Resumo: O estudo busca contribuir com o aprimoramento do processo interamericano nos casos contenciosos envolvendo povos indígenas, a partir da efetiva aplicação do princípio da autodeterminação dos povos quanto à realização do direito à titularidade de suas terras ancestrais. Foram utilizados o método dedutivo e o comparativo, fomentando o diálogo entre o Direito Constitucional brasileiro e o Direito Internacional dos Povos Indígenas.
Palavras-chave: AutodeterminaçãoAutodeterminação,Direitos territoriaisDireitos territoriais,Corte Interamericana de Direitos HumanosCorte Interamericana de Direitos Humanos.
Abstract: The study seeks to contribute to the improvement of the inter-American process in contentious cases involving indigenous peoples, based on the effective application of the principle of peoples' self-determination regarding the realization of the right to ownership of their ancestral lands. Deductive and comparative methods were used, fostering the dialogue between Brazilian Constitutional Law and International Law of Indigenous Peoples.
Keywords: Self-determination, Territorial Rights, Inter-American Court of Human Rights.
Dossiê
Autodeterminação ou Tutela? Uma análise do Caso Xukuru
Self-determination or Trusteeship? An analysis of the Xukuru Case
Recepção: 31 Janeiro 2022
Aprovação: 02 Fevereiro 2022
Não há dúvida de que as sentenças proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) são obrigatórias para aqueles Estados que declararam, soberanamente, submeter-se à sua jurisdição, na forma do artigo 62 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH). O artigo 68.1 da CADH, por sua vez, prevê que “os Estados-Partes na Convenção comprometem-se a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes”. Trata-se de uma obrigação processual assumida pelos Estados jurisdicionados, como decorrência lógica do caráter definitivo e inapelável das sentenças interamericanas, conferido pelo artigo 67 da CADH, e sob esta obrigação repousa o princípio fundamental pacta sunt servanda, base do Direito Internacional.
Em contrapartida, não se ignora que o cumprimento das sentenças interamericanas é uma das etapas mais complexas do processo perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH). De um lado, a natureza descentralizada do Direito Internacional faz com que não haja uma coerção direta com o uso da força sobre um Estado recalcitrante em cumprir as ordens emanadas da Corte Interamericana. Resta ao órgão apenas indicar os casos em que um Estado não tenha dado cumprimento a suas sentenças em relatório anual submetido à apreciação da Assembleia-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) com as recomendações pertinentes, nos termos do artigo 65 da CADH.
De outro lado, a falta de mecanismos jurídicos e políticos internos na maior parte dos Estados americanos 2, dificulta a internalização e o cumprimento célere e integral das sentenças interamericanas, sobretudo, no que se refere às reparações não indenizatórias, como as medidas de reabilitação das vítimas, mudanças legislativas, medidas contra a impunidade dos agentes públicos e particulares responsáveis diretos pelas violações reconhecidas em sentença e a implementação de políticas públicas para não repetição das mesmas violações em casos futuros.
Assim, exatamente para preparar seu relatório anual, a Corte Interamericana desenvolveu na sua prática forense a etapa de supervisão de cumprimento de suas próprias sentenças ( BURGOS, 2014, p. 137), para zelar, através de um procedimento dialógico entre as partes do caso, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e amici curiae, pela efetivação de suas determinações, em rodadas periódicas de prestação de contas dos pontos resolutivos cumpridos ou pendentes de cumprimento pelo Estado.
Seguindo essa práxis, no caso do Povo Indígena Xucuru e seus Membros vs. Brasil, julgado pela Corte IDH em 05 de fevereiro de 2018, o Ponto Resolutivo nº 12 consignou que o Estado deveria, no prazo de um ano, contado a partir da notificação da Sentença, apresentar ao Tribunal um relatório sobre as medidas adotadas para seu cumprimento, determinando no Ponto Resolutivo nº 13 que este caso estará sujeito à supervisão de cumprimento da sentença pela Corte IDH até que o Estado dê cabal cumprimento ao nela disposto.
Em observância ao acima disposto, em Resolução datada de 22 de novembro de 2019, a Corte IDH pronunciou-se da seguinte forma no primeiro ciclo de supervisão de cumprimento da sentença do Caso do Povo Indígena Xucuru e seus Membros vs. Brasil:
1. Declarar, de acordo com o estabelecido nos Considerandos 5 a 7 da presente Resolução, que o Estado deu cumprimento total às medidas de divulgação e publicação da Sentença e seu resumo oficial ( ponto resolutivo décimo da Sentença).
2. Manter aberto o processo de supervisão de cumprimento das seguintes medidas de reparação, as quais, conforme o disposto no Considerando 3 da presente Resolução, serão avaliadas em resolução posterior:
a) garantir, de maneira imediata e efetiva, o direito de propriedade coletiva do Povo Indígena Xucuru sobre seu território, de modo que não sofram nenhuma invasão, interferência ou dano, por parte de terceiros ou agentes do Estado que possam depreciar a existência, o valor, o uso ou o gozo de seu território (ponto resolutivo oitavo da Sentença);
b) concluir o processo de saneamento do território indígena Xucuru, com extrema diligência, efetuar os pagamentos das indenizações por benfeitorias de boa-fé pendentes e remover qualquer tipo de obstáculo ou interferência sobre o território em questão, de modo a garantir o domínio pleno e efetivo do povo Xucuru sobre seu território, em prazo não superior a 18 meses (ponto resolutivo nono da Sentença);
c) pagar as quantias fixadas a título de indenização por dano imaterial (ponto resolutivo décimo primeiro da Sentença); e
d) pagar as quantias fixadas a título de custas (ponto resolutivo décimo primeiro da Sentença).
3. Dispor que o Estado apresente à Corte Interamericana de Direitos Humanos, o mais tardar em 21 de fevereiro de 2020, um relatório sobre todas as medidas pendentes de cumprimento.
