamentos explorados pelos proprietários dos dados. A consequência disso é a formação de “mercados de comportamentos futuros”, ou seja, da mercantilização dos dados com o objetivo de prever e determinar comportamentos (ZUBOFF, 2019, p. 14-15).
A noção utilizada para destacar essa transformação no capitalismo é a de economia política,4 no mesmo sentido que Karl Marx (2008, p. 47-48) o fez no prefácio da Contribuição à Crítica da Economia Política (1859), ao compreender a necessidade de identificar na Economia Política a anatomia da sociedade burguesa — a saber, o conjunto de relações econômicas e sociais5 que produzem o capitalismo e a consequência das transformações materiais no âmbito produtivo para as formas jurídicas ou políticas, tendo em vista que não se manifestam por vontade própria, mas sim, por terem raízes fincadas nas condições materiais de existência em sua totalidade. Conforme Fuchs (2011, p. 36-37), a economia política foca na análise das constituições internas e dinâmicas de um sistema econômico. Tal ramo do conhecimento é caracterizado como “político” porque vê os interesses e bases ideológicas que operam na economia moderna. Na crítica à economia política esses interesses são vistos em suas contradições, revelando as limitações e os problemas da economia capitalista em seus fenômenos (mercadoria, valor de troca, o lucro, dinheiro, capital e divisão social do trabalho) tidos como universais e dignos das relações sociais e transformações materiais.
Tal e qual a referência ao marxismo como o meio de produção social que vive de explorar o trabalho, nesse aspecto há uma virada, como define a autora:
Ele reaviva a velha imagem de Karl Marx do capitalismo como um vampiro que se alimenta do trabalho, mas com uma virada inesperada. Ao invés do trabalho, o capitalismo de vigilância se alimenta de todos os aspectos de todas as experiências humanas. (ZUBOFF, 2019, p. 15-16, tradução nossa).6
Assim, Nicole Cohen (2008, p. 18) apontou para essa direção ao verificar que a valorização do Facebook dependeu de trabalho gratuito e imaterial ao mercantilizar algo que nem os usuários sabiam que estavam produzindo — os dados. O capitalismo de vigilância apresenta uma nova forma de exploração da vida e de hiperexploração do trabalho: da mesma forma que a General Motors inventou o capitalismo gerencial do fordismo, a Google é pioneira no capitalismo de vigilância — todavia, seus métodos não estão mais adstritos à competição entre empresas de tecnologia.
A relação entre economia política e vigilância, tida como contradição, parte constituinte do termo capitalismo de vigilância, mesmo antes da ascensão da exploração dos dados pessoais, é explicado por Christian Fuchs (2013, p. 683-685) como a necessidade que o capitalismo teve em separar a esfera privada da pública em razão do direito à propriedade privada. No entanto, no antagonismo entre privacidade proprietária e desigualdade social, o sistema capitalista tem desenvolvido formas de manter as estruturas proprietárias em segredo, ao mesmo tempo em que exerce completa vigilância sobre o trabalho e o consumo – trata-se, assim, o capitalismo de vigilância da consagração de uma cultura da vigilância no âmbito da sociedade, Estado e economia, tanto na expansão dos aparelhos altamente tecnológicos quanto nas práticas mundanas da vida cotidiana, conforme afirma David Lyon (2018).
O capitalismo do Big Data tem nos processos de coleta, armazenamento, controle e análise dos dados, a formação de um contexto de economia política que busca o controle econômico e político dos indivíduos, ao mesmo tempo em que os trata como consumidores ou potenciais terroristas/criminosos. Segundo Fuchs (2019, p. 58-59) o poder algorítmico do capitalismo de vigilância pode resultar em um mundo que seja um grande shopping center, com humanos colonizados completamente pela lógica comercial, no âmbito do seu comportamento. Portanto, há a ascensão de uma nova mercadoria, que não é fruto necessariamente do trabalho industrial: a mercadoria dos dados, que tem como base as plataformas de redes sociais, nas quais os usuários entregam seus dados em troca de serviços anunciado como gratuitos, mas que são transformados em mercadoria pelas empresas responsáveis pela sua oferta no mercado (FUCHS, 2009, p. 80-83).
O legado do momento histórico da industrialização foi a consagração da “individualização” na noção de consumidores, capazes de exercer escolhas e decidir a oferta de acordo com a sua demanda. Mas aí surge a diferença entre as duas modernidades: enquanto a primeira modernidade nutria elementos de profunda hierarquização na ascensão, cultivando formas de burocracia, concentração, centralização e padronização (suprindo expressões individuais pelo consumo e em nome de soluções coletivas), na segunda a individualidade ganhou um papel central formatado pela autodeterminação em um habitat neoliberal. Nesse ponto, Zuboff (2019, p. 49, tradução nossa) aponta para a grande contradição da segunda modernidade: “queremos exercer controle sobre nossas próprias vidas, mas em toda a parte esse controle é frustrado”,7 sendo que a individualização faz com que a responsabilidade para prover meios de vida seja própria, mas sendo preciso lutar a todo tempo contra decisões econômicas e políticas contra os interesses populares. Há uma ideologia que valoriza a individualidade ao mesmo tempo em que torna as pessoas invisíveis. Essa individualização necessária para a criação de dados de comportamento é uma relação de detrimento da esfera pública que Fuchs (2014, p. 97) identifica como sendo o caráter puramente particularista tanto da vida como das opiniões políticas8 na esfera das redes sociais. Apesar da capacidade de comunicação promovida pela internet, os interesses corporativos acabam levando a política para outro lado,9 algo que Morozov (2018) indica como “fim da política”. A digitalização da vida promove uma contínua privação da posse das atividades do dia-a-dia, que acabam transformando a vida cotidiana em mercadoria, havendo um labor produtivo para essas grandes empresas no simples ato de se estar conectadas às redes (BELLER, 2013, p. 213-232).
