Resumo: A quarta revolução tecnológica criou ambiente envolto por grandes promessas e significativos riscos, em que despertam tensões socioestruturais. Vocacionado a converter novidades em lucro, o sistema econômico se adaptou e, a partir de um modelo de negócios em que o comportamento humano se torna a principal mercadoria, pôs-se a expandir desenfreadamente. Com lastro no referencial teórico da teoria dos sistemas sociais, o presente artigo almeja perseguir e compreender como e a partir de quais estratégias o sistema jurídico poderá cumprir com a sua função de estabilizar as expectativas normativas e cognitivas da sociedade.
Palavras-chave: Capitalismo da vigilância, Proteção de dados, Sistemas sociais.
Abstract: The fourth technological revolution created an environment of great promises and significant risks, in which socio-structural tensions arouse. Used to convert novelties into profit, the economic system adapted and, based on a business model in which human behavior became the main commodity, it began to expand unbridled. Based on the theoretical framework of the theory of social systems, this article aims to pursue and understand how and from which strategies the legal system can fulfill its function of stabilizing society's normative and cognitive expectations.
Keywords: Surveillance capitalism, Data protection, Social systems.
Artigos
Autodeterminação informacional vs. Regulação do risco: Uma abordagem sistêmica da regulamentação digital
Notice and Consent vs. Risk Regulation: A systemic approach to digital regulation
Recepção: 06 Maio 2020
Aprovação: 11 Janeiro 2021
As descobertas tecnológicas das últimas décadas permitiram a incorporação à vida cotidiana de ferramentas e técnicas até pouco tempo restritas às narrativas de ficção científica, entreabrindo espaço para o conformar da realidade social contemporânea, a chamada sociedade da informação. Este novo ambiente social é marcado, essencialmente, por uma ampla, profunda e crescente mediação das suas relações internas pelo aparato cibernético. Nenhum âmbito ou segmento permanece alheio: as distâncias - geográficas e interacionais - se encurtaram; o modelo econômico, antes amparado na produção de bens, tem o seu foco direcionado para o setor de serviços e de conhecimento; a vida privada, com todas suas particularidades e segredos, pulveriza-se em meio a redes sociais vocacionadas a reduzir todo e qualquer acontecimento a trivialidades compartilháveis; o mercado de trabalho se redefine não apenas pela incorporação das máquinas no sistema produtivo, mas também pela dispersão dos vínculos interpessoais em plataformas que se valem da anonimização como estratégia para potencializar a lei de mercado; o debate público tem o seu espaço quantitativa e qualitativamente modificado pela abertura do palanque a atores e pautas antes marginalizados - quando não excluídos.
O estado de coisas contemporâneo não é bom ou mau em si mesmo. É, porém, essencial e perigosamente disruptivo: suas potencialidades podem se traduzir em significativas benesses sociais, mas introduzem correlatos desafios e riscos. Assimetrias e tensões internas à sociedade são intensificadas em razão da maior ou menor aptidão dos diversos sistemas sociais em lidar com o instrumentário tecnológico. O sistema econômico, em particular, naturalmente atento às inovações do ambiente social - e ao seu potencial aproveitamento financeiro -, demonstra extrema habilidade no trato do mundo digital; aproveita-o para fazer valer o seu programa expansionista, apropriando-se de espaços e possibilidades antes pautados por outros discursos. Algo distinto, porém, ocorre com o direito, que, direcionado à estabilização do convívio social, assume postura muito mais passiva, pouco afeita à velocidade com que as demandas cibernéticas se apresentam.
No presente artigo, focar-se-á nas assimetrias entre os sistemas do direito e da economia, no intuito de observar as tensões ínsitas à regulamentação da atividade de coleta, armazenagem e tratamento de dados privados nas redes de conexão tecnológicas, e, a partir disto, propor estratégias para estabilizar os reclames dos diversos âmbitos sociais em torno da matéria.
A proposta do presente artigo reclama a observação do sistema jurídico de um ambiente social hipercomplexo, marcado pela - crescente - pluralidade e fluidez de suas estruturas e relações internas, conhecido como sociedade da informação. Tal empreitada somente se afigura viável se superadas as premissas fundamentais da epistemologia moderna, que, ancorada na filosofia do sujeito, não apenas propunha o recurso à razão humana como estratégia de descobrimento / assenhoreamento do mundo, mas também a equiparação da sociedade à figura de um macro-sujeito, guiado por racionalidade assemelhada à dos seus indivíduos. Em tal modelo, a sociedade termina por se traduzir em um continuum dos seres humanos - seu pilar fundamental.
