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Recepção: 08 Maio 2020
Aprovação: 19 Dezembro 2020
DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2020/50857
Resumo : O objetivo do presente artigo é investigar a crítica de Pachukanis à forma jurídica a partir da compreensão de conhecimento histórico em E.P Thompson. Para tanto, desenvolvo a noção de modo de interrogação histórica para indicar a delimitação teórica da análise pachukaniana. Ao cabo, articulo o conceito de hegemonia e a noção de arena de conflito para esboçar uma abordagem do Direito em sua historicidade.
Palavras-chave: Pachukanis, E.P Thompson, Direito.
Abstract : The purpose of this article is to investigate Pachukanis' critique of legal form from the understanding of historical knowledge in E.P Thompson. For this purpose, I develop the notion of historical interrogation mode to indicate the theoretical delimitation of pachukanian analysis. In the end, I articulate the concept of hegemony and the notion of arena of conflict to outline an approach to Law in its historicity.
Keywords: Pachukanis, E.P Thompson, Law.
Introdução
Pachukanis, com sua Teoria geral do direito e o marxismo, possui significativo impacto no interior das reflexões marxistas do Direito no Brasil1. Trata-se de um campo de investigação já explorado e desenvolvido, seja pela pioneira abordagem althusseriana inaugurada por Márcio Naves2, a proposta do chamado Direito Insurgente3 ou, ainda, pela tese da reprodução sócio-jurídica do capitalismo sustentadapor Guilherme Leite Gonçalves4, entre outras leituras. Não obstante, busco contribuir com uma perspectiva ainda não mobilizada no interior desse campo, o materialismo histórico de E.P Thompson, através da qual pretendo apresentar um problema de pesquisa assentado na articulação entre Direito e conhecimento histórico.
O presente artigo se estruturou a partir da indagação quanto ao modo de construção de uma abordagem teórica da obra de Pachukanis capaz de avançar a compreensão da relação entre Direito e historicidade. Deste modo, desenvolvi a hipótese de que a concepção de história e de conhecimento histórico, tais como formulados por Thompson, importam em chaves analíticas para, de um lado, delimitar o escopo teórico da crítica pachukaniana e, por outro lado, indicar a historicidade como abordagem que lhe é necessariamente complementar.
Destaco, de início, fundamentado na contribuição histórico-teórica de Thompson, o materialismo histórico como articulação necessária entre modos de interrogação, um atinente às formas sociais e outro à historicidade. Para desenvolver tal proposição, interpreto o sentido da dialética em Thompson enquanto prática de pensar em contrários, um modo de apreender a lógica do processo histórico como uma realização fluente, a partir da qual a contradição é apreendida como “momento de possibilidades coexistentes”. Retomo o entendimento de Thompson, moldado em conexão com Raymond Williams, da noção de determinação como “fixação de limites e exercício de pressões”, e como essa se relaciona diretamente com o conceito de experiência e de agência, próprios à historicidade. Tento elucidar como tal articulação entre estrutura, determinação, experiência e agência permitiu a Thompson tanto formular uma concepção de luta de classes e classes original quanto afirmar a centralidade analítica de tais conceitos.
Em seguida, retomo as principais categorias desenvolvidas por Pachukanis em A teoria geral do direito e o marxismo, onde mostro o alcance de seu modo de interrogação do Direito. Por intermédio dessa delimitação teórica, apresento uma análise do argumento pachukaniano que compreende o político como momento da determinação do Direito; reconhece as diferenças conceituais entre forma jurídica e Direito, entre equivalência e igualdade e que afasta a redução da determinação do Estado à sua representação jurídica.
Posteriormente, articulo as contribuições de Raymond Williams e Thompson para o conceito de hegemonia à noção de arena de conflitos a fim de propor uma formulação de legalidade como processo complexo - institucional, social e político - de cristalização de relações de poder, a partir da qual esboço uma abordagem do Direito em sua historicidade.
Evidencio, por fim, como Pachukanis, em Lênin e os problemas do direito, opera em um grau de abstração distinto daquele empregado em A teoria geral do direito e o marxismo. Em virtude da possibilidade oferecida por tal deslocamento, construo um diálogo mais contundente entre as formulações de Thompson e Pachukanis, através do qual indicarei a imprescindibilidade da abordagem do Direito em sua manifestação complexa, isto é, em sua processualidade histórica.
1. A tradição de crítica ativa do materialismo histórico: construindo uma abordagem da crítica do direito de Pachukanis
A presente mobilização de Thompson segue a indicação de Ellen Wood (2003, p. 53), para quem há, tanto nas proposições diretamente teóricas quanto, e ainda mais, na prática historiográfica thompsoniana, os fios perdidos de uma tradição marxista, uma tradição de crítica ativa do materialismo histórico (MATTOS, 2012, p. 8). Atribuo três aspectos distintivos da intervenção político-teórica de Thompson em tal tradição: a afirmação do caráter socialmente ativo do objeto do conhecimento histórico; a dimensão teoricamente distinguível5 da luta de classes e o humanismo teórico. Neste tópico, concentro-me em retomar sua análise de conhecimento histórico, com ênfase no papel da luta de classes em sua estruturação.
1.1 Conhecimento histórico: formas sociais e historicidade
O objetivo específico do presente item é argumentar que a história é um processo estruturado por formas sociais. Para fundamentar esta proposição, mobilizo as formulações teóricas constitutivas da prática historiográfica de Thompson, cuja compreensão de história é articulada em torno do problema da natureza da determinação do ser social em relação à consciência social. Por sua vez, a definição de determinação não pode ser efetivamente mobilizada sem a exposição de alguns pressupostos teóricos, os quais, tendo em vista o objeto do presente trabalho, passo tão somente a indicar.
Deve-se considerar a determinabilidade do objeto real, inclusive sociológica e ideologicamente, em relação ao pensamento no processo de produção do conhecimento, o que pode ser visualizado, especialmente, na crítica de Thompson (1981, p. 15-20) à concepção althusseriana de objeto do conhecimento. O decisivo aqui é que se o objeto determina tanto a definição do problema quanto o seu modo de exposição, o conhecimento histórico deve observar a particularidade de seu objeto-sujeito, qual seja sua dimensão ativa.
Articulada a essa compreensão do objeto real, deve-se observar que dialética em Thompson refere-se ao modo de abordagem caracterizado como prática de pensar em contrários, “um hábito de pensamento (em opostos coexistentes, ou em “contrários”) e como expectativa quanto à lógica do processo” (ibid, p. 129). Em tal acepção, a dialética é prática de apreensão do modo pelo qual a contradição - ou as múltiplas formas de conflitos postos pela agência humana na processualidade histórica - perpassa o objeto de investigação. A categoria experiência é outro momento incontornável da exposição da noção thompsoniana de determinação, na medida em que ela permite captar a maneira com que as relações de produção fixam limites e exercem pressões sobre a consciência social6 (WOOD, 2003, p. 96).
Uma vez que Thompson (2016, p. 405) destaca a forte interlocução com Raymond Williams para a reflexão sobre a noção de determinação, é forçoso, ao menos, indicar aspectos da formulação deste último. Williams (1979, p. 88), ao retornar à etimologia da palavra inglesa determine [“setting bounds” or “setting limits”] - tradução do alemão bestimmen - define determinação, do ponto de vista dos condicionadores da agência, como “fixação de limites” e “exercício de pressões”. Para o autor “a questão-chave é precisar a proporção em que as condições ‘objetivas’ são consideradas como externas” (ibid, p. 89), isto é, a intensidade de tais limites e pressões em relação à agência7.