O capitalismo de vigilância preenche um vácuo da acumulação capitalista ao formular um mercado sem precedentes, em que a vigilância é um mecanismo fundamental para proporcionar lucros. A ubiquidade da internet é uma superficial e breve camada de liberdade inextricavelmente ligada a uma profunda camada de prejuízos (ZUBOFF, 2019, p. 56). Não há novidade quanto à importância da informação para as transações mercantis, como dados estratégicos; todavia, não há precedentes em relação à valorização e monetização dos próprios dados — não mais como auxiliar de negócios, mas como plataforma de negociação de dados pessoais (conexões, opiniões, preferências e padrões de consumo que possuem valor em si mesmo) (MAYER-SCHONENBERGER; CUKIER, 2013, p. 82-83). Nesse contexto, teóricos como Srnicek (2017) e Pasquale (2018) também chamam esse momento do capitalismo de “capitalismo de plataforma”, justamente pela ascensão dessas plataformas de dados digitais de empresas de tecnologias como intermediadores inevitáveis da vida digital. Apontam para um novo modo de circulação econômica, baseado na intermediação lucrativa da movimentação de dados digitais – tendo consequências negativas no âmbito do trabalho, dando espaço a intermitente “gig economy”, e no âmbito financeiro, sendo diretamente ligada aos rumos da financeirização cíclica do capital de risco (LANGLEY; LEYSHON, 2016, p. 31).
Os mecanismos econômicos para monetizar os dados são descritos por Ciuriak (2019, p. 3-5) como: (I) a exploração da assimetria informacional: ascensão de monopólios globais e a submissão cada vez maior dos usuários; (II) transferência da inovação para o campo das máquinas: aceleração franca dos processos de inovação; (III) criação do capital do aprendizado de máquinas: promovendo-se a tomada de decisões automatizadas a custo quase zero; (IV) otimização dos processos: diminuição dos custos operacionais, muitas vezes delegados aos usuários; (V) extração de mais-valia dos consumidores; (VI) monetização dos dados abertos: exploração de dados que são públicos, mas agregando-os, forjando produtos comercializáveis; (VII) valor estratégico: vantagem militar e de inteligência empresarial.
A assimetria informacional é o fator estrutural determinante dessa economia dos dados, justamente pela profunda desigualdade entre a capacidade de gerir e processar dados entre os usuários, titular dos dados pessoais, e quem os controla, as big techs. A “mediação digital de tudo” (MOROZOV, 2018, p. 163) só é possível com tecnologias de apropriação privada das corporações informacionais, em que a lógica do extrativismo de dados ocorre sob um consenso algoritmo forjado nos escritórios dessas empresas, sob princípios que considerados “bons para todos”. O titular dos dados pessoais queda-se refém de uma estrutura social que lhe deixa ao restrito papel de rendição de seus dados, mascarada de voluntariedade, ou o ostracismo que impossibilita o trabalho ou o lazer.
O desenvolvimento tecnológico necessário para o capitalismo da vigilância foi o da descoberta da mais-valia do comportamento. O Google foi pioneiro nesses processos ao constituir o que Zuboff (2019, p. 72) afirma ser o “ciclo de reinvestimento do valor comportamental”, o qual se deu nas seguintes fases: usuários, comportamento renderizado, analítica de dados e aprimoramento dos serviços. Nesse processo a mais-valia se dá quando a informação produzida pelos usuários é transformada em dados rentáveis, retornando ao usuário somente como mais serviços — que, inclusive, se aprimoram no sentido de coletar mais dados, constituindo um ciclo de despossessão. O usuário é alienado da mercadoria produzida, competindo a ele apenas a produção de dados, sendo o paradigma dominante o da extração imperativa de dados. Os padrões gerais desse processo de extração de mais-valia podem ser assim resumidos (ZUBOFF, 2019, p. 93-96): (a) a lógica: traduzir o comportamento das pessoas em dados rentáveis, reinvestindo parte dos lucros em maiores mecanismos de extração, constituindo ativos e lucros de vigilância; (b) os meios de produção: a inteligência de máquina é fundamental para identificar mais-valia de comportamento, e é constantemente aprimorada mediante suas próprias práticas; (c) os produtos: são produzidas previsões sobre o que as pessoas irão comprar, sentir, pensar ou fazer; (d) o mercado: é o mercado futuro de comportamento, vendendo sistemas de previsão e diminuição de riscos.
