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Recepção: 05 Abril 2020
Aprovação: 19 Julho 2020
DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2020/49914
Resumo: O presente trabalho discute os conceitos de política, polícia, dissenso, consenso, democracia e pós-democracia desenvolvidos por Jacques Rancière, bem como explora sua potência crítica a respeito dos avanços do neoliberalismo em âmbito global. Usualmente, a política é resumida à luta por poder e pela legitimidade para exercê-lo, enquanto a democracia é vista como a realização de eleições periódicas para escolha de governantes. Para Rancière, os significados de tais palavras se encontram distorcidos e distantes de sua origem etimológica. Contudo, se democracia e política não são exatamente o que pensamos, o que mais elas podem ser? Este trabalho pretende responder tal questão e demonstrar de que maneira a naturalização dessas distorções conceituais se relaciona com a lógica neoliberal que mitiga o caráter público e universal de questões como trabalho, saúde, educação e seguridade social.
Palavras-chave: Rancière, Política, Democracia.
Abstract: This work discusses the concepts of politics, police, dissent, consensus, democracy and post-democracy developed by Jacques Rancière, as well as explores his critical power regarding the advances of neoliberalism on a global scale. Usually politics is summed up as the struggle for power and the legitimacy to exercise it, while democracy is seen as the holding of periodic elections to choose governors. For Rancière, the meanings of such words are distorted and distant from their etymological origin. However, if democracy and politics are not exactly what we think, what else can they be? This paper intends to answer this question and to demonstrate how the naturalization of these conceptual distortions is related to the neoliberal logic that mitigates the public and universal character of issues such as labor, health, education and social security.
Keywords: Rancière, Politics, Democracy.
Introdução1
Vivemos uma nova onda de reformas neoliberais, as quais prometem resolver as crises cíclicas do capitalismo por meio de gestão financeira eficiente, não-interferência do Estado na economia e austeridade fiscal. Essas são formas sutis de dizer que a administração governamental estará alinhada aos interesses dos investidores, que o Estado não atuará ativamente para diminuir a desigualdade social e que serão operados cortes nos recursos públicos destinados à educação, saúde, trabalho e previdência social.
Na perspectiva do filósofo franco-argelino Jacques Rancière, tal avanço do neoliberalismo tem relação com a lógica consensual que se instalou no ethos ideológico destes tempos pós-democráticos, nos quais a polícia se sobrepõe à política. As categorias “consenso” e “pós-democracia” exigem que se dê um passo atrás no sentido de compreender como autor articula outras categorias como política, dissenso e democracia.
Em seu sentido cotidiano, a política é compreendida como o conjunto de procedimentos relativos ao agrupamento e ordenação das sociedades, especialmente no que se refere à organização dos poderes, à estruturação de lugares e funções sociais e aos sistemas de legitimação desses arranjos (RANCIÈRE, 1999, p. 28). A democracia, por sua vez, é o modelo de organização social onde há liberdade de associação e imprensa, eleições periódicas para escolha de dirigentes e representantes e respeito a direitos e liberdades individuais (RANCIÈRE, 2014, p. 94).
Os sentidos de tais categorias têm sido naturalizados pela teoria e prática políticas2 contemporâneas, gozando de uma perenidade como se fossem impassíveis de ser modificados. De modo similar a uma metonímia em que a parte é tomada como o todo, atualmente a política é resumida à luta por poder e pela legitimidade para exercê-lo, enquanto a democracia é vista, simplesmente, como a realização de eleições periódicas para escolha de governantes. Na perspectiva de Rancière, os significados de tais categorias não poderiam estar mais distorcidos e distantes de sua origem etimológica. Contudo, se democracia e política não são exatamente o que pensamos, o que mais elas podem ser?
Este trabalho pretende responder tal questionamento a partir da obra de Rancière e, ao mesmo tempo, demonstrar de que maneira essa naturalização e perenidade dos conceitos de política e democracia se relacionam com a lógica neoliberal que mitiga diuturnamente o caráter público e universal de questões como trabalho e seguridade social, por exemplo, sob o slogan de que é preciso abrir mão de “privilégios” e se sujeitar às necessidades econômicas do mundo globalizado.
1. Polícia e a lógica da desigualdade
Na perspectiva de Rancière, usualmente a política é compreendida como o conjunto de procedimentos pelos quais se alcançam a agregação e o consentimento de coletividades, a organização dos poderes, a distribuição dos lugares e funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição (RANCIÈRE, 1999, p. 28). Portanto, em seu significado corrente, a política é empregada para descrever procedimentos que organizam as comunidades humanas em formas institucionais e que legitimam essas formas: assembleias constituintes, eleições, plebiscitos, referendos e debates parlamentares, por exemplo.
Rancière, contudo, afirma que tudo isso que normalmente se chama política na verdade faz parte da polícia. Ainda que possa causar certo estranhamento inicial, essa afirmação contraintuitiva ganha sentido quando contemplada por um conceito mais antigo e amplo de polícia. Ao invés de evocar as instituições repressivas do Estado - a polícia truculenta que bate, atira e prende -, as quais chama de “baixa polícia”, o filósofo se apropria da concepção recuperada por Foucault de polícia como técnica de governo3, como “ordem mais geral que dispõe o sensível no qual os corpos são distribuídos na comunidade” (RANCIÈRE, 1999, p. 28 tradução nossa) 4.
Rancière não exclui a “baixa polícia” - os golpes de cassetete e as persecuções criminais - de seu conceito ampliado, mas afirma que ela é somente uma de suas faces, aquela que age nos momentos em que a ordem policial mais ampla não garante o funcionamento “normal” e estável da comunidade, o que torna a violência e a repressão necessárias para manutenção de seu status quo (RANCIÈRE, 1999, pp. 28-29).
Nesse sentido, a polícia não deve ser exclusivamente identificada como violência sob o monopólio estatal, mas como constituição simbólica do social (RANCIÈRE, 2015, p. 44,). Sua essência não está na repressão ou no controle sobre o ser vivente, mas na forma estética em que o sensível é dividido e distribuído. Rancière denomina essa distribuição e divisão operada pela polícia como “partilha do sensível” (partage du sensible). Esse conceito pode ser traduzido como “o sistema de fatos auto-evidentes de percepção sensorial que revela simultaneamente a existência de algo em comum e de delimitações que definem as respectivas partes e posições dentro dele.” (RANCIÈRE, 2017, p. 7, tradução nossa)5.
O verbo partilhar, no francês partager, possui um significado ambivalente que pode designar tanto um compartilhamento (que permite a participação conjunta) quanto uma divisão (que separa e exclui). O substantivo sensível, por sua vez, diz respeito à dimensão estética do mundo, no sentido etimológico de aisthesis6 como percepção sensorial. Assim, a partilha do sensível “se refere à maneira em que a relação entre o comum compartilhado e a distribuição de partes exclusivas é determinada na experiência sensorial” (RANCIÈRE, 2015, p. 44). Ela é a divisão do mundo e das pessoas que determina uma “distribuição do que é visível do que não é, do que pode ser ouvido e do que não pode.” (RANCIÈRE, 2015, p. 44, tradução nossa)7. Em outras palavras, a partilha do sensível distingue previamente os elementos compartilhados necessários (humanidade, inteligibilidade, por exemplo) para que alguém seja reconhecido como parte integrante da comunidade.