Por conseguinte, a determinação comporta contradição, de sorte que não se impõe à processualidade histórica como necessidade de ou efeito de, mas como estabelecimento de limites e exercício de pressões que estruturam os processos históricos, ao conferir-lhes, em certa medida, lógica e causalidade. Portanto, determinação não é a
(...) programação predeterminada ou a implantação da necessidade, mas nos seus sentidos de "estabelecimento de limites" e "aplicação de pressões". Significa conservar a noção de estrutura, mas como atuação estrutural (limites e pressões) dentro de uma formação social que permanece protéica em suas formas. (THOMPSON, 1981, p. 125)
Além disso, como exercício de superação de qualquer noção economicista de determinação, importa destacar que em Marx o capital é conceituado enquanto relação social de produção (WOOD, 2003, p. 23). Igualmente, deve-se observar o modo de produção como um “núcleo de características das relações humanas” (THOMPSON, 2014, p. 246), relações sociais necessárias de uma época. A imagem de um núcleo sugere que as relações de produção “moldam ou exercem pressões sobre todos os aspectos da vida social de uma só vez e todo o tempo” (WOOD, 2003, p. 62), razão pela qual o conceito de modo de produção deve ser apreendido como específico entrelaçamento entre o econômico e o “não-econômico” (valores, normas e formas culturais, etc). Assim, qualquer noção de determinação deve considerar que os “fenômenos sociais e culturais não correm atrás dos econômicos após longa demora: estão, na sua origem, imersos no mesmo nexo relacional” (THOMPSON, 2002a, p. 167).
A compreensão thompsoniana de determinação estabelece uma conexão complexa entre estrutura social e sujeito, porque não necessária; a própria estrutura é apreendida como relacional. O sujeito está inserido, portanto, em um plexo de relações que estruturam, sem pôr, sua agência. Se a determinação é o exercício de pressões e a fixação de limites, a agência não pode ser apreendida como efeito da estrutura, nela não pode, pois, sublimar-se. Há, portanto, um campo aberto entre a estrutura e o sujeito, no qual subsiste a historicidade. Daí porque Thompson (1981, p. 112) vai pensar a história em termos de processo estruturado e aberto; a determinação não contém a ação dos sujeitos como um efeito de si, exerce-se, antes, enquanto estruturação através da qual a agência consubstancia a processualidade histórica de modo contraditório, porque não necessária ou não imanente a. A proposta de Thompson de um processo estruturado engendra um problema ao conhecimento histórico quanto à apreensão da estruturação - o que estrutura o processo histórico - que se desdobra, por sua vez, na indagação quanto à sua processualidade - o seu fator de movimento. Vejamos a explicitação de tal problema na observação de Wood quanto ao papel da luta de classes no conhecimento histórico:
O primeiro princípio do materialismo histórico não é a classe e a luta de classe, mas a organização da vida material e da reprodução social. As classes entram no quadro quando o acesso às condições de existência e aos meios de apropriação são organizados em formas de classe, isto é, quando algumas pessoas são sistematicamente compelidas pelo acesso diferencial aos meios de produção e apropriação a transferir mais-trabalho para outros. (WOOD, 2003, p. 108)8
No “primeiro princípio”, aquele atinente à organização da vida material e da reprodução social, de um ponto de vista lógico, as classes sociais e a luta de classes não estão ainda postas, pelo contrário, tais categorias precisam ser explicadas a partir da investigação de tal organização. Não obstante, como recorda Wood (2003, p. 108), o marxismo atribui primazia à luta de classe; mas em qual sentido? Como “força impulsionadora do movimento histórico”, isto é, “as relações de classe são o princípio do movimento no interior do modo de produção” (WOOD, 2003, p. 99). A organização da vida material e de sua reprodução existe conforme a dinâmica de uma divisão social em classes (antagônicas), ao mesmo tempo em que a fragmentação de interesses e conflitos inerentes a tal divisão impulsionam, movimentam, dinamizam - em sentido contraditório, isto é, não necessário, imanente ou imediato - a realização histórica ou a materialização da organização da vida material.
Se nas relações de classe residem a dinâmica, o que define a organização da vida material enquanto um modo de produção historicamente determinado ou, em outros termos, o que o estrutura? Pode-se concluir, a partir de uma acepção possível de forma social em Marx, que a ordem social constitui-se, em seus aspectos mais gerais, de “estruturas pelas quais a sociabilidade tem que acontecer; canalizações por onde fluem as relações sociais”9.
Parece razoável, portanto, a hipótese de dois níveis ou modos de interrogação histórica: um referente à interrogação da determinação histórica das formas sociais típicas de um modo de produção e outro referente à historicidade, isto é, à processualidade histórica da materialização das formas sociais. No primeiro, estamos em um grau de abstração mais elevado, referente às categorias mais gerais e abstratas10, enquanto a historicidade corresponde a uma dimensão mais concreta e, por isso, complexa.
Deste modo, mesmo as categorias mais gerais e abstratas da crítica à economia política marxiana são, ainda, históricas. Neste sentido, Wood (1984, p. 100) observa em Marx uma reflexão sobre uma “lógica do processo” na história, assinalada tanto na “centralidade da atividade produtiva na organização social humana” quanto na indicação da forma específica de extração do mais-trabalho enquanto o segredo mais íntimo da estrutura social. Essa lógica do processo é dada pelas formas sociais, as quais, por isso, estruturam e especificam historicamente uma sociabilidade. Tal formulação também pode ser vista em Thompson que, quando de sua análise da relação entre O capital e a história, afirma o seguinte:
Há uma história do desenvolvimento das formas de capital encerrada nele, mas ela raramente é desenvolvida dentro da disciplina histórica, ou é testada pelos procedimentos da lógica histórica. As passagens históricas são pouco mais que "exemplos" e "ilustrações", mas algo menos que a história real. Logo explicaremos isto mais detalhadamente. Mas devemos dizer desde já que Marx jamais pretendeu, ao escrever O Capital, estar escrevendo a história do capitalismo. (THOMPSON, 1981, p. 69)
Thompson, ao falar sobre a “história do desenvolvimento das formas de capital”, nota, ao seu modo, a densidade histórica da crítica das formas sociais da sociabilidade capitalista empreendida por Marx. Na observação de que tal crítica “raramente é desenvolvida dentro da disciplina histórica”, explicita que sua ênfase é diversa dos “procedimentos da lógica histórica” - próprios à historicidade -, assentados na exposição de evidências empíricas. Ainda quanto a O capital, Thompson (1981, p. 170) destaca que Marx “tornou visíveis as "regras" do capital” e, assim, formulou o conceito de um modo capitalista de produção, onde o circuito do capital reproduz as relações produtivas de sua própria reprodução. No entanto, realça que este circuito, apesar de parecer mover-se por si mesmo de forma natural, absolutamente necessária, encontra a todo instante pontos de obstrução e resistência, de sorte que a luta de classes o conflita em sua própria lógica (ibid, p. 173).
O fundamental, aqui, é observar que não há uma relação de reflexão entre a lógica expositiva das categorias mais abstratas e o movimento histórico concreto. As formas sociais estruturam o modo de produção, porque constituem os limites daquilo que não pode ser transcendido sem que a própria sociabilidade seja superada. Por outro lado, no interior de tais limites há tensões características, porque perpassados pela agência dos sujeitos históricos, de sorte que a relação entre as formas sociais e a historicidade não é reflexiva ou mecânica, mas contraditória. .
Daí porque compreendo a história como um processo estruturado por formas sociais e o conhecimento histórico como uma interação complementar e necessária entre um modo de apreensão formal - no sentido da interrogação quanto à forma social historicamente determinada de uma relação social - e outro orientado à historicidade. Tal proposição desdobra-se, contudo, em um novo problema, qual seja “passar dos circuitos do capital para o capitalismo; de um modo de produção altamente conceptualizado e abstrato, (...) para as determinações históricas como o exercício de pressões” (THOMPSON, 1981, p. 181). Portanto, como articular os modos de interrogação histórica, isto é, a estruturação do processo posta pelas formas sociais e seu movimento histórico efetivo?