O avanço do capitalismo de vigilância (II), segundo termo do conceito para Zuboff (2019, p. 222- 241), depende da transformação de experiências humanas em dados, e após, no retorno disso a realidade como reinvestimento, lucro e novos serviços. Nesse cenário a realidade é da entrega dos dados pelo usuário, de maneira formalmente consentida, tendo em vista a necessidade dos serviços e a ideia de que quanto mais dados disponíveis às empresas melhores serão os serviços. Há uma noção predominante nos serviços digitais que é o aparato da “inteligência”, enquanto os serviços incapazes de extrair dados são considerados “ignorantes”. Portanto, a “rendição” das pessoas ao capitalismo de vigilância é um imperativo, acima de qualquer discussão sobre “optar” ou não por isso. Há uma rendição dos corpos para o regime de vigilância dessa nova etapa da economia política, ou seja, os indivíduos não entregam suas experiências por escolha ou obrigação, mas pela ignorância e pela tirania da não alternativa. O aparato ubíquo opera sob a forma de coerção e sigilo, tornando a rendição um fato inescapável, sob uma divisão do conhecimento nunca antes vista, em que os usuários não sabem quem toma as decisões sobre os dados (ZUBOFF, 2019, p. 241). É preciso confrontar as chamadas teorias “neutras” sobre a vigilância, que relativizam esses processos com as definições de que: (a) existem aspectos positivos na vigilância; (b) a vigilância tem dois aspectos, um libertador e outro restritivo; (c) a vigilância é fundamental para todas as sociedades; (d) vigilância é necessária para organização; e (e) qualquer tipo de sistematização de informação é vigilância (FUCHS, 2010, p. 2).
Essas definições podem ser criticadas a partir dos pontos expostas por Fuchs (2010, p. 13-15): (I) etimologia: desde a sua origem do francês surveiller, que significa ver de cima, o termo apresenta uma noção de hierarquia, uma situação que possui vigilante e vigiado;10 (II) conflacionismo teórico: confusão teórica de se utilizar termos diferentes como se fossem um só — e, no caso da vigilância, trata-se de confundi-la com a noção utilizada em outras ciências (que para muitas é somente analítico, não normativo e de tradição crítica); (III) diferença entre reunião de informação e vigilância: os estudos sobre a vigilância não são sinônimos dos estudos sobre a informação, sendo que os segundos tendem a compreender as possibilidades de participação e cooperação disponíveis pela variedade de informação, enquanto que, nos primeiros, ocorre o contrário; (IV) normalização da vigilância: cada vez mais surgem justificativas para a vigilância, seja a segurança das operações financeiras, a violência urbana ou o terrorismo,11 sendo preciso reforçar o papel crítico às ideologias que sustentam a expansão dos limites da vigilância.
O grande produto do mercado decorrente da vigilância é a venda de certezas, consolidando comportamentos de acordo com as necessidades do mercado, realizando-se uma utopia de certezas mercadológicas. Ao invés de um controle total da condição política dos indivíduos, como buscava o totalitarismo, no cenário da instrumentalização do capitalismo de vigilância a ideia é permitir certa liberdade de comportamento, mas concomitante à completa dominação sobre os mercados — formando-se uma sensação de liberdade de consumo ignorante do fato de que os comportamentos correspondem exatamente à expectativa do mercado (ZUBOFF, 2019, p. 374-389). A constante vigilância é o estado de coisas que permite a transformação das experiências em indústria, ou seja, na mercantilização dos dados, sendo a mineração de dados uma relevante mercadoria para a economia mundial em uma dinâmica de atividades complexas e de pouca transparência, representando os corretores de dados os medidores dessa nova forma lucrativa de capitalismo (WEST, 2019, p. 12).
A utilização da matéria-prima do comportamento humano é o que Couldry e Mejias (2018, p. 2-10) denominam “colonialismo dos dados”, pois a mercantilização dos dados combina o comportamento predatório do colonialismo — ao expropriar informações diretas das vidas das pessoas com os métodos abstratos de quantificação da computação — com efeitos transnacionais — sendo que os cidadãos do sul global restarão em mais ampla dependência de acordo com maiores taxas de extração de mais-valor, enquanto o retorno é menor ainda em relação aos cidadãos dos centros produtivos das big tech. Ocorre esse colonialismo, assim, com a (I) naturalização da extração de dados e (II) a afirmação da forma de extração, sendo um processo recíproco em que a extração de mais-valia comportamental é justificada pela melhoria técnica do mesmo mecanismo que executa esse processo.
A mercantilização do comportamento sob o capitalismo da vigilância impõe uma divisão do conhecimento protegida pelo segredo, é indecifrável e tecnocrática, sendo forjada a partir dos dados pessoais e retornando ao usuário como falsa participação na produção dos sistemas, pois há, em paralelo, um amplo sistema de uma mais-valia de comportamento — ou seja, as pessoas produzem a matéria-prima de que deriva essa mais-valia, que é manipulada em um cenário sem qualquer controle social, portanto, sem que as pessoas tenham qualquer acesso àquilo que deriva de suas próprias experiências. Como afirma Zuboff (2019, p. 309): conhecimento, autoridade e poder estão do lado do capital de vigilância, enquanto as pessoas são, somente, “matéria-prima humana”. Também como afirma Morozov (2018, p. 102-103), ao afirmar que as pessoas se tornam “cobaias desavisadas”, vivendo sob princípios de governança do mercado e das grandes empresas, como se os dividendos da vigilância valessem a pena, parecendo serem seus benefícios maiores do que seus prejuízos.