Foi a própria realidade histórica que se encarregou de evidenciar a ingenuidade do arcabouço conceitual da modernidade. Como prova de sua inaptidão para a autoimposta missão de orientar, predizer ou, até mesmo, compreender a sociedade e seu curso evolutivo, tem-se a emergência - e prevalência -, a partir da segunda metade do séc. XX, de concepções epistemológicas que, embora ancoradas em matizes diversos1, adotam, como propósito comum, a superação das premissas da filosofia do sujeito.
Dentre as mais refinadas formulações, identifica-se o modelo dos sistemas autopoiéticos, cujas bases sociológicas foram delineadas por Niklas Luhmann. Convencido de que “la sociedad no pesa lo mismo que el total de los hombres, y no cambia su peso por cada uno que nazca o por cada uno que muera” (LUHMANN, 2006, p.13), o sociólogo e jurista alemão se vale de diversificado referencial teórico para perseguir “(i) um conceito de cognição independente da pressuposição do indivíduo racional e (ii) um conceito de auto-referência para o objeto, que não siga o modelo da consciência subjetiva” (BACHUR, 2017, p.261)2.
De partida, a teoria dos sistemas sociais incorpora os pressupostos da viragem linguística da primeira metade do século XX e garante que o lugar de destaque do fenômeno social migre dos indivíduos - ou de suas ações - para aquilo que efetivamente traduz interação: a comunicação - alçada ao posto de unidade primordial da sociedade. Sociedade é comunicação, nada mais do que comunicação3. Esta, contudo, não se confunde nem se delimita aos / pelos indivíduos envolvidos no processo dialógico. Comunicar não é um ato ou ação, mas um processo que sintetiza a seleção, a partilha e a compreensão de informação; nem o alter, o agente que deseja informar, nem o ego, aquele a quem a informação é dirigida, conduzem a operação ou suas consequências. Embora os agentes individuais sirvam de meio para o fluxo linguístico e ostentem expectativas de sentido, sua efetiva delimitação resulta de operação hermética e autológica - que, de modo autorreferenciado e recursivo, decide por uma dentre inesgotáveis possibilidades interpretativas. “Processos psíquicos e sociais coexistem; pareiam-se por sincronia e coevolução, mas sem sobreposição de suas operações. Nada há senão simetria nas construções da realidade: processos psíquicos produzem construções mentais da realidade, e processos sociais produzem construções comunicativas da psique” (TEUBNER, 1989, p.737)4.
Importante compreender, ainda, que, dentro do paradigma sociológico luhmaniano, a sociedade moderna, plural e hipercomplexa, resulta de uma construção contingencial e aleatória: nem houve guia para direcionar-lhe os rumos, nem se pode identificá-las como resultado inevitável. A sociedade, como comunicação que é, viabiliza-se / estrutura-se a partir da conformação - espontânea ou organizada - de sistemas sociais de sentido, funcionalmente diferenciados ante a necessidade de reduzir a complexidade do mundo / ambiente e que operam por meio da reconstrução fragmentada - e orientada a um específico problema / tema - da realidade.
“Na sociedade funcionalmente diferenciada [...] distinguimos se uma conversa é sobre o belo, uma prova teórica, o lícito, o crédito financeiro, titulação, governança e fé [...] e, por consequência, pautamos a conversa pela complexidade, respectivamente, dos sistemas sociais: arte, ciência, direito, econômica, educação, política ou religião.” (SILVA, 2016, p.59)
Os sistemas sociais não são meras representações analíticas ou simplificações da realidade; tratam-se, antes, de estruturas ou unidades comunicativas que se autoconstituem a partir da diferenciação com o ambiente5. Sua operação é circular e reflexiva, evidenciando-lhes a autopoiese. Em seu processo de atuação, os sistemas observam o ambiente e selecionam os inputs que lhes são relevantes e, a partir suas próprias referências - experiências pretéritas, códigos e programas -, reconstroem-lhes como comunicação / sentido. Se, em um olhar mais breve, esta operação indica um enclausuramento sistêmico, fechado em suas autorreferências, a análise mais acurada revela uma abertura cognitiva (heterorreferência), identificada na ambivalência do ato de seleção: ao filtrar os inputs ambientais, distingue-se não apenas o que é sistema, mas, por exclusão, também o que é ruído ambiental - informações que, embora descartadas como irrelevantes, foram observadas e que, em futuras observações / seleções, podem vir a ser traduzidas em sentido. Disto, deriva que os sistemas sociais não dialogam ou interagem; restringem-se, cada qual, à auto-observação e à observação do seu entorno.