Assim, percebe-se que a principal característica da polícia se encontra no aspecto estético de como organiza a percepção social. Ela é um sistema de coordenadas que estabelece uma partilha do sensível que divide a comunidade em grupos, posições sociais e funções (ROCKHILL, 2017, p. 14), e que implicitamente separa aqueles que tomam parte na comunidade dos que são excluídos, pois estabelece uma divisão a priori entre quem compartilha a qualidade de falar e ser visto no espaço e quem é destituído dessa capacidade. Os escravos da Grécia antiga, por exemplo, como descreveu o próprio Aristóteles, não tomavam parte na cidadania ateniense, pois eram destituídos de logos (razão), necessária para o ingresso na vida política da pólis (RANCIÈRE, 2017, p. 7).
Portanto, tomar parte na comunidade significa não apenas ter atribuído a si ocupações e lugares próprios, mas possuir a qualificação para participar naquilo que é compartilhado, isto é, a esfera pública8 da comunidade. De acordo com Rancière, os excluídos da ordem sócio-política - os quais ele chama de “parte dos sem-parte”9 (sans-part) - são historicamente destituídos dessa qualidade política e relegados a uma vida exclusivamente privada (doméstica) pela ordem policial (RANCIÈRE, 2015, p. 46).
Quando há alguém que não se deseja reconhecer como um ser político, começa-se enxergando-o como não possuidor de politicidade, seja não entendendo o que ele diz ou “não ouvindo o que é emitido de sua boca como discurso.” (RANCIÈRE, 2015, p. 46, tradução nossa)10. E por conta desse não reconhecimento de uma capacidade política, os sem-parte (escravos da antiguidade ou imigrantes da contemporaneidade, por exemplo) não tem suas demandas consideradas: suas reivindicações são percebidas como meros gemidos e choros expressando sofrimento, fome ou raiva ao invés de discurso real demonstrando uma aisthesis compartilhada (RANCIÈRE, 2015, p. 46).
Em outras palavras, a polícia é uma ordem dos corpos em sociedade que não somente define “as divisões entre os modos do fazer, os modos de ser e os modos do dizer, que faz que tais corpos sejam designados por seu nome para tal lugar e tal tarefa” (RANCIÈRE, 1999, p. 29, tradução nossa)11, mas que também determina quem tem parte na sociedade e quem não tem. Assim, mais do que determinar a parte que cada um ocupa no todo social, a polícia define a inteligibilidade das partes. Ser considerado ininteligível pela ordem policial significa não ter parte na comunidade - não apenas marginalizado dentro do sistema, mas ser feito invisível por ele (CHAMBERS, 2010, p. 63). É por isso que Rancière ressalta a ideia de que, quando os sem-parte reivindicam algo, não é como se seus argumentos fossem compreendidos e depois desconsiderados. Em um sentido mais profundo, eles sequer são ouvidos como linguagem capaz de carregar significado (DAVIS, 2010, p. 91).
A partir dessa definição, pode-se sintetizar que a polícia é a ordem que faz com que uma atividade seja visível e outra não, que tal palavra seja entendida como discurso racional e outra como mero ruído (RANCIÈRE, 1999, p. 29). O que se pode perceber é que a polícia rancièriana tem estreita ligação com a divisão das esferas pública e privada na sociedade, pois, na medida em que partilha o sensível, ela organiza e delimita o que é considerado público (compartilhado, político) ou privado (particular, doméstico).
E essa divisão historicamente garante uma dupla dominação no Estado e na sociedade, pois ocasiona o não reconhecimento de igualdade e de capacidade política daqueles relegados a uma vida exclusivamente privada (escravos, mulheres, imigrantes, por exemplo), bem como impede o reconhecimento do caráter público de espaços e relações, que são deixados à mercê dos poderes que imperam na esfera privada (como o poder patriarcal no lar ou o poder da riqueza na fábrica) (RANCIÈRE, 2014, p. 72).
Seguindo a lógica da polícia, “a sociedade é constituída por grupos amarrados a modos específicos de fazer, a lugares onde essas ocupações são exercidas e a modos de ser correspondentes a essas ocupações e esses lugares.” (RACIÈRE, 2015, p. 44, tradução nossa)12. A polícia, portanto, é a lei implícita a toda comunidade que atribui posições particulares aos indivíduos e assume que sua maneira de pensar e de se comportar irá seguir de acordo com sua posição.
Dessa maneira, a polícia estrutura inúmeras divisões hierárquicas que transpassam o todo social, haja vista que distribui funções, competências e locais particulares a cada indivíduo na sociedade. Ela traça linhas divisórias entre sujeitos, objetos e locais, estipulando o que pode ser realizado, onde isso pode tomar lugar e quem tem competência para tanto. Nesse aspecto, pode-se dizer que ela é primariamente uma lógica da desigualdade que cria formas de inclusão e exclusão na medida em que particiona o sensível (TANKE, 2011, p. 46).
Assim, até mesmo as várias instituições e processos que são ordinariamente entendidos como políticos (debates parlamentares, eleições, governo) passam a se enquadrar como integrantes da ordem policial. Na medida em que dividem o público e o privado e definem partes com atribuições e competências distintas - os que governam, os que legislam, os que votam -, fica evidente que esses processos e instituições são constitutivos de nossa ordenação policial, pois estruturam as divisões que definem quem pode fazer o que e onde e quando isso deve ser feito. A ordem policial, portanto, opera através de ordenações e hierarquizações no interior do corpo social e sua lógica poderia ser sinteticamente resumida pelo adágio “um lugar para tudo e tudo em seu lugar” (DAVIS, 2010 p. 78, tradução nossa)13.
E além de organizar a comunidade em partes, cada qual com suas atribuições próprias, essa moldura regulatória do social também nega qualquer possibilidade de espaço vazio em seu interior. Ela assume que a sociedade é uma totalidade cujas partes são todas conhecidas, nomeadas e contadas, e que devem ser meramente organizadas na forma mais harmoniosa e produtiva possível (DAVIS, 2010, p. 79). Rancière denomina por “consenso” a partilha do sensível baseada na ideia de que todos estão devidamente incluídos na comunidade e que, portanto, devem permanecer em sua ocupação, lugar e parte no corpo social. “Nessa correspondência de funções, lugares e formas de ser, não há lugar para qualquer vazio. É essa exclusão do que ‘não é’ que constitui o princípio da polícia no coração das práticas estatais.” (RANCIÈRE, 2015, p. 44, tradução nossa)14.
Portanto, as intervenções policiais nos espaços públicos, nas palavras de Ranciére, não consistem em interpelar manifestantes, mas sim em dispersar as manifestações “A polícia é aquilo que diz que aqui, nessa rua, não há nada para ser visto e nada para se fazer a não ser ir embora. Ela afirma que o espaço de circulação é nada mais que o espaço de circulação.” (RANCIÈRE, 2015, p. 45, tradução nossa)15.
Assim, o que a ordem policial tenta a todo tempo fazer é delimitar as fronteiras do que é perceptível, pensável e possível (TANKE, 2011, p. 45). Ela especificamente tenta excluir a possibilidade de qualquer questionamento, disjunção ou disputa sobre a distribuição das partes da comunidade e suas respectivas funções e lugares (DAVIS, 2010, p. 79). E esse processo de disputa ou desacordo sobre as divisões e hierarquizações é justamente o que constitui a essência da política rancièriana. Portanto, a polícia é o exato oposto da política, pois enquanto aquela é uma lógica fundada na desigualdade e que visa à manutenção do status quo, esta é uma demonstração de igualdade que perturba os arranjos sociais vigentes.
