Resumo: O estudo se propõe a analisar os fatores — tais como a vinculação ao corpus iuris interamericano, o mandado do princípio pro persona, o dever de realização do controle de convencionalidade e o dever de compatibilização do direito interno aos precedentes do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos — que conduzem à vinculação do Supremo Tribunal Federal em reconhecer as minorias sexuais como categoria suspeita de discriminação, de modo a alinhar seu entendimento jurisprudencial aos padrões de proteção destinados às minorias sexuais desenvolvidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, na perspectiva de um constitucionalismo transformador (ius constitutionale commune). Para tanto, tem-se como objetivos principais, inicialmente, explanar sobre as decisões paradigmáticas proferidas pelo STF sobre a matéria entre os anos de 2010 até 2020, que constituem um importante avanço na consolidação e proteção dos direitos desses grupos. Na sequência, busca-se averiguar a respeito do desenvolvimento teórico e jurisprudencial da noção de “categoria suspeita” de discriminação na Corte Interamericana de Direitos Humanos. E, finalmente, analisar a existência de uma vinculação da jurisdição constitucional brasileira a seguir os standards mínimos em matéria de direitos humanos estabelecidos pela Corte IDH, bem como seus potenciais impactos na expansão dessa proteção no Brasil. Preliminarmente, é possível concluir que o Supremo Tribunal Federal poderia reconhecer o status de “categoria suspeita” em relação às minorias sexuais no âmbito de sua atuação, pois o Estado brasileiro, nas suas mais variadas esferas e Poderes, permanece vinculado a seguir aos precedentes fixados pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em razão de reconhecer a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e também devido à eficácia erga omnes atribuída às suas decisões, para além do dever de execução do controle de convencionalidade e pela influência do mandado transformador emanado do projeto do Ius Constitucionale Commune Latino-Americano.
Palavras-chave: Categorias suspeitas de discriminação, Corte Interamericana de Direitos Humanos, Ius Constitucionale Commune Latino-Americano, Minorias sexuais, Supremo Tribunal Federal.
Abstract: The study proposes to analyze the factors - such as the link to the inter-American corpus iuris, the warrant of the pro personae principle, the duty of execution of the conventionality control, and the duty of compatibility of the national law for the precedents of the Inter-American System for the Protection of Human Rights - that lead to the link of the Federal Supreme Court to recognize the sexual minorities as suspect classification of discrimination, aligning its case law understanding to the patterns of protection of the sexual minorities developed by the Inter-American Court of Human Rights, in the perspective of a transforming constitutionalism (ius constitutionale commune). In that regard, the main objectives are, initially, to explain the paradigmatic decisions issued by the FSC on the matter between 2010 and 2020, which constitute an important advance in the consolidation and protection of the rights for these groups. Then, the aim is to ascertain the theoretical and case law development of the “suspect classification” notion of discrimination in the Inter-American Court of Human Rights. And, finally, to analyze the existence of a link of the Brazilian constitutional jurisdiction to follow the minimum standards regarding human rights established by the IHR Court, as well as its potential impacts in the expansion of this protection in Brazil. First and foremost, it is possible to conclude that the Federal Supreme Court could recognize the “suspect classification” status regarding the sexual minorities in the scope of its acting, because the Brazilian State, in its most varied spheres and Powers, remains linked to follow the precedents set by the Inter-American System of Human Rights, by virtue of recognizing the Inter-American Court of Human Rights’ competence and also the erga omnes effectiveness attributed to its decisions, apart from the duty of execution of the conventionality control and by the influence of the transforming warrant emanated from the Latin-American Ius Consitutionale Commune project.
Keywords: Suspect classification of discrimination, Inter-American Court of Human Rights, Latin-American Ius Constitutionale Comune, Sexual minorities, Federal Supreme Court.
Dossiê
Ius Constitutionale Commune: a potencial expansão da proteção das minorias sexuais na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a partir do reconhecimento do status de “categoria suspeita” e da incorporação dos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos
Ius Constitutionale Commune: the potential expansion of the sexual minorities’ protection in the Federal Supreme Court’s case law through the recognition of the “suspect classification” status and the incorporation of the Inter-american Court of Human Rights’ precedents
Recepção: 30 Janeiro 2022
Aprovação: 25 Abril 2022
A luta empreitada pelas minorias sexuais na busca pela concretização da igualdade, dentro da sua dimensão de reconhecimento, tem galgado significativos resultados nessa última década através da atuação do Supremo Tribunal Federal, principalmente no que diz respeito ao papel contramajoritário exercido pela jurisdição constitucional na proteção das minorias socialmente estigmatizadas.
No entanto, no que condiz à expansão da proteção dessas minorias através da incorporação dos padrões mínimos fixados pelo Sistema Interamericano de Proteção aos Direito Humanos, esse ainda é um processo que anda a passos vagarosos na realidade dos julgados do Supremo Tribunal Federal, notando-se a existência de certa relutância no tocante à efetivação de um diálogo interjurisdicional e na execução do controle de convencionalidade por parte do mais alto tribunal brasileiro. Contudo, tomando-se como referência a proposta de desenvolvimento de um Ius Constitucionale Commune Latino-americano (ICCAL), têm adquirido impulso os debates acerca do dever de incorporação dos standards do corpus iuris interamericano pela jurisdição constitucional dos Estados que integram a região, vinculação essa que inclui também o Supremo Tribunal Federal.
Diante disso, tem-se como problema central da pesquisa o seguinte questionamento: no que diz respeito à expansão dos direitos e garantias voltados a proteger as minorias sexuais, há uma vinculação do Supremo Tribunal Federal em incorporar a noção de “categoria suspeita”, aplicando-se um escrutínio estrito de proporcionalidade na apreciação de questões que envolvem a garantia do direito de igualdade e de não-discriminação desses grupos, na perspectiva desenvolvida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em relação às minorias sexuais, de maneira que possa ser reforçada a sua proteção?
A fim de responder ao problema de pesquisa proposto, tem-se como objetivos específicos: 1°) traçar um panorama das decisões do Supremo Tribunal Federal julgadas entre 2010 até 2020 envolvendo minorias sexuais;2 2°) estudar a doutrina das “categorias suspeitas” e seu desenvolvimento teórico e jurisprudencial na Corte Interamericana de Direitos Humanos, evidenciando os casos em que a Corte IDH reconheceu o status de categoria suspeita em relação às minorias sexuais; e, por fim, 3°) analisar se há uma vinculação da jurisdição constitucional brasileira em adotar os padrões mínimos de proteção às minorias sexuais desenvolvidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, na perspectiva de um corpus iuris interamericano, e, principalmente, se existe o dever de incorporar, em âmbito nacional, o reconhecimento da noção de “categoria suspeita” de discriminação em relação às minorias sexuais através da atuação do Supremo Tribunal Federal. Para o desenvolvimento da pesquisa proposta, utilizar-se-á o método de abordagem dedutivo e o método de procedimento analítico, valendo-se da pesquisa bibliográfica e jurisprudencial no intuito de melhor embasar a análise.
