Resumo: Apresentando a ideia de colonialidade da organização e regulação do trabalho, o artigo pretende levantar potenciais contribuições dos estudos descoloniais para se compreender a corpo-política do conhecimento no Direito do Trabalho e nos Estudos Organizacionais. A partir de pesquisa teórica radicalmente interdisciplinar e epistemologicamente dissidente, pretende-se refletir sobre os modos dessa colonialidade e as potenciais saídas dela nesses dois campos de pretensões ao mesmo tempo críticas e normativas reportados ao universo do poder nas relações laborais.
Palavras-chave: Colonialidade da organização e regulação do trabalho, Direito do Trabalho, Estudos Organizacionais.
Abstract: Presenting the idea of coloniality of the organization and regulation of labor, the article intends to raise potential contributions from decolonial studies to understand the body-politics of knowledge in Labor Law and in Organizational Studies. Based on radically interdisciplinary and epistemologically dissident theoretical research, we intend to reflect on the modes of this coloniality and the potential solutions to it in these two fields that share both critical and normative contents reported to the universe of power in labor relations.
Keywords: Coloniality of organization and regulation of labor, Labor Law, Organization Studies.
Artigos
A colonialidade da organização e regulação do trabalho
The coloniality of the organization and regulation of labor
Recepção: 06 Fevereiro 2020
Aprovação: 21 Agosto 2020

As relações de trabalho são relações de poder. Se tal constatação emerge sem maiores dificuldades dos estudos contemporâneos da organização e regulação do trabalho, em variadas frentes e tradições teóricas, incluindo as críticas, a extensão e formas desse poder não estão necessariamente reveladas em sua integralidade. Especialmente em campos que se reportam diretamente ao universo do trabalho com pretensões de diagnose e normatividade, envoltos pelas próprias formas desse poder. Aí é que se percebe que as relações de trabalho são relações de um poder ainda mais complexo do que revelaram as teorias eurocentradas sobre a exploração do trabalho do século XIX e XX. O objeto do presente estudo é justamente a exploração dos déficits de compreensão que se acumulam em dois desses campos que analisam e estruturam normativamente (ou prospectivamente, em crítica) as relações de trabalho no que diz respeito às formas desse poder que lhes atravessam de maneiras nem sempre visíveis. De um lado, Direito do Trabalho e, de outro, os saberes administrativos aplicados ao trabalho, com destaque para os Estudos Organizacionais. Esses dois domínios centrais para a experiência contemporânea do trabalho serão, aqui, (re)localizados epistemologicamente para que se revele como estes se desenham dentro de marcos de colonialidade, em vista do contexto geopolítico e intelectual da América Latina. A partir daí, pretende-se compreender que funções cumprem e que funções podem cumprir em face do poder que lhes circunda.
O ponto de partida para tal deslocamento crítico é o fato de a produção de conhecimento latino-americano no campo das Ciências Sociais e Ciências Sociais Aplicadas estar associada, tradicionalmente, a perspectivas eurocêntricas. Tais perspectivas se apresentam como universais e impedem a compreensão de zonas periféricas a partir de análises de realidades próprias e baseadas em epistemes desenvolvidas com o olhar para esse mundo. É o que Lander (2005), Walsh (2007) e Gómez-Quintero (2010) denominam colonialidade do saber, pressuposto teórico primeiro deste artigo. A história do sistema-mundo patriarcal/capitalista/colonial/moderno, como se verá, tem privilegiado, até o momento, perspectivas de conhecimento e modos de produção de conhecimento colonial/moderno, capitalista e eurocentrado (QUIJANO, 2000), o que também se revela fortemente na compreensão do mundo do trabalho.
Neste sentido, Grosfoguel (2008) explica que os Estados centrais desenvolveram e desenvolvem estratégias ideológico-simbólicas ao incentivar e privilegiar o saber eurocêntrico em detrimento de outros produzidos em zonas consideradas periféricas, subdesenvolvidas e atrasadas. Já esse outro conhecimento, considerado subalterno, é, por vezes, excluído, omitido e/ou silenciado.
Nos dois campos do saber a serem discutidos neste artigo o fenômeno da hierarquização epistemológica se revela de modo bastante nítido. Barros e Carrieri (2013) evidenciam, por exemplo, a “americanização” dos saberes administrativos e o repúdio aos saberes organizacionais locais pela academia, ao relatarem a forte influência dos modelos e conhecimentos técnicos importados da Europa e dos Estados Unidos. Da mesma forma, a perspectiva prevalente do Direito do Trabalho latino-americano, derivado do paradigma jurídico eurocêntrico, ignora as “sujeições interseccionais nas relações de trabalho contemporâneas, provenientes da divisão laboral racial-sexual da América Latina colonial, que articulava concomitantemente servidão, escravidão e trabalho livre conforme raça e gênero” (MURADAS; PEREIRA, 2018, p. 21). Afirma, é certo, um princípio jurídico-normativo de proteção que lhe confere fundamento, sem, contudo, compreender as articulações que dão a tal princípio a formulação e sentidos vividos que têm em relações de trabalho não homogêneas.
Além disso, tanto nas escolas de Administração quanto nas academias jurídicas ainda se ensinam, muitas vezes, conteúdos não necessariamente situados, não referenciados às práticas sociais, a partir de metodologias estrangeiras e com repetidas referências acríticas à literatura europeia (LEITE; DIAS, 2013). Não que exista um problema intrínseco no diálogo com a produção dos países do norte global. Mas o que se verifica na produção do saber é uma hierarquização, que classifica e despreza nos dois campos aquilo que não seja profundamente arraigado nos modos de pensar dos países centrais. Neste sentido, faz-se necessária não apenas “uma nova maneira de pensar o direito, mas de novas formas de pensamento que descentralizam e pluralizam o que tem sido considerado como jurídico” (COLAÇO; DAMÁZIO, 2012, p. 11). O mesmo, é certo, vale para a produção e transmissão dos saberes em matéria de Administração.
Desse modo, Colaço e Damázio (2012) e Rosa e Alcadipani (2013) apontam para a necessidade de reconhecermos os efeitos dessa colonialidade presentes no nosso modo de pensar e interpretar o mundo devido a nossa visão colonizada, como as disfunções na produção de conhecimento no Direito do Trabalho e nos Estudos Organizacionais. Assim, tanto autoras e autores nas áreas da Administração (e.g.IBARRA-COLADO, 2006; FARIA; WANDERLEY, 2013; WANDERLEY, 2015; ABDALLA; FARIA, 2017) como na área do Direito do Trabalho (e.g.CRUZ, 2001; GOMES, 2017; MURADAS; PEREIRA, 2018) começam nos últimos anos a explorar criticamente tais relações e a defenderem a descolonização de tais campos de conhecimento. A intenção desse primeiro grupo de textos críticos parece se encaminhar na direção de uma construção, ou uma reconexão, de novas perspectivas de análise que transcendam quaisquer tipos de fundamentalismos e que problematizem aquilo que se pode chamar de uma corpo-política do conhecimento (GROSFOGUEL, 2007). A presente reflexão se insere nesta linha, que, é preciso notar, se desenvolve ainda de maneira bastante incipiente.