Dispor que os representantes das vítimas e da Comissão apresentem observações sobre o relatório do Estado mencionado no ponto resolutivo acima, nos prazos de quatro e seis semanas, respectivamente, contados a partir do recebimento do relatório.
Como se denota, o Estado brasileiro, sem fugir ao padrão do que geralmente ocorre nos demais Estados da Região em termos de cumprimento das sentenças interamericanas ( BURGOS, 2014) (ORTIZ, 2018), logrou efetivar celeremente as medidas de publicidade e divulgação da decisão. Quanto à parte indenizatória, encontrou-se resistência por parte do próprio povo indígena à constituição de um fundo de desenvolvimento comunitário a partir do pagamento da quantia de US$1.000.000,00 (um milhão de dólares), a título de indenização por dano imaterial sofrido pelos membros do Povo Xukuru, tendo aquiescido a Corte IDH, nos pontos 4 a 7 da supramencionada resolução, que o Estado procedesse ao pagamento diretamente à associação designada pelo povo indígena Xukuru. De acordo com a pesquisa de Franco Neto (2020, p.221) no Portal da Transparência do Governo Federal, foi identificado como tendo sido realizado um primeiro pagamento em 21 de janeiro de 2020, no valor de R$ 4.117.871,00, e um segundo pagamento, em 03 de fevereiro de 2020, no valor de R$ 65.498,12 referente a pagamento complementar da sentença e das custas do caso, no total de US$ 15.405,16.
Nesse contexto, o presente artigo propõe uma análise aprofundada das possíveis causas jurídicas do descumprimento da sentença interamericana no Caso do Povo Indígena Xukuru, focando na análise dos obstáculos do direito interno brasileiro em face do princípio da autodeterminação e do direito de propriedade coletiva dos territórios indígenas estabelecido pela interpretação do artigo 21 da CADH na jurisprudência da Corte IDH.
Para tanto, em primeiro lugar, será destacada a necessidade de aperfeiçoamento do procedimento dos casos contenciosos perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos para garantir um verdadeiro protagonismo aos povos indígenas sem retrocessos à tutela da Comissão Interamericana de Direitos Humanos em situações como a da ausência de apresentação do Escrito de Solicitações, Argumentos e Provas (ESAP) 3. Em seguida, a partir da obrigação contida no art. 2º. da CADH, será demonstrado que a normativa interna brasileira é insuficiente para assegurar o gozo e exercício do direito à propriedade coletiva indígena, no marco de um processo simples, rápido e efetivo, particularmente no que tange à Instrução Normativa da FUNAI n.º 2/2012. Por fim, será discutida a contradição existente entre o ponto resolutivo 9 da sentença em análise e a previsão constitucional brasileira de atribuição da titularidade das terras indígenas como bens da União e não do povo indígena coletivamente.
Para a realização da presente pesquisa, os principais métodos utilizados serão o dedutivo e o comparativo, fomentando o diálogo entre o Direito Constitucional brasileiro e o Direito Internacional dos Povos Indígenas. No mais, o procedimento será o bibliográfico-documental e a estratégia de abordagem será o caso selecionado (Povo Indígena Xucuru e seus Membros vs. Brasil).
A partir dos estudos propostos, serão oferecidas contribuições para o aprimoramento do processo interamericano em relação a casos contenciosos envolvendo povos indígenas e com maior efetividade da aplicação do princípio da autodeterminação dos povos quanto à realização do direito à titularidade de suas terras ancestrais.
Ainda que a Convenção 169 da OIT 4 não se refira especificamente ao direito à autodeterminação 5 dos povos indígenas e tribais, o referido tratado internacional prevê expressamente que os povos interessados devem ter “o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento, na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma”, além dos direitos de “controlar, na medida do possível, o seu próprio desenvolvimento econômico, social e cultural” e de “participar da formulação, aplicação e avaliação dos planos e programas de desenvolvimento nacional e regional suscetíveis de afetá-los diretamente” (art. 7.1) 6.
No mais, também se encontra assegurado no texto da Convenção 169 da OIT o direito à consulta prévia, livre, informada e de boa-fé aos povos indígenas e tribais sempre que o Estado preveja medidas que possam afetá-los diretamente. A referida consulta deve ocorrer “mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas”, garantindo-se que sejam estabelecidos os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, bem como que sejam fornecidos mecanismos de “pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim” (art. 6º.) 7.
Nesses termos, a Convenção 169 da OIT, diferentemente de sua antecessora, a integracionista Convenção 107 da OIT 8, encontra-se embasada na concepção de autonomia dos povos indígenas, a qual é facilmente visualizada a partir de três direitos assegurados no seu texto, a saber,: o direito a autoidentificação, “no sentido de que são os próprios indígenas quem devem aferir sua condição de ser indígena, sem que esta seja feita de maneira heterônoma por outros agentes” ( OLIVEIRA e ALEIXO, 2014, p. 4); o direito de participação dos povos nos órgãos que tratem sobre questões indígenas e; o direito à consulta prévia, livre, informada e de boa-fé.
Os principais parâmetros da Convenção 169 da OIT, portanto, estão associados “[a]o respeito aos povos indígenas na qualidade de comunidades de sujeitos políticos, a promoção de seus direitos em igualdade aos demais membros da população de um determinado Estado e [à] garantia da integridade de suas práticas culturais tradicionais” ( DINO, 2014, p. 497-498).
Assim, a partir deste tratado internacional, aplicável ao sistema interamericano de proteção aos direitos humanos nos termos do art. 29, “b” da CADH 9, encontra-se consolidado, em favor dos povos indígenas e tribais, tanto uma “autodeterminação como escolha de futuro”, a qual não se confunde com o direito de constituir-se como Estado, quanto o direito “de serem consultados sempre que qualquer medida, ato ou ação da sociedade hegemônica possa interferir no ser social ou sua territorialidade” (SOUZA FILHO, 2019, p. 22).