A vigilância possui papel vital no ciclo de acumulação de capital, podendo ser executada politicamente, quando indivíduos se tornam ameaças pela força da violência organizada e legitimada (do Direito) se vierem a se comportar de forma indesejada, ou da vigilância econômica, em que os indivíduos são ameaçados pela violência do mercado para que comprem ou produzam certas mercadorias, ampliando a reprodução das relações capitalistas ao utilizar a informação extraída deles na gestão do comportamento econômico. E em ambas as formas de vigilância, a violência e a heteronomia são a última razão (FUCHS, 2012, p. 677). Forma-se, então, uma tríade de mecanismos do capitalismo de vigilância: extração, mercantilização e controle (ZUBOFF, 2015, p. 75). O aprofundamento desse cenário é o capitalismo da vigilância, pois não só a vigilância se torna um instrumento para os fins da acumulação capitalista, como também passa a ser um fim em si mesmo, pois a própria coleta e comercialização de dados se transformam em um ativo financeiro relevante e de exploração das pessoas. Portanto, os padrões de vigilância instituídos pela sociedade deram as condições materiais necessárias para a exploração econômica dos dados. A mercantilização dos dados pela vigilância significa a emergência de novas desigualdades sociais e amplia as tendências exploratórias da internet (FUCHS, 2019, p. 59).
A economia política do capitalismo da vigilância não se restringe aos termos definidos por Zuboff;12 todavia, é possível mobilizar seus conceitos e acrescê-los com os termos elaborados por outros autores para analisar o papel do titular de dados pessoais, confinado a uma estrutura social de mediação digital por meio da infraestrutura das big techs, em que a participação do cidadão é restrita ao papel de usuário/consumidor, submetido ao processo de individualização da economia, tendo como única possibilidade real a cessão de dados, uma rendição ligada aos hábitos da vida cotidiana. A característica das tecnologias nesse contexto é de assimetria informacional, ou seja, da larga distância entre titulares e controladores de dados no que se refere à capacidade técnica de gerir, interpretar e vender dados (pelo controle dos mais complexos algoritmos e inteligências artificiais), restando ao usuário e às suas tecnologias do dia-a-dia a capacidade de produzi-los.
A Lei geral de Proteção de Dados (LGPD) brasileira foi instituída pela Lei nº 13.709, de agosto de 2018, e tem sua previsão de vigência para o ano de 2020, dispondo sobre o “[...] tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais [...], com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural” (art. 1º). Seus fundamentos13 são baseados na expansão informacional promovida pela digitalização dos dados, na imensidão chamada big data, em que a lei precisa garantir direitos relativos à autonomia privada, tais como a privacidade e a autodeterminação informativa (SILVA; MELO, 2019, p. 374) em relação à conduta de empresas que utilizam ou negociam dados referentes à segurança da informação (PIURCOSKY et al., 2019, p. 91-92).
A formação de um marco jurídico nacional visa a concretizar direitos fundamentais relativos à privacidade com a proteção dos dados pessoais, sendo fundamental, para o exercício da cidadania, a autodeterminação sobre os dados e a proteção da dignidade da pessoa humana, tendo em vista o atual estágio de franca ampliação dos meios de comunicação, tornando massiva a quantidade de dados informados (MENDES; DONEDA, 2016, p. 36). Enquanto isso, também busca aprimorar os princípios da livre concorrência, ao propor uma natureza regulatória de dados cuja finalidade parece ser a de forjar uma cultura para as organizações de proteção aos dados pessoais, promovendo para empresas conceitos importantes, tais como reputação e confiança (BIONI, 2019, p. 32-33).
O grande potencial da LGPD identificado por Bioni e Monteiro (2019, p. 234) é de fomento à economia, tendo em vista a emergência de uma economia orientada por dados que precisa de uma regulação uniforme, capaz de fornecer segurança jurídica para esses processos financeiros: “[a LGPD] é capaz de trazer um horizonte de segurança jurídica para todos os setores da economia que têm as suas atividades permeadas, de alguma forma, pelo processamento de dados pessoais”. Portanto, qualifica e dá condições para a instauração, no Brasil, de uma cadeia produtiva baseada em dados e processos de decisões automatizados. O sujeito de direito que ela tutela como produtor de dados é o titular de dados pessoais.
O vetor principal da LGPD é da autonomia privada no ato de consentimento (art. 5º, XII): “manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada”, da mesma forma que o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) assegura o consentimento como elemento essencial para o exercício dos direitos relativos à internet e ao exercício da cidadania, na forma de um “consentimento expresso e inequívoco”.14 Segundo Bioni e Monteiro (2019, p. 237), o consentimento é a “pedra angular” do tratamento de dados pessoais segundo a lei, sendo o modelo para o estabelecimento desses negócios. E, conforme explicado por Teixeira e Armelin (2019, p. 43),
O consentimento do titular de dados é a forma mais conhecida do tratamento legal de dados e deve ser livre e o mais consciente possível, ou seja, o titular deve ter pleno conhecimento de quais dados estão sendo captados e exatamente para qual fim ele será utilizado, o qual perfaz a inequivocabilidade do consentimento.