Portanto, este artigo, de natureza teórica, tem o objetivo central de analisar as contribuições dos estudos descoloniais1 enquanto uma epistemologia crítica para se compreender a corpo-política do conhecimento em Direito do Trabalho e nos Estudos Organizacionais, diante das pretensões normativas e críticas compartilhadas, em alguma medida, por ambos os campos. No contexto deste artigo, entende-se por estudos descoloniais aqueles estudos críticos e de resistência que descolonizam a epistemologia e os cânones ocidentais eurocêntricos e que levam em consideração o lado subalterno da diferença colonial, isto é, os estudos das periferias, das mulheres, da comunidade LGBTIQ+, de sujeitxs racializadxs/colonizadxs, de trabalhadorxs, dentre outrxs. Contudo, vale ressaltar que não se trata apenas de realizar pesquisas sobre a perspectiva subalterna, mas também de produzir conhecimento sob essa perspectiva e a partir dela (GROSFOGUEL, 2008).
Na consecução desse objetivo geral, um passo fundamental será o próprio desvelar da colonialidade do trabalho como uma das camadas menos visíveis do poder nas relações do capitalismo do sistema-mundo. Em dimensões que vão desde a dinâmica estrutural da divisão internacional do trabalho, passando pela distribuição da precariedade trabalhista em chaves interseccionais, a revelação do pluralismo de formas de trabalho não reveladas na superfície da descrição do capitalismo, até a própria conformação das subjetividades subalternas no trabalho, pretendemos trazer à discussão esses pressupostos da colonialidade do poder e sua relação com os campos da normatividade administrativa e jurídica do mundo do trabalho. Direito do Trabalho e Estudos Organizacionais são tomados, aqui, em sua simbiose, por se influenciarem mutuamente, mas também por serem produzidos no mesmo pano de fundo de relações de poder. E, finalmente, por reinscreverem nessas relações efeitos normalizadores, que conservam (ou podem alterar, espera-se) as próprias relações de trabalho a partir dos desenhos dessas relações de poder.
Neste sentido, afirmamos que um outro olhar não somente é possível, como também é indispensável para que situações coloniais sejam problematizadas e descolonizadas no contexto acadêmico e social. Que se coloque num projeto anticolonial. Como pontuado por Quijano (2000, 2013), ainda vivemos em um mundo colonial onde é preciso se libertar das formas reduzidas de se pensar as relações coloniais, a fim de concretizar o incompleto e inacabado projeto de descolonização do século XX. Para tanto, faz-se necessário assumir abertamente “uma geopolítica e uma corpo-política do conhecimento descoloniais como pontos de partida para uma crítica radical” (GROSFOGUEL, 2008, p. 121), a fim de transcender fundamentalismos eurocêntricos e de propor formas alternativas de conhecimento baseadas em uma racionalidade não-eurocêntrica das subjetividades subalternas.
Tal estudo se justifica por se fazer necessário fortalecer a perspectiva descolonial no Brasil, uma vez que a temática é pouco debatida e problematizada nos Estudos Organizacionais (WANDERLEY, 2015) e no Direito do Trabalho (MURADAS; PEREIRA, 2018) nacionais. Ademais, fortalecer esse movimento enriquece prática e teoricamente tais campos de conhecimento, ao recuperar as diversas vozes historicamente silenciadas daqueles e daquelas que foram marginalizados pelo imperialismo e colonialismo (PRASAD, 2003) e por promover e disseminar saberes mais ajustados às realidades locais (ABDALLA; FARIA, 2017) por meio de uma epistemologia de fronteira. O gesto aqui proposto tem a possibilidade de expandir, então, os limites da crítica já desenvolvida em ambos os campos, ampliando as inteligibilidades (BUTLER, 2003; LERUSSI, 2014) das questões consideradas centrais pela reflexão compartilhada entre saberes jurídicos e organizacionais dissidentes.
Este artigo está estruturado em cinco seções, a contar desta introdução. A seguir, descrevemos os aspectos tradicionalmente considerados “essenciais” na afirmação do Direito do Trabalho. Na terceira seção, definimos o que chamamos de Estudos Organizacionais e fazemos uma aproximação deste com o Direito do Trabalho. Posteriormente, apresentamos alguns dos principais conceitos da perspectiva descolonial e sua contribuição para a compreensão e análise das disciplinas aqui aproximadas. Por fim, tecemos algumas considerações (não) finais acerca do estudo, em novas perguntas e aberturas críticas para a proposição de descolonização das relações, organização e regulação do trabalho.
Em sua compreensão tradicional, o Direito do Trabalho se apresenta como um ramo especializado do saber jurídico e da regulação de relações que se reporta ao trabalho livre e juridicamente subordinado, típico da modernidade capitalista. Definindo com um maior ou menor grau de precisão seu perímetro, o Direito do Trabalho, em sua história global, centrou-se naquela relação de exploração do trabalho que constituiu o eixo de afirmação do próprio industrialismo europeu: a relação de emprego padrão. Em uma imagem aproximativa, regula uma relação jurídica em que um trabalhador empobrecido, hipossuficiente, dependente, vulnerável de alguma forma, “vende” o único que pode “vender”: a sua força de trabalho. O Direito do Trabalho construiu, ao redor desta relação, por força tanto da luta social dos sindicatos modernos quanto da necessidade de estabilização sistêmica do próprio modelo produtivo, os mecanismos de sua ambígua regulação. Ambígua por, ao mesmo tempo, proteger o trabalhador e ajudar a legitimar juridicamente a relação de exploração em si. E com pretensões de universalidade crescente. Direitos conquistados historicamente passam a se acoplar a um arranjo assimilado majoritariamente pela reflexão jurídica como de natureza contratual, com obrigações que visam justamente limitar o poder privado entre empregador e empregado (SUPIOT, 2011).
Assim, o Direito do Trabalho forja para si uma “essência” no contexto da implantação e desenvolvimento da empreitada capitalista na Europa e no mundo. A expressão “essência” é utilizada por Hugo Sinzheimer (1984), “pai” do Direito do Trabalho alemão, ao tentar identificar, nos anos 1920, os elementos definidores do ramo em consolidação. Um ramo, note-se, já envolto numa ambiência crítica e contrahegemônica, desafiando as feições tradicionais de um Direito Privado patrimonialista e individualista. Ali, Sinzheimer (1984) já apontava o caráter unitário deste Direito nascente, reportado ao fenômeno moderno do trabalho assalariado. A “essência” deste ramo estaria ligada à energia representada pelo trabalho, que é o homem mesmo em ação. Esta inexorabilidade do corpo no trabalho, condição da própria regulação, já aparece como questão de grande relevância. Em seguida, aponta um segundo elemento essencial, que é a condição de dependência. Enuncia sua força e generalização, mas ao mesmo tempo a define em padrões bastante restritivos (em termos de vinculação a uma pessoa privada que exerce poder).
Alain Supiot (1990), também debruçado sobre a questão dos porquês essenciais algumas décadas depois, aponta duas razões estruturais para o Direito do Trabalho. Diz primeiro de uma constrição física que centraliza o risco ao qual está submetido o corpo e sua segurança na regulação do trabalho. A inseparabilidade, na mesma linha de Sinzheimer, estabelece um pressuposto regulatório complexo: o trabalho, em última análise, se passa invariavelmente do corpo, não se separa dele, não tem outro continente que não a própria pessoa (SUPIOT, 2011). Ao lado desta constrição física, uma constrição de ordem moral dá conta da aporia da subordinação da vontade livre. Ali, Supiot (2011) resgata a ideia de uma pretensão do Direito do Trabalho moderno de “civilizar” a empresa, deslocando a relação de trabalho do domínio do puro poder para o domínio do Direito. A chave do tratamento essencial desta constrição, em última análise, repousaria na dimensão coletiva da limitação do poder.