Mais que isso: com a adoção da Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos Povos Indígenas (2007) e da Declaração Americana sobre os direitos dos Povos Indígenas (2016), o direito à livre determinação passou a ser expressamente assegurado no art. 3º. dos dois instrumentos e no art. 4º. da Declaração das Nações Unidas, in verbis:
Declaração Americana. Art. III. Os povos indígenas têm direito à livre determinação. Em virtude desse direito, definem livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural; [...]
Declaração das Nações Unidas. Art. 3º. Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural. [...]
Art. 4 Os povos indígenas, no exercício do seu direito à autodeterminação, têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos e locais, assim como a disporem dos meios para financiar suas funções autônomas.
Com essas considerações, e após analisar a tramitação do caso do Povo Indígena Xukuru na Corte Interamericana de Direitos Humanos, são identificadas, pelo menos, três situações que podem ser configuradas como violações ao direito à autodeterminação, especialmente porque, no caso em destaque, o Povo Indígena Xukuru – enquanto coletividade – deve ser apontado como vítima.
Em primeiro lugar, para acessar o sistema interamericano de proteção aos direitos humanos não são exigidas maiores formalidades, sendo que qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não governamental legalmente reconhecida em um ou mais Estados-membros da OEA pode apresentar à Comissão petições em seu próprio nome ou em nome de terceiros sobre suposta violação de algum dos direitos humanos reconhecidos nos tratados internacionais que compõem o referido sistema (art. 23, do Regulamento da Comissão Interamericana) 10. A apresentação de uma petição pode ser feita, inclusive, via e-mail. Além disso, a Corte IDH já se posicionou no Capítulo VI da Opinião Consultiva nº. 22 pelo direito de peticionamento dos povos indígenas e tribais, na condição de sujeitos coletivos, perante o Sistema Interamericano (Corte IDH, 2016, pp. 27-29).
A mesma flexibilidade, contudo, não é aplicada quando, tal qual ocorreu no caso do Povo Indígena Xukuru, não há a apresentação do escrito de petições, argumentos e provas (ESAP). É certo que o Regulamento da Corte Interamericana prevê expressamente que (1) ao submeter o caso à Corte, a Comissão deve indicar “os nomes, endereço, telefone, correio eletrônico e fac-símile dos representantes das supostas vítimas devidamente credenciados, se for o caso” (art. 35.1, “b”) e; (2) quando notificados sobre a submissão do caso, os representantes das supostas vítimas devem confirmar o endereço no qual se considerarão oficialmente recebidas as comunicações pertinentes (art. 39.5).
Todavia, na hipótese das vítimas ou seus representantes não comparecerem ou se abstiverem de atuar, a única previsão contida no regulamento determina que “a Corte, ex officio, dará impulso ao processo até sua finalização” (art. 29.1) e, ainda, que as partes que se apresentarem tardiamente, “ingressarão no processo na fase em que o mesmo se encontrar” (29.2) 11.
No caso do Povo Indígena Xukuru, a Corte Interamericana, diante da ausência de apresentação de ESAP por parte dos representantes das vítimas, fato que, por óbvio traz enormes prejuízos à sua participação, de forma autônoma, durante todo o processo, conforme assegura seu regulamento (art. 25.1) 12, limitou-se a consignar que os representantes não apresentaram seu escrito, apesar de terem informado que a organização Justiça Global atuaria como copeticionária do caso (vide parágrafo 7 da sentença).
Assim sendo, em razão de aspectos meramente procedimentais que poderiam ser facilmente corrigidos, seja a partir da realização de intimação pessoal das vítimas – e não somente de seus representantes previamente credenciados –, seja com a designação de defensor público interamericano 13, providências que poderiam suprir a hipossuficiência das vítimas, a Corte Interamericana conduziu todo o procedimento sob sua jurisdição considerando exclusivamente os argumentos e as recomendações trazidas pela Comissão Interamericana por ocasião da apresentação de seu Relatório de Mérito.
Em suma, fazendo uma comparação com o direito processual brasileiro, é como se o processo que tramitou na Corte Interamericana tivesse sido decidido sem a apresentação de petição inicial por parte das vítimas, não tendo sido adotada nenhuma providência para garantir que os principais interessados (o povo indígena Xukuru) estivessem efetivamente participando do processo.
Todavia, no caso do Código de Processo Civil brasileiro (CPC/2015), a decretação da revelia (situação equivalente à previsão de ingresso tardio com o recebimento do “processo na fase em que o mesmo se encontrar” presente no art. 29.2 do Regulamento da Corte) somente ocorre quando o réu, e não o autor, citado pessoalmente, não apresenta defesa. Ainda assim, os efeitos de tal procedimento que, repise-se, ocorre somente em relação ao réu, não não se manifestam quando o litígio versa sobre direitos indisponíveis (arts. 344, 345, II e 346) 14.
Logo, o procedimento adotado pela Corte Interamericana ao dar continuidade à tramitação no caso sem a apresentação do ESAP e sem providenciar a designação de, pelo menos, uma curadoria às vítimas, papel que poderia ser assumido pela defensoria pública interamericana, representa um contrassenso diante de sua própria atuação em diversas oportunidades, quando fez uso do princípio do iura novit curia ou, ainda embasou sua tomada de decisão na busca da verdade real a partir da realização de diligências efetivas.
De fato, ao se limitar a dar continuidade ao feito sem garantir a participação direta do Povo Indígena Xukuru, a Corte Interamericana viola, inclusive, o direito à autodeterminação já reconhecido pelo próprio Sistema Interamericano, deixando de garantir ao referido povo a autonomia e o autogoverno das questões relacionadas ao seu diferenciado modo de viver.
