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Um direito inocente?
Revista Direito e Práxis, vol. 12, núm. 4, pp. 3031-3042, 2021
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

RESENHA

Sutter Laurent deCorrêa Murilo Duarte Costa. Deleuze: a prática do direito. 2019. Ponta Grossa. Editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepção: 29 Março 2021

Aprovação: 30 Maio 2021

DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2021/56709

Deleuze: a prática do direito, lançado em 2019 pela editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa em uma cuidadosa edição, é um livro fascinante. De autoria do criativo jusfilósofo belga Laurent de Sutter, Professor de Teoria do Direito na Vrije Universiteit Brussel, a obra busca alinhavar, de maneira quase sempre muito deleuziana, aquilo que pode ser chamado de “filosofia do direito” de Deleuze, objeto que, antes dos esforços de Sutter, certamente pertencia ao terreno das coisas apenas imaginadas contidas nos livros não escritos, tendo em vista que Deleuze nunca dedicou uma obra ou um curso específico para pensar o direito. Nada obstante, contra todas as evidências fragmentárias que pontuam os escritos de Deleuze, Sutter afirma que existe em seu pensamento um sistema completo de filosofia do direito (p. 20), que pode ser reconstituído da mesma maneira que os arqueólogos e os detetives reconstituem seus respectivos objetos de estudo (p. 12). Só isso já serviria para afirmar a extrema necessidade e oportunidade do livro, pois até então ninguém tinha se dado conta disso e muito menos tentado demonstrar rigorosamente essa ousada tese. Mas os méritos do livro vão muito além, pois está escrito com uma linguagem elegante – por vezes bastante densa – cuja inevitável dificuldade que seu tema – a filosofia jurídica de Deleuze – impõe é mitigada pela forma da exposição, extremamente sistemática e dividida em pequenas seções quase nunca maiores que uma página, tornando possível respirar durante o alucinante processo de leitura.

Ainda que não se trate de um livro didático, nele Sutter se preocupa com seu leitor, pois reconhece a complexidade das ideias que desenvolve, razão pela qual apresenta a todo momento esquemas, diagramas – algo que Deleuze também parecia gostar de fazer –, retomadas e pequenos resumos, necessários quando o texto atinge uma tal intensidade que o leitor chega a sentir vertigem. Destaca-se também o procedimento tateante, experimental e criativo de Sutter, que jamais é apodíctico ou categórico em suas tomadas de posição. Uma das palavras que mais aparecem no livro é “talvez”, sigilo dos verdadeiros pensadores. O autor é honesto desde as primeiras linhas e reenvia os leitores não acostumados com o léxico de Deleuze a outras obras mais elementares, dado que a sua não se configura como manual, mas como ensaio criativo que, atacando um autor pelas costas, o “enraba” para fazer-lhe filhos monstruosos, procedimento que, em Uma carta a um crítico severo, Deleuze confessou usar com filósofos como Kant, Hume, Leibniz etc. (p. 26).

Um elemento a mais, além de todos esses, a comprovar a excelência do livro, é a cuidadosíssima tradução de Murilo Duarte Costa Corrêa, professor de Teoria Política no curso de Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa, ele próprio um apaixonado e competente leitor de Deleuze. O francês de Sutter não é fácil, mas foi magistralmente recriado em nossa língua, dando lugar a uma prosa filosófica rigorosa, fluída e provocativa. Além disso, o pós-escrito de Corrêa ajuda muito a compreender o contexto do livro que, tendo sido publicada em países como França, Itália, Inglaterra e Argentina, encontrou no Brasil a sua edição mais bem acabada, pois além das várias correções efetivadas em relação às suas outras versões, conta com o supracitado pós-escrito de Corrêa e dois textos suplementares de Sutter em que ele reflete sobre alguns aspectos específicos da sua proposta e sua recepção crítica.