De modo geral, partindo-se do pressuposto da expressão do poder nos corpos, na dependência e a tentativa de regular os limites do poder na relação de trabalho, duas grandes correntes passam a se desenhar na área jurídico-trabalhista, a saber: o economicismo e o humanismo. A primeira abordagem prioriza as relações econômicas e os conflitos de interesse, enquanto a segunda, de modo contrário, enxerga o Direito do Trabalho como um instrumento de submissão das relações econômicas aos valores morais (SUPIOT, 1990). Esta primeira linha traçada na cartografia do pensamento jurídico nas relações modernas de trabalho revela, ao mesmo tempo, algumas tensões constitutivas do campo e uma certa convergência ao redor das grandes forças envolvidas. As relações, em si, tendem a se apresentar de forma mais ou menos homogêneas, estruturadas ao redor do poder econômico, estando o pensamento jurídico situado dentro de abordagens mais economicistas (seja para denunciar o conflito ou para ocultá-lo) ou humanistas (dentro das crenças mais tradicionais nos valores universais dos direitos humanos).
Estes grandes vetores de compreensão da regulação trabalhista moderna, gestados também na movimentação social e nas resistências operárias, terminam por formar um padrão de compreensão, categorias analíticas e modelos normativos que refletem esse próprio universo. E se espalham de maneira mais ou menos homogênea pelo mundo, especialmente ao longo do século XX. Nesse contexto, de acordo com Everaldo Gaspar Lopes de Andrade (2012), o Direito do Trabalho vai ser considerado um ramo jurídico especializado que possui princípios, enfoques e fundamentos próprios, um corpo consistente de doutrinas distintas e uma autonomia didática que tem como eixo central o trabalho livre/subordinado/assalariado. E, nesse universo de relações disciplinadas, coloca-se como um ramo do conhecimento jurídico que se destina “à pacificação do conflito social entre os detentores dos meios de produção e os trabalhadores (capital x trabalho)” (LOPES, 2006, p. 408).
Nota-se, então, que o Direito do Trabalho não se estrutura nunca num quadro de estabilidade, ou num jogo simples, unilateral ou direto de um poder monolítico. E tem, nessa perspectiva, funções disputadas. Supiot (1990) afirma que a função do Direito do Trabalho pode ser caracterizada pelas noções de proteção, ambivalência e equilíbrio, ainda que somente a primeira tenha um valor distintivo sobre os outros ramos do Direito. Neste contexto, a ideia de proteção está relacionada com o amparo ao trabalhador; a ambivalência no Direito do Trabalho diz respeito ao mesmo servir tanto ao trabalhador quanto aos empresários; já a última função seria o equilíbrio entre o econômico e o social, a segurança e a liberdade, a eficácia e a equidade, o individual e o coletivo (SUPIOT, 1990).
No Brasil, autores historicamente ligados ao momento de fundação do pensamento jurídico-trabalhista brasileiro, como Evaristo de Moraes Filho, apontam como principais características do Direito do Trabalho:
a) é um direito (...) que tende cada vez mais a ampliar-se; b) trata-se de uma reivindicação de classe; c) é intervencionista, contra o dogma liberal da economia, por isso mesmo cogente, imperativo, irrenunciável; d) é de cunho nitidamente cosmopolita, internacional ou universal; e) os seus institutos mais típicos são de ordem coletiva ou socializante; f) é um direito de transição, para uma civilização em mudança (MORAES FILHO; MORAES, 1995, p. 59).
Firma-se, então, essa ambiguidade fundamental: o direito que transforma é o mesmo direito que conserva. Ainda que o Direito do Trabalho incorpore geneticamente as pautas operárias da melhoria nas condições de vida e trabalho, ele também objetiva pacificar os conflitos sociais entre trabalhador e empregador e, dessa forma, possibilita a conservação/manutenção de uma determinada “ordem” social. Por outro lado, à medida que a sociedade se transforma, esse ramo jurídico especializado é instado acompanhar tal movimento, pois caso não o faça incorre no risco de perder sua legitimidade e, consequentemente, seu poder de conservação social (LOPES, 2006, p. 409). É justamente nessa fissura, nas ausências, no movimento da história, e numa complexidade ainda maior das formas desse poder nas relações de trabalho que o Direito do Trabalho, em suas supostas “essências” e sua função “civilizatória”, passa a revelar sua relação com a colonialidade.
Antes, contudo, que se chegue a uma discussão teórica aprofundada sobre a relação entre os saberes justrabalhistas e a colonialidade, alguns elementos básicos desse campo de regulação servem de apoio para uma compreensão crítica dessa relação. Como se materializa mais especificamente esse Direito do Trabalho? Tendo em vista que esta é uma disciplina autônoma, com regras e fundamentos próprios e doutrinas e abordagens metodológicas distintas, alguns temas aparecem com grande frequência, dando materialidade ao que se desenhou como parte desta pretensa “essência” jurídico-trabalhista. Refletem-se, negociam-se, normatizam-se, disputam-se temas como: o salário, o tempo e jornada de trabalho, os descansos, as condições de saúde e segurança, o contrato de emprego, o empregado e o empregador, a movimentação coletiva ao redor do trabalho, o sindicato, a negociação coletiva, a greve. Todos estes domínios se reportam ao mundo da vida de maneira específica, em universos de relações de trabalho dos quais retiram sua substância e devolvem normatividade. Desenha-se, a partir daí, uma cartografia sociojurídica de modos de trabalhar e de se regular o trabalho. Essa cartografia, mantenha-se em mente, já está fortemente associada aos modos de organizar a produção e a teorização dos modelos produtivos capitalistas, numa simetria de forma entre as disciplinas organizacionais e os modelos regulatórios.
Os elementos dessa arquitetura fundacional do Direito do Trabalho, contudo, nunca se reportaram de maneira homogênea à variedade dos modos de trabalhar no mundo. E assim seguem. Por vias muitíssimo variadas - que vão desde o trabalho “autônomo”, economicamente dependente e desprotegido, ao trabalho doméstico e reprodutivo, passando pela pobreza no trabalho até as ilegalidades diretas e marginalizações institucionalizadas - a maior parte das trabalhadoras e trabalhadores não se vê reconhecido na arena que, juridicamente, se vocacionou a tratar do trabalho humano (ILO, 2014). Coloca-se, então, a relação entre o centro duro da proteção e suas margens, na constatação de que a “essência” à qual se reporta a doutrina europeia trabalhista, nunca se materializou como tal. E que a ambiguidade fundacional a que se reporta a literatura crítica clássica do campo tem proporções ainda maiores. O enfrentamento integral da questão vai revelar inequivocamente as camadas subjacentes às instituições jurídicas em escala global, naquilo em que se relacionam com temas como o gênero, a origem étnica, a dominação e as raízes históricas da exclusão social. E, como se verá, a expressão complexa da colonialidade, que coloca a própria ideia de uma essência em xeque.
Aqui se dá, portanto, um primeiro passo do desvelamento provocado neste artigo. O Direito do Trabalho, evidentemente, não é um dispositivo simples de dominação. Ele traz em suas estruturas mais elementares uma disputa permanente. Faz infiltrar, pelas resistências, proteções sociais essenciais em algumas das formas de poder mais relevantes implicadas nas relações capitalistas produtivas modernas. Mas não em todas. Deixa de reportar suas categorias de proteção para muitas das formas do trabalho que se passam nas periferias espaciais e sociais do sistema-mundo. E normatiza a partir de um espaço, de um arranjo específico. Este arranjo, contudo, termina por ser deslocalizado e universalizado pela reflexão organizacional e jurídica, contribuindo para um processo de encobrimento da inteligibilidade social de outras formas de trabalho. Aí é que a própria normatividade trabalhista se põe, ainda que de modo não evidente, também a serviço da colonialidade. Algo bastante semelhante (ou mesmo articulado), como se verá a seguir, se passa nos Estudos Organizacionais.