As minorias, de uma maneira geral, em razão de condições estruturais da sociedade, tendem a ser recorrentemente expostas a situações de discriminação. No caso das minorias sexuais, mais especificamente, essa situação é agravada, tendo-se em vista que esse grupo é acometido não apenas por situações de discriminação, violência, marginalização e elevados índices de homicídio3, como também é prejudicado por não lograr articulação política suficiente para ter seus interesses atendidos, situação essa que faz com que suas reivindicações acabem sucumbindo à vontade das maiorias eventuais. É diante desse contexto que o Supremo Tribunal Federal se identifica como locus adequado para promover a proteção dos direitos fundamentais desses grupos. (MELLO, 2020, p. 18)
É no exercício de seu poder contramajoritário que esse caráter protetivo do STF se evidencia com maior rigor, uma vez que, em prol de proteger os direitos fundamentais das minorias, invalida decisões majoritárias (ou seja, pautadas por uma lógica de democracia representativa), tendo em vista que “a democracia não equivale à mera prevalência da vontade das maiorias, mas corresponde a um ideal político mais complexo, que também envolve o respeito aos direitos fundamentais e a valores democráticos”. (SOUZA NETO; SARMENTO, 2016, p. 38)
Atualmente, o mais alto tribunal brasileiro tem adotado uma postura favorável à expansão da proteção das minorias por intermédio de sua atuação contramajoritária, no entanto, ao longo de sua história, o STF nem sempre adotou uma postura expansiva em relação à proteção dos direitos fundamentais, de tal modo que o modelo de prestação jurisdicional incorporado por ele — voltado à implementação dos mandados da Constituição Federal de 1988 — foi se alterando ao longo do tempo.
No período imediatamente subsequente à promulgação da Constituição Federal de 1988 até meados dos anos 2000, o STF adotava uma postura de autocontenção, deixando de interferir em questões que fossem consideradas de cunho político, sendo que tal modus operandi se justificava diante do cenário de transição vivido pelo Brasil durante esse período, sendo o Supremo Tribunal Federal formado por Ministros nomeados ainda pelo regime militar, não estando consolidada, em sua atuação, uma lógica de implementação de direitos, havendo grande preocupação e cautela em não proferir decisões que pudessem desestabilizar os ambientes públicos ou que comprometessem o processo de sedimentação da democracia no Brasil. (MELLO, 2020, p. 24)
A partir do ano 2000, contudo, esse panorama entra em um processo de alteração gradativa, tendo em vista que a democracia já se encontrava em fase estável de consolidação e que a maioria dos Ministros do STF já haviam sido substituídos4, abrindo espaço para que os novos magistrados pudessem trazer uma visão renovada em relação aos papéis desempenhados pelo direito e seus intérpretes, abrindo caminho às doutrinas da efetividade e do neoconstitucionalismo5. (MELLO, 2020, p. 24-25)
Nesse influxo, nos últimos 10 anos, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal deu importantes passos em direção a uma proteção mais ampla e atenta ao resguardo dos direitos fundamentais das minorias sexuais em âmbito nacional, buscando exemplificar essa atuação, em seguida, explorar-se-ão cinco decisões emblemáticas que destacam essa posição do mais alto tribunal brasileiro, sendo elas: I) ADI 4277/DF - decisão que equiparou as uniões estáveis homoafetivas às heteroafetivas; II) ADPF 291/DF - decisão que não recepcionou o crime de pederastia, previsto no Código Penal Militar; III) ADI 4275/DF - decisão que resguardou o direito à alteração no registro civil do prenome e gênero das pessoas transexuais; IV) ADO 26/DF - decisão que criminalizou as condutas homotransfóbicas; e, por fim, V) ADI 5543/DF - decisão que concedeu o reconhecimento do direito aos homens homossexuais de serem doadores de sangue.
No ano de 2011 o Supremo Tribunal Federal, com a ADI 4277/DF, prolata a primeira de uma série de decisões julgadas nos anos subsequentes, as quais foram estruturadas a fim de promover a ampliação da proteção aos direitos fundamentais das minorias sexuais.
A decisão popularmente denominada como decisão da “união estável homoafetiva” é um marco importante nesse processo, não apenas em razão de sua grande repercussão, mas também por ter ocasionado um amplo debate em relação a “temática homossexual no Supremo Tribunal Federal, essa ação se tornou significativa para a pauta do movimento LGBTQI+ no Brasil, como um dos marcos mais importantes sobre os embates político-jurídicos do movimento.”. (MONICA, 2020, p. 1371)
A ADI 4277/DF, que contou com a relatoria do Ministro Ayres Britto, concedeu interpretação conforme à Constituição ao artigo 1.723 do Código Civil, reconhecendo as uniões homoafetivas como família e equiparando-as às uniões estáveis heteroafetivas, garantindo aos casais do mesmo sexo não só o direito de formalizar suas uniões estáveis, como de convertê-las em casamento, do mesmo modo que é garantido aos casais heterossexuais. (BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2011, p. 04-05)
Com a sentença, alteraram-se substancialmente os padrões de tratamento em relação aos casais do mesmo sexo, que passaram a vincular não apenas o Poder Judiciário, em seus mais diversos graus, mas também se irradiaram e influenciaram na atuação de toda a administração pública. (PACHECO, 2016, p. 252-253)
O precedente saúda, nessa perspectiva, o princípio da igualdade, vedando, tanto ao legislador quanto ao intérprete legal, que confiram, no âmbito de suas atuações, qualquer tipo de “tratamento diferenciado às demandas judiciais ou administrativas em que figurem relações de pares homoafetivos, já que aos mesmos foi garantida igual proteção e reconhecimento de que gozam as uniões de casais homoafetivos.”. (PACHECO, 2016, p. 253)
Importa evidenciar que a decisão é, até hoje, um precedente recorrentemente mencionado nas decisões do próprio STF6, sendo tomada como pilar de fundamentação para o reconhecimento e expansão dos direitos fundamentais das minorias sexuais em outros julgamentos, como foi o caso do RE 646721, quando o mais alto tribunal brasileiro, ao salvaguardar o direito à sucessão dos casais homoafetivos, citou-o como precedente, conforme extrai-se do seguinte trecho do voto da Ministra Cármen Lúcia:
6. Observados a eficácia erga omnes e o efeito vinculante daqueles julgamentos, nos quais reconhecida “a inconstitucionalidade de distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas de mesmo sexo”, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução n. 175 de 14.5.2013 dispondo sobre “a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo”. dispondo sobre “a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo”. 7. Desde então, as uniões estáveis homoafetivas submetem-se ao mesmo regime infraconstitucional das uniões estáveis heteroafetivas, segundo o qual, os companheiros supérstites somente herdam os bens adquiridos onerosamente na vigência da união, nas seguintes cotas partes, definidas pelo art. 1.790 do Código Civil de 2002. (BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017, p. 82-83)
Percebe-se que, quando mencionado o precedente fixado na ADI 4277/DF no julgamento do RE 646721, esse precedente acabou operando como um standard mínimo de proteção, que deverá não apenas ser respeitado, mas servir como uma lente através da qual deverão ser observados os demais casos envolvendo tais minorias.
Nessa toada, igualmente adotando como argumento o precedente fixado naquela ocasião, reafirmando a importância dessa construção jurisprudencial do STF, foi o caso da ADPF 291/DF7, que tratou da não recepção, pela Constituição Federal de 1988, do crime de pederastia disposto no Código Penal Militar, decisão a qual se tratará de maneira mais minuciosa a seguir.