A troca de informações entre sistemas ocorre apenas de forma mediada. Apesar de os diversos sistemas não se comunicarem, operam e integram um mesmo ambiente, de sorte a permitir que um mesmo evento assuma sentido em mais de uma esfera. Isto é o que autoriza pensar em alguma espécie de implicação correlata - e, aqui, há de se advertir para a impropriedade de confundir correlação e causalidade. O sentido, contudo, será, sempre e necessariamente, (auto)produzido por cada sistema, em consonância com seu código e programa de operação: a arte operará um código binário que distingue o belo do feio em uma realidade; a ciência anteporá este mesmo estado de fato ao par verdadeiro e falso; o direito, ao lícito e ao ilícito; a economia, ao ter e ao não ter; a política, a governo e a oposição; etc. É neste contexto que se formam espécies de zonas plurissistêmicas, chamadas de acoplamentos estruturais, que se encarregam de viabilizar o fluxo - indireto, por meio de irritações - de comunicações diferenciadas: é o caso da Constituição, que assume significância tanto para o sistema do direito quanto para o da política; do orçamento público, afeito à economia e à política; ou dos contratos privados, estruturais para o direito e para a economia.
A exposição epistemológica prévia se revela essencial à delimitação das bases essenciais à análise (rectius: observação) do direito de um ambiente sociocibernético, extremamente fluido e complexo. Os referenciais clássicos - ainda hoje muito difundidos na doutrina jurídica pátria -, adstritos a ideais iluministas, tendem a reduzir o direito a um objeto absolutamente segregado de seu meio6. O problema de pesquisa proposto, consistente em perscrutar a adequação, os limites e as possibilidades de modelos de regulamentação normativa, reclama a adoção de um ponto de vista diverso, apto a retratar o sistema jurídico (d)e sua complexidade ambiental. Não basta enxergar a árvore; precisa-se de um ponto de vista que permita contemplar a floresta. Exatamente por isto é que se parte das referências legadas pela teoria dos sistemas sociais (de sentido) autopoiéticos para descrever o direito e seu modus operandi.
O direito, na perspectiva delineada por Niklas Luhmann, é um específico sistema da sociedade moderna, que, assim como os demais, existe apenas e tão somente enquanto comunicação7 - “e, como tal, reflete o social ao mesmo tempo em que cria o social” (SILVA, 2016, p.111). Trata-se, mais especificamente, de um âmbito que assumiu relevância - ao ponto de se diferenciar do seu entorno - com o escopo de generalizar e estabilizar expectativas normativas temporais, objetivas e sociais, de sorte a reduzir o grau de incertezas ínsitas à interação social e permitir atuações - pretensamente - coordenadas e complexas, pautadas em confiança8. “O direito torna possível saber quais expectativas encontrarão aprovação social e quais não. Havendo essa certeza de expectativas, podem-se encarar as decepções da vida cotidiana com maior serenidade, ou ao menos se tem a segurança de não cair em descrédito em relação a suas expectativas.” (LUHMANN, 2016, p. 2047-2050).
Apesar de funcionalmente orientado à estabilização de expectativas normativas, o sistema jurídico guarda íntima relação também com as chamadas expectativas cognitivas. Enquanto as primeiras se caracterizam por consubstanciar aspirações contrafáticas - e, neste sentido, preservam-se mesmo quando episódica e casuisticamente frustradas -, as últimas revelam o compromisso sistêmico de se manter atento e em contato com o entorno / ambiente do qual se diferencia9. Ambas as dimensões são significativas, prestando-se à ilustração do movimento de fechamento operacional (autorreferência) em meio a abertura cognitiva (heterorreferência) do direito. O sistema jurídico, ao operar, recorre às suas próprias experiências pretéritas e programas, (re)construindo a realidade em função de uma lógica estabilizadora (expectativas normativas). Ao fazê-lo, contudo, vale-se de um filtro ambiental extremamente sensível, capaz de lhe permitir certa convergência com os reclames ambientais (expectativas cognitivas). Sem isto, não seria possível garantir a continuidade do direito: “um sistema não adaptado ao seu entorno dedica tanta energia para funcionar que tende a desaparecer” (SILVA, 2016, p.113) ou, pelo menos, a perder funcionalidade, pela expansão de programas operacionais de outros sistemas10.
Os acoplamentos estruturais, compreendidos como organizações ambientais com significância em mais de um sistema social, são essenciais à operação do direito. É a partir deles que o sistema jurídico consegue “interagir” - ainda que indiretamente - com o ambiente social - e, por via ainda mais reflexa, também com outros sistemas -, seja para se fazer notado na realidade (generalizando expectativas normativas), seja para atualizar os seus próprios sentidos, mantendo a essencial convergência com os reclames vigentes (expectativas cognitivas). Ou seja, a “interação” intersistêmica - reclamada pelo sistema jurídico - se produz de forma mediada e incipiente, a partir de irritações internas às zonas de acoplamentos estruturais, cuja eventual repercussão em um sistema somente se dará em conformidade com seu próprio código e programas11. A título de ilustração, pode-se tomar o Estado Constitucional, que serve de acoplamento estrutural entre política e direito. Se, de um lado, a política integra o entorno do direito, irritando-o com mudanças legislativas, o direito compõe, também, o ambiente político, irritando-o com regras para processos eleitorais, procedimentos e limites para a atividade legiferante, etc.