Também deve ser registrado que, por não ter apresentado ESAP e por não ter tido representação processual, seja por representante credenciado, seja por defensor público interamericano, o Povo Indígena Xukuru que, de acordo com o Regulamento da Corte, tem o direito de participar ativamente – e de forma autônoma – da tramitação do caso, acabou sendo meramente tutelado pela CIDH, fato que além de denotar a dissonância da tramitação do caso com a ratio que guiou as alterações do Regulamento da Corte para viabilizar a participação direta e autônoma das vítimas, tem particular impacto no caso das vítimas que são povos indígenas.
Somente na audiência pública, e por ocasião da apresentação de alegações finais, o Povo Indígena Xukuru pôde trazer à Corte os argumentos e provas relacionados à necessidade de adequação da legislação brasileira aos ditames da CADH, especificamente no que se refere ao direito de propriedade assegurado aos povos indígenas e, ainda, às violações da integridade física e psíquica dos Xukuru em razão do assassinato do Cacique Xicão e, ainda, das tentativas de assassinato do Cacique Marquinhos.
Assim, o procedimento adotado pela Corte Interamericana inviabilizou a análise das violações relacionadas aos arts. 2º. e 5.1, da Convenção Americana de Direitos Humanos, além de encontrar resistência expressa ao modo de efetivação do pagamento da indenização outorgada a título de dano imaterial, através de um fundo de desenvolvimento comunitário que pode ser exitoso em vários países latino-americanos, mas não encontrou acolhida pelo Povo Xukuru que já dispõe de uma associação constituída.
Em particular, o presente estudo demonstrará nas próximas seções que, ao não ouvir a voz do Povo Indígena Xukuru, cerceando-lhes oportunidade de apresentar seu Escrito de Solicitações Argumentos e Provas, a Corte IDH atraiu para si o enorme risco de sentenciar sem conhecer as particularidades brasileiras em termos de direitos territoriais indígenas. De um lado, a Corte IDH não dispôs de elementos para aprofundar questões cruciais como os entraves normativos do processo de saneamento (ou desintrusão) das terras indígenas brasileiras. De outro lado, a Corte IDH limitou-se a aplicar sua jurisprudência, acerca da interpretação do artigo 21 da CADH, sem enfrentar a antinomia constitucional brasileira que, apesar de reconhecer direitos originários aos povos indígenas, não lhes confere a titularidade coletiva das terras que tradicionalmente ocupam.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos decidiu que o processo administrativo de titulação, demarcação e desintrusão 15 do território dos Xukuru foi parcialmente ineficaz, especialmente no que diz respeito à violação do direito à garantia judicial de prazo razoável, bem como do direito à proteção judicial e do direito à propriedade coletiva previstos, respectivamente, nos artigos 1.1, 25 e 21 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos 16 (CADH).
Muito embora tenha reconhecido a parcial ineficácia do referido processo, a Corte entendeu que o Brasil não incorreu na violação do art. 2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que prevê o seguinte:
Artigo 2. Dever de adotar disposições de direito interno
Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.
Isso porque, como já dito, os representantes dos Xukuru deixaram de apresentar seu ESAP, ventilando extemporaneamente em sede de alegações finais, que normas internas padeceriam de vícios, como a falta de prazo para conclusão das etapas do processo de demarcação, reconhecimento e titulação, exceto no que diz respeito ao prazo de 30 dias para o registro do título de propriedade no Registro de Imóveis, provocando a falta de segurança jurídica e o atraso no processo administrativo de demarcação do território indígena.
A Corte observou que nem a Comissão Interamericana nem os representantes das vítimas apontou de maneira precisa quais as normas supostamente violadas, ou a omissão, que seriam incompatíveis com a Convenção Americana, nem foi salientada em que sentido essa norma deveria ser modificada para cumprir o disposto no art. 2º desse Diploma.
Esse cenário reforça a ideia da necessidade de aprimoramento do procedimento de casos contenciosos perante a Corte, a fim de que não haja retrocessos para garantir um efetivo protagonismo aos povos indígenas, em situações como a da ausência de apresentação do ESAP.
Exemplo pujante de violação ao art. 2º da CADH, no caso em comento, diz respeito à insuficiência da normativa brasileira que regulamenta o processo de desintrusão das terras indígenas, correspondente à etapa que objetiva assegurar efetivamente a esses povos o gozo e exercício do direito à propriedade coletiva, previsto no art. 21 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
É insuficiente a demarcação dos territórios tradicionais sem que esta seja acompanhada de um efetivo processo de desintrusão, isso porque mesmo que a terra já esteja demarcada e registrada os indígenas não conseguem obter a posse plena da área.
A desintrusão ou saneamento pode ser conceituado da seguinte forma (TORUÑO, 2013, p.7):
“O saneamento é a obrigação que tem o Estado e as instituições competentes de resolver jurídica e/ou administrativamente a situação de terceiras pessoas, naturais ou jurídicas, distintas das comunidades, que alegam direitos de propriedade e que estão assentadas de forma legal ou ilegal em um território indígena ou afrodescendente” (tradução livre)
O fato de uma terra indígena já se encontrar registrada em nome da União não dispensa o Estado da sua obrigação de saneá-la, e não priva a comunidade indígena do seu direito de solicitar ao Estado para que este realize a desintrusão do território (TORUÑO, 2015, p. 164).
Vale frisar que a ausência de desintrusão cria muitos casos de “terras de papel”, pois as áreas são reconhecidas pelo Poder Executivo, muito embora permaneçam por anos ainda nas mãos de terceiros enquanto os indígenas continuam a amargar prejuízos de toda ordem ( CAVALCANTE, 2013, pp. 49-50).
O saneamento deve executar-se em harmonia com a vontade democrática dos membros das comunidades que integram o território onde será efetivada a desintrusão. Esse parâmetro está em consonância com o que dispõe a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 13 de setembro de 2007, pois prevê que eles têm direito à livre determinação, autonomia e autogoverno nas questões relacionadas aos seus assuntos internos e locais, como constam nos já citados arts. 3º e 4º do referido documento.