Ao analisar o percurso normativo do conceito de consentimento, Bioni (2019b, p. 345) aponta que há uma ambivalência na visão do cidadão protagonista do consentimento, aprofundando a noção de consentimento para o Direito, pois há uma visão puramente normativa, que afirma a relevância da autodeterminação cidadã de controlar seus dados, enquanto afirma haver uma (hiper) vulnerabilidade que precisa ser protegida, tendo em vista a intensidade da expansão informacional e a sua influência nos comportamentos. Essa é, assim, a dualidade da proteção dos dados: por um lado, expõe a importância da autonomia privada, enquanto que, de outro, entende que os consumidores/usuários estão em posição extremamente frágil nas suas relações para com as big techs. A imposição da economia política da vigilância restringe essa autonomia privada ao ato de disposição de seus dados pessoais a serem controlados por máquinas alheias e inacessíveis, dessa forma.
O consentimento como afirmação dos direitos relativos aos dados digitais possui uma natureza controversa, justamente porque intenta consagrar liberdade e autonomia privada em um cenário de profunda desigualdade na gestão de dados — tendo em vista a assimetria de infraestrutura e conhecimento acerca da ciência de dados e da interpretação de dados massivos na era do big data — principalmente no que se refere ao mais recente aprendizado de máquinas e inteligência artificial. Sendo assim, no tocante a esse papel central da liberdade individual e da possibilidade formal que a LGPD sugere ser possível materialmente no campo do consentimento, questiona-se o consentimento sobre formas de análise e utilização de dados que seres humanos sequer conseguem conceber (MAYER-SCHONENBERGER; CUKIER, 2013, p. 124-128).
A chamada cidadania digital sugere também um sujeito de direito digitalizado, ou seja, com direitos relativos aos dados digitais. A condição de sujeito de direito é um paradigma que deriva e condiciona a acumulação capitalista, ou seja, é uma forma jurídica que faz a mediação das trocas de mercadorias sob o pressuposto de relações inteiramente voluntárias — sob manifestação livre de sua vontade — sendo que, sem essa forma, não há capitalismo. No entanto, essa característica puramente formal, de relações sociais vistas de maneira pura, ignorando a diversidade concreta entre os seres humanos e a diversidade concreta das relações sociais;
se sobrepõe à diversidade concreta dos homens, iguala-os e liberta-os não mais do que formalmente, não diz mais sobre o homem que aparece na troca de mercadorias senão que nela aparece como portador abstrato de direitos (KASHIURA JR., 2012, p. 120).
Essa ideia incorpora uma herança do pensamento marxista e, no campo do Direito, da obra de Pachukanis (2017, p. 113), ao afirmar que o Direito deve ser visto como um fenômeno social objetivo, que não pode ser limitado pelo que dizem suas normas escritas ou não escritas, pois elas são derivadas de relações sociais existentes, contrariando juristas dogmáticos. Assim, o Direito precisa ser visto a partir de sua especificidade histórica,15 em uma sociedade específica de uma forma mercadoria universalizada — que transforma as relações sociais em uma expressão reificada entre coisas, e mediadas por contratos.16 Portanto, o sujeito de direito nasce da relação de troca de mercadorias, e só existem trocas no capitalismo nessa condição: “é dela que se origina a figura do portador universal de direitos e deveres, abstraída da figura do proprietário de mercadorias” (KASHIURA JR., 2009, p. 129).
Há um grande problema nessa forma jurídica do sujeito de direito que passou a ser visto de forma não histórica, como o fetiche da forma mercadoria, com a que tal sujeito media trocas.17 Essa forma se consolidou na técnica jurídica e na pretensa universalidade das leis como formas neutras. Entretanto, conforme afirma Naves (2000, p. 57-58), a forma jurídica tem gênese somente numa sociedade em que a divisão do trabalho precisa de um equivalente geral para universalização da mercadoria trabalho — qual seja, o sujeito de direito, convertendo o trabalho privado em trabalho social, para que o trabalho abstrato possa ser medido dentro da forma mercadoria. O titular de dados na LGPD também significa o símbolo da igualdade jurídica na economia dos dados, pois a referida lei trata os dados pessoais como mercadoria universalizada, disponível a todos no mercado — sendo esta uma das grandes especificidades deste período histórico.
O trabalho abstrato é o trabalho assalariado, pois somente se manifesta enquanto valor de troca, em que é atribuído um preço chamado salário — abaixo do valor efetivamente produzido, excedente esse que é propriedade do capitalismo e tem o nome de mais-valia do trabalho identificado em O Capital.18 O Estado e o Direito têm como seu principal elemento estruturante na modernidade o papel essencial de garantir e proteger essas condições gerais da extração da mais-valia do trabalho excedente, tendo em vista seu papel fundamental na reprodução do capitalismo (MESZAROS, 2011, p. 121), sendo o contrato de trabalho a representação de um direito meramente formal de igualdade, e que dá condições para o trabalho sob o capitalismo, localizando-se, assim, a luta por igualdade jurídica sempre dentro do horizonte burguês (EDELMAN, 2016, p. 67-81).