No ano de 2015 o STF, através da decisão da ADPF 291/DF - que contou com a relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso - reconheceu a não recepção dos termos “pederastia ou outro” e “homossexual ou não” contidos no artigo 235 do Código Penal Militar8. A decisão, atenta ao histórico de discriminação por orientação sexual nos espaços militares, acabou considerando que o dispositivo implicava em previsão discriminatória aos militares homossexuais, reconhecendo a existência de afronta ao direito à igualdade e um impacto desproporcional a esse grupo.
Nesse mesmo sentido é que Estefam (2016, p. 108), veementemente, alerta para o fato de que “a criminalização que, aberta ou veladamente, é empregada para reprimir a opção por relações com pessoas do mesmo sexo conduz a um desvirtuamento do papel do Direito Penal. Estabelece, ainda, um tratamento discriminatório injustificado aos homossexuais”.
Assim, diante da vedação de utilização das referidas expressões pejorativas e discriminatórias pela lei, o plenário do STF decidiu suprimir do texto legal os termos “pederastia ou outro” e “homossexual ou não”, conservando o restante das disposições elencadas no texto original do tipo penal do artigo 235 do Código Penal Militar. (BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2015, p. 02-03)
Com a decisão, mais um passo na longa jornada pela erradicação da discriminação das minorias sexuais foi dado, passo esse que serviu como propulsor e fundamento para a expansão dos direitos das minorias sexuais em outros casos que igualmente o tomaram como fundamento para suas construções, como é o caso da ADI 4275/DF9, da qual se tratará na sequência.
Com fortes precedentes já fixados, os quais operam como base mínima para a construção das demais decisões envolvendo os direitos das minorias sexuais, no ano de 2018 entrou na pauta do STF a questão da alteração do prenome e gênero das pessoas transexuais nos assentos dos Registros Civis de Pessoas Naturais.
Na decisão, foi reconhecido o direito das pessoas transgênero de substituírem o seu prenome e sexo diretamente no Cartório de Registro Civil, independentemente da realização de qualquer tratamento hormonal, cirurgia de transgenitalização ou decisão judicial10. (BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2018, p. 02-03)
A decisão da ADI 4275/DF é elencada como uma decisão paradigmática não só pelo fato de conceder uma proteção ampla à igualdade e nãodiscriminação das pessoas transgênero, mas também demonstra sua relevância por ser um raro exemplo de decisão em que o Supremo Tribunal Federal realizou um efetivo controle de convencionalidade11, através do reconhecimento da interpretação conforme à Constituição Federal e ao Pacto de San José da Costa Rica ao artigo 58 da Lei n. 6.015/73. (BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2018, p. 25)
E ainda, conforme Coacci (2020, p. 1204-1205), as menções à Opinião Consultiva n. 24/2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos presentes nos votos dos Ministros Marco Aurélio de Mello e Edson Fachin propiciaram “uma camada extra de legitimidade institucional para essa abordagem jurídica, assim como critérios objetivos de como a retificação de nome e gênero deveria ser realizada.”.
Essa situação aponta para um processo de reconhecimento dos padrões regionais de proteção às minorias sexuais pelo STF, o que contribui sobremaneira não apenas para uma proteção mais ampla e adequada de seus direitos como auxilia na consolidação do projeto de um direito comum para a América Latina, almejado pelo Ius Constitucionale Commune Latino-americano. (LEAL; VARGAS, 2021a)
1.4 A criminalização da homotransfobia (ADO 26/DF)
Com a decisão da ADO 26/STF, de relatoria do Ministro Celso de Mello, o STF reconheceu a ocorrência de mora legislativa no cumprimento dos mandados de incriminação dispostos no artigo 5°, incisos XLI e XLII, da Constituição Federal, bem como asseverou que, até que sobrevenha legislação nesse sentido, editada pela Congresso Nacional, os casos de homofobia e transfobia serão qualificados como espécie do gênero racismo (na dimensão do racismo social), aplicando-se a eles os dispositivos da Lei n. 7.718/1989. (BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2019, p. 05)
Importa comentar que, assim como a decisão é elogiada por representar um significativo avanço no que diz respeito à proteção das minorias sexuais, também recebe severas críticas, sendo taxada como “ativista” (BRAGA, 2019), em virtude da interpretação expansiva realizada pelo Supremo Tribunal Federal ao equiparar as condutas homotransfóbicas aos tipos penais da lei antirracismo.
Leal e Moraes (2020, p. 398) afirmam que, no caso da decisão em comento, a tarefa de aferir se houve um ativismo judicial é demasiadamente complexa, além de que o STF não teve êxito em definir limites assertivos sobre o papel por ele desempenhado e sua relação com os demais Poderes, permanecendo adstrito apenas aos argumentos de que é o guardião da Constituição e protetor dos direitos fundamentais para exprimir a legitimação de sua atuação no caso.
Nota-se, portanto, que a omissão legislativa em relação ao resguardo aos direitos fundamentais também é um significativo obstáculo imposto às minorias sexuais, uma vez que a ausência ou insuficiência de representação política adequada nos espaços de deliberação faz com que essas minorias não consigam ter suas reivindicações atendidas, o que faz com que busquem, cada vez com mais frequência, a jurisdição constitucional e sua atuação contramajoritária como locus para terem seus direitos fundamentais atendidos, aspecto esse que reforça o fenômeno da judicialização, já que, conforme destaca Sweet12 (2012, p. 14), às vezes, os juízes constitucionais são mais receptivos às preocupações dos cidadãos do que os políticos, e podem persuadir os funcionários a serem mais democráticos do que seriam de outra forma.
No entanto, conforme Hirschl (2004, p. 15), esse crescente empoderamento judicial também pode servir como subterfúgio para que o Poder Legislativo evite ou atrase resultados políticos indesejados, uma vez que, sendo os embates relacionados a questões políticas contenciosas tratados como questões de cunho jurídico e não políticas, isso acaba corroborando para a suposição de que as Cortes Constitucionais deveriam resolver tais embates, ao invés de serem confrontados pelos representantes eleitos pelo povo13.
Em vista desse dever de proteção às minorias sexuais, resta evidenciada a constante situação de tensionamento entre a democracia representativa (lógica majoritária) e o constitucionalismo (prevalência dos direitos fundamentais) que enfrenta o Supremo Tribunal Federal quando é chamado a realizar tal função contramajoritária.