Fundada por engenheiros, a Administração enquanto um campo de conhecimento se tornou a ideologia dominante nos dias atuais (GAULEJAC, 2006), carregada de modelos prescritivos da ação gerencial e predominada por uma razão instrumental. Na América Latina, de modo geral, e no Brasil, em particular, o estudo das organizações tem sido caracterizado por uma orientação meramente técnico-instrumental e prescritiva, em que a empresa aparece como ponto de referência da organização e os problemas organizacionais são resumidos em critérios de eficiência e rentabilidade empresarial (VIEIRA; SILVA, 2011).
Por outro lado, os Estudos Organizacionais (EO) têm suas raízes históricas próximas aos estudos sociopolíticos de pensadores da segunda metade do século XIX, que tentaram antecipar e interpretar as mudanças estruturais e ideológicas provocadas pelo capitalismo industrial, como Saint-Simon (REED, 1996). Também conhecido como Teoria da Organização, Comportamento Organizacional e em alguns casos Ciência da Organização, os estudos organizacionais são enraizados na epistemologia estadunidense e europeia (FRENKEL; SHENHAV, 2006) e se estabelecem na década de 1950 enquanto uma criação primordialmente estadunidense, tendo em vista as publicações de March e Simon (1958), Likert (1961) e Blau e Scott (1962), bem como a criação do periódico Administrative Science Quarterly, em 1956, que constituíram a cristalização desse corpo de conhecimento em um campo independente nos Estados Unidos (SHENHAV, 2005). Já a grande adesão pelo termo Estudos Organizacionais se deu a partir da publicação, em 1998, do Handbook de Estudos Organizacionais, que foi considerada uma expressão suficientemente ampla e suprimia os problemas dos termos anteriores (FACHIN, 2014).
Caracterizado como um terreno historicamente contestado e contextualmente mediado (REED, 1996), no qual diferentes estilos, abordagens e filosofias lutam por reconhecimento e aceitação, os EO constituem-se num corpo de conhecimento diverso e fragmentado e, para Ibarra-Colado (2006), trata-se de um projeto de origem anglo-saxã que objetivou, dentre outras coisas, ampliar o espectro social analítico da organização, já que o termo “organização” do ponto de vista positivista era incapaz de reconhecer qualquer realidade que escapa à racionalidade instrumental e à lógica do mercado.
O conceito de organização - que não se deve fetichizar - é aplicado para designar empresas, como também instituições ou entidades públicas, políticas ou sociais, e pode ser estendido a outros tipos de vida social organizada. São estudadas as práticas organizativas como conjuntos de ações, aplicações de princípios, exercício de poder e demais aspectos como controle, regulação, descriminações, identidade e diferenciação cultural, evolução, inovações, transformações e até destruição. (...) O foco de interesse principal não está nas performances (ou desempenho) de entidades, grupos ou indivíduos, mas no significado dos fatos e comportamentos que acontecem no âmbito das práticas organizativas (THIOLLENT, 2014, p. 2).
No Brasil, os EO se desenvolvem apresentando, em síntese, duas diferentes linhas de abordagem: uma vinculada aos estudos do management, do business, que buscam mensurar e aumentar a eficiência e a rentabilidade das organizações, e outros estudos multi-inter-disciplinares associados às ciências humanas e sociais. Porém, nos últimos anos tem havido uma forte tendência de separação dos EO das teorias gerencialistas (FARIA, 2014). Os estudos organizacionais em uma perspectiva crítica emergem no Brasil a partir da década de 1950, com as publicações de Guerreiro Ramos e Maurício Tragtenberg, os quais, de forma resumida, buscaram criticar como o referencial positivista serve para a criação de harmonias administrativas e retratar a predominância da ideologia gerencialista nas teorias organizacionais, inspirando, posteriormente, outros autores críticos da área, como Fernando Prestes Motta e Fernando Coutinho Garcia (PAULA et al., 2010).
Portanto, atualmente os EO se mostram como uma abordagem alternativa à perspectiva gerencialista hegemônica e convencional da Administração, que investiga as organizações e suas características culturais, políticas, econômicas e sociais, bem como seus efeitos sobre sujeitos e grupos que com elas interagem. Ademais, tal disciplina faz interface com outras áreas do conhecimento, tais como as ciências sociais e humanas (teóricas e aplicadas), a sociologia, a filosofia, a antropologia, a história, psicologia, ciência política, dentre várias outras, e são influenciados por escolas de pensamento distintas, como o marxismo, o anarquismo, o pós-estruturalismo, a Escola de Frankfurt, a fenomenologia, a hermenêutica, o pensamento foucaultiano, etc. (THIOLLENT, 2014).
Desse modo, os EO geralmente não são embasados apenas em perspectivas racionais instrumentais e lineares, cujo controle pode e deve ser determinado de maneira previa (VIEIRA; RIVERA, 2012). Também não há muito interesse em uma abordagem positivista de investigação científica que se baseie na objetividade, comprovação de hipóteses, universalização e neutralização da subjetividade do pesquisador. Pelo contrário, em sua maior parte, os EO críticos buscam se distanciar das ciências exatas e da natureza e se aproximam dos estudos culturais, literários e humanísticos. Em suma, os Estudos Organizacionais críticos buscam fugir de perspectivas gerencialistas para: I) criticar práticas organizativas dominantes e propor outras alternativas; II) avaliar os efeitos de projetos e práticas organizativas sobre a sociedade, saúde, consumo, cultura e meio ambiente; e III) dar voz e ouvidos para sujeitos marginalizados e/ou que expressam a possibilidade de organizações diferentes (THIOLLENT, 2014, p. 13).
Contudo, vale destacar que grande parte da literatura latino-americana e brasileira sobre os EO se baseia, ainda que no contexto de perspectivas críticas, em estudos estrangeiros, sobretudo em trabalhos estadunidenses e britânicos (VERGARA; CARVALHO, 1995; RODRIGUES; CARRIERI, 2001; ALCADIPANI; CALDAS, 2012; FACHIN, 2014), sendo o trabalho do pesquisador reduzido a simples importação, tradução e aplicação de conceitos. A influência do pensamento anglo-saxônico se deu, principalmente, devido ao influxo das multinacionais que passaram a atuar no Brasil na segunda metade do século XX, pela influência de professores e escolas estadunidenses que contribuíram para a fundação de programas gerenciais em grandes universidades do país e pela necessidade de pesquisadores do campo se referirem a um conhecimento já legitimado no contexto internacional (RODRIGUES; CARRIERI, 2001).