A forma jurídica do sujeito de direito como encontro entre trabalho e capital é, sob a análise concreta do capitalismo, uma forma necessária, não algo criado por acidente, pois realiza a necessária mediação da produção capitalista, pois somente sob essa forma jurídica o trabalhador pode se submeter livremente ao capital — na abstração do trabalho como mercadoria —, sendo tal forma a constituinte do contrato de trabalho. Ou seja, a categoria sujeito de direito possui relação direta com o valor-trabalho (KASHIURA JR., 2012, p. 147). Portanto, a abstração do trabalho o transforma em mercadoria, que pode ser negociada em razão da mediação realizada pelo Direito. Em outras palavra, o sujeito de direito é o sujeito capaz de vender sua força de trabalho ao capital: uma troca de sua força de trabalho por salário, em condição, formal, de igualdade (NAVES, 2000, p. 68-69)19 — da mesma forma que o sujeito de direito possui as capacidades jurídicas de dispor de sua força de trabalho por meio do contrato, o titular de dados o faz para os dados pessoais, conforme os postulados da LGPD, portanto.
Na evolução da economia em direção a um capitalismo de vigilância há uma mudança da mercadoria oferecida pelos indivíduos — a qual não é mais (somente) a força de trabalho: há uma abstração do comportamento humano, transformado em uma mercadoria de dados relativos ao comportamento. Assim como o sujeito de direito fornece condições jurídicas necessárias para a expropriação de mais-valia do trabalho, por analogia, a mesma forma jurídica serve para mediar a relação de entrega de dados que possibilidade a extração de mais-valia comportamental identificada como processo fundamental da nova economia do capitalismo de vigilância. Essas transformações são as esperadas, portanto, no âmago do processo de reprodução social capitalista, sendo que “cada uma de suas grandes fases se assenta sobre um modo próprio de extração de mais-valor e de obtenção de lucro” (MASCARO, 2013, p. 123-124). Nesse sentido, a extração de uma nova forma de excedente produzido pelas pessoas é característica da dinâmica do capital.
Da mesma forma que o sujeito de direito faz a mediação e carrega a ideologia da igualdade jurídica para a relação capitalista de trabalho, como subsunção ao capital feita de livre vontade expressa em contrato, o processo de extração de mais-valia comportamental faz uso da mesma mediação no cenário da LGPD, ao consagrar o instituto do consentimento, ao mesmo tempo, como mecanismo de proteção e como condição geral de reprodução social do novo mercado de dados — que só é lucrativo devido ao processo de extração de mais-valia exposto por Zuboff (2019, p. 97): o usuário entrega seus dados via consentimento, e assim, passa a ser renderizado e analisado pelas empresas (que o monetizam no mercado de previsão de comportamentos), as quais retornam valor ao usuário na forma de melhoria nos serviços prestados.
Esse novo mercado é caracterizado pelo surgimento de novas atividades econômicas e profissões. Essa nova indústria, de manipulação comercial dos dados, é operacionalizada por corretores de dados (data brokers) que visualizam as informações de usuários e as mineram e negociam conforme o interesse das corporações, fazendo ao trabalhar com dados coletados tanto por empresas quanto por governos (CRAIN, 2018, p. 90-91), revelando-se, assim, a natureza de mercadoria que os dados comportamentais assumem e a assimetria dessa relação — tendo em vista que o usuário só pode entregar os seus dados, enquanto quem os gerencia possui um amplo aparato técnico (humano e não humano) de gestão. A assimetria informacional é fundamental para a lucratividade desse negócio, pois é necessário retirar do usuário/titular o poder de processar dados de forma complexa, restringindo assim seus domínios ao aceite dos termos de serviço (consentimento), o qual, quando livre e devidamente informado, não sana a questão estrutural de estratificação, caracterizada, de um lado, pela capacidade de gerir inteligências artificias complexas e em tempo real, além do contingente humano empregado; e de outro, um consumidor de produtos de uso final (como os celulares e computadores pessoais). Portanto, esses dados não possuem qualquer valor relevante quando estão na posse exclusiva de seus titulares, tornando-se realmente rentáveis apenas após o seu processamento por complexos sistemas privados.
Na LGPD, em seu art. 5º, estão elencadas as pessoas e estruturas dos negócios de dados, tais como o titular (sujeito de direito produtor de dados), o controlador (quem toma as decisões relativas às operações de dados), o operador (quem realiza o tratamento de dados) e o encarregado (quem faz a comunicação entre controlador e operador). Também nesse dispositivo se reconhece a transferência internacional de dados e o uso compartilhado de dados. Dessa forma, há um reconhecimento jurídico das relações sociais desse novo mercado no ordenamento jurídico — portanto, é preciso compreender a LGPD como uma lei que existe em um contexto específico, não formulado a partir de tipos ideais. Ainda, pela evidência da assimetria informacional, a mesma lei também reconhece a vulnerabilidade dos titulares de dados ao se apoiar também no direito do consumidor (MIRAGEM, 2019, p. 27-28). Todavia, por mais que isso possibilite práticas protetivas, reconhece-se pela LGPD o papel do usuário nessa economia de dados, de consumidor, protegido quanto ao que compra, não partícipe das complexas relações que movimentam a gestão de dados no contexto do big data.