A centralidade da luta de classes reside justamente em sua operacionalidade analítica na mediação ou junção entre estrutura e processo. Conforme Wood (1983, p. 239), a luta de classes constitui o núcleo do marxismo, porque através dessa a dinâmica da história (ou, como prefiro, a historicidade) pode ser investigada. Tal centralidade fundamenta-se na compreensão de que a luta de classes não pode ser reduzida a um conflito econômico, na medida em que atravessa, de modo constituinte, as relações de produção e que essas estão no coração da vida social (WOOD, 1998, p. 14).
Para o propósito de delimitação do grau de abstração da crítica pachukaniana da forma jurídica, o importante é, porém, assinalar que a investigação de Marx das formas sociais estruturantes da sociabilidade capitalista empreendida em O capital deve interagir e completar-se por meio de uma análise, também histórica, mas de vocação empírica, capaz de captar o processo histórico em seu movimento concreto. Por esta razão, no último item mobilizo a luta de classes como categoria analítica para indicar uma mediação possível para a articulação e passagem da crítica da forma jurídica à crítica do Direito.
2. A crítica de Pachukanis à forma jurídica
2.1 O modo de interrogação de A teoria geral do direito e o marxismo
Pachukanis (2017, p. 55) adverte, no prefácio à segunda edição, que A teoria geral do direito e o marxismo foi escrito para esclarecimento pessoal, concentrado em alguns aspectos e, por isso, dotado de unilateralidades - o que é reafirmado no prefácio à terceira edição (ibid, p. 53) -, bem como que seu objetivo foi “apenas mostrar sob que ângulo de visão pode-se abordá-los [os problemas da teoria do direito] e como eles podem ser colocados” (ibid, p. 64).
Esta advertência é fundamental para um preciso exame do grau de abstração da investigação empreendida pelo autor e, assim, de seu alcance teórico. Como seria possível, então, examiná-la? Sustento que sua formulação não é propriamente unilateral, mas orientada à interrogação do Direito desde o ponto de vista da crítica de sua forma. Neste sentido, Pachukanis (ibid, p. 72) indica desenvolver sua reflexão a partir da interrogação quanto à possibilidade da teoria geral do direito11 construir definições fundamentais - no sentido de mais geral e abstrato -, assim como procedera a crítica da economia política marxiana, por exemplo, com a forma-valor e a forma-mercadoria. O autor, ao indicar que a teoria do direito deveria “começar pela análise da forma jurídica em seu aspecto mais abstrato e puro, passando gradualmente, por meio da complexificação, ao historicamente concreto”12 (ibid, p. 95), aponta expressamente o escopo de sua análise, ao menos em A teoria geral do Direito e o marxismo.
Além disso, em tal indicação, Pachukanis reconhece a complexidade do conhecimento histórico. Assim, quando afirma ter concentrado-se em alguns aspectos e não em outros do mesmo objeto (o Direito), entendo que seu alerta diz respeito ao fato de o grau de abstração de sua investigação corresponder às categorias mais gerais e abstratas. Não obstante, observa que o conhecimento não se satisfaz com tal ponto de partida, porque deve transitar em direção às manifestações mais complexas e concretas do Direito, em um movimento de concreção histórica. Consequentemente, a advertência pachukaniana comporta dupla implicação: a delimitação do modo de interrogação de seu estudo e a afirmação da imprescindibilidade da investigação da processualidade histórica para o conhecimento do Direito.
Isto posto, se é possível indicar lacunas na análise pachukaniana, é preciso considerar não só o caráter embrionário, mas, especialmente o modo de interrogação empreendido pelo autor, ao qual necessariamente escapa determinados problemas teóricos. Por esta razão, compreendo que o menor relevo (ou mesmo ausência) do debate sobre a luta de classes e as classes sociais em A teoria geral do direito e o marxismo refere-se ao grau de abstração de sua investigação.
O autor reconhece que as abstrações possuem um substrato histórico real e, por isso, que o desenvolvimento histórico real delimita as fronteiras da abstração (ibid, p. 91). Porém, o substrato histórico refere-se não só à delimitação da abstração, mas também ao fato da forma social ser histórica (ibid, p. 139). Neste sentido, “o desenvolvimento dos conceitos corresponde à real dialética do processo histórico”13 (ibid, p. 92), de sorte que abordar o Direito enquanto forma é concebê-lo como dotado de uma história real, de um conjunto de relações específicas (e necessárias) em que os sujeitos adentram, mesmo que involuntariamente.
Pachukanis conclui que o “desenvolvimento dialético dos conceitos jurídicos fundamentais não só nos dá a forma jurídica em seu aspecto mais desenvolvido e articulado, mas também reflete o processo histórico real” (ibid, p. 81). Tal proposição, no entanto, parece opor-se à formulação de Marx (2008, p. 267), que expressamente não só diferencia, como inverte a ordem lógica e a ordem histórica. Todavia, não é sem razão afirmar que Marx, na verdade, indica que os conceitos mais gerais e abstratos (aqueles atinentes às formas sociais) só podem ser apreendidos em um determinado estágio do processo histórico. Neste sentido, a dialética entre o desenvolvimento dos conceitos e do processo histórico real refere-se, por exemplo, à impossível formulação da forma-valor14 em outro modo de produção que não o capitalista, uma vez que ausente sua especificação enquanto tal no seio das relações sociais.
A diferença entre a ordem lógica e a ordem histórica refere-se à impossível derivação do conhecimento de uma forma social historicamente determinada através de manifestações históricas embrionárias precedentes. Assim, por exemplo, a forma-dinheiro não poderia ser conhecida a partir da investigação histórica dos modos de mediação da circulação nas formações pré-capitalistas, porque nessas as determinações da forma-dinheiro ainda não existiamconcretamente. Deste modo, seria a forma-dinheiro, plena de determinações, que tornaria possível a compreensão dos modos de mediação de intercâmbio anteriores. Neste sentido, Pachukanis argumenta15, ainda que não expressamente, que o objeto, especificamente em sua determinação histórica, delimita as possibilidades de sua investigação e exposição, isto é, admite uma relação de interação e aproximação entre o objeto em sua realidade e (a possibilidade de) sua formulação enquanto objeto do conhecimento.
Como visto, Pachukanis desenvolve sua formulação enquanto uma contribuição à construção de uma teoria geral do direito a partir do modo de investigação da crítica marxiana à economia política16. Deste modo, objetiva expressar as categorias que especificam a forma jurídica (PACHUKANIS, 2017, p. 135), isto é, fornecer a apreensão do objeto em sua determinação histórica (ibid, p. 78-79). Especificidade, para o autor, refere- à autonomização de um objeto delimitado, que constituiria, por isso, um campo de investigação próprio. Por esta razão, a especificidade capitalista da forma jurídica alude ao fato de que apenas “a sociedade burguesa-capitalista cria todas as condições necessárias para que o elemento jurídico nas relações sociais alcance plena determinação” (ibid, p. 80), ou, ainda, que “a forma jurídica em seu aspecto mais desenvolvido corresponde às relações sociais burguesas-capitalistas” (ibid, p. 137). Portanto, a forma jurídica é especificamente capitalista, porque apenas o modo de produção capitalista promove sua autonomização em relação ao conjunto das relações sociais, ou seja, a constitui como um objeto teórico singularizado, delimitado.