Nesse mesmo sentido, consoante já registrado, a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2016, garante em seu art. 3º, o direito dos povos indígenas à livre determinação, e que em virtude dele definem livremente sua condição política e perseguem seu desenvolvimento econômico, social e cultural.
No Brasil, atualmente encontra-se em vigor a Instrução Normativa FUNAI n.º 02, de 3 de fevereiro de 2012 (IN FUNAI n.º 02/2012), que regulamenta a desintrusão de terceiros das terras indígenas, prevendo o pagamento de indenização pelas benfeitorias, e estipulando também que aprovado o pagamento dos valores, deve ser providenciada a notificação pessoal de cada ocupante para recebê-los e deixar a área no prazo de 30 (trinta) dias.
No que diz respeito à desintrusão do território indígena Xukuru, o Brasil informou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA, 2015, p. 5), que o levantamento das ocupações não indígenas foi concluído em 2007, indicando a existência de 624 (seiscentos e vinte e quatro) ocupações. O Estado informou ainda, que entre os anos de 2001 a 2005, a FUNAI havia pago indenizações a 296 (duzentos e noventa e seis) ocupantes não indígenas. O Brasil destacou ainda que, em meados de 2010, 90% dos ocupantes não indígenas já haviam sido indenizados e retirados da área.
No tocante ao quantitativo de áreas ainda ocupadas por não indígenas, consta que até a sentença da Corte no caso do Povo Xukuru (OEA, 2018, p. 21), datada de 5 de fevereiro de 2018, 45 (quarenta e cinco) ex-ocupantes não indígenas ainda não haviam sido indenizados, e que segundo o Estado brasileiro, estariam em contato com as autoridades para receber o pagamento pelas benfeitorias de boa-fé. Além disso, 6 (seis) famílias não indígenas permaneciam dentro da terra indígena, totalizando uma área de 160,43 hectares.
Assim, a Corte decidiu que, apesar do limitado número de ocupantes não indígenas quando da prolação da sentença, o Estado deveria garantir de maneira imediata e efetiva o direito de propriedade coletiva do povo Xukuru sobre seu território, de modo que não sofresse nenhuma invasão, interferência ou dano por parte de terceiros ou agentes do Estado que possam depreciar a existência, o valor, o uso e o gozo de seu território, bem como que fosse realizada a desintrusão da parcela das áreas que permanecem em posse de terceiros e efetuados os pagamentos pendentes de indenizações por benfeitorias de boa-fé (OEA, 2018, p. 49).
Consta da Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 22 de novembro de 2019, referente à fiscalização do cumprimento da sentença, que ainda se encontra em aberto o processo de supervisão quanto à medida de reparação pertinente ao saneamento do território Xukuru, pagamento das indenizações e remoção de eventuais óbices sobre a área em questão, em prazo não superior a 18 meses, findado em 12 de setembro de 2019, o que reforça a extrema relevância da presente análise.
Antes do advento da IN FUNAI n.º 02/2012, a desintrusão era regida pelas Portarias do mesmo órgão de n.º 69/89 e n.º 165/89, sendo que esta última instituiu a comissão permanente para análise das benfeitorias, e ambas se encontram atualmente revogadas pelo novel instrumento normativo. O ponto em comum entre elas é o fato de que preveem o direito de indenização dos terceiros ocupantes de terras indígenas quanto às benfeitorias úteis e necessárias implantadas de boa-fé.
O procedimento instituído para tanto está previsto no art. 8º da IN FUNAI n.º 02/2012, e prevê que será realizado na seguinte ordem: (a) vistoria das ocupações e das benfeitorias, (b) avaliação, (c) análise técnica preliminar, (d) deliberação, (e) recurso, (f) julgamento e, finalmente, (h) pagamento.
Na fase de vistoria, tem-se que o titular das benfeitorias passíveis de indenização deve apresentar os comprovantes relativos à sua implementação, aquisição ou construção, além da autorização dos órgãos competentes, quando exigíveis por lei, somado aos comprovantes de quitação dos encargos sociais pertinentes, sempre que a legislação previdenciária assim o requerer.
Em seguida, para cada laudo de vistoria é realizado um laudo de avaliação, de responsabilidade da Coordenação Geral de Assuntos Fundiários. Outra novidade trazida pela atual IN diz respeito ao pagamento das benfeitorias pelo seu valor de mercado. E quando não for possível realizar o pagamento dessa maneira, será utilizado o método de reedição da benfeitoria, que é o cálculo do valor pelo material usado para sua construção, depreciado de acordo com o estado de conservação. Além disso, a FUNAI não pagará lucros cessantes nem expectativa de valorização (FUNAI, 2012, p.1).
O próximo passo é submeter o procedimento à análise preliminar por técnico da Diretoria de Proteção Territorial, designado pela Comissão Permanente de Análise de Benfeitorias, a fim de elaborar relatório instruído com a documentação e informações fornecidas pelos setores fundiário e antropológico da FUNAI.
O relatório técnico a ser elaborado deve conter o resumo do processo de identificação e delimitação da TI, o histórico da ocupação não-indígena, o levantamento fundiário e informações conclusivas sobre o marco temporal, para consideração da boa-fé, devem ser indicadas também as benfeitorias passíveis de indenização e sugestão de eventuais providências complementares.
Adiante o processo é encaminhado para deliberação da Comissão Permanente de Análise de Benfeitorias, cujas decisões são tomadas pelo voto da maioria de seus membros, que pode solicitar a reavaliação delas, determinar diligências, análise técnica ou jurídica ou concordar com a avaliação previamente realizada.
Concluída a deliberação, a Diretoria de Proteção Territorial baixará uma resolução com o extrato da decisão, que deve ser publicada no Diário Oficial da União e encaminhada às prefeituras municipais da situação do imóvel, com a recomendação de ampla divulgação.