Essa assimetria entre usuários e corporações é a fundação da nova economia orientada por dados, em que os dados são o motivo da expansão de grandes empresas de tecnologia (big techs) que têm um baixo custo em expandir seus serviços enquanto lucram em massa com os ativos de dados (CIURIAK, 2018, p. 14-15). A mediação digital de tudo, conforme afirma Morozov (2018, p. 160-166), pressupõe o extrativismo de dados promovido pelas grandes empresas de tecnologia, tendo a noção de que os usuários são estoques de informações valiosas, concebendo então complexas formas de fazê-los abdicar o controle exclusivo sobre seus dados pessoais comportamentais e de compartilhá-los voluntariamente — principalmente mediante o uso de inteligências artificias com aprendizado profundo, capazes de administrar os milhões de usuários produtores de dados no contexto do big data. A gestão de dados massivos pressupõe a administração de toda a informação, em tempo real, sendo feita pelas big techs, assumindo o titular de dados pessoais o papel não um administrador, mas de um conjunto produtivo de dados administrado — e a autoderminação informativa, nesse cenário, é um princípio jurídico aplicável a conflitos específicos, não sustentáveis do ponto de vista da economia política.
Em um cenário de colonialismo de dados, de império comportamental de extração de dados e de influência nos comportamentos individuais futuros, é evidente a invasão dessa economia política sobre o ser, interferindo nas decisões acerca do consumo e da política (COULDRY; MEJIAS, 2018, p. 9-10). O contexto do big data é de formação de estratégias de impulsionamento comportamental (nudges) altamente poderosos de acordo com suas amplas redes, constante atualização, dinâmica e alta capacidade persuasiva — algo que não pode ser regulado via consentimento (YEUNG, 2017, p. 124-126), portanto. A LGPD busca regulamentar essa condição do usuário em dispor seus dados com consentimento juridicamente adequado, condição essencial para a universalização da extração dos dados e da mercadoria dos dados comportamentais. No âmbito tecnológico, o mecanismo da exploração das pessoas é essencial, independente do predomínio do Estado de Direito (rule of law) ou da regulação algorítmica (code is law),20 tendo em vista que essa divisão é tênue e não ataca os fundamentos da reprodução social de onde derivam essas formas jurídicas ou tecnológicas.
A regulação em torno da proteção de dados reconhece o problema do extrativismo de dados, mas fornece a segurança jurídica da liberdade contratual sob a disponibilidade desses dados. No Brasil, a LGPD é um marco de criação dessa figura, o titular de dados pessoais, sujeito de direito capaz de fornecer seus dados pessoais comportamentais por meio de um processo de consentimento. A autoderminação informativa é um dos fundamentos dessa lei; mas tal qual ocorre com a autonomia privada sob o manto da igualdade jurídica, esse sujeito carece de condições materiais para exercício de plena liberdade sobre os dados pessoais, pois a escolha está somente na forma de consentimento em que os dados serão rendidos aos prestadores de serviços digitais. A figura do titular como sujeito de direito na economia de dados é a afirmação histórica da atual economia política: o cidadão, pretensamente igual, que pode dispor de seus dados ao capitalista.
O limite do consentimento do titular consagrado na LGPD no contexto da economia política da vigilância, conforme a conclusão desta pesquisa, é a estrutural assimetria informacional que o titular se encontra, identificando-se a figura do titular de dados pessoais, o sujeito de direito da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), como um suporte jurídico para a acumulação capitalista na era informacional, possibilitando a criação abstrata da condição de um titular de direitos relativos aos dados capazes de negociar os seus dados com as empresas que conseguem lidar com os processos sociais e técnicos complexos do contexto do big data e extrair desses dados comportamentos a serem vendidos em um mercado de dados que vende previsões de consumo e de vida cotidiana — e o mecanismo utilizado para coleta desses dados é a vigilância constante. Esse ritual, na forma de um contrato, se realiza pelo instrumento jurídico do consentimento, no cenário de uma assimetria informacional em que as empresas que recebem os dados os conseguem processar em tempo real e de forma massiva, enquanto os usuários/ titulares os produzem de forma ubíqua, sem sequer saber em detalhes o que estão produzindo.
Essa vigilância não é mais executada de um ponto de vista totalitarista, por isso Shoshana Zuboff indica a transferência do paradigma do big brother (“grande irmão” para o big other “grande outro”), pois não é mais preciso um controle político intenso, mas sim uma abstração tecnológica indecifrável que faz os usuários entregarem dados comportamentais pessoais como condição do melhor uso dos serviços cada vez mais necessários para a vida cotidiana. A instrumentalização do poder informacional está sedimentada na imensa desigualdade estrutural no âmbito da capacidade tecnológica — ou seja, há uma assimetria informacional, pois os usuários só têm a capacidade de entregar seus dados, enquanto as empresas conseguem interpretá-los devido ao aporte tecnológico do aprendizado profundo e das inteligências artificiais.