1.5 O reconhecimento do direito dos homens homossexuais de serem doadores de sangue ADI 5543/DF
A decisão do STF mais recente envolvendo os direitos das minorias sexuais foi a ADI 5543/DF, julgada no ano de 2020 e que teve como relator o Ministro Edson Fachin. Na ocasião, declarou-se a inconstitucionalidade dos artigos 64, inciso IV, da Portaria n. 158/2016, do Ministério da Saúde, e do artigo 25, inciso XXX, “D”, da Resolução da Diretoria Colegiada - RDC n. 34/2014 da ANVISA, os quais traziam a imposição de vedação da doação de sangue por homens homossexuais e bissexuais e/ou seus parceiros ou parceiras. (BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2020, p. 04)
Em comento ao caso da doação de sangue por homens homossexuais, tem-se que a decisão aponta que o Supremo Tribunal Federal tem adotado
posicionamentos que vão além da simples interpretação constitucional, mas sim adotam uma postura no sentido de busca pela concretização dos princípios da igualdade e da não-discriminação buscando erradicar condutas de cunho segregacionista que impossibilitam que determinadas grupos - no caso em comento as minorias sexuais - possam gozar livremente de seus direitos fundamentais. (MORAES; VARGAS, 2021, p. 62)
Na sentença, houve o reconhecimento de que a imposição trazida pelos dispositivos questionados não era justificável, tendo-se em vista que estabelecia uma discriminação ao enquadrar os homens homossexuais e/ou suas companheiras como um “grupo de risco”, desconsiderando o fato de que o critério que realmente importa para garantir a doação sanguínea segura é uma conduta sexual pautada na cautela (parceiros fixos, utilização de preservativos, etc.), ou seja, o motivo justificável para impor a restrição à doação, seja heterossexual ou homossexual, é, exclusivamente, a prática de eventuais condutas de risco pelo doador (BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2020, p. 73), não podendo, portanto, presumir uma conduta de risco simplesmente em razão da orientação sexual do doador.
Uma vez mais, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de uma situação discriminatória em relação às minorias sexuais, repelindo-as através da declaração da sua inconstitucionalidade.
Antes de se adentrar na questão do reconhecimento jurisprudencial das “categorias suspeitas” pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, importa trazer o conceito de “categoria suspeita” e as potenciais consequências que esse reconhecimento enseja.
O status de “categoria suspeita” é concedido a grupos ou pessoas que possuam elevadas chances de sofrer discriminações, seja pelo seu histórico de exclusão ou por alguma característica identitária do grupo. Diante dessa maior probabilidade, as disposições legais que as envolvam são encaradas como “suspeitas” e, portanto, presumidamente inconstitucionais, fazendo com que a sua situação de discrime legal seja averiguada mediante uma análise mais rigorosa, desenvolvida através de um escrutínio estrito de proporcionalidade. (AGUILAR, 2020, p. 10-11)
Buscando a conceituação desse instituto, Aguilar (2020, p. 11) denomina que são categorias suspeitas “aquellos criterios sobre los cuales no pueden efectuarse distinciones entre los individuos; es decir, se presume su inconstitucionalidad por existir un alto grado de probabilidad de discriminación injusta sobre su base.”.
Portanto, uma das decorrências lógicas advindas do reconhecimento de uma categoria ou grupo como suspeito é a aplicação do “escrutínio estrito” de proporcionalidade, o qual implica não só na presunção de inconstitucionalidade das leis que utilizem tais critérios, como impõe a inversão do ônus argumentativo ao órgão do qual emanou a medida contestada, cabendo a este comprovar que a medida não possuía o fim de discriminar e demonstrar a sua imprescindibilidade para o cumprimento de um “interesse estatal imperioso”, evidenciando, igualmente, a necessidade e adequação da medida para que seja alcançado tal fim. Esse mesmo entendimento se extrai da doutrina de Fallon (2007, p. 1273-1274), ao asseverar que
"strict scrutiny" refers to a test under which statutes will be pronounced unconstitutional unless they are "necessary" or "narrowly tailored" to serve a "compelling governmental interest.' When unpacked, the formula makes two main demands that I treat as definitive in tracing strict scrutiny's historical evolution. First, where strict scrutiny applies, the burden falls on the government to defend challenged legislation by demonstrating that it serves a compelling interest. [...] The second defining requirement of the modem strict scrutiny test is that legislation must be "narrowly tailored" to or "necessary" to protect a compelling governmental interest.14
Remontando brevemente a origem histórica dessa teoria, é possível afirmar que a noção de categoria suspeita e de escrutínio estrito tiveram sua elaboração embrionária pela Suprema Corte Norte-Americana a partir da construção feita na nota de rodapé n. 4 do caso “Estados Unidos vs. Carolene Products Co.” (1938), quando se construiu o entendimento de que, em relação às minorias discretas e insulares, deve-se aplicar um escrutínio estrito de proporcionalidade. (U.S.S.C, 1938, p. 152-153)
No entanto, foi nas decisões envolvendo questões étnicas durante a II Guerra Mundial — servindo como exemplo os casos “Hirabayashi v. United States” (1943) e “Korematsu v. United States” (1944) — e a segregação racial — “Brown vs. Board of Education of Topeka" (1954)15, “Bolling vs. Sharpe” (1954) e “Loving vs. Virginia” (1967)16— que se vislumbrou uma aplicação e um desenvolvimento mais evidente e robusto da doutrina das categorias suspeitas pela Suprema Corte Norte-Americana.
A proteção inerente às “categorias suspeitas” não permaneceu, contudo, restrita aos casos envolvendo a “raça”. No período de vigência da Corte de Warren, a Suprema Corte Norte-Americana reconheceu outras classificações como suspeitas, como, por exemplo, em casos de leis que traziam desvantagens aos estrangeiros, às pessoas de nascimento “ilegítimo” e também aos pobres. (ELY, 2010, p. 199)
Sendo assim, nesses casos, conforme Ely (2010, p. 196), o exame de proporcionalidade estrito (strict scrutiny) — ou, adotando a nomenclatura utilizada pelo autor, “exame especial” (special scrutiny) — exige que:
a classificação em questão se coadune mais com a meta invocada que qualquer outra classificação alternativa. [...] Se a meta não puder ser invocada por ser inconstitucional, a classificação não se sustentará. Assim, em termos funcionais, um exame especial, em particular a exigência de um encaixe perfeito entre classificação e meta, acaba por ser um método que “exclui” a motivação inconstitucional.
Em vista da significativa proteção que essa doutrina representa para os grupos vulneráveis e minoritários, a doutrina das “categorias suspeitas” não ficou restrita à Suprema Corte Norte-Americana, tendo migrado, também, para o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos - em particular, para a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos - passando a ser aplicada em relação aos casos envolvendo grupos minoritários e vulneráveis também no âmbito da América Latina.
Vale ressaltar que a própria Convenção Americana de Direitos Humanos já traz, em seus dispositivos, um listado exemplificativo de critérios proibidos de discriminação, sendo eles: “raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social”. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1969)
Diante disso, percebe-se que, no contexto interamericano, há previsão legal de um listado de critérios proibidos de discriminação, o qual pode ser acrescido de novas categorias, tendo em vista que esse rol tem natureza exemplificativa, constituindo assim uma abertura para a incorporação de novos conteúdos17. Esse entendimento pode ser vislumbrado já na posição desenvolvida através da Opinião Consultiva n. 18/2003, quando a Corte IDH reconhece a natureza enunciativa do rol do artigo 1.1 da CADH e afirma que a condição de categoria suspeita dependerá da análise do caso concreto, conforme se extrai do seguinte trecho:
os motivos que podem dar lugar à formação de uma “categoria suspeita” não se esgotam na enumeração estabelecida nos instrumentos interamericanos. A determinação destas categorias “está relacionada com as características da discriminação em um dado momento em um país ou região”. A relevância da identificação de uma “categoria suspeita” dependerá, em grande medida, da análise concreta da situação de fato regulada. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2003, p. 64)
Mas tal acréscimo deve ocorrer mediante uma justificação extensa, pois a expansão dos critérios proibidos de discriminação, quando desprovidos de uma robusta justificação, traz o risco de banalizar essa proteção especial. Assim, a expansão do rol de categorias suspeitas sem justificação recebe críticas18.