Desse modo, Alcadipani e Caldas (2012) relatam que o estrangeirismo é um traço marcante nos EO brasileiros, questionando a independência intelectual da produção científica na área. Fachin (2014) afirma que os pesquisadores do campo não leem os colegas brasileiros, e consequentemente pouco os referencia. Ibarra-Colado (2006) pontua que os pesquisadores latino-americanos dos EO adotaram as teorias críticas eurocêntricas que foram remodeladas nos contextos anglo-saxônicos e incorporaram temas e agendas semelhantes para estimular discussões e sua inserção no cenário internacional, ainda que essas teorias não expliquem o que realmente acontece em suas regiões, demonstrando que o desenvolvimento dos EO na América Latina pode ser visto como uma versão distorcida do pensamento funcionalista ou crítico do centro. Frenkel e Shenhav (2006) também denunciam os efeitos do encontro colonial na canonização dos estudos organizacionais, demonstrando que a autoidentificação do cânone como anglosaxão é claramente baseada em um sistema de omissões e exclusões, disfarçando a história colonial do campo e perpetuando um cânone ocidentalizado do centro. Nesse contexto, os EO se tornam conhecimentos estratégicos voltados para a manutenção e reprodução da diferença colonial, que delimita quais são os problemas relevantes da área e sob quais estruturas eles devem ser resolvidos. A adoção de currículos americanizados, a grande presença e disseminação de autores anglo-saxões, os best-sellers internacionais dos gurus da Administração e dos Estudos Organizacionais e a versão estereotipada do empresário estadunidense bem sucedido - homem, branco, caucasiano, heterossexual, liberal - são alguns exemplos que ilustram a colonialidade do campo (IBARRA-COLADO, 2006).
Assim, nos últimos anos tem havido uma crescente demanda por parte dos pesquisadores da área para desenvolver um pensamento nacional, questionando qual seria o “centro” e o saber periférico da pesquisa organizacional brasileira (MISOCZKY, 2006).
O conhecimento produzido a respeito das organizações e do organizar no Sul Global tem sido pautado pela colonialidade, reproduzindo teorias, referências e lógicas do pensamento do Norte Global, especialmente anglo-saxônico. No entanto, há tempos, a pertinência e o alcance da importação desses referentes estrangeiros, especialmente na América Latina, têm sido questionados e desafiados por autores e pesquisadores que, longe de reunirem-se em um grupo teoricamente coeso, vêm contribuindo para expandir o conhecimento sobre a complexa realidade organizacional latino-americana. Cientes da colonialidade do saber e da urgência da produção de outras bases para o desenvolvimento do conhecimento organizacional, esses autores voltam suas obras para a compreensão de suas realidades locais e geração de novos conhecimentos, sem sucumbir ao provincianismo (CAMARA, 2015, p. 235).
De modo geral, por se tratar de um campo de conhecimento fragmentado, diverso, interdisciplinar e multiparadigmático, várias são as possibilidades de temáticas de pesquisa na área. Entretanto, Thiollent (2014) pontua que a centralidade do trabalho é um dos eixos temáticos de maior destaque em EO. Neste sentido, se contrapondo ao gerencialismo, a visão crítica busca evidenciar a coisificação a qual são submetidos xs trabalhadorxs como meros apêndices das máquinas, sendo as “condições de trabalho, condições de vida e saúde humana associadas aos modelos e práticas organizacionais”, bem como “a precarização do emprego, (...) os ritmos de trabalho, (...) a carga mental exigida, estresse, depressão, riscos de acidentes e a banalização do sofrimento no trabalho em todos os setores de atividade” alguns dos assuntos frequentemente debatidos e pesquisados na área (THIOLLENT, 2014, p. 3).
Os paralelos com o Direito do Trabalho são evidentes. Ambos produzem, a partir de perspectivas críticas, por vezes ambíguas, formas de saber e de poder. Tais formas de saber e poder, ainda que referenciadas à perspectiva da defesa de interesses subalternos em face de poderes hegemônicos, não refletiram ainda ostensivamente sobre a colonialidade dos seus próprios pressupostos históricos, teóricos e normativos.
Uma “meta-história” que alimenta tanto os saberes jurídico trabalhistas quanto organizacionais fornece uma primeira medida para compreender as ausências compartilhadas. Almeida (2012) salienta que, com a Revolução Industrial, trabalhadorxs agrícolas migraram do campo para as cidades a fim de operarem máquinas nas fábricas em troca de salário, culminando no trabalho assalariado. Todavia, dadas as condições precárias do trabalho nas fábricas, os baixos salários, a carga horária de trabalho excessiva e a exploração do trabalho da mulher e do menor (que trabalhavam mais horas por um salário inferior), além das profundas marcas deixadas pela escravidão e pelo latifúndio nos modos de organização do trabalho (LANZARA, 2016), o Estado passou a regular as relações de trabalho a fim de tentar garantir melhores condições para xs trabalhadorxs (MARTINS, 2010).
Assim, pode-se dizer que a criação de normas trabalhistas se deu como forma de controlar os movimentos decorrentes da expansão da empreitada capitalista. Mas tal controle não se deu de forma homogênea na distribuição social e geopolítica dos modos de trabalhar. Historicamente, diversos modos de trabalhar não foram incluídos nesse grande eixo explicativo compartilhado por ambas as disciplinas aqui aproximadas.
Além disso, diante deste caráter ambíguo, transitório e transformador do Direito do Trabalho, e mediante as radicais transformações ocorridas no Brasil e no mundo, as formas da colonialidade se reinscrevem nos modos de trabalhar da contemporaneidade. E tal reinscrição se confirma analiticamente nas análises organizacionais. Nos últimos anos, por exemplo, novas práticas organizativas emergem no contexto do trabalho, como o cooperativismo (recorrentemente fraudulento), o teletrabalho, a elevação dos níveis de terceirização, o suposto empreendedorismo, as novas formas do trabalho por conta própria. Uma multiplicidade de modos precários de trabalhar, gerar riqueza e constituir relações sociais. Propõe-se, então, uma aproximação pela defasagem nesses dois campos da crítica, a partir da compreensão detalhada dessa sua colonialidade.
Um dos conceitos fundamentais em que este artigo se ampara e que atravessa os estudos descoloniais é a noção de colonialidade do poder. De acordo com Quijano (2000, 2013), o termo pode ser entendido como um processo estruturante do sistema-mundo moderno/colonial que auxilia na compreensão da dinâmica de poder empregada na organização, divisão e hierarquização das sociedades em diferentes formas de dominação e exploração, como a epistêmica, sexual, econômica, linguística, política e, principalmente, a racial, além de ajudar a compreender a manutenção das formas coloniais de dominação para além da colonização.
Neste sentido, a colonialidade do poder2 indica como a ideia de raça e de racismo viabiliza o projeto moderno e capitalista europeu pela divisão do mundo segundo raças e justifica a crença da superioridade europeia como modelo de vida e desenvolvimento econômico. Com a exportação de noções europeias sobre o patriarcado, a sexualidade, epistemologia e espiritualidade por meio da expansão colonial, tais noções se configuraram como critérios hegemônicos para racializar, classificar e patologizar o restante da população do mundo (GROSFOGUEL, 2008, p. 124). Assim, além de justificar a exploração de um povo sobre o outro, a colonialidade do poder estrutura ainda a acumulação de riquezas, privilégios e poder segundo uma matriz racista (QUIJANO, 2000, 2013; GROSFOGUEL, 2008; MIGNOLO, 2010; LUGONES, 2014).
Trazendo para o contexto do Direito do Trabalho e dos Estudos Organizacionais, ressalta-se que o processo de colonização e racialização das nossas relações é inerente ao projeto moderno-capitalista ainda vigente e estruturante na organização das sociedades contemporâneas. O Direito do Trabalho, como visto no início deste artigo, afirma uma “essência” num gesto “civilizatório” que se reporta à sujeição do trabalhador em face do poder econômico. Tudo na regulação do trabalho se colocaria à luz destas duas dimensões da dependência, da sujeição: a do corpo e a da vontade. Para esses dois elementos essenciais, a teoria decolonial e suas articulações com outros saberes dissidentes apresentam alguns problemas desconcertantes. Os processos de sujeição nunca se essencializaram de maneira homogênea. Os corpos e subjetividades estiveram subordinados e exprimiram dependência de formas muito distintas nos processos modernos de exploração do trabalho.