2. A política acontece quando a igualdade se opõe à polícia
Se a polícia é a constituição simbólica do social, a consequência lógica disso é que a existência de alguma ordem policial é inevitável. Toda e qualquer comunidade humana, ao se constituir enquanto tal estabelecerá uma ordem policial, traçando diversas linhas hierárquicas que dividem, com base em diversos fatores, qual o lugar e função de cada um na sociedade. Em uma sociedade particular, podem existir mais ou menos tipos de hierarquia: gênero, raça, orientação sexual, classe, etc. Assim, uma ordem policial mais complexa (como é o caso das sociedades contemporâneas) será marcada não apenas por uma única divisão hierárquica, mas por uma ampla variedade de distintas relações de dominação que se entrecruzam de maneira interseccional (MAY, 2010, p. 71).
Tendo isso em consideração, devemos recusar a tentação de projetar um reino de pura igualdade e liberdade fora da ordem policial, haja vista que sua existência está imbricada com a própria organização do social. Porém, não obstante se tratar de uma perspectiva que não prevê uma emancipação total e completa, afirmar a inevitabilidade da ordem policial não é a mesma coisa que abandonar uma posição crítica em relação a ela, nem dizer que toda polícia é igual: “uma polícia pode ser infinitamente preferível a outra”, contudo, “isso não muda sua natureza” (RANCIÈRE, 1999, p. 31, tradução nossa)16.
Há, portanto, polícias piores e polícias melhores, não sendo a melhor a que segue a ordem supostamente natural das sociedades ou as teorias dos especialistas, “mas a que teve sua lógica ‘natural’ abalada por todas as quebras e infiltrações perpetradas pela lógica igualitária.” (RANCIÈRE, 1999, p. 31, tradução nossa)17. Essas quebras e infiltrações nada mais são do que as consequências dos encontros entre a política e a ordem policial. Proposta como uma atividade bem determinada e antagônica à polícia, a política não se confunde com um exercício ou disputa pelo poder, mas designa um acontecimento muito mais específico e raro do que normalmente se pensa (RANCIÈRE, 2015, p. 27).
Em contraposição à racionalidade da polícia, a política é regida pela lógica da igualdade e “ocorre quando aqueles que aparentam ser desiguais são declarados iguais e o trabalho regulatório da polícia é mostrado como arbitrário.” (DAVIS, 2010, p. 79, tradução nossa)18. Em seu aspecto essencial, a política rancièriana se funda numa premissa de igualdade radical, isto é, na compreensão de que todos os indivíduos são a princípio iguais.
Para o filósofo, a sociedade é desigual não porque as pessoas nascem desiguais, mas porque em seu interior existem inúmeras divisões e hierarquizações que criam e sustentam desigualdades (RANCIÈRE, 2014, p. 65). Essa igualdade como premissa, contudo, não deve ser entendida como algo que é naturalmente dado ou garantido pelos regimes de governo, mas sim conquistada por aqueles que se declaram iguais no interior de determinada ordem policial (MAY, 2010, pp. 71-72).
A ideia de que a igualdade é um “ponto de partida”, que Rancière herda da pedagogia emancipatória de Joseph Jacotot19, faz com que ele a compreenda como um pressuposto anterior e necessário a qualquer ordenação hierárquica, e que é capaz de demonstrar a completa contingência e arbitrariedade da dominação de uns sobre outros (RANCIÈRE, 2014, p. 65). Ela é um pressuposto anterior e necessário ao funcionamento da desigualdade, pois, para que haja hierarquia e ordem na sociedade, alguns devem comandar e outros devem obedecer. Mas antes que qualquer comando seja obedecido, é necessário que se compreenda o mandamento e que se compreenda porque é necessário obedecer-lhe. E se essa compreensão é possível, é porque aquele que obedece compartilha a mesma capacidade de entendimento daquele que comanda, ou seja, são intelectualmente iguais (RANCIÈRE, 1999, p. 16).
Portanto, para que qualquer hierarquia subsista, é necessária uma prévia igualdade entre quem detém a autoridade e quem se sujeita a ela. Isto é, “a sociedade não igualitária só pode funcionar graças a uma multitude de relações igualitárias.” (RANCIÈRE, 2014, p. 65). E se governante e governado são, em última análise, iguais, desmancham-se no ar os argumentos de caráter divino, metafísico ou “natural” que tentam fundamentar e legitimar a dominação de uns sobre outros. Assim, a premissa de igualdade universal faz com que toda e qualquer ordem social fique nua em sua arbitrariedade ou contingência, pois erode as bases dos inúmeros discursos que suportam as hierarquias sociais existentes com o argumento de que alguns são melhores ou mais capazes que outros (RANCIÈRE, 2014, p. 63).
Porém, cabe lembrar que essa igualdade pressuposta não é necessariamente reconhecida a priori no interior da ordem social. Ela necessita ser declarada e verificada, isto é, conquistada, para que ganhe efetividade, pois
“a igualdade não é um dado que a política aplica uma essência que a lei encarna nem um objetivo que a política se propõe atingir. A igualdade é apenas uma pressuposição que precisa ser discernida nas práticas que a implementam.” (RANCIÈRE, 1999, p. 33, tradução nossa)20.
Tendo isso em mente, percebe-se que o cerne da política é constituído justamente por atos que declaram igualdade em oposição à desigualdade das hierarquias sociais, igualdade a qual só poderá ter sua concretização verificada ao fim do conflito (CITTON, 2010, p. 32-33).
Um exemplo que pode auxiliar na compreensão dessa ideia é a tática adotada pelo movimento dos direitos civis na década de 1960 nos Estados Unidos: os “protestos sentados” (sit-ins), dos quais o próprio Martin Luther King participou. Naquela época, por herança do regime escravocrata, ainda existiam muitos restaurantes no sul do país que não atendiam afro-americanos por pura discriminação racial. Como forma de protesto, grupos formados por três ou quatro pessoas negras iam até tais estabelecimentos, se sentavam e esperavam para pedir seu almoço. Elas não carregavam placas ou cartazes, mas simplesmente agiam como qualquer outro cliente pedindo o cardápio para escolher sua refeição. Normalmente, esses grupos eram seguidos por segregacionistas, que os provocavam e agrediam, bem como por policiais, que os prendiam sob argumentos de que estavam perturbando a ordem. Apesar das violências infligidas a eles, os ativistas negros não reagiam violentamente; eles deixavam claro que só estavam ali para almoçar da exata mesma maneira que as pessoas brancas (MAY, 2010, p. 72).
Os militantes dos direitos civis atuaram baseados numa pressuposição de igualdade. Ao agir coletivamente como se já fossem iguais às pessoas brancas, que podiam fazer pedidos nos restaurantes, eles declararam uma igualdade que trouxe conflito à ordem social de sua época (MAY, 2010, p. 72). Para Rancière, esse movimento é político no sentido mais preciso do termo, pois confronta a hierarquia e a desigualdade impostas pela ordem policial com base numa igualdade que é declarada por aqueles que são tratados de forma desigual e que só poderá ser verificada ao fim do conflito. A disputa se dá entre dois modos distintos de partilhar o sensível: o da polícia, que, ao impedir que frequentem os mesmos espaços, não reconhece às pessoas negras a mesma cidadania compartilhada entre brancos, e o da política, que amplia a esfera pública da cidadania às pessoas negras ao demonstrar que, se todos são iguais, todos podem frequentar os mesmos lugares independentemente de sua cor de pele (RANCIÈRE, 2014, p. 80).