O livro se organiza em duas partes: crítica e clínica (às quais se juntam as necessárias introdução e conclusão), reverberando o título de uma das obras mais influentes de Deleuze. Fundando-se em Nietzsche, Deleuze explica que a crítica corresponde à “destruição com alegria”, enquanto a clínica equivale à “construção com alegria” (p. 79), ressoando nessa distinção a antiga tradição latina que articula a pars destruens com a pars construens, a qual parece ter sido esquecida por muitos dos filósofos ditos pós-estruturalistas, com a óbvia exceção de Deleuze. A essas duas partes – crítica e clínica – correspondem duas teses fortes que, segundo Sutter, resumem a filosofia do direito de Deleuze. A primeira delas, crítica, é que “sempre houve apenas uma maneira de se pensar a lei, pela comicidade do pensamento, feita de ironia e humor” (DELEUZE, 2009, p. 86). A segunda, clínica, enuncia que “a jurisprudência é a filosofia do direito, e procede por singularidade, por prolongamento de singularidades” (DELEUZE, 2008, p. 191).

No que diz respeito à tese crítica, o objetivo de Deleuze é afastar o direito da figura da lei, que o parasita com especial gravidade a partir da modernidade. É importante compreender que a noção de “lei” em Deleuze não se limita ao produto do poder legislativo, dizendo respeito a um conceito muito mais amplo que comparece também e principalmente na filosofia, na psicanálise, na economia etc. A lei é uma espécie de universal abstrato que pretende determinar e limitar os desenvolvimentos do direito que, como veremos na parte clínica, se comporta de maneira caótica, casuística e multiplicativa de singularidades, razão pela qual a filosofia do direito para Deleuze reside no trabalho paciente e descomprometido com outras esferas do social feito pela jurisprudência, e não na cabeça dos filósofos que querem pensá-lo e restringi-lo por meio de figuras ideais como a justiça, o contrato, o consenso etc. Nesse ponto, me parece saborosíssima a crítica que Deleuze lança a autores que, como Habermas, apostam nessas construções, indicando que somente podem fazê-lo ou por serem muito estúpidos ou muito canalhas. É uma pena que esse debate só seja rapidamente pincelado por Sutter, e não desenvolvido com mais fôlego (compreendo, contudo, que esse não constitui o objeto de seu ensaio). Mas vale como prêmio de consolação o elenco de injúrias que Deleuze lança aos filósofos “argumentativos”, “comunicativos” e “humanistas”. Sutter as reúne na nota n. 87:

“E é preciso muita inocência, ou safadeza, para uma filosofia da comunicação que pretende restaurar a sociedade de amigos ou mesmo a de sábios, formando uma opinião universal como ‘consenso’ capaz de moralizar as nações, o Estado e o mercado”. [...] “A respeito dos Direitos Humanos, de verdade, tenho vontade de dizer coisas odiosas. Isso faz parte daquele pensamento mole do período pobre de que falávamos. É abstração pura”. [...] “Dizemos: os direitos do homem, mas enfim, trata-se de discursos para intelectuais, e para intelectuais odiosos, e para intelectuais desprovidos de ideias”. [...] “São uns débeis mentais. Ou pior, acredito que todos esses pensamentos sobre direitos humanos sejam hipócritas. É nulo, filosoficamente, nulo”. [...] “Não é a primeira vez que o recurso ao eterno serve de máscara a um pensamento débil e sumário demais, que ignora até mesmo aquilo que deveria alimentá-lo”.

A tese crítica de Deleuze, reconstruída passo a passo, por Sutter, não pode mais do que nos chocar à primeira vista, pois indica que somente o humor e a ironia nos revelam o absurdo e o ridículo de uma visão que reduz o direito à lei, procedendo assim causticamente à destruição dessa miragem. Segundo Deleuze-Sutter, vários procedimentos, tanto na Antiguidade socrático-platônica quanto na Modernidade, foram postos em ação para realizar essa tarefa, indo da gargalhada dos discípulos de Sócrates diante da lei que condenava seu mestre à morte, até à proliferação de débauches a partir da modernidade: a perversão de Sade, a subversão de Sacher-Masoch, a inversão de Kafka e a conversão de Bartebly. Um dos pontos centrais da crítica deleuziana se encontra na percepção do papel de Kant na solidificação do direito, na medida em que propõe uma lei, mas não uma qualquer lei, e sim uma lei qualquer, quer dizer, uma lei que vale pela sua forma e pelo fato de fundar a si mesma, o que marcaria, segundo Deleuze, a passagem das sociedades disciplinares teorizadas por Foucault para as sociedades disciplinares que ele próprio batizou (pp. 74-77). Contudo, vivemos em sociedades não propriamente kantianas, mas kafkianas, já que elas realizaram aquilo que em Kant era um mero paradoxo do pensamento, ou seja, uma máquina concreta de justiça que só opera autisticamente com base em si mesma, conformando então aquilo que Sutter chama, com toda razão, de sociedades hiperkantianas, ou seja, sociedades em que domina o mais puro cinismo.