Na primeira parte foram expostas as razões que levaram ao surgimento de uma economia política atualizada do capitalismo, o “capitalismo de vigilância”. A utilização da economia política é importante para identificar o capitalismo para além de uma determinação formal, ou puramente da técnica econômica, tornando-o a consequência de intensas e complexas relações sociais de produção, circulação e distribuição, constituindo práticas e estruturas com ampla influência na sociedade. Por isso, constatar a configuração de um capitalismo de vigilância significa também apontar suas influências e fundações sobre os âmbitos do trabalho, da economia, da tecnologia e da vida cotidiana. Ao se mobilizarem os conceitos de capitalismo de vigilância e de assimetria informacional, fica caracterizado o papel contraditório do sujeito de direito informacional na LGPD — o titular de dados pessoais: ao mesmo tempo em que essa lei identifica a necessidade de proteção dos dados pessoais, regulariza a forma jurídica da disposição dos dados pessoais, expondo a relação direta entre acumulação capitalista e legalidade.
O grande mecanismo econômico identificado é a extração de mais-valia comportamental, que é o processo que extrai as experiências da vida cotidiana dos usuários dados relevantes e as transforma em mercadoria: o usuário entrega os dados por ele produzidos em sua vida cotidiana, as empresas mineram e manipulam esses dados, e a extração/transformação de tais dados retorna ao usuário como melhoras nos serviços prestados pelas empresas. Trata-se de um ciclo em que os usuários não são remunerados, possuindo apenas uma pequena fração do lucro produzido devolvida a eles. A economia política da vigilância é o contexto social em que a entrega desses dados é normalizada, passando a ser a sua exploração algo necessário para o bom funcionamento dos serviços e da economia. Esse processo sustenta um novo mercado lucrativo que movimenta empresas e novas profissões, como os corretores de dados, e tem como objetivo ampliar cada vez mais os mecanismos de extração e mineração de dados, estando já presentes as condições sociais para essa exploração, tendo-se em vista a ascensão das grandes empresas tecnológicas (as chamadas big techs) e, do ponto de vista da vigilância, as violações à privacidade são consideradas como fundamentais e juridicamente consentidas. De modo análogo ao que já ocorria na relação entre o proprietário dos meios privados (que detém a tecnologia de produção) e o trabalhador (que somente possui a força de seu trabalho a dispor), na era digital, as big techs possuem os meios de mercantilização dos dados (as máquinas complexas capazes de compreender dados massivos e interpretá-los por meio de inteligências artificiais), e os titulares, somente a capacidade de produzir dados sobre sua vida cotidiana — restando daí um relevante excedente.
Na segunda parte foi abordado a Lei Geral de Proteção de Dados sob o contexto do capitalismo de vigilância, sendo necessário, para tal, o marco teórico da teoria marxista do Direito para apreender uma noção crítica do sujeito de direito, tendo em vista conceber uma analogia da transformação desse sujeito da exploração do trabalho à exploração da mais-valia comportamental, tal qual Zuboff fez para explicar o mecanismo de extração de mais-valor do trabalho aos dados comportamentais. A LGPD afirma uma posição central no consentimento do titular dos dados como a possibilidade de entrega dos dados à manipulação e mercantilização deles. Não há uma lacuna ou problema propriamente jurídico na consolidação da figura do titular, por isso não há uma conclusão dedutiva acerca de ser o termo “titular” correto ou não; contudo, a dialética permite apontar como esse termo se situa de forma contraditória, pois denota, na mesma instância, a figura protegida, no âmbito da LGPD e dos direitos do consumidor, e a figura garantidora dessa forma de acumulação capitalista de dados — permitindo-se, assim, um regime jurídico contratual de cessão de dados adequado às necessidades dessa nova economia.
A teoria marxista do Direito instaura uma visão pautada no materialismo histórico do fenômeno jurídico ao enxergar o sujeito de direito somente sob a normatividade do real, ou seja, identifica-o como um conceito que não surge por acaso, sendo existente apenas no âmbito de uma sociedade específica — ou seja, o sujeito de direito é o sujeito de direito do capitalismo. Dessa maneira, a economia política do capitalismo impõe a universalização da mercadoria e a necessidade do trabalho também universalizado, sendo transformado em um elemento quantitativo — ou seja, é a mercadoria do trabalho que é vendida pelo trabalhador em suposta igualdade, é a ideologia da igualdade jurídica. Opõe-se, portanto, a capacidade emancipatória do consentimento como instrumento da “autodeterminação informativa” ao nível jurídico, pois não é realizável na sociedade concreta contemporânea, frente à realidade do capitalismo de vigilância. A figura do titular de dados pessoais na LGPD surge na dinâmica do capitalismo global, prestando-se à universalização da mercadoria dos dados pessoais, fruto de uma sociedade e economia específica, fugindo da abstração conceitual/jurídica que compreende, necessariamente, a proteção de dados pessoais de modo abstrato e pré-condicionante.
Ao mesmo tempo que a LGPD anuncia uma cidadania digital que contempla a proteção dos dados pessoais comportamentais, dá condições jurídicas para que os dados sejam convertidos em mercadoria. E essa é a relação ambígua e contraditória do sujeito de direito sob o capitalismo que, ao mesmo tempo em que o coloca em igualdade formal e permite a ele ser proprietário igual todos os outros, dá condições para a abstração do trabalho e a alienação promovida pelo salário em relação àquilo que é produzido. Portanto, da mesma forma que o trabalhador assalariado do capitalismo é aquele que tem parte de sua produção extraída como mais-valor pelo capitalista, na era digital, os usuários conectados, ao serem considerados titulares de dados, têm sua vida cotidiana transformada em dados rentáveis, expandindo os limites da acumulação capitalista.