A teoria dos sistemas autopoiéticos de Niklas Luhmann se presta, dentre outras coisas, para jogar luzes sobre a forma paradoxal como se dá o fluxo de informações entre o direito e seu entorno. Gunther Teubner enfatiza bem o ponto, ao identificá-lo como uma armadilha epistêmica do direito moderno, evidenciada, sobretudo, no momento em que se reclama a decisão de conflitos - sejam estes litigiosos, legislativos ou doutrinários. A tensão provocada pela exigência de que a realidade jurídica seja produzida de forma autônoma (por autorreferência), mas sem se fechar para os conflitos (irritações) produzidos por outros discursos da sociedade (heterorreferência) (TEUBNER, 1989, p.745), não pode se resolver com a opção por um dos extremos: nem se pode outorgar ao direito plena autoridade epistêmica para a construção da(s) realidade(s) sistêmica(s) envolvida(s), tampouco se há de confiar integralmente tal responsabilidade para qualquer outra esfera. O caminho a ser trilhado remete à identificação das linhas fundamentais do procedimento e método de cognição que viabiliza o fluxo de informação entre o direito e outras esferas sociais (TEUBNER, 1989, p.751)12.
A missão de distinguir os dilemas e padrões inerentes à reciprocidade de implicações das diversas realidades sistêmicas (hetererreflexividade), contudo, afigura-se árdua e revolve explorações outras, que se propõem a ultrapassar a teoria luhmanianna.
Nesta linha é que Marcelo Neves, trabalhando o conceito de racionalidade transversal, cunhado por Wolfgang Welsch, aponta uma maior intensidade / sensibilidade do modelo de intercâmbio de informações entre os sistemas sociais de sentido. Para além das irritações recíprocas em meio às zonas de acoplamento estrutural, o próprio medium linguístico se presta a difundir especificidades de cada aparato sistêmico-operacional e de sua racionalidade para outras esferas (NEVES, 2012, p.34-51). Trata-se de diretriz apta a “potencializar a abertura cognitiva e a heterorreferência do sistema. A presença de razões transversais nos acoplamentos seria, portanto, capaz de amplificar a abertura cognitiva do sistema e provocar ressonâncias nas variações e seleções a serem adotadas em seu interior” (CARNEIRO, 2019, p.20-21)13.
Em convergência com esta trajetória, colocam-se, também, os esforços feitos para a formulação de uma teoria ecológica do direito, a enfatizar as preocupações que o sistema há de desenvolver com o seu entorno14. O “diálogo” entre um sistema e seu ambiente haverá de ser pautado por uma racionalidade específica, orientada pela lógica da preservação. Esta razão intersistêmica pode ser reconduzida à uma noção ampliada de sustentabilidade, típica do Direito Ambiental, a reclamar planejamento. Assim como se revela essencial preservar os recursos bióticos e abióticos para a sobrevivência e desenvolvimento das gerações futuras, também o direito há de se preocupar com a preservação do seu ambiente, a sociedade - e com os demais sistemas que engloba. É essencial, que, ao promover a regulamentação de condutas, o raciocínio jurídico se abra - cognitivamente - aos outros sistemas, adotando estratégia de comunicação que permita ao âmbito alvejado assimilar as diretrizes15. É exatamente o que Gunther Teubner explica, ao vincular o princípio da justiça de uma sociedade globalizada / fragmentada: o princípio da justiça, sobre o qual se encontram tais normas constitucionais descentralizadamente geradas, deveria ser uma espécie de princípio de sustentabilidade, que originalmente foi desenvolvido como uma limitação do crescimento econômico para a proteção do ambiente natural, tendo em vista as condições futuras de vida. O desafio atual é, no entanto, que o princípio da sustentabilidade deva ser generalizado de duas maneiras. Sustentabilidade não pode mais se limitar à relação da economia com a natureza, ou seja, à relação apenas de um sistema social com um de seus ambientes. O princípio da sustentabilidade deve ser repensado para além da economia, levando-se em conta todos os regimes funcionais. Ao mesmo tempo, deve incorporar, para além de apenas o ambiente natural, todos os ambientes relevantes dos regimes. Ambiente deve ser pensado aqui no sentido mais amplo possível, como ambiente natural, social e humano dos regimes transnacionais (TEUBNER, 2016, p.292)
Em meio a esta preocupação sistêmica com a sustentabilidade, Wálber Araujo Carneiro (2018) destaca o papel a ser desempenhado pelos direitos fundamentais, de grande serventia para administrar a tensão entre as expectativas normativas e as expectativas cognitivas antepostas ao sistema jurídico. Tal qual eclusas - comportas que servem ao represamento e liberação do fluxo de água de um sistema hidroviário, tornando-o navegável -, os direitos fundamentais apresentam-se como mecanismos (de acoplamento estrutural) imbuídos da missão de estabilizar a assimetria entre as expectativas (normativas e cognitivas) e o possível, identificado a partir de uma referência à (in)sustenbilidade ambiental. Com isto, supera-se tanto o risco de se aderir a fórmulas teóricas que superestimem as possibilidades dos direitos fundamentais ante o seu entorno, quanto a propostas que os reduzam ao papel de assimilar as pretensões expansivas de outros sistemas parciais da sociedade - e que comprometem a integridade sistêmica do direito16.