A passagem à clínica – de longe a parte mais instigante do livro – se faz pela percepção de que o direito, tal como pensado sob a sombra da lei, se encontra em crise, o que se revela mais do que nunca no discurso dos direitos humanos, lidos por Deleuze-Sutter a partir de uma posição muito próxima da de filósofos radicais como Giorgio Agamben, que neles vê dispositivos biopolíticos de exclusão inclusiva (AGAMBEN, 1998). Deleuze vai ainda mais longe e compreende os direitos humanos como uma espécie de maldição, um câncer planetário que se alastra por todos os cantos para homologar as multiplicidades e as singularidades criativas sob a lei de ferro da conceitualidade filosófica kantiana, tornando impossível ou de qualquer modo muito difícil um uso tópico do direito. Nos fortes termos de Sutter:

O que é imundo, nos direitos humanos, não é o fato de querer impor a todos algo de que apenas alguns se beneficiam (isso seria paternalismo), mas que aquilo de que apenas alguns parecem beneficiar-se seja, na verdade, uma maldição. Os direitos do homem exprimem o programa de uma moratória ilimitada, uma vez que se beneficiar de direitos é a condição de entrada em sociedades nas quais o controle se exerce precisamente através do enlouquecimento kafkiano que é próprio a elas. Persiste, escreve Deleuze, uma vergonha de ser um homem; vergonha que não se exprime somente em situações extremas (aquelas descritas por Primo Levi), mas também naquelas que se relacionam com a quotidianidade mais ordinária. Os direitos do homem, em lugar de exprimir um progresso do direito, constituem o exemplo maior de sua crise: atualmente, o direito já não significa nada, a lei tomou-lhe o controle, essa lei formal cuja última palavra se encontra expressa pela moral kantiana da qual os direitos humanos se desprendem (pp. 78-79).

Não tenho nada a reprovar nessa crítica que, na verdade, está inserida dentro da clínica na economia geral do livro de Sutter. Todavia, se mergulharmos profundamente na clínica, ou seja, na parte criativa das ideias jurídicas de Deleuze, a situação é bem outra. Recordando a principal tese clínica deleuziana escandida por Sutter, tem-se que a jurisprudência é a verdadeira filosofia do direito, pois só nela se dá o processo de criação, multiplicação e singularização dos desejos mediante uma virtualmente infinita tópica dos casos que não se deixa aprisionar pela filosofia, construindo uma série de estratégias para driblar a lei, descumprindo-a ao cumpri-la, por exemplo. Surge assim um horizonte que se poderia classificar como otimista, pois para Sutter a diferença entre a prática do direito e o seu pensamento fundado na lei não corresponde simplesmente à diferença entre prática e teoria, dado que, de certa maneira, ambos são práticos. Nada obstante, dessa prática “o pensamento da lei é a parte triste e estéril, enquanto a prática axiomática do direito é a parte alegre e fértil” (p. 101). Nesse momento, entendo ser necessário somar uma quarta modalidade de crítica às três que Sutter enumera – a crítica da instauração de Kant, a crítica da desconstrução de Derrida e a crítica da denúncia (pp. 66-67) –, ainda que o autor pareça não dar importância a isso. Trata-se de uma crítica de feição mais foucaultiana e que tem a ver com o reconhecimento dos limites de todo e qualquer discurso. Nessa perspectiva, parece-me que, para além do caráter extremamente inovador e potente do pensamento jurídico de Deleuze que Sutter mapeia, é salutar apontar seus limites. Limito-me a três deles.