Justamente por essa compreensão de que a igualdade é um elemento a priori, mas que necessita ser posta à prova para que tenha efetividade, comentadores das obras de Rancière a qualificaram como uma “igualdade ativa”, pois ela é “uma forma de igualdade que os oprimidos presumem, declaram e verificam por si mesmos” (DAVIS, 2010, p. 27, tradução nossa)21. Portanto, a igualdade que sustenta a racionalidade da política rancièriana é criada por pessoas e não para pessoas, devendo “ser distinguida da igualdade como convencionalmente entendida, a ‘igualdade passiva’ que é dada (ou, mais frequentemente, não dada) por aqueles no poder” (DAVIS, 2010, p. 27, tradução nossa)22.
Em todo movimento político, há um conflito entre aqueles que atuam em nome de sua igualdade e a ordem social que pressupõe sua desigualdade. A esse conflito, Rancière dá o nome de desacordo23 (mésentente), que designa uma determinada disputa discursiva sobre os termos de como o sensível é partilhado (MAY, 2010, p. 73). Ele “não é o conflito entre um que diz branco e outro que diz preto. É o conflito entre um que diz branco e outro que também diz branco, mas que não entendem a mesma coisa a respeito da ‘brancura’.” (RANCIÈRE, 1999, p. x, tradução nossa)24.
Rancière ressalta que o desacordo não decorre de construções linguísticas equivocadas, da eventual dissimulação de uma das partes ou da natureza imprecisa das palavras (RANCIÈRE, 1999, p. x). O desacordo acontece quando ambos os interlocutores entendem e não entendem a mesma coisa sobre as mesmas palavras, pois o que se encontra em disputa é a própria inteligibilidade dos sujeitos (RANCIÈRE, 1999, p. xi). Ou seja, o conceito de desacordo não significa um uso equivocado da linguagem nem um mal entendido; mas sim um conflito sobre o que significa falar, uma disputa sobre certa partilha do sensível que delimita os horizontes do dizível e determina a relação entre ser, ouvir, fazer e pensar. Nesse sentido, o “desacordo é menos um choque entre regimes frasais heterogêneos ou gêneros de discurso que um conflito entre a partilha do sensível dada e o que permanece fora dela.” (ROCKHILL, 2017, 15, tradução nossa)25.
Assim, percebe-se que a política sempre suscitará um desacordo sobre a forma como a polícia partilha o sensível, pois ela questiona as divisões entre o público e o privado, discute quem tem capacidade para participar nas decisões sobre a comunidade e torna visíveis e audíveis sujeitos que, até então, não tinham razão para aparecer ou falar. Desse modo, a política se refere aos acontecimentos que rompem com a configuração “normal” do sensível através de uma série de atos que reconfiguram o espaço onde as partes e as ausências de partes se definiam. A atividade política desloca um corpo do lugar que lhe era designado ou muda a destinação de um lugar; ela faz ver o que não cabia ser visto ou faz ouvir um discurso onde só tinha lugar o barulho (RANCIÈRE, 1999, p. 29).
O que se pode concluir com isso é que, “se a política emprega uma lógica totalmente heterogênea à da polícia, está sempre amarrada a ela.” (RANCIÈRE, p. 1999, p. 31, tradução nossa) 26. Em outras palavras, se a lógica policial se traduz no funcionamento “normal” da sociedade - isto é, cada um realizando sua função em seu devido lugar -, e se a política é a atividade que interrompe questiona normalidade, a decorrência lógica dessa relação é que a polícia é um pressuposto para o acontecimento da política.
A razão disso está no fato de que a política não tem objetos ou questões que lhe sejam inerentes ou próprios. A igualdade, seu único princípio, não lhe é própria e nem é política em si mesma. A política somente inscreve, sob a forma de disputa, uma declaração de igualdade no interior da ordem policial. Assim, o que constitui o caráter político de alguma ação não é seu objeto ou o lugar em que ocorre, “mas unicamente sua forma, a que inscreve a averiguação de igualdade na instituição de um litígio, de uma comunidade que existe apenas pela divisão.” (RANCIÈRE, 1999, p. 32, tradução nossa)27. Portanto, a política encontra a polícia em toda parte e esse encontro deve ser pensado como um encontro de heterogêneos.
Desta maneira, “para que uma coisa seja política, é preciso que suscite o encontro entre a lógica policial e a lógica igualitária, a qual nunca está previamente constituída.” (RANCIÈRE, 1999, p. 32, tradução nossa)28. Isso se dá, pois, se a política é o que põe em xeque a organização social em sua “normalidade”, “significa que sua existência não é de forma alguma necessária, mas que ela ocorre como um acidente provisório dentro da história das formas de dominação.” (RANCIÈRE, 2015, p. 43, tradução nossa)29. O que se percebe a partir disso é que, por mais que nada seja político em si mesmo, qualquer coisa pode vir a sê-lo, se der ocasião ao encontro das duas lógicas. Desse modo, a política não existe o tempo todo, mas ela é sempre uma possibilidade - uma possibilidade de que as coisas poderiam ser diferentes do que são.
A política, consequentemente, pode potencialmente se manifestar a qualquer momento e em qualquer lugar: numa disputa sobre imigração e nacionalidade, numa greve de trabalhadores ou num conflito sobre sistemas públicos de saúde ou educação, por exemplo. Nenhum desses contextos e causas são intrinsecamente políticos, mas em todos pode surgir uma disputa entre o princípio da igualdade da política e a ordem hierárquica da polícia (RANCIÈRE, 1999, pp. 32-33). Por conta disso, política é um acontecimento muito mais raro do que ordinariamente se pensa; ela é uma atividade momentânea e provisória que não somente interrompe a ordem policial, mas a reconfigura implementando mais igualdade em seu interior.
A afirmação de que a política não deve ser compreendida como exercício ou legitimação do poder nem como confronto entre sujeitos ou grupos sociais ganha muito mais sentido a partir de agora. A política é prévia a tudo isso, pois age desafiando as divisões e distribuições da ordem policial, seja reconfigurando as divisões entre as esferas pública e privada ou rediscutindo as identidades, ocupações e lugares que definem as competências de cada um na comunidade (RANCIÈRE, 1999, pp. 40-41). A política busca demonstrar que, como todos são iguais, qualquer um poderia ocupar uma posição diferente da qual realmente ocupa. Ela demonstra que o trabalho hierarquizante da polícia repousa em última instância sobre a ausência de qualquer princípio ordenador fundacional ou arkhé30: “há política simplesmente porque nenhuma ordem social está fundada na natureza, porque nenhuma lei divina ordena as sociedades humanas.” (RANCIÈRE, 1999, p. 16, tradução nossa)31.
3. Democracia e subjetivação política: uma disputa pela ampliação da esfera pública
A ordem policial não reconhece a existência de qualquer vazio ou suplemento em seu interior; todas as partes da comunidade estão devidamente contadas, nomeadas e distribuídas, e basta que se mantenham assim para que a sociedade funcione na forma mais harmoniosa possível. De acordo com Rancière, esse sonho de completude e harmonia entre todas as partes da comunidade está presente na filosofia política desde os gregos antigos, os quais, em sua tentativa de criar a cidade-Estado ideal, se questionaram sobre quem a compunha. Tanto Platão quanto Aristóteles estipularam classes (partes) que integrariam a sociedade ateniense e prescreveram a cada uma delas um papel específico que, se devidamente exercidos, propiciariam a justiça e o bem comum (RANCIÈRE, 1999, pp. 7-8).