No entanto, quando essa incorporação de novos critérios suspeitos de discriminação ocorre de maneira adequada, autores como Guzmàn (2019, p. 379) defendem que essa ampliação "no solo es importante, sino necesaria, precisamente atendiendo a la necesidad de una interpretación evolutiva frente a cambios sociales o a la visibilización de realidades que estuvieron históricamente invisibilizadas.”.
É com a Opinião Consultiva n. 18/2003 que o rol de critérios suspeitos de discriminação disposto no artigo 2.2 da CADH foi expandido pela Corte IDH pela primeira vez, incorporando os trabalhadores migrantes em situação irregular como categoria suspeita, tendo como principais fundamentos para tal inclusão:
A primeira razão que justifica o reconhecimento dos trabalhadores migrantes em situação irregular como “categoria suspeita” é que a discriminação contra este grupo se encontra intimamente ligada à sua nacionalidade, etnia ou raça, que sempre é distinta à hegemônica do Estado em que trabalham. A esse respeito, a nacionalidade, raça ou etnia são proibidas explicitamente como motivo de distinção. A Suprema Corte dos Estados Unidos da América, na decisão Trimble v. Gordon, “considerou que as classificações baseadas na origem nacional eram primas-irmãs das relativas à raça, de modo que correspondiam a áreas nas quais era necessário aplicar o princípio de igualdade perante a lei e não discriminação”. A segunda razão que justifica o reconhecimento dos trabalhadores migrantes em situação irregular como “categoria suspeita” é a condição especial de vulnerabilidade deste grupo, principalmente pela discriminação sistemática que sofrem no âmbito trabalhista nos Estados receptores. Os trabalhadores migrantes indocumentados são discriminados em vários âmbitos de seu desenvolvimento vital. Entretanto, a discriminação se manifesta com especial clareza no âmbito trabalhista. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2003, p. 66-67)
Posteriormente, a Corte IDH passou a reconhecer e aplicar, com maior frequência, a noção de categoria suspeita em casos contenciosos, como foi o caso das pessoas com HIV na decisão “Gonzales Lluy y otros Vs. Ecuador” (2015)19, da integração da origem étnica ao rol de categorias suspeitas a partir do caso “Norín Catrimán y otros” (2014)20, a aplicação da teoria em relação às opiniões políticas na decisão “Granier y otros vs. Venezuela” (2015)21 e no caso das pessoas refugiadas no julgamento do caso “I.V vs. Bolívia” (2016)22 e, mais recentemente, nas decisões dos casos “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil” (2016)23 e “Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil” (2020)24, em que a Corte IDH reconheceu a “pobreza” como categoria proibida de discriminação, a qual integra o critério “posição econômica”, de modo que acabou expandindo o rol do artigo 1.1 da CADH a partir da interpretação dos alcances de um critério já expresso no corpo do artigo suprarreferido da CADH.
Expostos alguns exemplos em que a Corte IDH demonstrou sua receptividade ao reconhecimento da noção de categoria suspeita, destaca-se, na jurisprudência dessa Corte, o paradigmático caso “Atala Riffo y niñas vs. Chile” (2012), decisão na qual reconheceu a situação de discriminação sofrida pela senhora Karen Atala no processo de guarda legal de suas filhas, ocasião na qual a Corte Chilena decidiu conceder a guarda legal das crianças ao pai, entendendo que a orientação sexual da mãe traria prejuízos ao desenvolvimento das crianças, caso permanecessem sob a sua tutela. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2012, p. 14)
Na referida decisão realizou-se a incorporação dos critérios “orientação sexual” e “identidade de gênero” como categorias suspeitas de discriminação, através do disposto nos parágrafos 91 e 93 da sentença:
91. [...] a Corte Interamericana estabelece que a orientação sexual e a identidade de gênero das pessoas são categorias protegidas pela Convenção. Por isso, a Convenção rejeita qualquer norma, ato ou prática discriminatória com base na orientação sexual da pessoa. Por conseguinte, nenhuma norma, decisão ou prática de direito interno, seja por parte de autoridades estatais, seja por particulares, pode diminuir ou restringir, de maneira alguma, os direitos de uma pessoa com base em sua orientação sexual. [...] 93. Um direito reconhecido das pessoas não pode ser negado ou restringido a ninguém, e sob nenhuma circunstância com base em sua orientação sexual. Isso violaria o artigo 1.1. da Convenção Americana. O instrumento interamericano veta a discriminação em geral, nele incluindo categorias como as da orientação sexual, que não pode servir de sustentação para negar ou restringir nenhum dos direitos dispostos na Convenção.”. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2012, p. 33-34, grifo nosso)
A fim de fundamentar a inclusão da orientação sexual ao rol do artigo 1.1 da CADH, a decisão destacou seu dever de interpretar a expressão "qualquer outra condição social" do artigo 1.1. da Convenção, pautando-se, sempre, pela alternativa mais favorável para a tutela dos direitos protegidos pelo Pacto de San Jose da Costa Rica, tendo em vista, igualmente, a sua vinculação ao princípio pro persona. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2012, p. 29-30)
Face a isso, a decisão é um marco não só para o reconhecimento dos direitos humanos e fundamentais das minorias sexuais, como igualmente representa um significativo avanço no que tange à aplicação da noção de “categoria suspeita” e de “escrutínio estrito” de proporcionalidade. Nessa toada, é perceptível que a sentença, além de expandir o rol de categorias suspeitas e de reconhecer a orientação sexual como classificação merecedora de tal status, igualmente aplicou um escrutínio estrito de proporcionalidade, ao exigir do Estado que a medida fosse fundamentada de forma “rigorosa e muito ponderável”, invertendo o ônus da prova ao Estado e requerendo que esse demonstrasse, de maneira robusta, que a medida não continha um condão discriminatório:
124. Tratando-se da proibição de discriminação por orientação sexual, a eventual restrição de um direito exige uma fundamentação rigorosa e muito ponderável, invertendo-se, também, o ônus da prova, o que significa que cabe à autoridade demonstrar que sua decisão não tinha propósito ou efeito discriminatório. [...] 125. Com efeito, cabe ao Estado o ônus da prova, ou seja, mostrar que a decisão judicial objeto do debate baseou-se na existência de um dano concreto, específico e real no desenvolvimento das crianças. Para isso é necessário que nas decisões judiciais sobre esses temas se definam de forma específica e concreta os elementos de vinculação e causalidade entre a conduta da mãe ou do pai e o suposto impacto no desenvolvimento da criança. Do contrário, corre-se o risco de fundamentar a decisão num estereótipo (pars. 109 e 111 supra) vinculado exclusivamente à preconcepção, não sustentada, de que crianças criadas por casais homossexuais necessariamente teriam dificuldades para definir papéis de gênero ou sexuais. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2012, p. 142-143)
No entanto, o tribunal Chileno não foi capaz de superar o teste de proporcionalidade mais rigoroso, ao passo que a Corte IDH reconheceu que a Corte Suprema de Justiça do Chile “não cumpriu os requisitos de um teste estrito de análise e sustentação de um dano concreto e específico supostamente sofrido pelas três crianças em virtude da convivência da mãe com uma companheira do mesmo sexo”. (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2012, p. 45).