O primeiro deles se mostra com certa ambiguidade, dado que o direito é tratado por Deleuze-Sutter de forma muito pouco deleuziana, pois, ao que me parece, corre o risco de se converter em um universal. Com efeito, a leitura de Sutter tem por objeto o que Deleuze chama de “o” direito, jamais especificando ou problematizando esse conceito. Há que se levar em conta, como lembra Corrêa em seu pós-escrito, que essa questão – o que é o direito? – parece não interessar a Deleuze, que estaria mais preocupado com “como se produz o real do direito?” (p. 167). Todavia, em um dos únicos momentos em que Deleuze se digna ao menos a exemplificar o que seria esse conjunto de operações quase fantasmático chamado direito, faz referência aos direitos francês, alemão e inglês, indicando a concentração de lógos e nómos em cada um deles, dando a essas palavras gregas, tradicionais na filosofia do direito, sentidos muito peculiares. Para Deleuze, o lógos seria uma espécie de idealização abstrato-conceitual, presente em alto nível no direito francês, composto quase só de lógos e expresso sob as formas conceitualizantes-racionais do código e do contrato. Ao contrário, o nómos representaria a pragmática infinita de um casuísmo das singularidades, que caracterizaria, segundo Deleuze, o “melhor dos direitos”, ou seja, o inglês, centrado na jurisprudência e oposto ao “pior dos direitos” (obviamente, o francês). O direito alemão seria um misto mais ou menos equilibrado de nómos e lógos, ancorado na ideia de instituição (pp. 105-106).

Como se percebe, em seu quadro geral exemplificativo do direito Deleuze desconsidera experiências outras de juridicidade que não passam pela Europa, tais como aquelas presentes em tribos indígenas da América, de povos da África e de culturas dos vários Orientes, realizando algo perigosamente próximo do procedimento que ele próprio, em Diferença e repetição, já tinha denunciado, e que consiste na construção de um universal (“o” direito) com base em particulares (os direitos francês, inglês e alemão) que nada mais são do que o reflexo da vacuidade desse mesmo universal. Nesse sentido, é sintomático que Sutter tome como modelo exemplar do direito em Deleuze a prática casuísta dos juristas romanos. Em uma passagem provocante, Sutter afirma que os gregos foram a calamidade e a estupidez que os romanos tentaram reparar (p. 114) e que, para Deleuze, devemos voltar a ser romanos não apenas para encontrar a pureza técnica do direito, mas para criá-la também na filosofia (p. 115). Mas Deleuze faz o elogio de Roma sem qualquer palavra crítica dedicada à construção inegavelmente filosófica desse direito – algo que Deleuze deplora no direito em geral, que ele pretende justamente libertar da filosofia – com base na doutrina estoica (MATOS, 2008), deixando de notar, ademais, o caráter religioso inseparável do ius romanorum. Aliás, é exatamente essa dimensão sacral que permitiu ao direito romano se desenvolver por meio de uma multiplicação de fórmulas, ritos, casos etc., tal como demonstrado no fascinante e exaustivo estudo de Aldo Schiavone (SCHIAVONE, 2005). Ou seja: sem direito romano religioso-arcaico formular não poderia ter havido tópica jurídica jurisprudencial imperial.

Daí porque não me convence a leitura de Deleuze abonada por Sutter – e este é um segundo limite crítico importante do livro – segundo a qual os juristas, do ponto de vista de uma máquina abstrata, não se preocupariam com elementos externos (religiosos, econômicos, políticos etc.) ao direito, eis que a eles importaria apenas a multiplicação do direito mediante processos inventivos característicos da jurisprudência, o que é desmentido por qualquer um que efetivamente pratique o direito – não foi este o caso de Deleuze. Nessa perspectiva, carece de sentido a crítica feita por Sutter a Dworkin, ainda que ele mereça ser duramente criticado por outros motivos que aqui não podem ser desenvolvidos. Com efeito, a partir de sua leitura de Deleuze, Sutter reprova a distinção de Dworkin entre casos fáceis e casos difíceis, argumentando que no fundo todos os casos são difíceis, pois “todos demandam tesouros de invenção para chegar a nunca recorrer aos ‘princípios de justiça’” (p. 110). Tal leitura é duplamente equivocada, dado que não se pode negar o caráter quase fabril e maquinal da produção judiciária hoje, quando se julgam diariamente milhares de casos idênticos mediante a popularmente conhecida técnica do “recorta e cola”. O que há de inventivo na ação de um juiz que, tendo um certo número de sentenças pré-fabricadas em seu computador, simplesmente troca os nomes das partes e emite milhares de decisões? E isso não é a exceção, mas a regra na prática jurídica, dado que ocorre também com advogados, promotores, assessores etc. Onde está o “tesouro de invenção” quando um juiz decide exatamente da mesma maneira 5.000 processos de servidores públicos federais que não receberam uma verba qualquer prevista em lei?