Ambos teorizaram uma determinada partilha do sensível que dividia a comunidade entre os que tinham uma parte na esfera pública (compartilhada) e podiam se ocupar das decisões sobre o governo, e os que não tinham parte, isto é, aqueles que estavam excluídos da esfera pública e relegados a uma existência exclusivamente privada (doméstica) (RANCIÈRE, 1999, p. 9). Essas distribuições, apesar de seus nomes e da ideia de justiça atrelada ao seu arranjo, são drasticamente desiguais e apenas reforçam a divisão social do trabalho, pois, em última análise, dividem a comunidade entre os destinados a governar e os que devem apenas trabalhar e se sujeitar às ordens dos governantes (TANKE, 2011, p. 48).
O termo democracia surgiu após as reformas de Sólon em 594 a.C., as quais aboliram a escravidão por dívida em Atenas. Essa abolição fez emergir uma classe de pessoas chamada de demos, o povo, cujos membros não possuíam os atributos tradicionais (riqueza, nobreza ou excelência moral) considerados necessários para o envolvimento nos processos de governo da cidade (DAVIS, 2010, p. 80). A única qualidade das pessoas do povo, sua liberdade, não lhes era de forma alguma exclusiva, já que os ricos e nobres da cidade também eram livres.
O demos era nada mais “que a massa indiferenciada daqueles que não têm nenhum título positivo - nem riqueza, nem virtude - mas que, no entanto, têm reconhecida a mesma liberdade que aqueles [os nobres e os ricos] possuem.” (RANCIÈRE, 1999, p. 8, tradução nossa)32. Em outras palavras, o demos era definido como a coletividade daqueles que “não tomavam parte em nada”, ou seja, como parte dos sem-parte na divisão de funções, competências e lugares da esfera pública.
Contudo, nada obstante sua falta de qualificações para decidir sobre os assuntos comuns da pólis, o demos ateniense reivindicou não apenas participação em pé de igualdade com todos aqueles que possuíam títulos qualificantes (arkhé), mas também a soberania única sobre a cidade (DAVIS, 2010, p. 80). A democracia, assim, nasce como um escândalo para a ordem hierárquica: pelo simples fato de ter nascido na pólis ateniense, depois que a escravidão por dívidas foi abolida, qualquer um dos corpos falantes fadados ao anonimato do trabalho e da reprodução, que não tinham mais valor do que os escravos, é contado na parte chamada de demos como participante dos negócios comuns enquanto tais (RANCIÈRE, 1999, p. 7).
Rancière considera que o não reconhecimento do demos como parte social possuidora de politicidade compartilhada e necessária para a participação na vida pública é um erro33 de contagem que a ordem policial lhe inflige. E esse tipo de erro é inerente a qualquer sociedade, pois a ordem policial
“conta apenas suas partes reais - grupos de fato definidos por suas diferenças de nascimento e por suas diferentes funções, lugares e interesses, que compõe o corpo social para a exclusão de todo suplemento.” (RANCIÈRE, 2015, p. 44, tradução nossa)34.
Nesse sentido, a contagem de partes da comunidade operada pela polícia será “sempre uma falsa contagem, uma contagem dupla ou um erro de contagem” (RANCIÈRE, 1999, p. 6, tradução nossa)35, pois não leva em consideração partes não reconhecidas enquanto tal.
E como já dito, não ser contado como parte da comunidade implica em ser inaudível ou invisível na esfera pública (RANCIÈRE, 1999, p. 9-10). O demos (ou parte dos sem-parte), desse modo, se encontra na difícil posição de não ter sua existência reconhecida dentro da hierarquia social da ordem policial: eles não contam, eles não foram contados. E sua reivindicação igualitária busca explicitar que a hierarquia na qual estão inseridos é fundada numa injustiça elementar, no erro fundamental de seu não reconhecimento (DAVIS, 2010, p. 80).
A reivindicação usurpadora do demos para governar Atenas é sua resposta ao erro inaugural que a ordem policial da cidade lhes causa ao afirmar que eles não contam, que não tomam parte em nada naquilo que é comum à comunidade. A política acontece a partir desses erros de cálculo, ela é
“obra de classes que não são classes, que inscrevem sob o nome particular de uma parte excepcional ou de um todo da comunidade (os pobres, o proletariado, o povo) o erro que separa e reúne duas lógicas heterogêneas [desigualdade e igualdade] da comunidade.” (RANCIÈRE, 1999, p. 39, tradução nossa)36.
Daí a afirmação “a relação política que torna possível conceber o sujeito da política, não o contrário.” (RANCIÈRE, 2015, p. 35, tradução nossa)37. Os sujeitos políticos se constituem enquanto tal na medida em que se engajam a processar38 o erro que lhes é causado pela distribuição desigual do social.
A fim de demonstrar como a parte dos sem-parte pode se fazer aparecer em momentos e lugares distintos, Rancière utiliza como exemplo o caso de Auguste Blanqui em 1832, durante um processo movido contra ele por suas atividades revolucionárias. Questionado pelo presidente do tribunal sobre sua profissão, ele respondeu simplesmente “proletário”. A essa informação, o magistrado objetou: “isso não é um profissão”, para logo após ouvir a réplica de que essa “é a profissão de trinta milhões de franceses que vivem de seu trabalho e que são privados de direitos políticos” (RANCIÈRE, 1999, p. 37, tradução nossa)39.
Vemos nesse diálogo o erro de contagem que as respostas de Blanqui evidenciam. É perceptível que a palavra proletário não designa nenhum tipo específico de ofício. Ela se refere à classe do proletariado, que aqui cumpre a mesma função semântica do demos ateniense: são os sujeitos que não contam na vida pública da comunidade, ou seja, destituídos de direitos políticos e relegados a uma existência exclusivamente doméstica (RANCIÈRE, 1999, 38).
O proletariado, assim, não é a coletividade de trabalhadores braçais ou pobres; ele é a classe dos incontados que somente existe na própria declaração na qual eles se contam como os que não são contados (RANCIÈRE, 1999, pp. 38-39). As afirmações de Blanqui ocasionam um desacordo que expõe o erro existente na distribuição desigual de partes da comunidade, pois, sob o nome “proletário”, elas trazem ao campo do sensível uma coletividade até então “percebida” como inexistente. O erro sofrido pelo proletariado francês se encontra na falha da ordem policial em efetivamente incorporar a igualdade universal de direitos a si mesma. É a partir de sua manifestação sobre a exclusão que sofre que o proletariado ganha existência como uma parte real da sociedade (RANCIÈRE, 1999, pp. 38-39).
A esse processo de autoafirmação dos excluídos a partir da denúncia de sua própria exclusão, Rancière dá o nome de “subjetivação política”, ou seja, “a produção, por uma série de ações de um corpo e de uma capacidade de enunciação previamente não identificáveis num campo de experiência dado, cuja identificação é, portanto, parte da reconfiguração do campo da experiência.” (RANCIÈRE, 1999, p. 35, tradução nossa)40. Em outras palavras, a subjetivação política redefine a partilha do sensível que confere a cada um sua identidade com sua parte, decompondo e recompondo a relação entre as formas de fazer, de ser e de dizer atribuídas às partes e ausências de partes da comunidade. Esse modo de subjetivação não cria sujeitos a partir do nada; “ele os cria transformando identidades definidas na ordem natural da repartição das funções e dos lugares em instâncias de experiência de um litígio” (RANCIÈRE, 1999, p. 36, tradução nossa)41.