Não se tem a pretensão, no presente artigo, de definir os contornos de uma teoria do direito (ou dos direitos fundamentais), mas tão somente o de firmar e esclarecer as bases teóricas a serem utilizadas para enfrentar a questão relacionada com a definição dos modelos de regulamentação propostos para a tutela da privacidade em um ambiente sociocibernético. As referências epistemológicas expostas servirão de guia, na medida em que “a regulação da sociedade [...] não pode ignorar a lógica de reprodução presente no seu ambiente, até porque ali não estão, apenas, as pretensões expansivas motivadas pela cegueira estratégica dos âmbitos organizados dos sistemas sociais” (CARNEIRO, 2018, p.160).
A sociedade da informação é uma comunidade interconectada. Sua própria existência seria impensável sem as redes tecnológicas expansíveis - dentre as quais a Internet assume o papel de grande destaque -, a viabilizar o fluxo imediato e irrestrito de informação por todo o globo terrestre. Isto é que entreabriu caminho para que as mais variadas relações sociais pudessem ser mediadas - quando não integralmente apropriadas - por máquinas com capacidade computacional, proporcionando inúmeras inovações.
As benesses e expectativas criadas fizeram da expansão digital uma diretriz. A tecnologia passa a abarcar, integrar e automatizar, tanto quanto possível e de forma cada vez mais enfática, a realidade, agregando-se-lhe como novo ambiente. Concebido à luz da lógica da programação computacional, na qual catalogar eventos, associando-os ao máximo de informações afins, afigura-se essencial - tanto para supervisionar o funcionamento das rotinas internas quanto para viabilizar o progressivo e constante incremento técnico -, o universo sociocibernético estrutura-se tal qual um banco de dados perene e universal17. Todo e qualquer evento deve ser traduzido para um formato binário, passível de armazenamento e posterior análise: uma transação financeira efetivada por meio eletrônico dá azo a registro digital que eterniza a ocorrência e seus correlatos aspectos, como data, horário, local, valores e sujeitos envolvidos; uma catraca biométrica instalada em determinado prédio, além de controlar o acesso de pessoas, armazena os momentos de entrada e saída de todos por tanto tempo quanto funcione; a dúvida lançada em uma ferramenta de buscas na internet gera não apenas uma resposta, mas eterniza, na forma de dados, o interesse manifestado naquele determinado conteúdo a partir de específica origem.
As novas ferramentas e técnicas conferem, ainda, um ritmo diferenciado aos acontecimentos, impondo perigoso - e constante - flerte com a incerteza e a instabilidade. A ocorrência de eventos aptos a repercutir de forma profunda e derradeira nos mais diversos âmbitos sociais e até mesmo na condição humana não apenas se viabilizam, como se tornam operacionalizáveis em um lapso temporal muito mais curto (SCHWAB, 2017, p.2-3).
O ritmo frenético, conjugado à possibilidade de devassa dos dados digitais, introduzem consideráveis desafios, com exponencial agravamento de riscos, tanto para a sociedade quanto para os indivíduos. Respostas e soluções, neste particular, reclamam preocupações inéditas, ainda pouco desenvolvidas ou articuladas.
Problemático aspecto, especificamente introduzido a partir da consolidação do ambiente sociocibernético, remete ao fato de seus dados não serem utilizados apenas e tão somente para retroalimentar as suas tecnologias constitutivas: servem, também, ao desbravamento da realidade concreta e dos sujeitos nela envolvidos. Os registros digitais fornecem manancial suficiente para investigar eventos e pessoas em graus antes inconcebíveis. Causas, correlações e aspectos que, muitas vezes, passam desapercebidos até mesmo pelos sujeitos diretamente envolvidos tornam-se cognoscíveis. Não é difícil imaginar hipóteses em que isto possa servir a propósitos eticamente questionáveis.