Essas perguntas retóricas são de certa maneira respondidas pelo próprio Sutter no segundo dos apêndices do livro – Sobre diversas interpretações da filosofia do direito de Deleuze –, ao sustentar que os julgamentos dos juízes podem se tornar formas do julgamento em geral. Tal se dá quando triunfa o direito reduzido a lei, esse pernicioso universal abstrato-racionalizante contra o qual lutam tanto Deleuze quanto Sutter (p. 154). Mas agora caberia uma pergunta não retórica, e sim provocativa: em que sentido o suposto “tesouro de invenção” cotidiana dos juízes se relaciona a essa redução da prática jurídica à imagem da lei, puramente representativa e muito pouco expressiva? Não há resposta para essa questão decisiva no texto de Sutter. E, como dissemos, há mais um equívoco em seu reproche dirigido a Dworkin, já que os juízes nunca se esquivam de recorrer aos “princípios de justiça”, tendo antes especial apreço por eles, pois com isso aumentam exponencialmente seu poder discricionário, como já demonstrado por uma extensa literatura especializada a que já fiz referência em outro texto (MATOS; SOUZA, 2019). É exatamente quando invocam princípios que os juízes se tornam – justificadamente, segundo entendem – “criativos”, e não ao decidir causas rotineiras. Tudo isso é banal e quotidiano para qualquer um que pratique o direito real em qualquer lugar do mundo.

Evidentemente, a mera atualidade empírica dos profissionais do direito não pode servir como critério último para pensar o direito, eis que há o campo dos possíveis e dos virtuais, mas isso não significa que a prática do direito tal como ela se desenvolve aqui e agora possa ser simplesmente desconsiderada. De fato, a singularização, o pensamento por meio de casos e a multiplicação que Deleuze louva na jurisprudência só são possíveis exatamente em razão das conexões intrínsecas do direito com outras dimensões, que não são meramente secundárias, mas que o compõem, de modo a transformá-lo em multiplicidade multiplicante. Tal ocorre, por exemplo, no direito romano, no qual a intensa inventividade dos jurisprudentes imperiais só foi possível mediante uma dialética de confronto e absorção do fas (“direito religioso”) pelo ius (“direito jurídico”), eis que a casuística jurisprudencial é ao mesmo tempo uma resposta direta e uma continuação consciente e crítico-inventiva do antigo direito formular da época arcaica. Ao desconsiderar esse caráter mimético e absorcivo de todo direito, que sempre se multiplica e se singulariza porque é impuro, Deleuze acaba por propor um pensamento do direito que, apesar de nunca citar Kelsen, acaba sendo muito mais asséptico do que qualquer teoria pura do direito, ao defender a ideia de que ao jurista interessa apenas a forma e suas potências de singularização e multiplicação. É curioso notar então que Deleuze chega a algo como uma teoria pura do direito sem teoria.

Todavia, o grande problema do pensamento jurídico de Deleuze – seu terceiro limite –, que Sutter reproduz ao não lhe dedicar qualquer reparo, é sua quase total desconsideração da dimensão violenta do direito, que só se suspende de forma significativa em sua denúncia aos direitos humanos, tema infelizmente pouco explorado no ensaio ora comentado, tal como registrei acima. É bem verdade que, no último parágrafo do seu livro, Sutter afirma que a filosofia do direito de Deleuze é uma filosofia sem psicotrópicos, ou seja, despojada de “substâncias” como a lei, a justiça ou a violência, das quais os filósofos adoram abusar para definir o direito e sustentar alternativamente a candura ou a podridão da humanidade (p. 124). Segundo entendo, reduzir a dimensão da violência a mero psicotrópico a ser afastado mediante um rápido gesto não resolve a questão. Ao contrário, revela sua centralidade e inultrapassabilidade.