Pachukanis (ibid, p. 74-75) crítica os marxistas que acharam suficiente introduzir o momento da luta de classes para alcançar uma teoria materialista do direito, porque, ao se concentrarem no conteúdo concreto das normas jurídicas, escapavam-lhes as definições formais da teoria geral do direito. Daí porque para Pachukanis (ibid, p. 109) a abordagem de Stutchka, ainda que revelasse o conteúdo de classe encerrada nas formas [normas] jurídicas, seria incapaz de explicar a razão pela qual este conteúdo assume tal forma. Neste sentido, Pachukanis observa o seguinte:
(...) a teoria marxista deve pesquisar não apenas o conteúdo material da regulamentação jurídica nas diferentes épocas históricas, mas dar uma interpretação materialista à própria regulamentação jurídica como forma histórica determinada. (PACHUKANIS, 2017, p. 76)
É interessante que, sem dizê-lo expressamente, Pachukanis nos adverte que a análise das classes e suas relações não contém em si a apreensão da lógica dialética do objeto enquanto forma social, e vice-versa, de modo que tais dimensões precisam dialogar na produção de conhecimento. Pode-se interpretar, portanto, que o autor, ao advogar a necessidade de interrogar o direito enquanto forma social, não afasta a dimensão de classe do Direito. Pelo contrário, ao preservar tal dimensão, impõe, implicitamente, um problema quanto à articulação da luta de classes à crítica da forma jurídica.
2.2 Forma jurídica e Direito
O itinerário da investigação pachukaniana do Direito enquanto forma social parte da categoria sujeito de direito, o “átomo da teoria jurídica” (PACHUKANIS, 2017, p. 137), visualizada a partir da seguinte afirmação de Marx:
As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para os seus guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode tomá-las à força. Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e que agir de modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria alheia e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de uma ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados. (MARX, 2013, p. 159)
O decisivo é destacar que para Pachukanis a forma do Direito deve ser extraída justamente da forma da circulação de mercadorias, as quais, em tal movimento, sofreriam um processo de abstração de suas qualidades úteis (valor de uso), de modo a se relacionar como “qualidade abstrata do valor que se manifesta como capacidade de trocar-se por outras mercadorias numa proporção determinada” (valor de troca) (PACHUKANIS, 2017, p. 140). Pachukanis (ibid, p. 141-142) argumenta que o valor, a forma social da comensurabilidade entre as mercadorias, é criado pelo trabalho humano abstrato, entendido por aquele como a dissolução dos aspectos concretos do trabalho. Por conseguinte, ao observar que a forma da circulação de mercadorias é a da troca de equivalentes, conclui que “dada a forma da relação de equivalentes, está dada a forma do direito” (ibid, p. 85).
Nota-se, então, a aproximação entre a forma do Direito e a forma-mercadoria (ibid, p. 56), na medida em que para o autor a forma jurídica é determinada pela forma da troca de equivalentes constitutiva da circulação de mercadorias, de modo tal que a esfera da circulação assume um papel determinante em sua formulação (ibid, p. 60). Portanto, a juridicidade é uma relação social de equivalência ou, dito de outro modo, a forma social da troca de equivalentes determina historicamente a forma jurídica enquanto tal, isto é, a especificacomo um objeto teórico autonomamente17 cognoscível. Em suma, Pachukanis (ibid, p. 202) concebe a relação de equivalência, essa ideia “puramente jurídica”, a partir da forma do trabalho abstrato, que aparece no momento da troca como valor, através do qual o produto do trabalho humano pode, por sua vez, ser abstraído de suas qualidades concretas e assumir a forma de mercadoria. Do ponto de vista da relação jurídica, a equivalência manifesta-se como abstração do agente da troca, o que pode ser melhor visualizado na seguinte passagem:
Assim como a multiplicidade natural das qualidades úteis do produto é na mercadoria apenas um simples invólucro do valor, e os aspectos concretos do trabalho humano dissolvem-se em trabalho humano abstrato, como criador de valor, de modo semelhante, a multiplicidade concreta das relações do homem para com a coisa surge como vontade abstrata do proprietário, e todas as particularidades concretas que diferem um representante do gênero Homo sapiens de outro dissolvem-se na abstração do homem em geral, como sujeito jurídico. (PACHUKANIS, 2017, p. 141-142)
Como efeito da centralidade da circulação em seu argumento, Pachukanis (ibid, p. 111) localiza o conceito de relação jurídica justamente na mediação entre os sujeitos no ato de troca, como o outro lado da relação entre as próprias mercadorias. A relação jurídica é o movimento real do direito, razão pela qual argumenta sua precedência ou primazia sobre a norma jurídica (ibid, p. 111). Pachukanis (ibid, p. 113) sustenta que a existência do jurídico não é conferida pelo conteúdo normativo, porque já realizado enquanto relação jurídica, isto é, como relação de equivalência entre sujeitos, cujo pressuposto é a circulação de mercadorias e não a lei, que encontraria, pois, a relação jurídica já realizada (ibid, p. 120).
Por conseguinte, Pachukanis (ibid, p. 121) conclui a anterioridade da juridicidade mesmo em relação ao Estado, cujo poder “traz para a estrutura jurídica clareza e estabilidade, mas ele não cria suas premissas, que são arraigadas nas relações materiais, ou seja, de produção”. Dada a primazia da relação jurídica em relação à norma jurídica, para o autor “quanto mais consequentemente for introduzido o princípio de regulamentação autoritária, que exclui qualquer indício de vontade isolada e autônoma, menor será o terreno para a aplicação da categoria do direito” (ibid, p. 129). Deste modo, não compreende toda regulamentação como jurídica, pois aquela só é admitida como tal na hipótese de abarcar as determinações da relação jurídica, ou seja, a equivalência entre sujeitos. Diferencia, assim, a regulamentação jurídica, onde está presente a “vontade isolada e autônoma”, daquela autoritária, caracterizada pela tendência de supressão de tal vontade18.
Pachukanis desenvolve sua compreensão do jurídico como mediação da sociabilidade, também, ao analisar o conceito de propriedade privada. Para tanto, retoma Lênin, segundo o qual teria uma compreensão dialética da propriedade privada, posto que, ao mesmo tempo em que reconhece o surgimento dessa com a troca, assinala seu surgimento como expressão do “isolamento material dos produtores de mercadorias” (PACHUKANIS, 2018, p. 1900). Assim, Pachukanis (ibid, p. 1899) afirma que a propriedade privada tanto atomiza os indivíduos, quanto os une no mercado através da troca.
Com isso, em uma divisão do trabalho tal, onde um bem é produzido para a venda, há dois fenômenos simultâneos. Por um lado, a propriedade privada é resultado necessário da relação de troca, uma vez que os sujeitos trocam aquilo que lhes pertence e não a outrem. Por outro lado, os produtores de mercadoria atomizam-se, na medida em que, dada a respectiva divisão do trabalho, não há mais uma produção comum para uma apropriação comum, mas produção privada (em oposição à comum/comunitária, não no sentido de uma realização individual da produção) destinada à troca. O jurista soviético assinala, ainda, que os cercamentos simbolizam o direito material exclusivo (a propriedade privada, portanto) e que foram impulsionados pelo “desenvolvimento da economia mercantil-monetária” (ibid, p. 1901). Portanto, para Pachukanis há uma simultaneidade entre a emergência da propriedade privada, a ruptura do laço comunitário da produção e apropriação e a (re)conexão dos indivíduos na relação de troca.
Vê-se, assim, que o fulcro da interrogação pachukaniana do Direito como forma social reside na definição da equivalência enquanto relação social determinante da juridicidade. Todavia, como fora desenvolvido anteriormente, o conhecimento histórico constitui-se de uma interação complementar e necessária entre distintos graus de abstração. Por esta razão, encapsular o Direito ao modo de interrogação empregado por Pachukanis importaria estabelecer sua redução ou sobreposição19 conceitual à forma jurídica, isto é, uma identidade quanto à determinação entre ambos.