A IN FUNAI n.º 12/2012 inova ao estabelecer uma fase de recursos, prevendo um prazo de 30 (trinta) dias para sua apresentação após a deliberação da Comissão Permanente de Análise de Benfeitorias. O referido prazo não era previsto nas Portarias anteriores.
Antes de ser submetido à consideração da Presidência do órgão indigenista, o procedimento deve ser encaminhado à Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI, a fim de manifestar-se conclusivamente quanto à regularidade procedimental e eventuais recursos interpostos. Em seguida, a Presidência decidirá acerca da indenização das benfeitorias e os recursos que, porventura, tenham sido interpostos, autorizando seu pagamento ou devolvendo o procedimento à Comissão Permanente de Análise das Benfeitorias, a fim de que sejam reavaliados os valores ou tomadas outras diligências que julgue necessárias.
Quando da aprovação do pagamento da indenização pela Presidência, ou havendo ocupantes sem direito à indenização, a Diretoria de Proteção Territorial deve providenciar a notificação pessoal de cada ocupante, e deixar a área no prazo de 30 (trinta) dias. Esgotado o prazo sem a retirada desses terceiros, a Diretoria de Proteção Territorial adotará as providências necessárias visando à desocupação, podendo solicitar auxílio da Polícia Federal.
Importa destacar que as benfeitorias serão indenizadas somente se ainda existirem no momento do pagamento e pelo estado de conservação em que se encontrem. Além disso, a IN FUNAI n.º 02/2012 prevê que deve ser dada prioridade à indenização das benfeitorias de menor valor e que integrem os bens de subsistência do seu titular e às benfeitorias que estiverem situadas em áreas de permanente tensão social, bem como aquelas em que os ocupantes são maiores de 60 anos e aos portadores de deficiência ou doença grave.
Neste ponto cumpre frisar que no caso do povo Xukuru, o pagamento das indenizações iniciou-se a partir das benfeitorias de menor valor. Os indígenas solicitaram que fosse invertida a ordem para que pagassem aquelas de maior valor prioritariamente, tendo em vista que estes ocupantes eram os que constituíam o principal óbice para que os Xukuru gozassem da terra.
Tem-se que a IN n.º 02/2012 prevê, explicitamente, a indenização e desocupação das áreas ocupadas por terceiros como forma de realizar a desintrusão das terras tradicionalmente ocupadas, sem prejuízo da possibilidade de adoção de outras medidas que a FUNAI entender cabíveis.
Apesar da previsão desses mecanismos para realizar o saneamento dessas terras indígenas, a IN FUNAI n.º 02/2012 não fixa prazos para o cumprimento de suas etapas, com exceção do prazo para a desocupação dos terceiros depois de notificados e para a apresentação de recursos após a deliberação da Comissão de Avaliação de Benfeitorias, o que faz com que a desintrusão seja arrastada por anos a fio, conduzida ao livre talante da FUNAI, prorrogando a situação dos indígenas de não poder gozar efetivamente dos direitos originários sobre suas terras.
A partir da análise ora realizada, fica claro que a normativa interna que regulamenta a desintrusão de terras indígenas está em conflito com o art. 21 da CADH, eis que é insuficiente para garantir o direito à propriedade coletiva previsto neste último, tendo o Estado brasileiro incorrido na violação ao art. 2º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no que diz respeito à necessidade de adotar medidas legislativas ou de outra natureza necessárias a efetivar os direitos previstos no Pacto de San José, o que reforça a necessidade de aperfeiçoamento do procedimento de casos contenciosos perante a Corte, no intuito de impedir retrocessos e efetivar os direitos dos povos indígenas.
O final do Ponto Resolutivo nº 9 da sentença em análise, após estabelecer o dever de desintrusão do território indígena dos Xukuru pelo Estado brasileiro, acrescenta que este processo de retirada dos não índios deve ser procedido de modo a garantir o domínio pleno e efetivo do povo Xukuru sobre seu território, em prazo não superior a 18 meses, nos termos dos parágrafos 194 a 196 da Sentença.
Para os fins da análise proposta para a presente seção, destaca-se o que a Corte IDH consignou em seus parágrafos 195 e 196:
195. Com respeito à sentença de reintegração de posse favorável a Milton do Rego Barros Didier e Maria Edite Barros Didier, caso a negociação em curso informada pelo Estado, para que recebam uma indenização por benfeitorias de boa-fé [...] não prospere, conforme a jurisprudência da Corte, o Estado deverá avaliar a possibilidade de sua compra ou a expropriação dessas terras, por razões de utilidade pública ou interesse social.
196. Caso, por motivos objetivos e fundamentados, não seja, definitivamente, material e legalmente possível a reintegração total ou parcial desse território específico, o Estado deverá, de maneira excepcional, oferecer ao Povo Indígena Xucuru terras alternativas, da mesma qualidade física ou melhor, as quais deverão ser contíguas a seu território titulado, livres de qualquer vício material ou formal e devidamente tituladas em seu favor. O Estado deverá entregar as terras, escolhidas mediante consenso com o Povo Indígena Xucuru, conforme suas próprias formas de consulta e decisão, valores, usos e costumes. Uma vez acordado o exposto, essa medida deverá ser efetivamente executada no prazo de um ano, contado a partir da notificação de vontade do Povo Indígena Xucuru. O Estado se encarregará das despesas decorrentes do referido processo bem como dos respectivos gastos por perda ou dano que possam sofrer em consequência da concessão dessas terras alternativas.
A Corte IDH, no caso de impasse entre o interesse de particulares e o direito reconhecido sobre os territórios ancestrais do Povo Indígena Xukuru propôs três alternativas: a) compra, b) desapropriação por razões de utilidade pública ou interesse social e c) oferta excepcional de terras alternativas da mesma qualidade física ou melhor, as quais deverão ser contíguas a seu território titulado, livres de qualquer vício material ou formal e devidamente tituladas em seu favor.