Com efeito, parece escapar a Deleuze que o direito não é apenas uma prática social que se traduz em operações inventivas (atuais, possíveis ou virtuais, pouco importa) que se multiplicam e se singularizam, pois as práticas jurídicas não são como as demais práticas sociais, eis que envolvem necessariamente a violência enquanto dimensão constitutiva. A grande armadilha do direito – na qual Deleuze parece cair e a que Sutter não dedica nenhuma reflexão – está na separação da instância que diz o direito e a instância que o aplica violentamente, tal como demonstrou Robert Cover em um brilhante e justamente célebre artigo intitulado Violência e a palavra, publicado pela primeira vez em 1986, que já começa com esse impactante parágrafo:

A interpretação jurídica tem lugar em um campo de dor e morte. Isso é verdadeiro em vários sentidos. Os atos de interpretação jurídica sinalizam e ocasionam a imposição de violência sobre outros: um juiz articula seu entendimento de um texto e, como resultado, alguém perde sua liberdade, sua propriedade, seus filhos ou até mesmo sua vida. As interpretações no direito também constituem justificativas para a violência que já ocorreu ou está prestes a ocorrer. Quando os intérpretes terminam seu trabalho, frequentemente deixam para trás vítimas cujas vidas foram despedaçadas por essas práticas, organizadas e sociais, de violência. Nem a interpretação jurídica, nem a violência que ela ocasiona, podem ser propriamente entendidas separadamente. Esse é um fato óbvio, embora a crescente literatura que argumenta a favor da centralidade das práticas de interpretação no direito tranquilamente o ignore (COVER, 2019, p. 2).

Assim, a “exculpação” do juiz diante de qualquer crítica ao caráter violento do direito encontra seu perfeito símile na justificação dos órgãos executores, segundo os quais apenas cumprem o que foi decidido. A máquina do direito só pode funcionar, explica Cover, porque aqueles que decidem se justificam dizendo que não praticam qualquer violência e os que executam o direito praticando violência se justificam dizendo que eles não decidem. Em ambos os casos, decisão e aplicação, está presente a multiplicidade casuística e a singularização que tanto empolgam Deleuze e Sutter, a ponto de concluir que os juristas, muito mais do que os filósofos, são os grandes inventores (p. 125).

Ora, entendo que a invenção e a multiplicação do direito se dão fundamentalmente como invenção e multiplicação da violência, aspecto que não pode ser simplesmente desconsiderado. Aqui, mais uma vez, como sói acontecer nas relações entre a América Latina e a Europa, parece que fatores geopolíticos, históricos e culturais determinam visões diferentes, dado que tanto Deleuze como Sutter são europeus que experimentam o direito muito mais a partir de uma dimensão de integração do que de oposição à sociedade, ainda que, obviamente, não se trate de algo perfeito. Por outro lado, em países periféricos, coloniais e estruturalmente conflagrados como o Brasil, o direito sempre foi experimentado como um privilégio das elites, sendo dificilmente manejável para garantir mínimos existenciais à maioria das pessoas, surgindo na maior parte das vezes como violência autofundada e multiplicadora. Apenas para ficarmos com dois exemplos meio surrealistas, é difícil negar o caráter violento de um direito como o brasileiro, que permite coisas tão grotescas como um simples juiz de primeira instância suspender em todo o país o funcionamento de um dispositivo como o WhatsApp ou, muito pior, tornar inelegível um pré-candidato de esquerda que todas as pesquisas eleitorais indicavam como o favorito para ocupar a presidência da república após as eleições de 2018. Mais inacreditável ainda é o fato de esse mesmo juiz ter se alçado à posição de Ministro da Justiça no governo de extremíssima direita que ele ajudou a eleger com suas decisões. Aqui não se trata de multiplicação e de singularização do direito, muito menos dos problemas (legalismo, naturalismo, consensualismo e institucionalismo) que Deleuze aponta – de resto, com muita pertinência – à prática axiomática do direito moderno, mas de uma consequência do fato de o direito operar como esfera de violência hierarquizada e separada da sociedade e, como tal, apresentar-se como autorreprodutor autojustificado de quaisquer decisões (o que Deleuze parece julgar, em última instância, positivo). Tal dimensão só pode ser enfrentada mediante uma séria crítica ao caráter “especialista” dos operadores do direito, que Deleuze elogia de maneira um tanto ambígua. Mas ele não perde a oportunidade de opor a “inventividade” dos juristas à miséria dos filósofos que, para Deleuze, não saberiam trabalhar com a prática, ou seja, com a multiplicação das singularidades que caracteriza a casuística da jurisprudência, de modo que, uma vez equiparado às “inocentes” e salvadoras moças que povoam os universos de Proust, Kafka e muitos outros (pp. 71-72), o direito aparece para Deleuze como “o porvir da filosofia” (p. 116).