A coleta e análise sistemática de dados praticada pelas empresas não apenas melhora experiências, mas pode também criar exclusões e custos socialmente inaceitáveis. Quando um plano de saúde rejeita uma pessoa ou cobra o dobro da mensalidade por saber que ela tem uma propensão genética a determinadas doenças, começamos a nos preocupar com o que os dados coletados sobre nós podem gerar. Quando as empresas podem saber bem mais do que o currículo dos candidatos a uma vaga de emprego e podem fazer escolhas ideológicas a partir da análise da navegação na internet de todos os pretendentes a um posto de trabalho, começamos a ver que talvez nem toda coleção e análise de dados seja realizada em benefício de todos, mas apenas de alguns. (SILVEIRA, 2017, l.96-101)
Estas tensões são intensificadas por assimetrias estruturais, firmadas em razão da maior ou menor aptidão de determinados segmentos e sistemas para lidar com o aparato cibernético. Exemplo que deixa bem evidente da concorrência entre setores pode ser identificado nas chamadas fake news - notícias sabidamente falsas, estratégica e deliberadamente difundidas com o escopo de fazer prevalecer pautas ou interesses específicos -, capazes de corromper não apenas a dimensão política da sociedade, mas também os sistemas parciais da ciência e do direito.
Diversas são as ilustrações possíveis, mas, neste trabalho, focar-se-á na específica relação intersistêmica entre economia e direito. De um lado, o sistema econômico revela extrema habilidade no trato do ambiente digital, fazendo valer o seu programa expansionista: apropria-se dos espaços e possibilidades sócio-cibernéticas para consolidar uma nova lógica de acumulação, firmada em torno da apropriação massiva dos dados disponíveis nas estruturas digitais. Trata-se da construção de um novo e peculiar modelo econômico, a que Shoshana Zuboff alcunhou capitalismo da vigilância.
De outra banda, a implementação - ainda em curso - deste modelo exploratório conta com a dificuldade de articulação do direito em torno das expectativas - normativas e cognitivas - que lhe são direcionadas. Pouco afeito à velocidade com que os reclames se põem, o sistema jurídico se reconduz - e, não raro, parece condenado - a um cenário de déficit de regulamentação, seja pelo não preenchimento oportuno de espaços, seja pelo preenchimento inadequado ou insuficiente destes18. “Os capitalistas de vigilância exploram de forma hábil um lapso na evolução social, uma vez que o rápido desenvolvimento de suas habilidades de vigiar para o lucro em muito suplantou a compreensão pública e o eventual desenvolvimento de leis e regulamentações legais” (ZUBOFF, 2018, p.48).
A difusão desta lógica de aproveitamento econômico de dados ampara-se na ampli(fic)ação das técnicas de mediação tecnológica, com o propósito de garantir ubiquidade ao ambiente digital. Recorre-se a estratégias diversas para consolidar um estado de vigilância constante e perene, em que a captura dos eventos concretos, para serem traduzidos em dados digitais, ocorre de forma cada vez mais ampla e plena. É inevitável comparar tal realidade com a imagem do Big Brother, elucubrada por George Orwell. A verdade, porém, é que, na vigente sociedade digital, a fiscalização estrutura-se a partir de um modus operandi bem mais refinado e sutil, em que, ao invés de uma dominação forçada e centralizada, fragmentam-se os centros de captura19 e busca-se a submissão autoimposta20. Shoshna Zuboff sugere que, para compreender a sociedade de vigilância assente, substitua-se a figura do fiscal central de Orwell pela do Big Other:
Essa nova arquitetura configura-se como um ubíquo regime institucional em rede que registra, modifica e mercantiliza a experiência cotidiana, desde o uso de um eletrodoméstico até seus próprios corpos, da comunicação ao pensamento, tudo com vista a estabelecer novos caminhos para a monetização e o lucro. O Big Other é o poder soberano de um futuro próximo que aniquila a liberdade alcançada pelo Estado de direito. E um novo regime de fatos independentes e independentemente controlados que suplanta a necessidade de contratos, de governança e o dinamismo de uma democracia de mercado. O Big Other é a encarnação, no século XXI, do texto eletrônico que aspira abranger e revelar os amplos fatos imanentes de comportamentos econômicos, sociais, físicos e biológicos.
A complementação da lógica exploratória complementa-se a partir da estratégia utilizada para extrair valor econômico dos dados digitais, convertendo-os em mercadoria. Em um primeiro instante, buscou-se utilizar o manancial de informações disponibilizadas para formular perfis de consumo, para o específico fim de ampliar as potencialidades publicitárias por meio de marketing direcionado: ao invés de pagar para expor o produto para vasto público, em parte absolutamente desinteressado, foca-se em segmentos predispostos à aquisição. Isto, contudo, logo evoluiu para uma dimensão muito mais problemática, em que, com lastro em estudos da neurociência e do behavorismo, os dados passam a ser explorados como alternativa para a indução de comportamentos21.