Essas alternativas propostas pela Corte IDH foram construídas ao longo de sua jurisprudência sobre casos de povos indígenas e tribais em países da América Latina e do Caribe, com regimes jurídicos diferentes daquele adotado pelo Brasil em relação ao processo de demarcação e titulação de uma terra como indígena, à outorga de titularidade à União e ao reconhecimento da importância vital desses territórios para a sobrevivência física e espiritual para essas sociedades tradicionais.
Quanto ao primeiro aspecto, já amplamente tratado na seção anterior deste estudo, cabe apenas refletir, neste passo, se a compra ou a desapropriação por razões de utilidade pública ou interesse social seriam soluções viáveis à luz da realidade brasileira. Primeiramente, tanto a compra quanto a desapropriação esbarram no mesmo problema orçamentário do pagamento das benfeitorias recorrente nos processos de demarcação de terras indígenas. A desapropriação, na modalidade proposta pela Corte IDH, requer, especificamente, a justa e prévia indenização em dinheiro, nos termos do artigo 5º., XXIV da Constituição Federal de 1988, a saber:
Art. 5º. ( omissis)
XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;
Frise-se que, para a efetivação desta modalidade de desapropriação, cujas hipóteses estão previstas na lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962, a indenização deve ser paga ao expropriado de forma prévia, justa e em dinheiro, a menos que a hipótese se enquadre em imóvel que descumpra a política urbana ou a política agrária e fundiária constitucionalmente estabelecida, quando a indenização será feita em títulos da dívida pública ou agrária, respectivamente, na forma dos artigos 182,§4º, III 17 e 184 18 da CF/1988.
Nesse sentido, a adoção de uma normativa mais severa para a desintrusão das terras indígenas, no caso de grandes propriedades improdutivas, incluiria a desapropriação por interesse público, na qual o terceiro não indígena discutiria o valor de sua indenização, em títulos da dívida agrária, fora da área desapropriada. Todavia, deve ser lembrado que a pequena e média propriedade rural são insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária (artigo 185, II da CF/1988). Nestes casos de pequenos colonos, poderia ser firmado convênio com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, a fim de disponibilizar áreas para o reassentamento dessas famílias.
Mesmo assim, a vantagem do procedimento de desapropriação proposto pela Corte IDH está na celeridade que seria imprimida ao processo de desintrusão da terra indígena demarcada, uma vez que a União, enquanto ente público expropriante, poderia requerer a imediata imissão provisória na posse, e a discussão sobre a justeza do valor indenizatório previamente depositado em juízo poderia ser feita judicialmente pelo particular expropriado, a posteriori, assegurada desde já a posse do povo indígena sobre seu território 19 previamente demarcado.
Quanto ao segundo aspecto, ou seja, a titularidade coletiva das terras indígenas, há uma condição irreconciliável entre a determinação da Corte IDH e a previsão constitucional do artigo 231 da CF/1988. O artigo 20, XI da Carta Maior estabelece que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” são bens da União. Já o § 2º. do artigo 231 determina que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.
Por essa razão, no caso dos Xukuru, causa perplexidade a parte final do Ponto Resolutivo nº 9 acima mencionado, pois, a persistir a resistência dos terceiros não índios, esta seria a hipótese de uma terra indígena transcrita em cartório de imóveis em benefício do próprio povo e não da União. Esse excerto é a demonstração da profunda contradição entre a jurisprudência da Corte de San José, alinhada ao que dispõe o artigo 14(1) da Convenção 169 da OIT 20, e o regime constitucional da propriedade dos territórios indígenas no Brasil. Apesar do caput do artigo 231 da Constituição de 1988 reconhecer aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, não confere seu domínio aos povos indígenas.
Segundo Silva, o regime constitucional de outorga das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios como bens da União justifica-se da seguinte forma:
“A outorga constitucional dessas terras ao domínio da União visa precisamente preservá-las e manter o vínculo que se acha embutido na norma, quando fala que são bens da União as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, ou seja, cria-se aí uma propriedade vinculada ou propriedade reservada com o fim de garantir os direitos dos índios sobre ela. Por isso são terras inalienáveis e indispensáveis e, os direitos sobre ela, imprescritíveis.” (destaques no original) (SILVA, 1993, P. 46)
Em que pese o intuito protetivo explicitado por Silva, de certa forma, a colocação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios como bens da União (artigo 20, XI da CF/1988) é uma herança herdada da Constituição de 1967 (artigo 4º, IV) e da Emenda Constitucional nª 01 de 1969 (artigo 4º., IV) que maculou o instituto do indigenato, igualmente defendido por SILVA (1993, pp. 45-50) como sendo a raiz e substrato do reconhecimento dos direitos originários dos povos indígenas constantes do caput do artigo 231, pois, segundo o citado autor:
“Os dispositivos constitucionais sobre a relação dos índios com suas terras e o reconhecimento dos seus direitos originários sobre elas nada mais fizeram que consagrar e consolidar o indigenato, velha e tradicional instituição jurídica luso-brasileira que deita suas raízes nos primeiros tempos da Colônia, quando o alvará de 1 de Abril de 1680, confirmado pela lei de 6 de junho de 1755, firmara o princípio de que, nas terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas.” 21 (destaques no original) ( SILVA, 2007, p. 858)
Acerca do terceiro aspecto apontado, como leciona SILVA (1993, p. 47), a base do conceito de “terras tradicionalmente ocupadas” tem como base quatro condições, “todas necessárias e nenhuma suficiente sozinha”, que fundamentam o reconhecimento da relação intrínseca entre os povos indígenas e seu território, a saber:
“1ª.) serem por eles habitadas em caráter permanente; 2ª) serem por eles utilizadas para suas atividades produtivas; 3ª.) serem imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar; 4ª.) serem necessárias a sua reprodução física e cultural, tudo segundo seus usos, costumes e tradições, de sorte que não se vai tentar definir o que é habitação permanente, modo de utilização, atividade produtiva, ou qualquer das condições ou termos que as compõem, segundo a visão civilizada, a visão do modo de produção capitalista ou socialista, a visão do bem-estar do nosso gosto, mas segundo o modo de ver deles, da cultura deles.” (destaques no original) (SILVA, 1993, p. 47)
Por essas razões, a oferta de terras alternativas deve ser vista com muita cautela, pois, por mais que a Corte IDH se cerque de condicionantes como a consulta do povo indígena afetado, sua implementação significa o rompimento dos laços de tradição do povo indígena com seu território, o que entra em colisão com a interpretação do artigo 21 da CADH estabelecida pelo Tribunal no caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni (Corte IDH, 2001).