Aqui seria aconselhável aplicar Deleuze a Deleuze – e só um filósofo extremamente intenso permite uma operação assim paradoxal, o que se torna ainda mais delicioso depois da leitura do imprescindível ensaio de Sutter – e lembrar que a jurisprudência é algo importante demais para ser deixado a cargo dos juízes que, na expressão do próprio Deleuze, não conformam mais do que um comitê moral de sábios pseudocompetentes. É só dessa maneira, desmonopolizando o uso do direito (e de sua violência, acrescento), que se pode passar do direito à política (DELEUZE, 1992, pp. 209-210). Nessa passagem Deleuze talvez aponte para uma prática do direito que, sem perder seu caráter singular, casuístico e múltiplo – oposta, portanto, ao funcionamento mecânico, conceitual, silogístico e abstrato da lei, que Deleuze e Sutter justamente repudiam –, possa efetivamente se integrar a uma dimensão social mais ampla, de modo que a multiplicação e a singularização se apliquem não apenas ao que e ao como é decidido, mas a quem decide concretamente, conformando, como na metafísica de Deleuze, uma alegre anarquia (coroada?) dos singulares junto aos singulares (DELEUZE, 1985, p. 79). É este o caminho que, apesar de não explorado no ensaio de Sutter, me parece se abrir ao seu final e que merece, tanto por parte do jusfilósofo belga quanto por parte de todos os que se preocupam com a construção de uma an-arquia radicalmente democrática, ulteriores e potentes desenvolvimentos.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Al di là dei diritti dell’uomo. In: AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine: notte sulla politica. Torino: Bolatti Boringhieri, pp. 20-29, 1998.

COVER, Robert. Violência e a palavra. Trad. Maurício Pedroso Flores. Revista da Faculdade de Direito do Sul de Minas, v. 35, n. 2, pp. 1-33, 2019.

DELEUZE, Gilles. Conversações. 1972-1990. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2008.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz B. L. Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 2006.

DELEUZE, Gilles. Les plages d’immanence. In: CAZENAVE, Annie; LYOTARD, Jean-François (eds.). L’art des confins: mélanges offerts à Maurice de Gandillac. Paris: Presses Universitaires de France, 1985.

DELEUZE, Gilles. Sacher-Masoch: o frio e o cruel. Trad. Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.

MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. O pórtico e o fórum: diálogos e confluências entre o estoicismo e o direito romano clássico. Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 98, pp. 295-335, 2008.

MATOS, Andityas Soares de Moura Costa; SOUZA, Joyce Karine de Sá. The structural persistence of nazism in contemporary legal theory and its impact on brazilian legal interpretation. Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, v. 105, n. 4, pp. 484-507, 2019.

SCHIAVONE, Aldo. Ius: l’invenzione del diritto in occidente. Torino: Einaudi, 2005.

SUTTER, Laurent de. Deleuze: a prática do direito. Trad. Murilo Duarte Costa Corrêa. Ponta Grossa: Editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa, 2019.

Sobre o autor

Andityas Soares de Moura Costa MatosDoutor em Direito e Justiça pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, Brasil). Pós-Doutor em Filosofia do Direito pela Universitat de Barcelona (Catalunya). Doutor em Filosofia pela Universidade de Coimbra (Portugal). Professor Associado de Filosofia do Direito e disciplinas afins na UFMG. Autor de Filosofia radical e utopias da inapropriabilidade: uma aposta an-árquica na multidão (Fino Traço, 2015) e Representação política contra democracia radical: uma arqueologia (a)teológica do poder separado (Fino Traço, 2019). Coautor na Espanha, com Francis García Collado, de Mas allá de la biopolítica: biopotencia, bioarztquía, bioemergencia (Documenta Universitaria, 2020) e El virus como filosofía/La filosofía como virus: reflexiones de emergencia sobre la pandemia de COVID-19 (Bellaterra, 2020). E-mails: vergiliopublius@hotmail.com e andityas@ufmg.br. Mais artigos em: https://ufmg.academia.edu/AndityasSoares
O autor é o único responsável pela redação da resenha.


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