Antes do processo de subjetivação, a vida das pessoas sem-parte é desigual e isolada, elas apenas sobrevivem se sujeitando à posição social que a ordem policial lhes designa. Mas na medida em que essa coletividade de incontados põe em movimento uma ação política, eles emergem enquanto grupo onde antes não havia nada. Nesse sentido, o campo da experiência é reconfigurado e aqueles que têm parte são obrigados a enxergar novos sujeitos que até então eram invisíveis, completos subalternos na sociedade. Assim, a subjetivação política não deve ser vista como o resultado do movimento democrático, mas como um de seus elementos, pois ela é o processo por meio do qual a parte dos sem-parte se constitui enquanto tal e passa a demandar o reconhecimento de sua politicidade (MAY, 2010, pp. 78-79).
Para Rancière, a subjetivação política se resume em três aspectos. Primeiro, ela é uma introdução, no campo da experiência, de um visível que modifica o regime do sensível através da demonstração de existência de uma coletividade até então inexistente. Segundo, a coletividade que ocupa essa posição “é um ‘povo’ de um tipo particular, que não é definível em termos de propriedades étnicas, que não se identifica com uma parte sociologicamente determinável de uma população nem com a soma dos grupos que constitui essa população” (RANCIÈRE, 1999, p. 99, tradução nossa)42, ou seja, ela é a parte dos sem-parte. Terceiro, a aparição dessa parte dos sem-parte acontece na condução de uma disputa, que “é distinta de todos os conflitos de interesse entre partes constituídas da população, pois ela é um conflito sobre a própria contagem dessas partes.” (RANCIÈRE, 1999, p. 100, tradução nossa)43.
A democracia, portanto, é um acontecimento no qual coletividades não reconhecidas como partes da sociedade colocam em movimento a própria oposição da lógica policial da distribuição dos lugares e a lógica política do traço igualitário (RANCIÈRE, 1999, p. 100). Dessa maneira, as formas da democracia não são outra coisa senão as formas nas quais esse mecanismo ternário se manifesta: pela emergência da parte dos sem-parte no sensível, por sua subjetivação não-identitária e pela condução da disputa. A democracia se apresenta como um princípio anárquico44 que interrompe o bom funcionamento da ordem hierárquica da sociedade nos momentos em que a parte dos sem-parte se subjetiva politicamente.
Portanto, na mesma medida em que a política é sempre heterogênea à polícia, a democracia é sempre antagônica ao governo, pois consiste numa série disruptiva e precária de atos que interrompem o funcionamento “normal” da ordem social estabelecida. Assim, evidencia-se o sentido da afirmação de que a democracia não é um regime de governo ou uma forma de organização social e que, consequentemente, não vivemos em democracias (RANCIÈRE, 2014, p. 94).
Todavia, é necessário destacar que, por mais que a democracia nunca se identifique com uma forma jurídico-política, isso não quer dizer que lhe seja indiferente. Existem formas institucionais de organização da sociedade mais ou menos influenciadas pela atividade democrática, sendo as mais democráticas as que já foram infiltradas e modificadas pela lógica igualitária (RANCIÈRE, 2014, pp. 72-73). Assim, as conquistas dos movimentos democráticos dos últimos séculos, como leis trabalhistas que estipulam limites à exploração do trabalho pelo capital, sistemas públicos de saúde e educação de caráter universal ou sistema de cotas raciais para ingresso em universidades, por exemplo, são algumas dessas infiltrações de igualdade no interior da sociedade desigual.
4. Pós-democracia e consenso: razões do retrocesso democrático
Quando, por meio de reformas legislativas, privatizações e desmonte de instituições públicas, os governos contemporâneos devolvem educação, saúde, trabalho, previdência social, entre outros temas, à esfera exclusivamente privada da sociedade, obliteram-se justamente as referidas inscrições de igualdade arduamente implantadas em nossa ordem policial. Esse movimento de “reprivatização” ou retrocesso democrático, contudo, não deve ser compreendido como algo inesperado, haja vista que a teoria desenvolvida por Rancière não é ingênua a ponto de achar que a igualdade é um valor atemporal ou que está eternamente garantida a partir do momento em que tenha sido demonstrada (MAY, 2010, p. 71). É necessário sempre ter em mente que a emancipação democrática é um “processo aleatório que redistribui o sistema de coordenadas sensíveis sem ser capaz de garantir a absoluta eliminação das desigualdades sociais inerentes à ordem policial” (ROCKHILL, 2017, pp. xiv-xv, tradução nossa)45.
Em nossa contemporaneidade, esse processo de reprivatização da esfera pública se apresenta de duas formas:
“uma forma explícita que nega direitos políticos a certas partes da população com base em aspectos sexuais, sociais ou étnicos; e uma forma implícita que restringe a esfera da cidadania a um conjunto definido de instituições, problemas, agentes e procedimentos.” (RANCIÈRE, 2015, p. 65, tradução nossa)46.
Enquanto a primeira parece antiquada nas sociedades do Ocidente, a segunda se mostra como uma questão contemporânea de maior relevância. Desde a década de 1980, sob os nomes de modernização ou neoliberalismo, efetivaram-se em escala internacional inúmeros reversos do processo democrático que alargou a esfera pública e transformou “questões de ‘vida privada’ - como trabalho, saúde e seguridade social - em preocupações públicas relacionadas a cidadania igual.” (RANCIÈRE, 2015, p. 65, tradução nossa)47.
O que se pretende demonstrar a partir dessa crítica é que os reversos democráticos da atualidade são modificações muito mais profundas que uma mera reconfiguração no equilíbrio entre a provisão pública e privada de serviços e utilidades, pois, por trás dos modos em que trabalho, saúde, educação e previdência social são regulados, se encontra a própria compreensão do que constitui o comum da comunidade (RANCIÈRE, 2015, p. 66). E ao afirmar que esses assuntos devem ser tratados exclusivamente pela iniciativa privada, desloca-se a linha que divide o que está incluído na esfera pública da cidadania (o que é comum, compartilhado) do que está fora dela (o que pertence à esfera privada dos interesses particulares).
Rancière chama atenção especial ao fato de que essas privatizações da esfera pública são embasadas por argumentos de autoridade científica e necessidade econômica, os quais reiteram a urgência do desmanche de instituições públicas para o bem da economia nacional (RANCIÈRE, 2014, p. 98-99). E essa influência do discurso neoliberal, que exige medidas de austeridade e submissão do Estado aos interesses do capital financeiro, é fruto da lógica consensual que se instalou em nossa contemporaneidade pós-democrática (RANCIÈRE, 1999, pp. 112-113).
Pelo termo pós-democracia ou democracia consensual, Rancière designa “a prática governamental e a legitimação conceitual de uma democracia depois do demos” (RANCIÈRE, 1999, p. 102, tradução nossa)48, ou seja, de uma ordem policial que conseguiu liquidar o dispositivo ternário da ação democrática, enclausurando a aparência da parte dos sem-parte, a demonstração do erro de contagem e a disputa política “no jogo único dos dispositivos de Estado e das composições de energias e de interesses sociais.” (RANCIÈRE, 1999, p. 102, tradução nossa)49.