Essa sobreposição obstaculizaria a visualização do Direito como um fenômeno complexo que, por isso, só pode ser investigado quando inserido na processualidade histórica. Portanto, o argumento pachukaniano, segundo o qual a equivalência determina historicamente a forma jurídica, é o ponto de partida para uma análise do Direito. Não obstante, esse, como uma totalidade, trata-se de um fenômeno muito mais complexo e concreto que a análise das determinações de sua forma pode apreender, motivo pelo qual só pode ser adequadamente interrogado quando mediado por conceitos próprios ao nível de abstração de sua historicidade.
Uma expressão desdobrada da redução do Direito à forma jurídica pode manifestar-se como sobreposição20 entre forma e norma jurídica, onde a determinação dessa é compreendida como extensão ou reprodução da própria forma jurídica. Tal identidade importaria em uma justaposição conceitual entre forma e concreção ou, ainda, uma extrapolação do movimento lógico próprio à interrogação das formas sociais como necessidade determinante da própria processualidade histórica. Com isso, o efetivo desenvolvimento analítico da historicidade do Direito é obstruído por sua redução a um grau de abstração de ênfase lógico-formal.
Em Pachukanis há apontamentos suficientes, a despeito da ausência de sistematicidade na exposição do autor, atinentes à diferença entre forma e norma, o que é apreciável, especialmente, quando o autor, ao debater a obra de Stutchka, pontua que o “desenvolvimento histórico da regulamentação jurídica, sob o aspecto de seu conteúdo de classe, passa ao primeiro plano na comparação com o desenvolvimento lógico e dialético da própria forma” (PACHUKANIS, 2017, p. 75). Nota-se que Pachukanis, ao afirmar o conteúdo normativo em termos “históricos” e a forma jurídica em termos “lógicos”, sugere a não identidade imediata da investigação de tais aspectos, ainda que certamente o autor compreenda uma relação de determinação da forma em relação ao conteúdo. Essa observação é decisiva, porque tanto permite afastar uma compreensão de norma jurídica como mero reflexo de uma necessidade a priori (a forma) quanto, ao situá-la ao nível da historicidade, possibilita sua interrogação a partir da contradição, conflito, disputa e relações de poder. Deste modo, a normatização jurídica - um dos aspectos do que proponho chamar de processo de legalidade - não pode ser apreendida do mesmo modo que a forma jurídica, pois se refere a um grau de abstração distinto.
Essas distinções conceituais não são um problema teórico menor ou de mera nomenclatura, mas têm o profundo efeito de expandir a investigação do Direito para além do estreito momento da circulação mercantil. Portanto, o aspecto fundamental é observar o limite da crítica pachukaniana à forma jurídica: a interrogação formal não esgota o horizonte de investigação do Direito.
2.3 Equivalência e igualdade jurídica
A delimitação do grau de abstração da formulação pachukaniana e, consequentemente, do seu alcance teórico, importa ainda na distinção21 conceitual entre equivalência e igualdade jurídica. O processo de abstração dos indivíduos na forma sujeito de direito corresponde, em Pachukanis, à equivalência desses tal como aparecem no momento da circulação e não à efetiva igualdade do ponto de vista da legalidade. É verdade que há passagens22 carentes de sistematicidade, onde o autor parece sugerir um tratamento indiferenciado. Todavia, tais passagens muito mais expressam uma ausência de rigor na exposição do argumento, do que uma defesa da sobreposição conceitual entre equivalência e igualdade. As referências de Pachukanis à liberdade ou igualdade, por diversas vezes, estão circunscritas ao âmbito da troca e a partir de um grau de abstração ainda bastante elevado. O autor não se refere, de forma geral, à igualdade e liberdade jurídicas propriamente ditas, mas aos predicados da equivalência na relação jurídica, ou seja, da mediação entre sujeitos que se apresentam um ao outro como dotados de uma vontade autônoma representante de suas respectivas propriedades. O que importa considerar é que tais predicados não exigem efetiva igualdade e liberdade jurídicas, porque ao nível da legalidade, as assimetrias (político-sócio-culturais) do sujeito conformam sua existência jurídica.
Isto porque, uma vez mais, tratam-se de categorias que possuem graus distintos de abstração; a equivalência é a relação social que determina a forma jurídica, a igualdade jurídica corresponde “somente” à materialidade do Direito, isto é, ao processo de legalidade. A igualdade formal entre os indivíduos refere-se já à restrição ou ampliação das garantias jurídicas ou fruição de direitos subjetivos e, como tal, determinada por relações de poder, hierarquias e assimetrias constituídas na processualidade histórica enquanto cristalização de conflitos de toda ordem (classe, raça, gênero, nacionalidade, dentre outros).
A confusão entre equivalência e igualdade jurídica, onde essa é apreendida como desdobramento necessário da realização daquela, poderia resultar na compreensão de que as assimetrias e desigualdades jurídicas são contraditórias à equivalência e, por isso, à circulação de mercadorias23. A equivalência não pressupõe a existência da igualdade jurídico-formal entre os sujeitos, exatamente porque corresponde à abstração das assimetrias dos indivíduos na forma do sujeito (equivalente) da troca. Esta confusão explica, em parte, a redutora conclusão das lutas por igualdade formal como necessário e imediato “reforço” da equivalência e, ainda, a identificação entre reivindicação de direitos e socialismo jurídico24.
2.4 A representação jurídica do Estado
A partir da exposição da primazia da relação jurídica, Pachukanis (2017, p. 168) coloca a questão do Estado, definido, de início, como um fiador das relações de intercâmbio mercantil e, por isso, como um “poder social público, um poder que persegue o interesse impessoal da ordem”. A afirmação do Estado como um “sujeito terceiro” externo que garante a relação entre sujeitos equivalentes compreende o desdobramento lógico da própria forma jurídica das relações sociais. A concepção do Estado como sujeito-poder impessoal é, portanto, afirmada do ponto de vista da juridicidade, isto é, a partir das determinações da forma jurídica.