Com a nova lógica de acumulação do capitalismo de vigilância, uma quarta mercadoria fictícia emerge como característica dominante da dinâmica do mercado no século XXI. A própria realidade está passando pelo mesmo tipo de metamorfose fictícia por que passaram as pessoas, a natureza e a troca. A “realidade” é agora subjugada à mercantilização e à monetização e renasce como “comportamento” Os dados sobre os comportamentos dos corpos, das mentes e das coisas ocupam importante lugar em uma dinâmica compilação universal em tempo real de objetos inteligentes no interior de um domínio global infinito de coisas conectadas. Esse novo fenômeno cria a possibilidade de modificar os comportamentos das pessoas e das coisas tendo por objetivo o lucro e o controle. Na lógica do capitalismo de vigilância, não há indivíduos, apenas o organismo mundial e todos os elementos mais ínfimos em seu interior. (ZUBOFF, 2018, p.56)
Não é difícil perceber o risco. Na perspectiva dos indivíduos, tem-se não apenas a potencial devassa das suas vidas privadas, mas a possível perda de liberdade, na medida em que a partir da análise e cruzamento de vestígios digitais pode-se, além de identificar eventos específicos em que se envolveu, catalogar hábitos, gostos e opiniões, revelando-lhe aspectos existências que talvez até mesmo o sujeito objeto desconheça. No plano dos sistemas sociais, os perigos se identificam em torno das tensões e assimetrias despertadas. Não apenas se vislumbra, internamente ao sistema econômico, a ascensão de uma nova lógica de acumulação, em que o domínio e acesso às estruturas cibernéticas - e, por consequência, aos dados nelas armazenados - importa, como se enfrenta uma possível crise de expectativas do direito.
O sistema jurídico, ante a dificuldade de conviver com o entorno sociocibernético, tem se revelado inapto ao exercício de sua função de generalizar expectativas congruentes no ambiente, ao ponto de pôr em risco a própria sustentabilidade sistêmica. A falha no contingenciamento do movimento expansionista do mercado se torna bem flagrante quando se atenta para o modus operandi das grandes empresas de tecnologia, consistente em fazer incursão em âmbitos privados e não protegidos até que alguma resistência seja encontrada. Não se pergunta se é possível fotografar pessoas, casas, veículos ou objetos pessoais para a composição de bancos de dados digitais, simplesmente se pega o que quer, contando com a complacência individual ou com a possibilidade de esgotar eventuais adversários no tribunal ou, ainda, de pagar multas que representem investimento negligenciável para retorno significativo (ZUBOFF, 2018, p.30). Identifica-se a insuficiência do aparato jurídico, ainda, quando se constata que, hoje, as dúvidas que circundam a privacidade têm menos a ver com a possibilidade concreta de manter em segredo alguma dimensão da vida privada e mais com o domínio (no sentido de propriedade, a englobar as prerrogativas de usar, fruir e dispor) dos dados digitais. Pertenceriam estes àqueles indivíduos concretos, cuja atuação os originou, ou à empresa, que investiu em tecnologia e que controla a estrutura que os constituiu e os armazena? Mais do que respostas concretas para estes problemas, busca-se, por meio deste artigo, evidenciar a relevância do arcabouço epistemológico de uma teoria sistêmica / ecológica para a análise do direito - e, especialmente, do direito de um ambiente sociocibernético, hipercomplexo e fluido.
Debate que traduz de forma bastante clara o momento de dificuldade do direito de lidar com o ambiente sociocibernético é aquele travado entre os modelos de regulamentação para proteção de dados pessoais. Em termos de realidade ocidental, existem duas principais propostas de enfrentamento da questão: a primeira, mais tradicional, gestada nos Estados Unidos da América, e que parte de uma lógica de empoderamento individual, a que se chamará de modelo do autodeterminação informacional (notice and consent); e a segunda, deflagrada mais recentemente, com o advento do marco legal europeu - a General Protection Data Regulation (GPDR) -, em que a matéria aflora como questão social, submetendo-se ao que se chamará de modelo de regulação de risco.
De largada, importa registrar que o modelo da autodeterminação informacional, construído na tradição do common law norte-americano, serviu como primeira referência histórica, apresentando-se, hoje, como modelo dominante. Responsabiliza-se, igualmente, por contribuições significativas para o debate como um todo: é, aqui, por exemplo, que se reconstrói a noção de proteção da privacidade, que deixa de ser um imperativo de ordem individualista, identificada com o direito de ser deixado sozinho, e assume a feição de direito fundamental, representativo de uma dimensão existencial e significativa para o exercício das liberdades individuais22.
As características principais deste modelo podem ser sintetizadas em torno de quatro estratégias principais: (i) positivação de direitos individuais relacionados aos processos de coleta e tratamento de dados pessoais; (ii) crença no empoderamento individual viabiliza a implementação de pautas políticas; (iii) contratualização do consentimento, em torno da qual se resguarda o direito à informação clara acerca da amplitude, riscos, segurança e finalidade da coleta / dados; (iv) hipossuficiência do cidadão (ZANATTA, 2017, p.180).