Levando-se em consideração o entendimento fixado nesse valioso precedente da Corte IDH, resta o questionamento sobre o dever dos Estados-parte da CADH em alinhar suas decisões internas ao modo de decidir desenvolvido pela Corte IDH; em outras palavras, se, a partir do precedente fixado pela Corte IDH “Atala Riffo y niñas vs. Chile” (2012), há uma vinculação dos Estados no sentido de reconhecerem as minorias sexuais como categorias suspeitas e aplicarem um escrutínio estrito de proporcionalidade em relação aos casos envolvendo essas minorias.
O debate a respeito da vinculação do Estado brasileiro aos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos não é tema recente, encontra-se em voga desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, em razão da previsão do artigo 5°, §2° da CF, o qual elenca a cláusula de abertura constitucional ao direito internacional dos direitos humanos. Inicialmente, tal cláusula foi interpretada pelo Supremo Tribunal Federal concedendo apenas o status de lei ordinária aos tratados de direitos humanos, entendimento esse que, como se verá a seguir, evoluiu ao longo do tempo. (MELLO; GRAÇA, 2020, p. 103)
Apesar dessa interpretação do STF em relação à hierarquia dos tratados, com o passar dos anos, houve um recrudescimento do direito internacional dos direitos humanos no âmbito do debate jurídico brasileiro. Assim, seguindo tal influxo, em 1992 o Brasil aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos e, em 2002 (Decreto n. 4463/2002), reconheceu a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, submetendo-se à sua jurisdição25. (MELLO; GRAÇA, 2020, p. 103)
A fim de dirimir a controvérsia sobre a hierarquia dos tratados em matéria de direitos humanos dentro do ordenamento jurídico nacional, em 08 de dezembro de 2004 a Emenda Constitucional n. 45 passou a incluir o § 3º ao art. 5º da Constituição Federal, assim, estabelecendo que Tratados e Convenções internacionais que versam sobre a temática dos direitos humanos são equivalentes às emendas constitucionais “uma vez aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos seus respectivos membros (que é exatamente o quórum para a aprovação de uma emenda constitucional)”. (MAZZUOLI, 2011, p. 36).
Por mais que a inclusão do §3º no artigo 5º da Constituição Federal possa ser considerada como uma evolução a partir do reconhecimento formal do status constitucional aos tratados que versem sobre direitos humanos aprovados pelo rito especial, concomitante a isso, essa previsão constitucional ocasionou um prejuízo em relação à proteção constitucional desses tratados, pois permanecem, inclusive, submetidos à apreciação de sua constitucionalidade, sendo-lhes, ainda, exigido como requisito para sua incorporação um quórum qualificado, ficando à mercê de uma intermediação legislativa formal que pode não se realizar. (LEAL, 2020, p. 48)
No entanto, reconhecido o status constitucional para aqueles tratados aprovados através do rito especial do artigo 5º, §3º da CF, permaneceu a dúvida quanto aos tratados incorporados anteriormente à promulgação da EC 45/2004, se estes deveriam ser igualmente submetidos ao modelo formal de incorporação ou não.
A questão foi levada à apreciação do Supremo Tribunal Federal por meio do Habeas Corpus 96.772/SP, no qual discutiu-se acerca da incidência do Pacto de San José da Costa Rica nos casos de prisão civil do depositário infiel. O debate contou com duas teses principais: 1ª) defendida pelo Ministro Relator Celso de Mello, que concedia status constitucional aos tratados internacionais sobre direitos humanos aprovados antes da EC 45/2004, e que, portanto, não tinham sido aprovados pelo procedimento do §3° do artigo 5° da Constituição Federal; 2ª) sustentada pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes, na qual trazia à baila o entendimento de que esses tratados teriam hierarquia supralegal, porém infraconstitucional, ou seja, tais tratados estariam acima das leis ordinárias mas, ao mesmo tempo, teriam o dever de “obediência” à Constituição Federal. (LEAL, 2020, p. 48-49)
Prevaleceu, no caso, o segundo entendimento, sob a justificativa de que os Tratados e Convenções internacionais devem estar materialmente de acordo com os preceitos constitucionais e submetidos ao dever de adoção do procedimento formal estabelecido na Constituição Federal, posto que eventual equiparação entre os Tratados e Convenções e a Constituição traria prejuízos e problemas ao controle de constitucionalidade. (LEAL, 2020, p. 50)
Importa destacar que a decisão do Supremo Tribunal Federal pela supralegalidade dos tratados sobre direitos humanos evidencia uma postura pautada em pouca abertura ou predisposição ao diálogo interjurisdicional, demonstrando uma forte tendência à centralidade na Constituição Federal e desconsiderando, por completo, a incidência do princípio pro homine. Conforme evidencia Leal (2020, p. 51):
é possível perceber que o enfrentamento do problema se deu a partir de uma lógica eminentemente interna, ou seja, tomando-se como base a necessidade de resolução de um problema de direito doméstico, em que as disposições do sistema interamericano aparecem como meras coadjuvantes, em um cenário caracterizado pelo protagonismo da Constituição. Restou claro, no julgamento, que o argumento da supralegalidade dos Tratados prevaleceu, principalmente, por motivos de “política judiciária”, assentada nas eventuais repercussões - tanto teóricas quanto operacionais - que o reconhecimento do seu status de norma constitucional poderia trazer. Assim, tampouco restou evidenciada, por parte do Supremo Tribunal, qualquer tentativa de estabelecimento de um diálogo interjurisdicional; antes pelo contrário: a decisão mostra-se fechada a esse diálogo, ademais de desconsiderar, por completo, a própria disposição do art. 2 da CADH, que prevê a adequação do direito interno aos parâmetros de proteção nela adotados. Assim, a mais alta Corte brasileira não só se mostrou monológica (e não dialógica) na construção de seus argumentos, mas também pouco aberta e predisposta a este diálogo.
Não obstante isso, tendo o Estado brasileiro se submetido à jurisdição da Corte IDH, tal reconhecimento enseja uma vinculação ao corpus iuris interamericano26, ou seja, todos os poderes e órgãos do Brasil permanecem atrelados a seguir e adotar “não apenas ao disposto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mas também às legítimas interpretações da CADH proferidas através das decisões da Corte IDH e aos posicionamentos adotados por ela no exercício de sua função consultiva.” (LEAL; VARGAS, 2021a, p. 677)
Importa asseverar que as decisões da Corte IDH comportam, além da eficácia erga omnes, um duplo efeito em relação ao seu cumprimento pelos Estados-parte: um efeito subjetivo, “inter partes” (res judicata), que vincula os Estados diretamente ligados ao litígio ao cumprimento do disposto na sentença proferida pela Corte IDH; e, concomitantemente, as decisões são igualmente integradas de um efeito objetivo, com eficácia erga omnes (res interpretata), que faz com que as interpretações desenvolvidas na resolução de casos contenciosos sirvam também como parâmetros mínimos a serem adotados pelos demais Estados-parte em seu âmbito interno. (LEAL; VARGAS, 2020, p. 15)
Nesse sentido, Ferrer Mac-Gregor (2013, p. 676) destaca que essa vinculação às legítimas interpretações da Corte IDH sobre os alcances da CADH tem uma eficácia relativa, existindo a possibilidade de que os padrões fixados pela Corte IDH possam ser desconsiderados pelos Estados-parte se, no âmbito do direito nacional ou internacional, existirem disposições mais protetivas do que aquelas fixadas pela Corte IDH, assim adotando os parâmetros que forneçam a proteção mais ampla aos direitos humanos, de modo a respeitar o princípio pro persona.