Por outro lado, do ponto de vista histórico, o autor afirma que o “Estado ‘moderno’, no sentido burguês, surge no momento em que uma organização grupal ou classista de poder abarca um intercâmbio mercantil bastante amplo” (ibid, p. 168). Esta dimensão de classe compreende o elemento substancial da definição do Estado, sobre a qual Pachukanis desenvolve o seguinte:
O Estado, como organização classista de dominação e como organização para a condução de guerras externas, não exige uma interpretação jurídica e, por essência, não a admite. Essa é uma área em que reina a assim chamada raison d’état, ou seja, o princípio de estrita conveniência. Ao contrário, o poder, como fiador da troca mercantil, não somente pode ser expresso nos termos do direito, como se apresenta ele mesmo como direito e somente direito, ou seja, confunde-se inteiramente com a norma objetiva abstrata. Por isso, qualquer teoria jurídica do Estado que queira abarcar todas as funções deste último é necessariamente inadequada. Ela não pode ser um reflexo fiel de todos os fatos da vida do Estado, mas dá apenas um reflexo ideológico, ou seja, deturpado, da realidade. (PACHUKANIS, 2017, p. 168-169, grifo meu)
Por conseguinte, a representação jurídica do Estado, ou seja, sua redução à norma jurídica, mistifica a dimensão do poder de classe. É interessante, aqui, “virar” o argumento de Pachukanis, porque, ao observar que o Estado não pode ser apreendido juridicamente enquanto poder de classe, explicita a delimitação da definição da juridicidade às determinações da circulação, isto é, à equivalência. Portanto, a representação jurídica do Estado é unilateral, porque expressão de apenas “um dos aspectos do sujeito realmente existente, ou seja, da sociedade produtora de mercadorias” (PACHUKANIS, 2017, p. 171). No entanto, o Estado como poder impessoal, fiador da relação entre sujeitos equivalentes, não é para Pachukanis uma simples mentira, mas uma forma específica de que se reveste a dominação de classe (ibid, p. 171). Conclui, então, que a juridicidade promove uma duplicação ideológica do Estado, o que se explicita no trecho a seguir:
A submissão e a dependência do trabalhador assalariado em relação ao capitalista existem também de modo imediato: o trabalho morto acumulado domina aqui o vivo. Mas a submissão desse mesmo trabalhador ao Estado capitalista não é a mesma dependência sua em relação ao capitalista individual, ela é ideologicamente duplicada. Em primeiro lugar, porque existe um aparato especial separado dos representantes da classe dominante, e esse aparato ergue-se acima de cada capitalista individual e figura como uma força impessoal. Em segundo lugar, porque essa força força impessoal não media cada relação separada de exploração, pois o trabalhador assalariado não é coagido política e juridicamente a trabalhar para um determinado empresário, mas aliena a ele sua força de trabalho formalmente, com base em um contrato livre. Na mesma medida em que a relação de exploração é realizada formalmente como relação de dois possuidores de mercadorias “independentes” e “iguais”, dos quais um, o proletário, vende a sua força de trabalho, e o outro, o capitalista, compra-a, o poder político de classe pode assumir a forma de poder público. (PACHUKANIS, 2017, p. 172)
Portanto, o modo de exploração capitalista, mediado juridicamente como relação entre sujeitos equivalentes, determina a forma do Estado como poder político público. O argumento de Pachukanis é que juridicidade produz o efeito real de revestir o Estado de uma forma aparente, enquanto uma esfera de poder impessoal apartada da sociedade (e de seus conflitos). Ainda a respeito da representação jurídica do Estado, Pachukanis (2017, p. 172-174) observa que a concorrência capitalista impede a identificação o poder político ao capitalista individual, de sorte que a equivalência própria à circulação conforma uma representação jurídica do poder de classe que aparece no Estado enquanto uma vontade geral impessoal, como “poder do direito”. O autor observa, ainda que não expressamente, a separação entre o poder político e o poder econômico, assinalando que o “poder dentro da empresa permanece um assunto privado de cada capitalista individual”, “um verdadeiro pedaço de feudalismo” (ibid, p. 173). Neste sentido, afirma ser possível reduzir a representação jurídica do Estado a um único princípio, segundo o qual:
(...) dentre dois agentes de troca no mercado, nenhum pode agir como regulador autoritário da relação de troca, mas que, para isso, é necessário um terceiro, que encarna a garantia mútua que os possuidores de mercadorias, na condição de proprietários, dão um ao outro, e que, consequentemente, é a regra personificada da correlação entre possuidores de mercadorias. (PACHUKANIS, 2017, p. 180)
Além disso, o autor nota que a coerção concentra-se no Estado, assumindo uma “função social” necessariamente abstrata e impessoal, porque a possibilidade do exercício da coerção entre os indivíduos contradiz a mediação mercantil da sociabilidade, isto é, a relação entre equivalentes possuidores de mercadorias (PACHUKANIS, 2017, p. 174). Para Pachukanis (ibid, p. 175), no capitalismo a submissão do homem concreto, isto é, em sua dimensão individual, significa arbítrio, porque submissão de um possuidor ao outro. A coerção só é possível, pois, quando emanada de uma “pessoa abstrata geral” (ibid, p. 175), razão pela qual conclui que o poder (de coerção) realiza-se enquanto poder do direito materializado na norma jurídica.
Por conseguinte, no argumento pachukaniano, a representação jurídica do Estado corresponde à sua manifestação aparente enquanto “força autônoma, separada da sociedade” (ibid, p. 176), que oculta a dominação burguesa na forma de uma “vontade geral” (ibid, p. 178). A juridicidade do Estado representa, pois, a duplicação ideológica da dominação de classe, que se reveste da forma abstrata - mas, objetiva e necessária - de um poder impessoal, fiador de uma vontade geral, que mistifica o “outro lado” quanto à determinação do Estado:
(...) o outro lado da questão, a saber, que a sociedade de classe não é só um mercado em que se encontram os possuidores de mercadorias independentes, mas, ao mesmo tempo, uma arena de uma encarniçada guerra de classes, em que o aparato de Estado é um dos mais poderosos instrumentos. (PACHUKANIS, 2017, p. 181)
O outro lado do Estado, justamente aquele ocultado pela determinação jurídica, é o da dominação e do conflito de classe, ponto de vista a partir do qual o “fator de força” é elemento necessariamente ausente. Não obstante, no aguçamento da luta de classes, a dinâmica conflitiva (pode) condicionar a explicitação da “essência do poder como violência organizada de uma classe sobre a outra” (PACHUKANIS, 2017, p. 182). Quanto a tal processo de reversão da imparcialidade do Estado, vale retomar a seguinte observação de Thompson:
(...) aqueles momentos em que as instituições governantes aparecem como órgãos diretos, acentuados e imediatos da ‘classe dominante’ são excessivamente raros, bem como transitórios. Mais frequentemente, estas instituições operam com uma boa margem de autonomia (...) em um contexto geral de poder de classe que não só pode ser estendida sem maiores riscos como também, muito geralmente, revela as questões que surgem para decisão executiva. (THOMPSON, 2002a, p. 100-101)
Thompson sustenta, portanto, que em sua “normalidade” (situação de estabilidade quanto às forças sociais antagônicas) as instituições operam com uma certa autonomia em relação à classe dominante, ao mesmo tempo em que o “contexto geral de poder de classe” constitui o próprio limite da autonomia do Estado. Deste modo, a normalidade constitui a possibilidade da autonomia. Nos momentos de crise da normalidade, a classe dominante estabelece maior identidade com as instituições de poder do Estado, tal como descreve Pachukanis, personificando-se como ordem e, por isso, a defesa da ordem enquanto garantia de suas posições de poder.
Em resumo, a indicação pachukaniana do Estado como fiador da circulação mercantil capitalista refere-se à sua representação jurídica. O ponto em assinalar tal delimitação reside no fato de que sua extrapolação, ao marginalizar o elemento político na definição do Estado, pode implicar em uma indiferenciação das relações entre as classes quanto à apreensão de sua historicidade. Como se tentou demonstrar, segundo o argumento pachukaniano, o Estado é o poder de classe organizado que se reveste necessariamente da forma aparente de um poder público e impessoal, como fiador das relações jurídicas, ou seja, da relação de equivalência entre sujeitos de direito.
3. O Direito como arena de conflitos
A determinação do Direito não está contida enquanto um efeito da forma jurídica, uma vez que a historicidade não se realiza como um desdobramento lógico das formas sociais. A dimensão política (conflito, lutas, resistências, expectativas, interesses, intrigas…) determina a historicidade própria da legalidade, isto é, o movimento de concreção histórica da forma jurídica. Por legalidade25 entendo o processo institucional - legislativo, judicial e executivo - , social - expectativas informadas, resumidamente, por termos culturais e ideológicos - e político - hegemonia - de cristalização de relações de poder. Portanto, a legalidade constitui a mediação analítica entre a interrogação formal e da historicidade, de sorte que o conhecimento - histórico - do Direito compreende a articulação relacional e contraditória entre forma jurídica e legalidade.
Uma acepção processual da legalidade não define sua expressão e alcance nos limites semânticos do texto normativo, porque as relações de poder particulares que nele foram fixadas não se detém em sua materialização normativa, mas subsistem em termos de expectativas e hegemonia. Portanto, a juridicidade da relação entre sujeitos equivalentes tem sua expressão, do ponto de vista da legalidade, mediada por conflitos próprios à concretude desigual e assimétrica extrajurídica do sujeito social. Na legalidade há a conformação da existência jurídica da forma sujeito de direito.