Dito de outra maneira, a pós-democracia é um regime do sensível em que a polícia realizou sua racionalidade do consenso, que é a de garantir a plena identificação entre os dispositivos institucionais e a disposição das partes da sociedade, fazendo desaparecer qualquer possibilidade de vazio e, consequentemente, da aparição do sujeito próprio da democracia, o demos, a parte dos sem-parte (RANCIÈRE, 1999, p. 102). Na ordem policial contemporânea, através de variados procedimentos, as lutas democráticas são convertidas em conflitos manejáveis pelo Estado (TANKE, 2011, p. 46).
O excesso democrático é absorvido pelo governo, o qual reduz, por exemplo, a cidadania à proximidade dos indivíduos com o poder público ou a soberania popular ao exercício do voto em eleições periódicas. Nesse sentido, a pós-democracia “é a prática e o pensamento de uma adequação, sem resto, entre as formas do Estado e o estado das relações sociais” (RANCIÈRE, 1999, p. 102). Assim, a pós-democracia é o próprio desaparecimento da política enquanto ruptura com a ordem constituída.
Esse desaparecimento, estreitamente relacionado com a degenerescência e desmoronamento do sistema soviético e com o enfraquecimento em escala global das lutas sociais e movimentos de emancipação, permitiu que a lógica consensual da polícia se instalasse de forma hegemônica em nossa atualidade. Agora todas as partes da sociedade estão à vista, na medida em que o corpo social é constantemente apresentado a si mesmo na forma de pesquisas de opinião pública e estatística. Toda a população está cientificamente mapeada e contada, ou seja, não existe mais parte dos sem-parte e a objetivação dos problemas se apresenta como a única forma de lidar com o social (RANCIÈRE, 1999, p. 102,). As utopias de liberdade e igualdade dos séculos passados estão ultrapassadas; devemos ser realistas e nos conformar com aquilo que a ciência afirma que é possível.
Rancière alerta que esse suposto realismo propagado pela racionalidade pós-democrática é uma das formas que a ordem policial de nossos tempos encontrou para dar fim à política. Esse discurso, que se vende como não-ideológico, tenta convencer que o mundo existente, o status quo, é o único possível e que não há nada para se almejar além disso; ele “é a absorção de toda realidade e toda verdade na categoria da única coisa possível.” (RANCIÈRE, 1999, p. 132, tradução nossa)50. Ao se promover como a alternativa mais eficiente, o discurso realista adotado por nossos regimes de governo pede que as pessoas sejam razoáveis em suas demandas e tenham consciência das contingências do mundo globalizado: devemos nos contentar com o que temos e, em tempos de “vacas magras”, devemos abrir mão de nossos “privilégios” (TANKE, 2011, p. 47).
Assim, liquidam-se ideias, teleologias, promessas utópicas e nomes políticos que, em tempos passados, expuseram a comunidade às disputas fundamentais sobre as partes que a compõem e suas relações. Argumentos de ordem científica e econômica conjugam-se num certo regime do sensível no qual reformas no sistema previdenciário, flexibilização de direitos trabalhistas ou cortes de receitas destinadas à saúde e educação públicas são inconvenientes necessários do presente que serão compensados no futuro. No consenso da pós-democracia, há apenas uma única realidade objetiva, chamada de economia, que não permite interpretações e requer sempre as mesmas respostas (RANCIÈRE, 2014, p. 98).
E se economia, ou ilimitação expansiva do capital, passa a ser compreendida como uma realidade incontornável de nosso mundo e de seu futuro, os governos preocupados com uma gestão realista do presente e uma previsão arrojada do futuro devem eliminar os freios existentes no interior dos Estados nacionais que contrapõe a seu livre desenvolvimento. A isso se dá o nome de “modernização”, que não é uma simples tarefa de adaptação dos governos às duras realidades do mundo, mas sim “o casamento do princípio da riqueza com o princípio da ciência que fundamenta a nova legitimidade oligárquica.” (RANCIÈRE, 2014, p. 99).
Assim, os problemas enfrentados pela sociedade já não demandam mais discussão pública ou disputas políticas para que se resolvam; agora tudo depende exclusivamente dos especialistas. Independentemente se a escolha popular eleger um governante de direita ou de esquerda, as soluções dependem dos experts que serão indicados para gerir o Estado. Nesse sentido, a autoridade dos governos passa a se fundamentar em dois sistemas de razões opostas: “ela é legitimada, de um lado, pela virtude da escolha popular e, de outro, pela capacidade dos governantes de escolher as soluções certas para os problemas da sociedade.” (RANCIÈRE, 2014, p. 100). A contradição se encontra aqui: se as “soluções certas” são justamente as que decorrem do conhecimento científico e não da escolha popular, esta se torna apenas um elemento que confere legitimidade, que dá um aspecto “democrático” ao governo dos especialistas (RANCIÈRE, 2014, p. 100).
Para Rancière, já passou o tempo em que a divisão do povo era suficientemente ativa e a ciência era suficientemente modesta para seus princípios opostos preservassem coexistência. Atualmente, a aliança oligárquica entre ciência e riqueza exige todo o poder de ditar os rumos da sociedade para si e não admite que o povo ainda possa se dividir e se multiplicar (RANCIÈRE, 2014, p. 100). Assim, “a uma vez escandalosa tese de Marx de que os governos são meros agentes de negócios do capital internacional hoje é um fato óbvio sobre o qual ‘liberais’ e ‘socialistas’ concordam.” (RANCIÈRE, 1999, p. 113, tradução nossa)51. A absoluta identificação da atividade estatal com a administração do capital não é mais vista como um segredo vergonhoso que corrompe o governo; ela é a verdade abertamente declarada pela qual os governos obtêm legitimidade (RANCIÈRE, 1999, p. 113).
Declarando-se gestores dos impactos locais da necessidade histórica mundial, os governos agora se empenham em rechaçar qualquer suplemento democrático, despolitizando assuntos públicos e transformando-os em questões exclusivas do conhecimento dos especialistas, aquém e além da discussão pública (RANCIÈRE, 2014, p. 103). Nesse sentido, as necessidades incontornáveis utilizadas como justificativa para os variados retrocessos democráticos em andamento se revelam como uma conjunção de duas exigências: uma própria à ilimitação expansiva do capital, que pretende abolir todas as barreiras impostas a seu crescimento, e outra própria ao poder oligárquico das elites governamentais, que transforma o espaço público do Estado em assunto cada vez mais privado daqueles que integram a burocracia estatal (RANCIÈRE, 2014, p. 104).
E a guerra declarada contra o que resta do Estado-social do século passado é apresentada como o fim de uma situação de assistência e retorno da responsabilidade individual e da iniciativa privada. Instituições de previdência e solidariedade social nascidas das lutas democráticas são propagandeadas como benefícios abusivos de um Estado paternalista e tentacular que precisam acabar, pois atrapalham o livre mercado de produzir riqueza. Porém, nessa luta contra o Estado acusado de obstaculizar e atrasar o crescimento econômico atacam-se precisamente instituições de solidariedade não estatais, “que eram também os lugares de formação exercício de outras competências, outras capacidades para cuidar do comum e do futuro comum que não as das elites governamentais.” (RANCIÈRE, 2014, p. 105).