Por outro lado, o ato de “civilizar” representou muito mais do que Supiot (1990) pretende recuperar em seu sentido etimológico próprio. Dirá Castro-Gomez (2005, p. 89) que “o ‘processo da civilização’ arrasta consigo um crescimento dos espaços da vergonha, porque era necessário distinguir-se claramente de todos aqueles estamentos sociais que não pertenciam ao âmbito da civitas”. Ao se instituir relações “civilizadas” de trabalho, define-se, por conseguinte, o bárbaro, o de fora, o outro. E este outro nas relações de trabalho foi tradicionalmente deixado neste espaço, considerando a não tipicidade de seus modos de trabalho em face das categorias jurídico-trabalhistas de regulação e análise.
A colonialidade ainda determina a distribuição geográfica do trabalho e da acumulação de riqueza (FRANCO, 2016), e seu pressuposto é a divisão internacional do trabalho entre centro e periferia. Os espaços, tempos e mão-de-obra são valorados conforme o grupo racial ao qual pertencem e assim se faz necessário para que a economia global funcione. O trabalho barato é realizado por não-europeus de zonas periféricas e o “trabalho assalariado livre” situa-se no centro. Desse modo, “a acumulação capitalista à escala mundial opera em simultâneo através de diversas formas de trabalho que são divididas, organizadas e atribuídas de acordo com a racionalidade racista eurocêntrica da “colonialidade do poder”” (GROSFOGUEL, 2008, p. 135).
No universo do Direito, as perguntas se adensam em face das hierarquias sociopolíticas expressas nas relações de trabalho. “No puede ser una coincidencia o simplemente un accidente histórico” que a maioria esmagadora dos estatutos precários, pobres, despadronizados, são racialmente definidos e se alojem nas periferias, antigas colônias ou nos seus deslocamentos territoriais (QUIJANO, 2013, p. 156). O campo da chamada informalidade é, nesse quadro, aquele que desenvolveu de maneira mais concreta essas reflexões marginais sobre as relações e regulação do trabalho.
O trabalho livre e juridicamente subordinado, regulado sob o regime da relação de emprego padrão, nunca exprimiu e ainda hoje não exprime a extensão da estrutura das relações produtivas no sistema-mundo do capitalismo moderno. O emprego padrão e, com ele, aquilo que se entende por Direito do Trabalho, são uma metonímia eurocentrada, elemento de uma monocultura (SANTOS, 2007) jurídica constituída em contraste aos modos de trabalhar existentes sul global e articulados ao redor do capital. Em contraste àquilo que se conhece pelo conceito amplo de trabalho informal. Globalmente, as normas afetas ao trabalho no modelo capitalista de produção se constituem em uma metanarrativa totalizante, que circunscreve o Direito do Trabalho àquela que supostamente seria a relação jurídica básica no cenário socioeconômico da Modernidade. Há uma pretensão, na base do Direito do Trabalho, de alcançar a parcela mais relevante das modalidades de trabalho, com vocações de considerável universalidade. Na aproximação proposta neste artigo se demonstram as contradições sobre as quais se assenta tal construção, partindo da constatação que no sistema-mundo capitalista, patriarcal, ocidental, moderno e colonialista (GROSFOGUEL, 2008) as formas de trabalho constitutivas do modelo produtivo não se estabeleceram unicamente na direção da relação de emprego padrão.
Uma variedade enorme de modos de trabalhar se conjugaram desde o alvorecer da empreitada colonial no século XV, sistematicamente incorporadas, de formas diretas e indiretas, ao modelo econômico afirmado. Quijano (2013, p. 154) é quem aponta mais uma vez com precisão que “el trabajo asalariado siempre ha sido una pequeña minoría en el conjunto del trabajo en el mundo capitalista”. Um Direito do Trabalho constituído em suas categorias fundamentais exclusivamente à luz da experiência dos eventos históricos e da movimentação social dos países do norte global revela-se insuficiente para a compreensão dos sentidos que ele mesmo incorpora ao centralizar uma relação de trabalho específica e universalizá-la, inclusive para o sul, como padrão regulatório. É um Direito que não compreende o peso e centralidade dos muitos modos de trabalhar que constituem o complexo domínio do chamado trabalho informal. É, em outras palavras, um Direito do Trabalho colonial.
Não se pretende negar, aqui, a força do trabalho assalariado para o modelo produtivo, nem tampouco para as lutas sociais ao redor regulação. Esta referida multiplicidade de formas de trabalho articuladas no modelo de produção, de uma maneira ou de outra, circulam o eixo do assalariamento. Ou, como dirá mais uma vez Quijano (2013, p. 154), “la relación capital y trabajo asalariado fue el eje en torno al cual se articularon, desde el comienzo del capitalismo, todas las formas del trabajo”.
Mas, ao lado disso, é preciso compreender que o trabalho não assalariado, não livre, escravizado, em regime de servidão pessoal, em arranjos variados de reciprocidade, despadronizado, atípico, tradicionalmente esteve na periferia espacial e social do mundo. Por esta razão, induz-se uma percepção de que tais relações de trabalho comporiam um mundo apartado, tanto na geografia social quanto no tempo (QUIJANO, 2013). A crítica a esta razão dualista (OLIVEIRA, 2003) revela a fusão estrutural dos dois mundos, sua integração dialética em circuitos comunicantes (SANTOS, 2004), expondo uma fratura na base daquilo que a regulação jurídica pressupõe como o centro definitivo do trabalho na modernidade. A crítica da integração intrínseca de universos ocultados pela metanarrativa do assalariamento também se desdobra a partir da ideia de divisão sexual do trabalho (HIRATA, 1993), de trabalho reprodutivo (FEDERICI, 2017) e das considerações do feminismo em face de modelos regulatórios centrados num modo apenas de trabalhar (FUDGE, 2011; VIEIRA, 2018).
Ainda no que se refere à distribuição geográfica do trabalho, Quijano (2009, p. 110) pontua que no eurocentro prevalecem os capitalistas, enquanto na periferia colonial os dominantes são os capitalistas tributários. Em contrapartida, os assalariados, as classes médias e os camponeses independentes constituem os dominados do eurocentro; já os escravizados, servos e pequenos produtores mercantis independentes são os dominados da periferia colonial. Tal fato pode explicar porque a escravidão contemporânea não é tão incomum ao capitalismo. Neste sentido, relações de trabalho caracterizadas como degradantes e pré-capitalistas expressam a manutenção da colonialidade do poder no sistema-mundo moderno/colonial. Ademais, a noção de colonialidade do poder possibilita ainda reconceitualizar o mundo do trabalho, a fim de que “certas divisões antes tidas por não capitalistas [e que] deixavam de ser objeto de análise de teorias econômicas, sociológicas e jurídicas eurocêntricas, passam a ser consideradas componentes de modo de poder global/colonial/moderno” (FREITAS, 2017, n.p).
Além de uma específica formação de classes de âmbito mundial, onde diferentes formas de trabalho (como escravidão, semi-servidão feudal, trabalho assalariado, etc.) coexistem e são organizadas pelo capital, da divisão internacional (centro e periferia) e racial do trabalho, e da hierarquização étnico-racial global que privilegia povos europeus em detrimento dos não-europeus, a expansão colonial do projeto moderno capitalista eurocêntrico baseado na figura do homem heterossexual/branco/patriarcal/cristão/militar/europeu permitiu também “uma hierarquia global que privilegia os homens relativamente às mulheres e o patriarcado europeu relativamente a outros tipos de relação entre os sexos” (GROSFOGUEL, 2008, p. 122). Nesse sentido, bell hooks (1994, p. 203) afirma que criticar o imperialismo do colonizador branco sem analisar o patriarcado é uma estratégia que busca enfraquecer os modos particulares de como o gênero determina a opressão dentro de um grupo específico.