Nessa perspectiva de adoção dos padrões protetivos desenvolvidos pela Corte IDH como alicerce mínimo de proteção aos direitos humanos e fundamentais é que se defende o dever dos Estados-parte — e em especial o Brasil — de incorporar, em suas decisões internas, as noções de “categoria suspeita” e de “escrutínio estrito”, já que, como vislumbrado anteriormente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos amplamente as reconhece e aplica em diversos casos envolvendo grupos desfavorecidos, inclusive em relação às minorias sexuais, grupo sobre o qual se debruça o presente estudo.
Em consonância com o posicionamento protetivo da Corte IDH em relação às minorias sexuais, alguns Estados-parte, como o Equador27, têm positivado a doutrina das “categorias suspeitas”, reconhecendo que se deve redobrar o dever de especial proteção e que a normatização do status das minorias sexuais enquanto categoria suspeita é essencial para que não restem dúvidas de que é adotado, em relação a elas, um procedimento distinto dos demais casos, alinhando-se, assim, aos standards protetivos estabelecidos pelo Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.
Com isso, os Estados-parte, ao incorporarem os entendimentos desenvolvidos pela Corte IDH em suas decisões internas, atendem ao dever de adequar o seu direito interno aos compromissos assumidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conforme preceitua o artigo 2° da CADH. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 1969)
Porém, no caso brasileiro, por mas que se tenha a previsão de um listado de critérios proibidos de discriminação28 no artigo 3°, inciso IV e 5° caput, da Constituição Federal, conforme se verá na sequência, não há, até o momento da realização desse estudo, construções jurisprudenciais que apontem para a efetiva incorporação da doutrina das “categorias suspeitas” ou para a aplicação do “escrutínio estrito” de proporcionalidade em relação às minorias sexuais, de modo que as raras referências a esses institutos — encontradas durante a análise realizada no primeiro estágio do estudo — operam como meros argumentos de reforço, e não como ratio decidendi do caso.
Da análise dos casos levantados com a pesquisa, é possível constatar que, na decisão da ADI 4277/DF, não foram encontradas referências à noção de categoria suspeita e de escrutínio estrito. Já nas decisões proferidas na ADPF 291/DF29, ADI 4275/DF, ADO 26/DF30 e ADI 5543/DF31, nota-se a presença de menções a essas teorias, porém essas referências não evoluíram ao ponto de serem tomadas como critério capaz de basear a averiguação da constitucionalidade das previsões normativas, sendo apenas utilizadas como exemplos ou como mero reforço argumentativo por parte dos Ministros, sem desenvolver com maior profundidade esses aspectos.
Dentre as decisões analisadas, vale destacar a decisão da ADI 4275/DF, pois a partir dessa executou-se um controle de convencionalidade, tornando-se um valioso precedente rumo ao reconhecimento e implementação de um direito comum para a América Latina, proposto pelo projeto do Ius Constitucionale Commune Latino-americano, tendo em vista que, a partir dessa decisão, o Supremo Tribunal Federal evidenciou, embora de maneira um tanto quanto tímida, que reconhece seu dever de alinhar suas decisões aos precedentes da Corte IDH a partir do efetivo exercício do controle de convencionalidade e da concessão da interpretação conforme ao Pacto de San José da Costa Rica.
Essa decisão ainda traz, em trecho do voto da Ministra Rosa Weber, a citação direta ao caso “Atala Riffo y niñas vs. Chile” (2012) e a proteção das minorias elencada no artigo 1.1 da CADH, conforme segue:
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, no julgamento do caso Atala Riffo e Crianças vs. Chile, cuja sentença foi proferida em 24.02.2012, deliberara sobre a questão da orientação sexual e o direito de guarda de crianças. A argumentação subjacente ao caso circunscreveu-se à controvérsia da responsabilidade internacional do Estado por tratamento discriminatório e interferência arbitrária na vida privada e familiar. Embora o problema jurídico retratado naquele caso tenha sido o tratamento discriminatório em decorrência da orientação sexual e interferência estatal na vida privada, na justificativa da decisão, foi adotada como razão de decidir argumento de que os Estados devem abster-se de realizar ações que de alguma forma se destinem, direta ou indiretamente, a criar situações de discriminação de direito ou de fato. Ademais, são obrigados a adotar medidas positivas para reverter ou modificar situações discriminatórias existentes na sociedade, praticadas contra determinado grupo de pessoas. Dentre esses grupos minoritários, alvo de práticas discriminatórias, a Corte Interamericana abordou a categoria da orientação quanto à identidade de gênero, a fim de interpretar a expressão qualquer outra condição social do artigo 1.1 da Convenção Americana, a partir da escolha da alternativa mais favorável para a tutela dos direitos protegidos por esse Tratado, segundo o princípio da norma mais favorável ao ser humano. Neste ponto, pertinente a justificativa adotada no parágrafo 91 da decisão: “91. Levando em conta as obrigações gerais de respeito e de garantia, estabelecidas no art. 1.1 da Convenção Americana, os critérios de interpretação fixados no artigo 29 da citada Convenção, o estipulado na Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, as resoluções da Assembleia Geral da OEA, as normas estabelecidas pelo Tribunal Europeu e pelos organismos das Nações Unidas (pars. 83 a 90 supra), a Corte Interamericana estabelece que a orientação sexual e a identidade de gênero das pessoas são categorias protegidas pela Convenção. Por isso, a Convenção rejeita qualquer norma, ato ou prática discriminatória com base na orientação sexual da pessoa. Por conseguinte, nenhuma norma, decisão ou prática de direito interno, seja por parte de autoridades estatais, seja por particulares, pode diminuir ou restringir, de maneira alguma, os direitos de uma pessoa com base em sua orientação sexual”. (BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2018, 73-74)
A decisão representa um significativo avanço no que tange ao diálogo judicial, tendo em vista que, conforme Leal (2019, p. 373), são raros os casos em que o Supremo Tribunal Federal menciona expressamente a jurisprudência da Corte IDH. Porém, segundo a autora, esse posicionamento tem se alterado gradativamente, sendo que cada vez mais as citações indiretas por meio da doutrina vêm sendo deixadas de lado, dando espaço para menções diretas aos precedentes da Corte IDH, conforme vislumbrado no caso da ADI 4275/DF.
Conclusa a análise das decisões — e utilizando-se a classificação32 desenvolvida por Mello e Graça (2020, p. 100) — é possível afirmar que o STF adota, nos casos analisados, um modelo híbrido ou ambivalente em relação à incorporação dos precedentes internacionais; isso porque, apesar de não adotar uma postura de resistência, convergência ou de engajamento argumentativo, ainda assim, utiliza, em algumas ocasiões, os precedentes internacionais no processo decisório.