Nesse sentido, a liquidação do suposto “Estado-providência” não é o recuo do Estado, mas o esfacelamento de instituições e funcionamentos que se interpunham entre a lógica capitalista da ilimitação da riqueza e a lógica monopolista da gestão estatal direta. Desse modo, a oposição simplista e maniqueísta entre assistência estatal e iniciativa privada mascara o processo de apagamento de formas de organização da vida material da sociedade que escapam da lógica do lucro e de lugares de discussão dos interesses coletivos que escapam do monopólio do governo científico (RANCIÈRE, 2014, pp. 105-106).
Atualmente, aqueles que lutam para defender sistemas de educação e saúde públicos e gratuitos ou legislações trabalhistas e previdenciárias protetivas aos trabalhadores serão chamados de antiquados, utópicos ou ignorantes (RANCIÈRE, 2014, p. 107). O poder econômico não tolera mais entraves a seu crescimento ilimitado e seus mecanismos estão cada dia mais articulados à ação governamental: “poder estatal e poder da riqueza conjugam-se tendencialmente em uma única e mesma gestão especializada dos fluxos de dinheiro e populações. Eles se empenham juntos para reduzir os espaços da política.” (RANCIÈRE, 2014, p. 120).
No caso brasileiro, exemplos significativos que evidenciam esse processo de retrocesso democrático em nossa história recente são as reformas trabalhista e previdenciária. Ambas foram amplamente propagandeadas como medidas, ainda que prejudiciais à parcela da população que depende de sua força de trabalho para sobreviver - os mais pobres -, necessárias e eficazes para desentravar o crescimento da economia nacional, tanto no aspecto do aumento da produtividade quanto da geração de emprego52.
Nesse cenário, tanto o direito do trabalho quanto o próprio trabalho humano tendem a se tornar mais flexíveis. Eles precisam se adaptar aos movimentos da economia e às inflexões do mercado do trabalho, “abraçando a identidade móvel de um trabalhador sempre passível de tornar-se um meio-trabalhador, um desempregado ou um semi-desempregado.” (RANCIÈRE, 1999, p. 111, tradução nossa)53. Agora, para os trabalhadores terem direitos, eles precisam primeiro trabalhar e, para isso, é preciso que abram mão dos direitos que impedem as empresas de lhes dar trabalho (RANCIÈRE, 1999, p. 111)54.
Contudo, apesar dos retrocessos democráticos que vêm acontecendo no Brasil e fora dele, deve-se recordar que, assim como a existência de alguma ordem policial é inevitável, a política democrática é uma possibilidade sempre presente, pois ela é a possibilidade de que as coisas poderiam ser diferentes do que são (DAVIS, 2010, p. 75). A democracia não é a forma de governo que permite à oligarquia reinar em nome do povo nem a forma de sociedade regulada pelo poder da mercadoria; “ela é a ação que arranca continuamente dos governos oligárquicos o monopólio da vida pública e da riqueza a onipotência sobre a vida.” (RANCIÈRE, 2014, p. 121).
Considerações finais
Justamente por ser esse elemento subjacente a toda ordem social e que interrompe o funcionamento “normal” que a polícia visa garantir, “o ‘governo de qualquer um’ está fadado ao ódio infindável de todos aqueles que têm de apresentar títulos para o governo dos homens: nascimento, riqueza ou ciência.” (RANCIÈRE, 2014, p. 119). Há vários padrões de governo pelos quais as comunidades humanas são governadas; os mais comuns são baseados no nascimento, força, riqueza ou ciência (sendo estes dois últimos os mais presentes nos regimes contemporâneos).
A política, entretanto, implica em algo extra: uma qualificação suplementar comum tanto aos governantes quanto aos governados, sua igualdade. Ela é a suplementação de todas as qualificações pelo poder dos desqualificados, que demonstra que não há uma boa razão para que alguns poucos governem e a maioria obedeça, e que a prática do governo repousa sobre sua própria ausência de razão (RANCIÈRE, 2015, p. 61). A democracia, por sua vez, significa precisamente que o “poder do demos” ou “poder do povo”, que simultaneamente legitima e deslegitima o governo, “é o poder daqueles que nenhuma arkhé os intitula para exercer.” (RANCIÈRE, 2015, p. 60, tradução nossa)55.
O demos, portanto, não é a população, a maioria, o corpo político ou as classes baixas: “ele é o excesso que a comunidade fez daqueles que não tem qualificação para governar, o que significa todos e nenhum ao mesmo tempo.” (RANCIÈRE, 2015, p. 61, tradução nossa)56. Por conta disso, o poder do povo não pode ser equacionado com o poder de um grupo particular ou uma instituição. De um lado, ele é a diferença interna à comunidade que ao mesmo tempo legitima e deslegitima as instituições estatais e as práticas de governo. E na medida em que deslegitima o governo, ele corre o constante risco de desaparecimento, pois é continuamente contrariado pelo funcionamento oligárquico dessas instituições. Por outro lado, o poder do povo, por estar sempre correndo o risco de desaparecer, deve ser reencenado incessantemente para desafiar a distribuição policial de partes, lugares e competências e para reafirmar a fundação anárquica da política (RANCIÈRE, 2015, pp. 61-62).
Atualmente, a força do consenso pós-democrático se baseia na ideia de que a expansão ilimitada do capital é uma realidade inescapável a qual não devemos questionar ou contrariar, mas apenas aceitar e nos adaptar. Um dia já se acreditou que o movimento progressivo da história levaria as sociedades inevitavelmente à revolução socialista mundial. Atualmente, acredita-se que o livre mercado internacional resolverá suas próprias falhas e nos levará ao fim da história (RANCIÈRE, 2014, p. 109). Compreender o que a democracia significa é renunciar a qualquer tipo de fé no progresso histórico como um movimento natural e inevitável. As sociedades marcadas por conquistas de movimentos democráticos são somente o conjunto das relações igualitárias que se traçam no presente por meio de atos singulares e precários, e não há nada que garanta a sua manutenção eternamente (RANCIÈRE, 2014, p. 122).
Se há algo de inevitável no mundo, é o movimento que reduz e apaga os espaços públicos, justamente porque eles são uma interrupção precária no funcionamento “normal” das formas de dominação legitimadas pelas ordens policiais inerentes às comunidades humanas. Nesse sentido, compreender a singularidade da democracia é também tomar consciência de sua solidão, pois ela estará sempre sob o risco de desaparecer perante os poderes que criam e sustentam desigualdade e hierarquia. A democracia “não se fundamenta em nenhuma natureza das coisas e não é garantida por nenhuma forma institucional. Não é trazida por nenhuma necessidade histórica e não traz nenhuma. Está entregue apenas à constância de seus próprios atos.” (RANCIÈRE, 2014, p. 122).
A parte dos sem-parte, seja ela o demos ateniense, o povo da era revolucionária, o proletariado industrial, as mulheres feministas, as vítimas da colonização, os refugiados econômicos, as minorias étnicas ou as pessoas LGBTI, se constitui enquanto parte na medida em que expõe à comunidade ao erro de sua própria exclusão. E sua ação democrática não apenas demonstra uma busca por reconhecimento, mas afirma e inscreve uma marca igualdade de ser, fazer, falar ou ser ouvido até então inexistente no regime sensível, questionando e se contrapondo aos limites impostos pela ordem policial sobre o que é (im)possível em nosso mundo. Portanto, não servindo somente para avaliar o movimento de reformas neoliberais como retrocessos democráticos, a teoria rancièriana também demonstra que as (im)possibilidades sobre o futuro de nossa organização social podem se tornar objeto de disputa entre a polícia e a política em qualquer momento e lugar.
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Notas
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