A luta do movimento indígena internacional, iniciada na década de 1970, trouxe como resultado principal a aprovação da Convenção 169 da OIT, tratado internacional que, ao se centrar na concepção de autonomia e autogoverno dos povos indígenas e tribais, assegura a esses povos que, enquanto sujeitos epistêmicos, defendam a proteção jurídica de suas cosmovisões e reafirmem sua autodeterminação, enxertando o referencial ocidental do Direito Internacional dos Direitos Humanos com doses de diversidade advindas do “Outro” até então silenciado.
O direito à autodeterminação dos povos indígenas, igualmente, já foi devidamente reconhecido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos que, ao se utilizar das disposições da Convenção 169 da OIT, nos termos do art. 29, “b”, da CADH, construiu uma interpretação inventiva do art. 21 para assegurar o direito à propriedade comunal aos povos originários de Abya Yala 22.
É certo, todavia, que, por questões meramente procedimentais afetas à tramitação do caso na Corte IDH, esse direito à autodeterminação pode não ser devidamente assegurado. Como se viu, no caso do Povo Indígena Xukuru, a ausência de apresentação de ESAP e, principalmente, a ausência de atuação proativa da Corte Interamericana, fincada na busca da verdade real a partir da realização de diligências efetivas, além de tornar menos protagonista a participação autônoma das vítimas, acarretou o não enfrentamento de diversas violações da CADH cruciais para o caso em concreto e para os milhares de casos que poderiam se servir da força da interpretação que poderia ter sido feita pela Corte IDH.
Exemplo disso é a normativa brasileira que rege o procedimento de desintrusão das terras indígenas (IN FUNAI n.º 02/2012), pois não fixa prazos para o cumprimento de suas etapas, com exceção do lapso de 30 dias para a desocupação dos terceiros depois de notificados e o período para a apresentação de recursos após a deliberação da Comissão de Avaliação de Benfeitorias, o que faz com que o saneamento do território tramite por longos anos, conforme o interesse estatal.
Dito isso, a IN FUNAI n.º 02/2012 é insuficiente para garantir o direito à propriedade coletiva previsto no art. 21 da CADH, tendo o Estado brasileiro incorrido na violação ao art. 2º da CADH, no que diz respeito à necessidade de adotar medidas legislativas ou de outra natureza necessárias a efetivar os direitos previstos no Pacto de San José.
Entretanto, tal violação deixou de ser reconhecida no caso do povo Xukuru, o que pode ser atribuído à ausência da apresentação do ESAP ou da própria falta de atuação diligente da Corte, conforme já destacamos, o que reforça a necessidade de aperfeiçoamento do procedimento de casos contenciosos perante o mencionado órgão, no intuito de impedir retrocessos e efetivar os direitos dos povos indígenas.
Por fim, com a restrição imposta à ampla discussão do caso do Povo Xukuru perante a Corte IDH, foram ditadas pelo Tribunal de San José medidas reparatórias de difícil implementação pelo Estado brasileiro, em razão das diferenças internas entre o regime jurídico da propriedade das terras indígenas no Direito brasileiro em relação a vários países da América Latina que admitem a propriedade coletiva dos territórios indígenas, o que sequer pode ser aprofundado no caso concreto.
É necessário, portanto, dar voz aos povos indígenas e tribais, de forma efetiva, no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, para que, autonomamente, possam expressar seus argumentos independentes, produzir suas provas e deduzir suas pretensões reparatórias, de acordo com suas peculiares formas de ser e de viver.
É Doutora em Direito (área de concentração em Teoria do Estado e Direito Constitucional) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Atua como professora do Curso de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Escola Superior de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Amazonas (ESO/UEA), nas áreas de Direito Constitucional e Direito Internacional. Desenvolve atividades de pesquisa e extensão na Clínica de Direitos Humanos e Direito Ambiental da ESO/UEA. É graduada em Direito pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), possui especialização em Direito Processual pelo Instituto Superior de Administração e Economia da Amazônia/Fundação Getúlio Vargas e Mestrado em Direito e Estado pela Universidade de Brasília (UnB). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2006-7910 Correio eletrônico: silviamsloureiro@gmail.com.
Dandara Viégas Dantas
É Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas, Especialização em Direito do Saneamento pela Universidade de Lisboa, Especialização em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, Graduação em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco e Graduação em Relações Internacionais pela Faculdade Integrada do Recife. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8872-3315 Correio eletrônico: dandaraviegas@hotmail.com
Jamilly Izabela de Brito Silva
É Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas. Atua como Agente Técnico-Jurídico do Ministério Público do Estado do Amazonas (MP-AM), colabora com os trabalhos da Clínica de Direitos Humanos e Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (CDHDA-UEA) e é pesquisadora do Grupo de Pesquisa CNPq “Direitos Humanos na Amazônia”. Possui Especialização em Direitos Humanos pela Faculdade de Ciências e Tecnologias de Campos Gerais, em pareceria com o Círculo de Estudos pela Internet (FACICA-CEI), Especialização em Direito Civil e Direito Processual Civil e em Direito Público, ambas pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas (CIESA) e Graduação em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas, com Habilitação em Direito Internacional. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7776-5357. Correio eletrônico: jamilly.izabela@gmail.com