Vale destacar que, nesse modelo, não há um padrão evidente de se haverá uma receptividade ou não ao direito internacional, o que se tem é um modo de decidir que “oscila entre ignorar a prática estrangeira em algumas situações; utilizar decisões estrangeiras com um bom nível de engajamento argumentativo em outros casos; e, por fim, invocar decisões estrangeiras de forma superficial e sem grande profundidade em outros tantos”. (MELLO; GRAÇA, 2020, p. 100)
Retomando os resultados provenientes da análise, observou-se que o Supremo Tribunal Federal não reconhece as minorias sexuais enquanto categoria suspeita de discriminação, assim como não aplica um escrutínio estrito de proporcionalidade nos casos que as envolvam, fato esse que aponta para um descompasso entre o entendimento construído pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e o posicionamento adotado pelo mais alto tribunal brasileiro em relação aos direitos e à proteção das minorias sexuais.
De outra banda, tal situação igualmente gera a quebra do dever de adequação das decisões internas aos precedentes convencionais, conforme preceitua o artigo 2° da CADH e, além do mais, essa ausência de reconhecimento não só rompe com os compromissos convencionalmente adotados pelo Brasil como fere o princípio pro persona, uma vez que o Supremo Tribunal Federal, ao deixar de reconhecer a condição de categoria suspeita às minorias sexuais, adota um modelo de decisão que não é o mais adequado ou favorável para o enfrentamento de eventuais situações de discriminação de grupos vulnerabilizados.
Em resposta ao questionamento central desse estudo, é possível afirmar que o STF tem o dever de reconhecer as minorias sexuais como categoria suspeita de discriminação e de aplicar um escrutínio estrito de proporcionalidade em relação às categorias suspeitas, conforme já vem sendo aplicado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em razão de o Estado brasileiro: 1º) ter ratificado a Convenção Americana de Direitos Humanos; 2º) ter se submetido à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos e, a partir disso, estar vinculado à eficácia erga omnes de suas decisões e ao dever de execução do controle de convencionalidade; além de 3º) ter se comprometido, convencionalmente, a adotar os padrões de proteção desenvolvidos no âmbito do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos e observar o princípio pro persona em suas decisões internas.
A partir do ano 2010, o mais alto tribunal brasileiro passou a adotar uma postura mais expansiva em relação à proteção das minorias sexuais, caracterizando-se o STF como um locus adequado para a sua proteção, sendo que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem se afigurado como uma importante ferramenta de persecução e afirmação dos direitos desses grupos.
Com frequência, tais minorias têm visto a jurisdição constitucional brasileira como uma opção para terem seus direitos atendidos e respeitados diante de fatores que trazem tal impossibilidade, sejam eles a ausência ou insuficiência de representação política, as situações de omissões legislativas ou, até mesmo, a repressão social e cultural, sendo nessa seara que a atuação contramajoritária dos Tribunais Constitucionais, em sua função de guardiães da Constituição e dos direitos fundamentais, evidencia a relevância de suas atuações para a superação de estigmas.
Como visto no levantamento realizado no primeiro estágio desse estudo, entre 2010 e 2020 diversas decisões relacionadas à proteção das minorias sexuais foram proferidas, decisões essas que resguardaram uma ampla gama de direitos, como, por exemplo, o direito ao matrimônio, à sucessão, ao nome social, à não-discriminação nos ambientes militares, à doação sanguínea e à proteção contra atos violentos e odiosos em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero.
No entanto, embora se reconheçam os significativos avanços na matéria, em comparação com os padrões de proteção desenvolvidos no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, nota-se que o STF ainda não incorpora a noção de categoria suspeita de discriminação em relação às minorias sexuais, assim como não emprega critérios mais estritos de proporcionalidade nos casos que as envolvem, de maneira que, além de deixar de conceder uma proteção mais adequada e ampla aos direitos dessas minorias, deixa de atender com seu compromisso convencional de compatibilizar suas decisões com os padrões de proteção desenvolvidos no âmbito do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos - em especial pela Corte IDH - e de atender ao princípio pro persona, o qual pressupõe que, havendo disposição de direito, nacional ou internacional, que de maneira mais ampla proteja os direitos humanos, essa deve ser sempre seguida pelos Estados-parte da CADH.
Em resposta ao problema de pesquisa proposto, sustenta-se que há uma vinculação do Supremo Tribunal Federal aos padrões de proteção definidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez que o Estado Brasileiro ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos, bem como se submeteu à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, vinculando-se, assim, à eficácia erga omnes de suas decisões e ao dever de realização do controle de convencionalidade. Além disso, comprometeu-se, convencionalmente, a adotar os padrões de proteção desenvolvidos no âmbito do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos e a atender ao princípio pro persona em suas decisões internas.
Conclusivamente, ressalta-se que a influência do mandado transformador do projeto de um direito comum para a América Latina, almejado pelas propostas do Ius Constitucionale Commune Latino-Americano, intensifica esse dever de compatibilização do direito e da jurisprudência nacional brasileira aos standards estabelecidos no âmbito do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, uma vez que, para a formação desse bloco de direito comum, é imprescindível que, além do estabelecimento de um efetivo diálogo interjurisdicional e da realização do controle de convencionalidade pelos Estados-parte, haja uma mobilização e comprometimento dos Estados em não só construir como adotar os padrões de proteção aos direitos humanos desenvolvidos pelos órgãos de proteção regional.
Em vista do exposto, é possível sustentar que a incorporação, pelo Supremo Tribunal Federal, da noção de categoria suspeita em relação às minorias sexuais, nos moldes já desenvolvidos pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, contribuiria não só para a aplicação de padrões protetivos mais amplos e qualificados para o resguardo dos direitos fundamentais dessas minorias, através da adoção de um procedimento que seja especialmente voltado a repelir e tratar eventuais casos de discriminação, bem como, ao assentir que as minorias sexuais são uma categoria suspeita de discriminação, estaria compatibilizando seu entendimento interno aos preceitos fixados no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e, consequentemente, cumpriria com seus deveres convencionais, contribuindo, assim, para a consolidação de um Ius Constitucionale Commune Latino-Americano.
Com Pós-Doutorado na Ruprecht-KarlsUniversität Heidelberg (Alemanha) e Doutorado em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos (com pesquisas realizadas junto à Ruprecht-KarlsUniversität Heidelberg, na Alemanha). Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito - Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, onde ministra as disciplinas de Jurisdição Constitucional e de Controle Jurisdicional de Políticas Públicas, respectivamente. Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Jurisdição Constitucional aberta”, vinculado ao CNPq. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. E-mail: moniah@unisc.br
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos Sociais e Políticas Públicas da Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, na linha de pesquisa Dimensões Instrumentais das Políticas Públicas. Bolsista PROSUC/CAPES, modalidade I. Mestre (2022) e graduada (2020) em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Integrante do grupo de pesquisa "Jurisdição Constitucional aberta: uma proposta de discussão da legitimidade e dos limites da Jurisdição Constitucional - instrumentos teóricos e práticos". E-mail: elizianefvargas@mx2.unisc.br