O modelo de regulação de riscos, por seu turno, toma por referência a experiência normativa com questões coletivas, como aquelas que ameaçam a saúde com relação a medicamentos, alimentos industrializados e poluição, de sorte a estruturar três pautas principais: “(i) reunião de informação e cognição de riscos, (ii) criação de regras e padrões de conduta e (iii) enforcement e monitoramento da modificação do comportamento social.” (ZANATTA, 2017, p.181).
Ao contrapor os modelos, é comum se partir da premissa de que, enquanto a autodeterminação informacional confia no instituto da responsabilidade civil como mecanismo (de acoplamento estrutural com o entorno) para garantir a preservação dos direitos individuais, em uma regulação ex post, a matriz da risquificação almeja afastar a adversidade mediante a fixação prévia de procedimentos e mecanismos de fiscalização e controle, em uma regulação ex ante.
Embora as diferenças entre os marcos regulatórios sejam evidentes, a análise, a partir de uma perspectiva de sustentabilidade sistêmica, aponta para a incongruência de tratá-los como modelos autoexcludentes. Tratam-se, antes, de propostas complementares, na medida em que, combinadas, afiguram-se hábeis para melhor atender às expectativas normativas e cognitivas firmadas ante as tensões e assimetrias do ambiente sociocibernético.
De um lado, não há como negar a relevância da responsabilidade civil como alternativa para orientar o comportamento do mercado: o impacto jurídico de uma condenação desta natureza é facilmente assimilado pelo código específico da economia, que o identifica como prejuízo. Apesar de geralmente associado com o modelo da autodeterminação informacional, o instituto da responsabilidade civil, exatamente porque se constitui em veículo privilegiado de intercâmbio de informações entre o direito e a economia, não deve ser abandonado para que se adira a uma fórmula de distribuição ex ante de riscos. Ao revés, haver-se-á de manter válida a possibilidade de imputar o dever de os agentes de coleta e tratamento de dados repararem os danos, ainda quando tenham respeitado integralmente seus deveres instrumentais - e, ainda mais, quando os tenham negligenciados.
De toda sorte, a responsabilidade civil, adotada isoladamente como estratégia, não se apresenta como resposta adequada, sobretudo por conta das assimetrias concretas a que não consegue superar. Revolve-se aqui, essencialmente, a problemas estruturais da matéria, que variam desde a dificuldade de identificar a origem de eventuais danos até o problema de quantificar o prejuízo - evidenciado nas indenizações constrangedoramente módicas fixadas ante situações capazes de repercutirem negativamente por prolongado tempo23.
De outra banda, se o modelo da regulação do risco entreabre grandes perspectivas, até por enquadrar a questão como um problema social, aderindo a uma lógica naturalmente mais afeita à da epistemologia sistêmica, desperta também suas próprias dificuldades. Há efetiva possibilidade - incrementada em realidades sociais periféricas, como a do Brasil - de que, ao confiar em estruturas intermediárias da sociedade para veicular, de forma organizada, interesses comuns, termine-se por alijar o cidadão comum de impasses que são caros, “fazendo com que as tensões e ‘negociações coletivas’ ocorram somente entre empresas de tecnologia, autoridade reguladora e entidades civis altamente especializadas” (ZANATTA, 2017, p.190). Contempla-se, nesta mesma linha, também a contraproducente possibilidade de se promover excessiva judicialização, impondo regras e procedimentos complexos e custosos ao ponto de inviabilizar em absoluto os necessários investimentos econômicos.
À guisa de conclusão, reitera-se que, mais do que a busca por soluções concretas e específicas, buscou-se, no presente artigo, destacar a importância de se encarar os problemas jurídicos - e, especialmente, aqueles desdobrados de um ambiente sociocibernético - a partir de uma perspectiva que permita enxergar a sua plena complexidade, ante a qual se revela essencial reconhecer uma dimensão de planejamento.
Nesta perspectiva, o efetivo problema proposto, consistente na identificação do melhor modelo de regulação dos dados privados, quando analisado a partir de uma epistemologia sistêmica e ecológica do direito, aponta para a necessidade de promover o aproveitamento das variadas técnicas disponibilizadas de forma pontual e estratégica, mantendo-se, sempre, aberta a possibilidade de reavaliação, tanto para manter a conexão com os reclames sociais (expectativas cognitivas), quanto para assegurar e potencializar a repercussão pretendida nos demais sistemas sociais - por meio da constante adequação à lógica ínsita aos código e programas que lhes são específicos.
Doutorando em Direito pela Universidade Federal da Bahia; professor da Faculdade Baiana de Direito; membro do grupo de pesquisa "Autonomia e Direito Civil contemporâneo"; advogado. E-mail: gustavo@rlp.adv.br