Assim, Lugones (2008) analisa a interseção entre gênero, classe, raça e sexualidade como forma de buscar entender as violências que sistematicamente incidem sobre as mulheres negras, vítimas da colonialidade do poder e, indissociavelmente, do que ela chama de colonialidade de gênero. A autora justifica que o termo foi cunhado tendo como base a consideração de gênero como uma imposição colonial e o conceito de colonialidade de poder delineado por Quijano (2000, 2013), mas ressalta que vai além deste, uma vez que, segundo Lugones (2008), tal autor reduz gênero a organização do sexo. Lugones (2014) ainda destaca o lugar das mulheres não brancas na colonização da América Latina, em especial o das mulheres negras e indígenas, lugar este estereotipado, inferiorizado e no qual seus corpos são objetificados sexualmente.
Neste contexto, Muradas e Pereira (2018) denunciam a invisibilização pela doutrina juslaboral brasileira predominante das sujeições interseccionais estruturadas por uma divisão laboral racial-sexual, oriundas da colonização, nas relações de trabalho contemporâneas. De acordo com as autoras
tal abordagem transhistórica linear ignora que tais formas de trabalho [escrava e servil] na colonização da América Latina foram simultâneas e associadas à ideia de raça e gênero para naturalizar funções inferiores na divisão social do trabalho. Consequentemente, o desempenho de funções precárias e subalternas nas relações de trabalho contemporâneas no Brasil atinge trabalhadoras e trabalhadores periféricos, interseccionalmente oprimidos pela raça e gênero desde a colonização, e que continuam silenciados por uma narrativa única de matriz eurocêntrica de celebração da liberdade pelo trabalho subordinado, fruto da colonialidade do saber ainda presente no Direito do Trabalho Brasileiro (MURADAS; PEREIRA, 2018, p. 4).
Desse modo, é possível afirmar que a coexistência do trabalho escravo, servil e livre na América Latina colonial articulada com a colonialidade de raça e gênero não somente permanece no Brasil, como também cria sujeições interseccionais presentes na divisão laboral nacional. A entrada no mercado de trabalho brasileiro de homens negros e principalmente de mulheres negras, por exemplo, é caracterizada pela precariedade e vulnerabilidade, e pela ocupação de posições subalternas e mal remuneradas. Além disso, ainda que de forma geral as mulheres tenham mais anos de estudo, isto não se reflete em sua remuneração no mercado de trabalho, já que homens brancos têm os melhores rendimentos, seguidos de mulheres brancas, homens negros e mulheres negras (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2017, p. 03; OLIVEIRA, 2019), o que confirma, consequentemente, as sujeições interseccionais herdadas do colonialismo.
As duas últimas hierarquizações globais advindas da expansão colonial do projeto moderno capitalista eurocêntrico e que são objetos da crítica epistemológica descolonial que gostaríamos de problematizar neste artigo são as hierarquias epistêmica - a qual privilegia o conhecimento ocidental, principalmente do norte global, em detrimento dos não ocidentais - e linguística, que também vai privilegiar a comunicação, linguagem e a produção de conhecimento eurocêntricos e subalternizar “outros” (MIGNOLO, 2000; GROSFOGUEL, 2008). Estas duas servem muito à compreensão das relações entre colonialidade e os saberes produzidos nos estudos organizacionais.
De acordo com Mignolo (2010), a crítica descolonial sobre a colonialidade do poder exige um desprendimento do conhecimento eurocêntrico em nível acadêmico e social. Contudo, não se trata apenas de constatar a colonialidade do saber enquanto papel da epistemologia na reprodução dos regimes de pensamento colonial, mas, sobretudo, no desenvolvimento de uma desobediência epistêmica como contraposição aos conceitos modernos e eurocêntricos (MIGNOLO, 2010).
Desta forma, Grosfoguel (2008) pontua que é preciso discutir a contribuição de abordagens subalternas étnico-raciais e feministas para as questões epistemológicas. O pensamento crítico de fronteira, por exemplo, pode ser considerado como uma resposta transmoderna descolonial ao projeto eurocêntrico da modernidade, uma vez que redefine a “retórica emancipatória da modernidade a partir das cosmologias e epistemologias do subalterno, localizadas no lado oprimido e explorado da diferença colonial, rumo a uma luta de libertação descolonial em prol de um mundo capaz de superar a modernidade eurocentrada” (GROSFOGUEL, 2008, p. 138).
Outrossim, Castro-Gómez (2005, p. 14) destaca a noção de ponto zero ao criticar o Iluminismo do século XVIII e sua tentativa de criar uma metalinguagem universal e científica para superar e se distanciar das deficiências de linguagens do cotidiano, ou seja, um conhecimento não-situado, uma perspectiva “neutra”, objetiva e universalista a partir da qual o mundo poderia ser nomeado em sua essencialidade, refletindo o caráter universal da razão eurocêntrica.
Aqui, faz-se necessário refletir sobre o Direito Trabalhista brasileiro e sua pretensa universalidade, baseada “no Iluminismo institucionalizado no contexto da modernidade, abordando como núcleo neutro e hegemônico o trabalho livre e subordinado” (MURADAS; PEREIRA, 2018, p. 10), bem como de parte do conhecimento dos Estudos Organizacionais produzidos na Europa e EUA que se tornou aceito como “verdades objetivas e universais para organizar as relações de trabalho” (JACQUES, 1996, p. 13). Como forma de descolonizar tais estruturas de poder/conhecimento colonial, autores como Haraway (2009), Dussel (1977) e Grosfoguel (2008) propõem, respectivamente, as noções de saberes situados/localizados, geopolítica do conhecimento e corpo-política do conhecimento, evidenciando o locus da enunciação, isto é, o lugar geopolítico e corpo-político do sujeito que fala.
Além disso, de acordo com Castro-Gómez (2005), na imbricação entre modernidade-colonialidade-capitalismo a régua valorativa possui a Europa como marco zero, como marco de referência, e o homem-branco-hetero-europeu como o de maior prestígio social. Ele é a referência para o estabelecimento do máximo valor de vida, de trabalho, de conhecimento, como padrão de comportamento físico e mental. É também este homem que define os padrões do bem, do belo e da verdade, respaldado por sua ciência. Neste sentido, emerge, então, a ideia de colonialidade do ser como a experiência vivida da colonização e o seu impacto na linguagem (MALDONADO-TORRES, 2007, 130).
A ciência (conhecimento e sabedoria) não pode se separar da linguagem; as linguagens não são somente fenômenos ‘culturais’ nos quais as pessoas encontram sua ‘identidade’; estas [linguagens] são também o lugar onde o conhecimento está inscrito. E se as linguagens não são coisas que os seres humanos têm, mas algo que são, a colonialidade do poder e do saber engendra, então, a colonialidade do ser (MIGNOLO, 2003, p. 669).
Para Soto (2008), a noção de colonialidade do ser, além de estar relacionada à ideia de colonização da identidade e subjetividade de um povo, sintetiza grande parte do aparato conceitual descrito anteriormente, uma vez que nele está contido as consequências práticas das colonialidades anteriores no que diz respeito às violências cometidas pela negação do “outro”, do não europeu.