Assim, sem a categoria luta de classes não se pode compreender a mediação, por vezes contraditória, da realização histórica da forma jurídica em seu conteúdo normativo concreto; não se pode compreender como a legalidade, menos do que uma derivação lógica da forma jurídica, pode, dada sua determinação conflituosa, contradizer os termos da reprodução do capital. Esta mediação contraditória permite apreender, por exemplo, o caso específico da delimitação legal da jornada de trabalho como um garantia-limite do ponto de vista do capitalista e uma sujeição-anteparo em relação ao trabalhador. Não por acaso, Marx (2013, p. 317) caracteriza a limitação do impulso ao prolongamento da jornada de trabalho como submissão do capital “aos grilhões da regulação legal”. A legalidade expressa-se, então, como garantia da exploração e como limitação de seus termos, como salienta Marx (ibid, p. 354-355), ao tratar das minúcias, tais como a fixação de horários e tempos de pausa, da legislação do trabalho como “resultado de longas lutas de classes” ou, ainda, como “produto de uma longa e mais ou menos oculta guerra civil entre as classes capitalista e trabalhadora” (ibid, p. 370).
Sobre a definição de lei, Thompson formula o seguinte:
Assim, a lei (concordamos) pode ser vista instrumentalmente como mediação e reforço das relações de classe existentes e, ideologicamente, como sua legitimadora. Mas devemos avançar um pouco mais em nossas definições. Pois se dizemos que as relações de classe existentes eram mediadas pela lei, não é o mesmo que dizer que a lei não passava de tradução dessas mesmas relações, em termos que mascaravam ou mistificavam a realidade. Muitíssimas vezes isso pode ser verdade, mas não é toda a verdade. Pois as relações de classe eram expressas, não de qualquer maneira que se quisesse, mas através das formas da lei; e a lei, como outras instituições que, de tempos em tempos, podem ser vistas como mediação (e mascaramento) das relações de classe existentes (como a Igreja ou os meios de comunicação), tem suas características próprias, sua história e lógica de desenvolvimento independentes. (THOMPSON, 1997 p. 353)
Thompson capta que se a lei opera como instrumento de legitimação das relações de classe, essas não ocorrem de qualquer maneira, mas através das formas da lei; caso contrário, essa não poderia conferir legitimação à dominação alguma. Por conseguinte, a legalidade de alguma forma limita as relações de classe e, por isso, o exercício de relações de poder ilimitadas ou arbitrárias. Para Thompson (ibid, p. 356) há uma diferença entre o “poder extralegal arbitrário e o domínio da lei”, na medida em que a lei, ao cristalizar o poder de classe, impõe uma mediação às relações de dominação. Com o objetivo de diferenciar o poder arbitrário e o domínio da lei, Thompson advoga o que segue:
(...) as restrições ao poder impostas pela lei parecem-me um legado (...) e uma realização cultural autêntica e importante da burguesia agrária e mercantil, com o apoio dos pequenos agricultores e artesãos (...) Mais que isso, a noção de regulação e reconcialiação dos conflitos através do domínio da lei - e a elaboração de regras e procedimentos que, ocasionalmente, tentaram uma abordagem aproximativa do ideal - parece-me uma realização cultural de significado universal. Não sustento nenhum postulado quanto à imparcialidade abstrata e extra-histórica dessas regras. Num contexto de flagrantes desigualdades de classe, a igualdade da lei em alguma parte sempre será impostura. Transplantada, tal como era, para contextos ainda mais desigualitários, essa lei podia se converter em instrumento do imperialismo. (THOMPSON, 1997, p. 357)26
O domínio da lei, porque cristaliza relações de poder (THOMPSON, 1997, p. 358), importa na conversão da legalidade em uma “arena para a luta de classes” (THOMPSON, 1981, p. 110). Desta dimensão mediadora, Thompson (1997, p. 357) conclui a distinção entre o “exercício da força sem mediações” e as formas da lei como, às vezes, inibição e proteção diante do poder. O Direito, ao se constituir (do ponto de vista da historicidade) das relações de poder, hierarquias e assimetrias da sociabilidade, comporta o conflito, a partir do que se pode compreender quando o autor adverte que a lei não é apenas imposta de cima, mas um espaço onde os conflitos sociais são travados (ibid, p. 358).
A legalidade, uma vez que cristaliza relações de poder na forma de direitos, fixando um “equilíbrio” de forças entre as classes, pode ser pensada a partir do conceito de hegemonia, tal como proposto por Thompson e Williams. Em tal acepção, hegemonia pode ser definida como um senso da realidade, um sistema de significados e valores que são experiencidos como práticas27, uma arquitetura do poder28 e das hierarquias, através da qual existe a dominação e subordinação de classe. Assim, Thompson (2002a, p. 148), ao retomar Gramsci, vai pensar o poder (do ponto de vista da hegemonia) não somente como “mera ditadura mal disfarçada”, mas também como uma conformação dotada de limites, fatores de equilíbrio (desigual) entre as classes. O historiador inglês formula a hegemonia como os termos do poder de classe em “suas formas muito mais sutis, penetrantes e, consequentemente, compulsivas” (ibid, p. 148), cuja antítese seria o Estado de força, o “estado de ditadura nua de uma classe que não dispõe de recursos culturais, ou maturidade intelectual, para deter o poder de outro modo” (ibid, p. 148).
Para que a legalidade funcione em tais termos sutis e penetrantes próprios à hegemonia e, assim, operar sua função ideológica de legitimação do poder de classe, Thompson (1997, p. 353) afirma que a lei necessita de preservar sua lógica e critérios próprios de igualdade e, deste ponto de vista, ser, por vezes, “justa”. Portanto, o domínio da lei, para realizar sua dimensão ideológica de legitimação da dominação de classe, tem que, por vezes, ser “verdadeiro” (conservar certa autonomia em relação à classe dominante), motivo pelo qual termina por talhar, limitar e delimitar o exercício da própria dominação.
A legalidade é um momento central na edificação do senso de realidade constitutivo da hegemonia, na medida em que “(...) as regras e categorias jurídicas penetram em todos os níveis da sociedade, efetuam definições verticais e horizontais dos direitos e status dos homens e contribuem para a autodefinição ou senso de identidade dos homens” (THOMPSON, 1997, p. 358). A legalidade condensa expectativas dos sujeitos em relação aos limites da sociabilidade, isto é, opera como um campo de forças que contribui para a fixação dos limites do possível - pressionados (e pressionando) por aspectos sociais, políticos, culturais, econômicos e etc. Por esta razão, a hegemonia contém os termos sócio-político-culturais da tradutibilidade das relações de classe experienciadas como legais. Neste sentido, se a hegemonia é um poder legal, o Estado de força é não hegemônico, porque, ao subverter a lógica do equilíbrio, da acomodação ou da dominação limitada à legalidade, converte as relações de poder em explicitação de força.