O processo de descolonização desses dois campos de saber-poder que têm relações profundas e ambíguas com a crítica e a resistência, o Direito do Trabalho e os Estudos Organizacionais, partirá, é certo, da compreensão das hierarquias epistêmicas nas quais estão ambos assentados. O processo, contudo, é dos mais difíceis e não tem respostas definitivas. Isso porque, em ambos os campos, articulam-se conquistas sociais e acúmulos críticos importantes e permanentemente disputados em seus domínios. A própria onda de corrosão de direitos trabalhistas e previdenciários na América Latina, bem como o crescimento de perspectivas políticas autoritárias e conservadoras, são uma prova do fato de que a defesa desses campos, em sua própria existência e pressupostos, pode estar no caminho de sua descolonização. Esse senso de autopreservação, contudo, não poderá significar uma sinalização para a permanência da colonialidade. As conclusões, então, se colocam necessariamente como novas aberturas críticas.
A centralidade conceitual do trabalho na afirmação do sistema-mundo e as hierarquizações decorrentes da expressão da colonialidade do poder são, ainda hoje, muito presentes. O itinerário das aproximações propostas neste artigo parte da permanência contemporânea da pluralidade de modos de trabalho envolvidas nos processos de produção, circulação e consumo de mercadorias no mundo, organizadas à luz de princípios hierárquicos. Parte, em outras palavras, da ideia de uma colonialidade da organização e regulação do trabalho, que se mantém muito viva, de muitas formas.
Os dados da Organização Internacional do Trabalho (2014), por exemplo, dão conta de uma prevalência maciça do trabalho por conta própria, em suas muitas modalidades no sul global. Além disso, há um uso sistemático do trabalho não livre no modelo produtivo. O capitalismo contemporâneo usa o maior volume de pessoas escravizadas da história da humanidade (ILO, 2017). No domínio do trabalho doméstico, a colonialidade se acopla ao gênero, em relação consubstancial (KERGOAT, 2009) que se exprime numa geografia social de dupla feição: de um lado, na grande presença de trabalhadoras domésticas no sul global (ILO, 2013), de outro, na inserção hierarquizada das trabalhadoras domésticas, comumente migrantes, nos países do norte.
Diante de tudo isso, a crise na regulação e organização do trabalho é genética e muito maior do que enunciada no norte (SUPIOT, 1999). A regulação tem alcance tímido, vez que as categorias centrais não se amoldam à variedade dos modos de prestar trabalho sistematicamente incorporado ao capitalismo. E, juridicamente, são amplamente reproduzidas na regulação do sul global, que ecoa os modelos regulatórios do norte. As próprias tentativas de inserção ou ampliação do escopo fazem apenas um gerenciamento de margens, na expressão de Leah Vosko (2010). A manutenção de uma ideia de “tipicidade” faz com que formas centrais sejam percebidas juridicamente como menos relevantes para a ordem socioeconômica. O conceito residual e eurocentrado de “trabalho atípico” (PÉLISSIER, 1985) denuncia como ainda o Direito do Trabalho, ao nomear e categorizar, hierarquiza modos de trabalhar. Ou melhor, hierarquiza pessoas, pois esses modos subalternos de trabalhar se manifestam em corpos racializados, gendrados e localizados.
A teoria decolonial latino-americana, portanto, serve como uma ponte teórica para acessar tais realidades do trabalho de um modo complexo. O processo de descolonização dos saberes reportados a esses universos passará necessariamente por uma discussão e reconstrução das categorias básicas da regulação moderna do trabalho, desde sua estrutura global à forma jurídica, à corporalidade localizada, às compreensões de segurança física, à subjetividade no trabalho. E tal processo se passará em meio aos ataques contemporâneos às conquistas sociais na regulação do trabalho, o que o torna ainda mais difícil.
A partir daí, de uma compreensão mais acurada das formas da colonialidade na regulação e organização do trabalho, enunciam-se as novas perguntas que devem alimentar o difícil processo de descolonização do Direito do Trabalho e dos Estudos Organizacionais. É possível pensar um Direito do Trabalho permeável à heterogeneidade das formas de exploração do trabalho incorporadas ao capitalismo em sistema-mundo? Estudos organizacionais que compreendam as dinâmicas de sujeição, opressão e potencialidades desses modos heterogêneos de trabalho? Regulação e análises críticas que compreendam a fundo a dinâmica do chamado trabalho informal, do trabalho reprodutivo e do trabalho por conta própria? Como um pensamento epistemologicamente plural pode contribuir para isso?
Nosso objetivo com este artigo foi analisar como a perspectiva descolonial enquanto uma epistemologia crítica pode contribuir com um outro olhar para o Direito do Trabalho e para os Estudos Organizacionais. A partir da aproximação entre as duas disciplinas e amparado em conceitos como colonialidade do poder, ser, saber e de gênero, nos propusemos a explorar o pensamento descolonial para compreender e ampliar o debate sobre as relações de poder e de trabalho em nossa contemporaneidade.
Neste sentido, percebe-se que o conhecimento produzido a respeito do Direito do Trabalho e dos Estudos Organizacionais no Sul Global, especificamente nacionais, há muito tempo tem sido pautado pela colonialidade, reproduzindo, muitas vezes, teorias, referências e lógicas do pensamento do Norte Global. Contudo, a pertinência e o alcance da importação desses referenciais estrangeiros têm sido questionados e desafiados, os quais vêm contribuindo para expandir e problematizar o conhecimento sobre a complexa realidade organizacional e das relações de trabalho.
Se o conhecimento pode ser considerado também como um instrumento de poder, é possível imaginar formas alternativas e subalternizadas que seriam instrumentos de resistência, as quais oferecem visões distintas e descolonizadas do mainstream do Direito do Trabalho e dos Estudos Organizacionais brasileiros. Para tanto, faz-se necessário que ambas as disciplinas se voltem para as relações de sujeições coloniais que são mantidas e reproduzidas após o fim da colonização e para a compreensão de suas realidades locais, já que a descolonização do conhecimento científico-social é condição fundamental para a ruptura de padrões históricos de dominação do trabalho no sistema-mundo moderno/colonial e para que outros mundos e visões de mundo sejam possíveis.
Todavia, vale ressaltar ainda que “nem tudo que é nacional é bom, nem tudo que é estrangeiro é ruim; o que é estrangeiro pode servir de revelador do nacional e o nacional pode servir de cobertura às piores dependências” (SCHWARZ, 2008, p. 136). Isto é, enquanto pesquisadorxs de ambas as áreas, tanto do Direito do Trabalho quanto dos Estudos Organizacionais, temos que estar conscientes dos limites e perigos de essencialismos, transcendendo extremismos e provincianismos, uma vez que “o limite distorcido do universalismo é a arrogância do império colonizando todas as outras perspectivas, [e] o limite distorcido do particularismo é a arrogância de uma perspectiva única que se acredita acima de todas as outras” (RIBEIRO, 2002, p.177, tradução nossa).
Deste modo, rejeita-se uma solução absoluta e universal para o projeto colonial/moderno, capitalista e eurocentrado da produção de conhecimento nas Ciências Sociais. Nosso intuito não é finalizar o projeto inacabado da modernidade, e sim concluir o projeto inacabado da descolonização, compreendendo este artigo como uma atitude decolonial (MALDONADO-TORRES, 2017), ou seja, enquanto uma atitude prática que busca desnaturalizar e descolonizar formas coloniais que hierarquizam as relações sociais e que produzem seres e saberes subalternos e marginais, a fim de (re)formular, apresentar e expandir outras formas de ver, saber, ser e poder para o giro descolonial, promovendo relações plurais, descentradas e localizadas.