A hegemonia é, portanto, o modo de estruturação do poder de classe mais bem acoplável à reprodução da representação jurídica do Estado, isto porque fornece uma arquitetura tal onde aquele pode apresentar-se como um sujeito impessoal, neutro e portador da vontade geral. É justamente a partir dessa articulação entre impessoalidade e hegemonia que se pode visualizar uma aproximação entre Thompson e aspectos da formulação pachukaniana, como evidencia a longa citação que segue:
A Lei anunciou o longo declínio da eficiência dos velhos métodos do controle e disciplina de classe, e sua substituição por um recurso padronizado de autoridade (...) os economistas defendiam a disciplina dos salários baixos e da fome, e os advogados a pena de morte. Ambos indicavam uma impessoalidade crescente na mediação das relações de classe e uma transformação não tanto nos ‘fatos’ do crime, mas na categoria - ‘crime’ - em si, tal como definida pelos proprietários. O que agora era passível de punição não era um delito entre homens (um rompimento da fidelidade ou submissão, um ‘estrago’ dos valores de uso agrários, um delito contra alguma comunidade corporativa de alguém e seu espírito próprio, uma violação da confiança e da função), mas um delito contra a propriedade. Como a propriedade era uma coisa, tornou-se possível definir os delitos como crimes contra coisas, e não como ofensas a homens. Isso permitiu à Lei assumir, com seus mantos, a postura da imparcialidade: era neutra em relação a todos os níveis entre os homens, e defendia apenas a inviolabilidade da propriedade das coisas. No século 17, o trabalho fora apenas parcialmente livre, mas o trabalhador ainda reivindicava amplas pretensões (às vezes como prerrogativas) sobre o produto do seu trabalho. Como, no século 18, o trabalho se tornou cada vez mais livre, da mesma forma o produto do trabalho veio a ser considerado como algo totalmente distinto, propriedade do patrão ou do dono da terra, a ser defendido com a ameaça da força. (THOMPSON 1997, p. 282)
Nesta rica passagem, Thompson não só explicita a legalidade enquanto momento da hegemonia, como também, por meio do conceito de crime, nota que as relações de classe, no modo de produção capitalista, deixam de ser mediadas pela submissão e fidelidade direta entre os indivíduos-classe e passa a assumir uma forma impessoal, pois mediada pela propriedade. Observa a imparcialidade como um produto da propriedade privada capitalista, no sentido de que a lei passa a não mais regular e proteger a relação imediata entre os indivíduos ou, mais particularmente, as relações de hierarquias entre esses, mas a inviolabilidade da própria propriedade. Pode-se, então, identificar uma aproximação dupla de Thompson em relação à formulação pachukaniana, tanto em relação ao processo de abstração das relações típicas da sociedade capitalista quanto em relação à categoria equivalência. De certa forma, a noção de imparcialidade29 em Thompson capta, em um grau de concretude maior, a determinação própria da juridicidade, isto é, a forma da equivalência.
Thompson, em consonância com sua ressignificação das relações de produção para além de sua redução ao econômico, “relocaliza” a lei ao observá-la como “profundamente imbricada na própria base das relações de produção, que teriam sido inoperantes sem ela” (THOMPSON, 1997, p. 352). Esta compreensão, que expande a apreensão das relações de produção é, de certo modo, tangenciada por Pachukanis (2017, p. 117), quando esse afirma que a superestrutura jurídica mantém uma relação tão íntima com a base econômica que são “as mesmas relações de produção expressas em linguagem jurídica”. Portanto, a despeito do vocabulário empregado por Pachukanis, o Direito não pode ser abordado a partir do pressuposto de que as relações de produção identificam-se ao econômico, que reflete uma instância jurídica correspondente, mas como parte de um núcleo de relações sociais necessárias.
É possível, ainda, indicar uma aproximação de Pachukanis em direção à compreensão da forma jurídica do ponto de vista da historicidade em sua apreciação do Direito na obra de Lênin. Neste sentido, o jurista soviético destaca que Lênin, ao atribuir o papel da forma jurídica, sempre o fez “levando em conta a situação histórica concreta, a relação entre as forças das classes em luta” (PACHUKANIS, 2018, p. 1904), razão pela qual recusou uma negação fetichista da legalidade. Pachukanis aproxima-se30 da noção de legalidade como limite ao exercício do poder, ao afirmar que “Lenin levou brilhantemente em consideração o fato de que a legalidade que nosso inimigo nos impõe é re-imposta a ele pela lógica dos eventos.” (ibid, p. 1904). Deste modo, no autor também é possível ler que a legalidade, ao estabelecer uma tradução particular das relações de dominação de classe, impõe os próprios limites de exercício daquelas. Igualmente, a argumentação de Pachukanis sobre o “direito à autodeterminação” explicita como os conflitos que atravessam a legalidade não importam no necessário reforço de seus fundamentos determinantes, mas, porque condicionam a própria mutabilidade da legalidade, podem gerar contradições na hegemonia de classe; é o que se pode depreender da passagem a seguir:
Lênin compreendeu o que seus oponentes deixaram de entender: que a reivindicação “abstrata”, “negativa” de direitos formais iguais era, em uma dada conjuntura histórica, simultaneamente uma divisa revolucionária e revolucionada, bem como o melhor método de fortalecimento da solidariedade de classe do proletariado e de protegê-lo da contaminação do egoísmo nacional-burguês. Com efeito, na conjuntura concreta na qual o argumento surgiu (quer dizer, às vésperas da guerra imperialista e em seu auge, e, portanto, às vésperas da Revolução Russa), negar o direito à autodeterminação por proceder do fato de que este era apenas um lema de democracia formal - e que os marxistas são obrigados a revelar essa democracia formal em todos os sentidos - teria sido fazer “o jogo não só da burguesia, mas também dos feudais e do absolutismo da nação opressora”. Lênin compreendeu que, naquela fase do desenvolvimento, a reivindicação pela igualdade formal abstrata de direito é uma reivindicação revolucionária que destrói a monarquia semifeudal e, principalmente, o absolutismo russo. (PACHUKANIS, 2018, p. 1928)31
Desta forma, em sua dinâmica, o Direito é pressionado por toda sorte de lutas, resistências e conflitos, ora para a afirmação das determinações concretas dos sujeitos e, assim, de suas desigualdades materiais, como modo de frustração dos atributos de sua abstração ideal; ora para recompor tal abstração ideal mediante o esgarçamento do âmbito da legalidade. Dito de outro modo, a reprodução da forma específica de que se reveste o Direito na sociedade capitalista, ou seja, a relação de equivalência subjetiva, comporta um espectro proteico à expressão das hierarquias e assimetrias de toda ordem, próprias à determinação material dos sujeitos.
Conclusão
Como se viu, Pachukanis define a equivalência como relação social que especifica a forma jurídica, isto é, a determina historicamente e, assim, a autonomiza enquanto objeto teórico. Pretendi indicar que tal definição resulta de um modo de interrogação histórica do Direito enquanto forma social, delimitação por meio da qual procurei tanto sugerir a imprescindibilidade da interrogação articulada do Direito em sua realização concreta, isto é, como legalidade, quanto propor uma problemática capaz de capturar a dimensão do conflito, notadamente a luta de classes, como fator de movimento do Direito.
Deste modo, a mobilização de uma abordagem thompsoniana busca servir de substrato teórico ao estabelecimento de uma mediação na investigação do Direito entre o ponto de vista das formas sociais e da historicidade. Significa, ainda, que a interrogação das formas sociais não pressupõe a redução do horizonte de conhecimento do Direito, mas, pelo contrário, importa na necessidade de enriquecê-lo com as determinações do fenômeno jurídico em suas manifestações historicamente concretas.
Se, por um lado, a luta de classes não pode explicar a forma jurídica; por outro lado, a forma do Direito não contém imediatamente sua historicidade. A relação entre a juridicidade e o Direito não é reflexiva, automática, necessária e de encaixe perfeito. O conflito medeia contraditoriamente tal relação, de sorte que as relações de poder perpassam de modo determinante o movimento da legalidade.
Por conseguinte, busquei o esgarçamento das problemáticas desenvolvidas no interior do debate pachukaniano brasileiro, para o que a distinção conceitual entre Direito e forma jurídica é fundamental, na medida em que abre um campo de investigação que não se esgota na referência à forma jurídica, mas, antes, orienta-se à apreensão cada vez mais concreta de suas determinações. Se como observou Thompson, O capital de Marx não é uma descrição do capitalismo, embora tenha apreendido “as regras do capital”, tampouco A teoria geral do direito e o marxismo de Pachukanis encerra o conhecimento do Direito.
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Notas
Autor notes